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O recolhimento
Ces monstres disloqués furent jadis des femmes,
Ejonine ou Laisl Monstres brisés, bossus
Ou tordus, aimons-les! Ce sont encore des ämes.
BAUDELAIRE, «Les Petites Vieilles»
O recolhimento, antigo mosteiro, näo tinha nenhum aquecimento no Inverno e, pelo Veräo, os quartos, alguns de telha-vä, éram fomos.
Como viera parar ali? Pergunta que, havia um ano, Maria dos Anjos fazia todos os dias a si propria. Ä noite, principalmente, quando o casaräo em ruínas se aŕundava em trevas e siléncio.
As recolhidas deitavam-se cedo. Velhas, todas. E tam-bém a directora, que padecia de alucinacôes e que nas vol-tas da Lua vagueava pelos claustros a cantar o Tantum Ergo. A Teresa caseadeira dizia que era por ser filha de padre.
Talvez ainda a Teresa estivesse a pé, a casear algum smoking ou corpinho de noiva. Ninguém como ela na ci-dade para esse servico, apesar dos seus setenta anos e da luz da candeia. As oito horas, Lia, a criada da directora,
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desligava a electricidade. Oito horas! No Inverno, ouviam--se por vezes gritos ou pragas. As lämpadas que bruxulea-vam nas curvas dos corredores apagavam-se de repente como se um vento mau atravessasse a casa. E a Mil-Ho-mens, a essa hora a repartir a ceia com os gatos, amaldi-9oava a directora, a criada, as autoridades que, segundo ela a haviam desterrado ali.
A Mil-Homens. Que ferrete a apartava das demais? A alcunha? D. Felícia, mestra-régia reformada, pousava os olhos no chäo ao passar por ela. E havia quern na capela mudasse de sítio para näo se ajoelhar a seu lado. Mil--Homens. Libertinagem? Prostituicäo? Maria dos Anjos, pórem, sentia por essa mulher näo só curiosidade mas até simpatia.
O rosto comprido da Mil-Homens, os seus olhos des-confiados, a boca mole, faziam pensar em teatro, em pantomima. Teatro de expressäo, de olhares. (Só quando Lia cor-tava a luz nas noites de Inverno é que a voz da Mil--Homens se erguia a condenar o mundo.) E pairavam-lhe os cabelos de um branco-amarelado, secos e Crespos, levan-tados ao alto da cabeca em forma de coroa.
As noites do recolhimento e os fantasmas de Maria dos Anjos.
Noites longas. Ouvia as trés no relógio do Carmo, quantas vezes as quatro.
«Menina prendada e séria procura lugar em casa de familia.» Ao 1er o anúncio corara, como se se tratasse da oferta dela propria em corpo e alma, das prendas, da serie-dade. Um pressentimento. Ou um aviso. Outras raparigas, ao deixarem o orfanato, punham anúncio para casar. Outras ainda iam bater ä porta de um bordel.
O seu tempo. Mulheres coisas, utilidades ou entreteni-mentos. (Näo teria a Mil-Homens pertencido äs ultimas?) Mulheres também para quem casar significava «levar a Cruz ao Calvario» e ficar solteira «ser honesta». O orfanato, que quase só abrigava filhas naturais, devia a sua existencia ä desonestidade das mulheres. Os homens näo
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tinham nada com aquilo. Se um ou outro, magnanima-mente, contribuía com dinheiro, dotes, bolsas de estudo, o seu nome ia para a lišta dos benfeitores e o seu retrato para o saláo de honra.
No orfanato, Maria dos Anjos costumava esgueirar-se para a sala dos retratos a tentar descobrir em algum deles o pai. (Náo a tinham mandado estudar?) Figuras imponentes de bigodes fartos ou suícas, colares de comendas, hábitos talares. Homens cujo grau de honestidade crescia conforme o das mulheres descia.
O seu tempo. As filhas herdavam o fado das máes. Ao olhar aqueles retratos, contudo, Maria dos Anjos náo se persuadia de que havia de ter filhos de homens assim nem se sentia filha de nenhum deles.
Os filhos. O que há muitos anos fora para o Brasil nunca lhe escrevera. Lembrava-se dele á partida do vapor, de cara obstinadamente escondida na curva do bra?o. Um menino, quase. Mais tarde constara que fugira do emprego, ninguém o conseguiu localizar, deram-no por morto. Ela, que o sabia impulsivo, imaginava-o desesperado, a enfor-car-se, salvo seja. Roxo, pendendo de uma árvore, um jaca-randá. Porqué jacarandá? Por ser pau-santo?
Brasil. O pai dos seus filhos enriquecera lá e de lá trouxera a mořena de olhos bugalhudos como castanhas do Maranháo que a contratara para dama de companhia e que de vez em quando lhe cedia o marido: Miquinhas ficava a olhar por Sr. Costa, a tratá-lo bem; ela ia matar saudades de mamae e do Pará.
As crian9as nasciam de uma e de outra, no chalé de sacadas de vidro. Criavam-se juntos. D. Jandira achava mais mimosas as da dama de companhia. «Que ar táo pu-rinho! É da máe.»
Aos quinze, aos dezasseis anos, os meninos de ar puri-nho deitavam sangue pela boca. D. Jandira empenhava as jóias (já entáo o dinheiro do Brasil escasseava) para os mandar para o sanatório. Chorava, por fim, sobre o caixáo |      deles, chamando-lhes filhos do seu coracáo.
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D. Jandira. Maria dos Anjos. Sr. Costa. Que compaixäo ou que sarcasmo havia unido os trés?
Sr. Costa, um símbolo apenas: duplo queixo, gravidade e relaxamento, poder e dependéncia. Sr. Costa cobicoso calculista e väo.
E na casa? E na cama?
Na casa, D. Jandira. D. Jandira boa, bonita, generosa. D. Jandira a vender os diamantes de Minas para tratar a tísica dos filhos perfilhados do marido. D. Jandira mäe duas vezes.
Na cama, a confusäo e o fastio. Näo propriamente re-morsos (como haver remorsos sem desejo?), antes revolta contra os privilégios do macho, e também a nostalgia do amor. Na cama, vagas recordacôes da primeira infáncia: o leite a espirrar, morno, de um úbere de cabra; urna voz de velha a adormecé-la. E também urna vontade louca de rir. Ou de chorar?
Duas horas na torre da igreja. «Miquinhas, tem coberto-res que cheguem?» Äs escuras e de olhos fechados, via agora o quarto ponto por ponto, o mesmo que dizer: D. Jandira. Näo o chalé de alpendres envidracados e re-puxos no jardim. Täo-pouco Sr. Costa. D. Jandira unica-mente. Como se o espírito da brasileira a quisesse acom-panhar até o fim. Como se a brasileira e ela fossem urna só. O roupäo de pélo de camelo desbotado e puído. O relógio de música há muito parádo. O biombozinho de laca täo deslocado entre as paredes de reboco e o soalho roto. O vestido, as pantufas, a camisa de D. Jandira. «Ué, Miquinhas, como tenho dormido!»
De Invemo, no meio da noite, os gatos gemiam nos te-lhados e morria urna ou outra recolhida. Morriam caladas, deitadas de lado, de membros contraídos. A Filomena fora assim. Mal-encarada, com a fama de ter sido bela e levia-na, aparecera vestida, dura e fria, na manhä do primeiro do ano, com uma nota de vinte escudos na liga da meia.
Lia, mulher de mau génio e mandando mais do que a patroa falha de juízo, apregoara a condenacäo eterna da Fi-
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lomená. Criatura que rendesse a alma ao Criador sem haver frequentado a igreja nem mostrado contricäo final, certo se perderia, segundo a criada da directora. Para mais a Filomena, que nem rosário tinha, nunca se desapegara de todo dos antigos luxos: o rouge, o pó-de-arroz, o ferro de frisar
I as madeixas, e só o dinheiro, marca do demónio, a acom-panhara ä derradeira.
Dia de tempestade o do enterro da Filomena. Como as escadas que levavam ä cozinha tivessem aluído, as velhas atravessavam a cerca e atolavam-se. De olhos turbados de cataratas, Rita, a porteira, proclamava que mäo sem braco lhe arrancara da testa os óculos, por alturas do poco, mäo leve e rápida como o vento, mäo täo gelada que a cegara
i   de todo, pelo que näo dava com o quarto.
Foi quando, mais urna vez, D. Adelaide Silveira entor-nou o petróleo. De família nobre e com noventa anos, D. Adelaide gozava da permissäo de cozinhar no quarto, e
f volta e meia pegava fogo ao tabique. E Lia veio entäo de lá com um saco de areia e a cruz ao alto a gritar que era a
I alma penada da Filomena. Vejam: a alma penada da Filomena, tendo já empecido a Rita, empecia agora D. Adelaide e o seu companheiro: um papagaio rezinguento que repetia com voz fanhosa o «abrenüncio» de Lia.
Ah, D. Adelaide Silveira e o seu universo de velha lunática! Äs vezes, de noite, o piano de mesa desafinava misteriosamente a serenata de Schubert, e corria na casa que era a fidalga a dormir. Adormecida, sonämbula, D. Adelaide, sonhando provavelmente com passados es-
I plendores, sentava-se ao piano e praticava música. Acorda-da, contudo, perdidos o tino e os dedos, näo acertava com
|-. a ária mais simples.
Urna relíquia, D. Adelaide, no recolhimento. Pela Páscoa, quando o prior visitava quarto por quarto, chama-
f vam-na aos aposentos da directora para um cálice de vinho do Porto. E impante e grotesca, a tropecar na cauda do vestido de fim de século, a fidalga regressava, por uns momentos, ao seu mundo: a família, os amigos... Que es-
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panto o senhor prior nao conhecer nenhum deles! Se toda a cidade os conhecia! E, subito, muito velha e muito abando-nada, a pingar vinho na renda do peitilho, a olhar em redor em busca do papagaio. O recolhimento.
A Ana-dos-brincos-grandes batia-lhe a porta todas as mannas: D. Maria dos Anjos queria alguma coisa? Habitua-da a servir, a fazer recados, a ajudar, oferecia os seus pres-timos antes de sair para a casa do senhor doutor.
Paralitico, o senhor doutor. De que valia ter dinheiro? Ninguem para o aturar senao ela, antiga servical, que lhe dava as voltas, lhe metia a comida a boca. Os olhos tristes do senhor doutor! Ai, os filhos! Os sacrificios que a gente faz, e depois... Os do senhor doutor vinham uma vez por mes, de dois em dois meses. Achavam que se gastava muito em remedios. Regateavam-lhe a soldada. As freiras olha-vam pelo doente de noite, por caridade. Ela, porem, que nao fora escolhida, tinha de esgaravatar para comer. Moire-jara, criara um filho, servira toda a vida, e de seu tinha apenas os brincos das orelhas. Os filhos! Se o senhor doutor pudesse falar... O dela estava bem, a mulher herdara terras, matava um cevado todos os anos, mas a mae nao a conhecia. A mae que oferecera o cordao de ouro a Senhora da Saude quando, pelos tres anos, o vira preto de bexigas, que o pusera de anjo na procissao do Corpo de Deus, que por ele se esquecera dela propria. Sabia D. Maria dos Anjos o que era parir ao canto de uma rua, como gata vadia, ser desprezada por essa infelicidade, andar ao papel, a bos-ta, para ganhar o sutento da crianga, e ve-la depois crescer e afastar-se?
Os brincos tilintavam-lhe no pescoco esguio e encorrea-do. Antes morresse ao bota-lo ao mundo. Antes o abando-nasse num vao de porta, o entregasse no asilo dos orfaos, o mandasse de presente ao pai que era rico e o enjeitara.
No quarto de tecto baixo a voz de Ana-dos-brincos--grandes ganhava tons dramdticos.
E Maria dos Anjos desatou a chorar.
Chorava pelos filhos mortos no desabrochar da idade, os filhos que näo tinham chegado a trai-la mas que talvez (quern sabe?) viessem tambem a envergonhar-se dela. E por aquele que se perdera por täo remotas terras, o suicida, % I    orgulhoso de mais, esse, para viver.
Choravam as duas. Maos de ossos e veias a esconder a cara toda uma ruga. Maos desamparadas, impotentes e con-tudo ainda capazes de gestos, de enxugar lägrimas, de se estreitar mutuamente.
— Olhe, Sr.a Ana, eu so tenho a dizer bem dos filhos. Infelizes que eles foram! E eu sem lhes poder valer. Eu, mäe inütil.
As mäos da Ana-dos-brincos-grandes eram rijas e quen-tes, mal-grado o Inverno.
No fim da vida, D. Jandira usava mitenes de lä e deita-va as cartas, na salinha das traseiras, com os dedos triguei-ros a sair da malha cor de cinza. Aparecia um valete e logo a seguir um äs de espadas. D. Jandira estremecia. Raulzi-nho em perigo? Traicäo? Cilada? Tinham de aparecer os outros. E apareciam.
Raul. Leonel. Os filhos de D. Jandira, se bem que raro dessem notfcias, näo eram de se suicidar. Robustos e afoi-tos, iam e vinham, contavam de amores e de negöcios, hi-potecavam a casa, encomendavam do estrangeiro o ultimo medicamento para a angina pectoris de mamäe, deixavam aträs de si uma imensa saudade.
As mäos de D. Jandira na carapa^a das mitenes dir-se--iam crustäceos. (Raul era do signo caranguejo ou escor-piäo?) E Maria dos Anjos comparava aquelas mäos mater-nais e ociosas (mäos de deitar sortes, de folhear romances, de pentear meninos, de compor flores em caixäo), compara-t' va-as ao proprio horoscope Como se so por si tais mäos guiassem os passos dos mocos la longe.
«Descanse, Miquinhas vou agora deitar por seu filho. Näo me convenco de que o menino se tenha deses-perado.»
Baralhava. Partia. Tornava a baralhar. E, nisto, aquelas
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mäos eram pás a escavar o chäo... Maria dos Anjos aperta va-as nas suas, solu9ava sobre elas.
As mäos de D. Jandira. As mäos da Ana-dos-brincos--grandes. Täo diferentes e täo semelhantes. Mäos de patroa. Mäos de criada. E ambas sopesando, inteiro, um co-ra9äo.
Conheceria a Mil-Homens mäos assim? Decerto que näo. Dai a moleza da sua boca e o olhar suspeitoso. A vida da Mil-Homens devia ter sido um vasto palco, e ela sempře em cena e fatigada. Essa a sua desgraca: a fadiga. Quando a criada da directora cortava a luz nas noites de Invemo, a Mil-Homens vinha repentinamente a si e indig-nava-se. Urna espécie de ressurreicäo. Em tais ocasiôes, vingava-se, näo propriamente da falsidade de Lia, mas das desconsideracôes de D. Felícia, do desprezo da sociedade, do abuso (quem sabe?) de mil homens. Nessas ocasiôes tinha a consciéncia de ser e enternecia-se. E na penumbra dos corredores, a sua cabeca altiva, aureolada de cabelos rucos, fazia pensar nas figuras dramáticas das sagas.
Um dia, alguém indicou a nova recolhida ä Conferéncia de Säo Vicente de Paulo. Com a morte da Filomena havia uma vaga. E, pela primeira vez, Maria dos Anjos com-preendeu que era indigente. Indigente — rótulo indis-pensável para acesso a hospícios e hospitais, ao päo de Santo António, ä sopa do Albergue, ä esmola. Indigente. Pior do que pobre. Pior do que só. Urna casta ä parte. Como os párias, ou os intocáveis.
D. Jandira contratara-a para dama de companhia, e näo apenas pela sua boa apresentacäo, mas por saber francés, bordados, um pouco de música. Menima prendada. Costu-mava entreter as visitas organizando saraus artísticos.
Filhos-família a tocarem harpa ou violončelo. Burgue-sas rolicas a declamarem O Noivado do Sepulcro. E ela a servir o chá e a interrogar-se sobre o seu lugar ali. Nem serva nem senhora. Nem anfitriä nem hóspeda. Paráda a meio da sala com o bule na mäo, era como se näo sou-besse o que fazer a seguir, como se receasse sabé-lo.
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«Parabens, Miquinhas. A festa deve-se a si.» A face empoada de D. Jandira. O seu perfume. Quantas vezes tinha contado os degraus ate o seu quarto? E por que seria que nessas noites duplicavam os degraus?
De tais noites lhe viera a perdicao.
Nos dias comuns lia para D. Jandira, saia a compras, distraia-se. Em Sr. Costa nem sequer reparava.
Mas quando a seda das saias rangia pelos saloes, os chapeus altos se enfileiravam no bengaleiro, cintilavam es-sencias e aneis, tiniam vozes e cristais, a sua solidao cres-cia do tamanho do mundo e achava-se capaz de se dar mesmo a Sr. Costa.
Situacao parecida com a que experimentava agora: a indigencia.
So que entao era nova e podia entregar-se a caprichos: deitar-se com Sr. Costa sem o amar, ter filhos dele e nunca lhe querer bem, sonha-lo outro e melhor.
So que entao havia D. Jandira.
A Conferencia era de senhoras e era de meninas. Ela escolheu as meninas. Estudantes. Passavam as quintas-feiras pelo recolhimento como uma brisa marinha, deixando atras de si um rasto de sal. Nos corredores e nas varandas esco-radas, abertas ao tempo, negras de humidade, as suas vozes ecoavam agudas e frescas. E nam muito, riam de tudo, como se o recolhimento fosse, sei la, uma comedia.
Bom ve-las rir com os dentes todos (nas mais novas, aros de prata a alinhd-los), sentir-lhes o odor acre dos cor-pos adolescentes, ouvi-las fazer solenes e impossfveis pro-messas.
Meninas ricas, de famflias com dom, que falavam da «minha pobre» como quem diz «o meu cao» ou «o meu gato». Meninas pequeno-burguesas, correctas, que alegre-mente se tinham filiado na campanha das boas accoes (Faz bem, nao olhes a quem. Da e receberas). Meninas que liam as cartas das velhas analfabetas inventando palavras de ter-nura. Meninas que pediam oracoes pelo bom resultado dos exames ou dos namoros.
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Maria dos Anjos guardava, ciosa, como quern amea-lha um peda^o de vida, a senha de dez escudos que lhe vinha das mäos bulicosas e ardentes das meninas e lhe dava direito a artigos de mercearia. O que lhe cus^ tava trocá-la por arroz ou por batatas! Aquele cartäozi-nho branco-sujo, com o nome dela em letras angulosas, juvenis, era uma ponte entre um mundo que nunca conhe-cera e o seu exílio. Espécie de amuleto, de insignia de fé. Quase uma memoria de amor. Quase uma notícia do filho.
E äs quintas-feiras vestia o seu melhor vestido, punha nos cabelos grisalhos o pente largo de tartaruga, sentava-se na beira da cama feita de lavado.
(Quern uma vez lhe chamara «rosto de Madona»? As mäos tremendo no areo do violino, os olhos cegos. «Ele tem olhar exacto, Miquinhas. Ele viu o que ainda ninguém tinha visto. Madona! Até me arrepio...»)
As meninas entravam sem bater. Cabeleiras soltas, modos desenvoltos, mäos suadas.
Por urn momento, Maria dos Anjos acanhava-se. Essas visitas näo usavam os seus usos nem falavam as suas falas. E tal como D. Adelaide Silveira no Domingo de Páscoa, desnorteada ante o deserto da velhice, olhava em redor ä procura, sabe-se lá de quem, talvez de D. Jandira.
Mas a poueo e poueo a aproximaeäo ia acontecendo. As meninas queriam organizar um chá, um baile de cari-dade, e Maria dos Anjos ensinava-lhes reeeitas de doces brasileiros, formulas rigorosas com dizeres de fubá e päo dormido. E, se alguma das mocas aparentava cansa90, dese-jo de se sentar, levantava-se ela, alisava a colcha de chita, pedia desculpa de näo ter cadeiras.
Um consolo e uma inquietagäo, as meninas da Confe-réncia.
Ao contrario de Lia, que lhes censurava as saias curtas e as maneiras irreverentes, Maria dos Anjos amava-as por isso, por as saber senhoras dos seus próprios sonhos, donas daquilo de que ela fora escrava.
E que vontade de lhes confiar o seu passado, de lhes mostrar retratos, de lhes falar de D. Jandira! (Náo de Sr. Costa. De Sr. Costa, a ninguém.) Um retrato em especial: muito nova, cabelo apartado ao meio, máos cruzadas no colo, ar de inocéncia. Do tempo em que ainda acredita-va no amor.
Ao seráo, ao deitar as cartas por ela, D. Jandira vira-va intrigada. A sortě dizia sempře que Maria dos Anjos nunca havia de se apaixonar. Descia entre as duas um si-lencio incomodativo. E nessas ocasioes, só nessas, Maria dos Anjos pressentia no olhar da amiga uma centelha de ódio.
O seu segredo, que D. Jandira nunca entendera, náo obstante o peito derramado de compreensáo, também as meninas o nao entenderiam. Fortes e audazes, tinham-se habituado a escolher e a rejeitar, a dizer sim sim, náo náo, e ser-lhes-ia preciso um grande esforco náo só para aceitar a obscura história de Maria dos Anjos como para a figurar com dezoito anos.
Nas tardes de sol D. Almerinda costumava ir com duas
amigas até ao cemitério que ficava defronte do reco-lhimento. Muito alta, muito magra e muito pálida, D. Almerinda levava um livro piedoso para ler, enquanto as amigas faziam meia sentadas nas pedras tumulares. E, ao vé-la da janela do seu quarto, Maria dos Anjos imaginava-a a propria Senhora Mořte a revelar ás outras os seus altos mistérios.
(Náo era o médico de D. Jandira que tinha na sala de espera um quadro com uma figura assim esquelética a lutar com um jovem clínico?)
Se corria vento, a écharpe preta de D. Almerinda esvoacava como asas de corvo. As amigas, duas velhas pequeninas (uma coreunda), arrancavam dos canteiros dos jazigos bolbos de plantas para o jardim da directora. Espal-mada na pedra enegrecida de um mausoleu, lívida e longa, a máo de D. Almerinda, um lagarto.
Entáo, o sino do recolher. Sete horas. Lia descia a botar
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os ferrolhos. As tres parcas apressavam-se de volta a casa. O papagaio de D. Adelaide Silveira rezava o Angelus e gargalhava.
O recolhimento.
Algumas velhas fruiam de uma alegria ingenua, semi--inconsciente: viüvas de homens prepotentes ou solteironas a quem os pais, quase macröbios, tinham finalmente expira-do, viviam de pequenos montepios, obsequiavam-se entre si — um lencinho, uma compota —, sentiam-se ainda senho-ras. Outras esperando todos os dias, com decepcäo vaga-mente indignada, amigos ou parentes hä muito falecidos. E havia as que se queixavam da importunidade de visitas imaginärias.
Destrocos, o mundo do recolhimento.
Näo fossem as mäos quentes e äsperas da Ana-dos-brin-cos-grandes e as memörias de D. Jandira, que seria de ti, Maria dos Anjos?
Restavam as meninas da Conferencia, para quem o recolhimento näo ia alem de um espectäculo interessante: um argumento para lancar ingenuamente aos mocos de ideias avancadas ä mesa do cafe: «Ora, näo me venhas com politica, eu conheco os pobres...»
Se äs quintas-feiras Maria dos Anjos vestia o seu me-lhor vestido e punha de lado retratos que gostaria de lhes mostrar (sem nunca, contudo, o chegar a fazer), era em homenagem ä mocidade delas e em repüdio da morte. Täo soberbas de vida, as meninas da Conferencia afligiam-na, como se a cada esquina o tempo as esperasse de embosca-da, meu Deus que desperdicio!
A Ana-dos-brincos-grandes, todavia, sabia o cjue era ter filhos sem amar e sabia o que era perde-los. A Ana--dos-brincos-grandes näo precisava de contar nada. Se D. Jandira escutasse a Ana, havia de lhe perdoar por näo ter amado Sr. Costa.
O relögio do Carmo repetiu as quatro. O frio penetrava os cobertores e Maria dos Anjos enroscava-se como um bicho-de-conta.
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Por que viera parar ao recolhimento? Por ter sido falsa consigo mesma? Por se haver criado num orfanato?
E a Mil-Homens? Uma vida inteira raivosamente ä procura dela propria e a encontrar-se ali, ao lusco-fusco, entre paredes esboroadas e mios de gato.
Dormir. Afundar-se no sono. Por fim ao pensamento.
Se tivesse fe, rezaria para dormir, para que todo o recolhimento dormisse. Tortura da velhice: recordar! Dai as alucinagöes da directora, as perplexidades de D. Adelaide,
o enfado da Mil-Homens.
Manhä cedo, apös os despejos, Lia passava com os seus pes pesados e a pä do acücar queimado a desinfectar os corredores: um diabo de lingua de fogo a aprestar o cami-nho ao Sagrado Viätico para a directora doente. E as reco-lhidas arrastavam-se, trupe-trupe, ate ä cozinha com as mar-
mitas do leite ou da sopa.
Maria dos Anjos via-as na volta pela cerca (as escadas interiores continuavam aluidas), sentia-lhes o cheiro pobre da cevada e do caldo requentado. Quando sopravam as bra-sas do fogareiro, as caras das velhas, vermelhas e tümidas, faziam pensar em criancas, faziam pensar em palhacos.
E se adormecesses para näo acordar mais, como a Filo-mena? Se morresses assim calada, deitada de lado, de membros encolhidos?
Talvez que a Ana-dos-brincos-grandes, mal-grado os preconceitos de Lia, te acendesse uma vela ä cabeceira. E talvez (quem sabe?) as meninas da Conferencia apareces-sem, impressionantes de vida, para olhar a tua morte.
E se as meninas da Conferencia, desejando saber de ti, remexessem as gavetas, te desencantassem aquele retrato: muito moca, cabelo apartado ao meio, mäos cruzadas no colo, ar inocente. O retrato do tempo em que ainda näo tinhas atraicoado o amor?
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