A preferida Döi muito. Se escrevo e so para me livrar disto de vez. A literatura, palavra feia, tem a vantagem de me des-fazer de mim. E chega. Eu vivia numa casa regularmente invadida por gru-pos de pessoas, a maior parte das quais näo conhecia antes nem fiquei a conhecer depois. A porta ficava aberta todas as noites e entrava quem quisesse. Era agosto; eu estava triste e precisava de companhia. Uma noite, que näo sei como ainda chega ate aqui, entraram na sala duas raparigas que depressa me fascina-ram, porque cada uma delas me parecia mais bela do que a outra. Deixei-me apaixonar pelas duas, ja que nem era öbrigado nem saberia escolher, se bem que soubesse que devia haver, porque sempre ha, uma preferida. Falavam, dancavam, riam e bebiam sempre juntas e eu so tinha de ter o cuidado de näo quebrar aquele encanto. Passaram a vir todas as noites. O champanhe, que um meu amigo me oferecera em paga por um parecer juridico, pode ser o responsävel, ja que os pormenores do desejo näo ficam registados, de ter entrado num quarto com uma das raparigas, a qual desde entao passou a viver comigo e que eu amei. Da vida pouco se sabe, e e justo assim, porque näo me arrependi. Durante alguns anos fui mais feliz do que e sensato esperar e näo me lembrava da outra rapariga, que deixou 4e aparecer, senäo quando, por acaso, a encontrava. Entäo ficava täo encantado que tinha a certeza que o dia chegaria ern que so com ela poderia continuar a viver. Era a certeza de sermos feitos um para o outro, que logo depois se esvanecia. Quando voltei a estar só, e digo-o assim porque nun-ca sei quem deixa o outro mas só que um mundo nos es-capou, refugiei-me num hotel de província. Foi aí, algu-mas semanas mais tarde e de repente, que um sentido da vida me voltou. A preferida, porque tinha de haver uma preferida, sempře fora a outra rapariga. Tinha urgéncia em estar com ela, apesar de saber que nao haveria manei-ra de lho explicar. Um comum amigo deu-me o seu novo numero de telefone. Foi ela quem atendeu com a sua voz que ninguém pode esquecer. Ela conhecia o lugar onde me encontrava e falámos evitando embaracos e silěncios. Antes de desli-garmos tive a coragem de lhe dizer que gostaria de a ver e foi ela que me disse com a sua própria voz que podíamos almogar juntos logo que eu voltasse, o que me fez chegar, por alguns momentos," uma alegria de que me julgava, uma vez mais, incapaz. Quando regressei á cidade continuava triste e nao lhe telefonei. A tristeza é só nossa e para se merecer alguém é preciso merecermo-nos primeiro a nós próprios, julgo eu. Chega porém o dia em que nao nos aguentando pegamos no telefone. Era uma tarde de domingo e estava confiante que nao a encontraria em casa, e mesmo se estivesse nao era dia nem hora para combinar o que quer que fosse. Com esta desculpa que me dei, telefonei-lhe. Foi a voz dela que eu ouvi. Nao estava preparado e nao me lembro do que falámos mas sei que foi ela que me disse que se eu quisesse nos poderíamos ver naquela mesma noite, depois de um jantar de trabalho que ela tinha, num restaurante que ela me disse qual era e onde eu a poderia ir buscar. Nao foi por vaidade, porque conheco detalhadamen-te a minha miséria, mas devo ter experimentado vários loi casacos, calgas e gravatas e fiz a barba com tanto cuidado que me cortei em vários sítios da cara enquanto veloz-mente imaginava tudo o que nos poderia acontecer. Mas, Gomo se sabe, o que acontece é sempře a única coisa que ficou por pensar. Quando entrei no restaurante, julgando chegar a tempo para uma sobremesa, ainda protegido pela presen-£a dos outros, ela e as duas pessoas com quem tinha o jantar de trabalho ainda nao se tinham sequer sentado á •rnesa. Pior, o restaurante estava cheio e a mesa que lhes fora destinada nao tinha lugar para uma quarta pessoa, encostada á parede como eu. ! Foi ela que me salvou daquela incómoda situagao su-gerindo que a esperasse num café vizinho, que disse ser sossegado. Foi o que fiz, acaparando de imediato á entra-da todos os jornais disponíveis, que li sofregamente sem . qualquer interesse para, como se diz sem saber o que se diz, matar o tempo. Mas o tempo estava lá, pesado e indi- Iferente, e rolava tao lentamente sobre a minha cabeca •: que cedo me comecou a doer. A čerta altura, e já tinha passado mais de uma hora e meia, obsessivamente controlava o meu relógio e o dos outros, a dor comecou a crescer o que, primeiro, me im-pedia de perceber o que lia e, depois, de reconhecer as palavras. Assaltava-me, e eu cada vez mais fraco, a ideia ■.de que ela teria preferido nao me ver ou, pior ainda, se tinha esquecido simplesmente de mim. Era meia-noite e meia quando me levantei, paguei a conta ao balcáo e me dirigi para o restaurante. Entao -: ainda me sentia capaz de aceitar a verdade por mais hor-rível que fosse, indo depois muito depressa para casa, onde tomaria alguns comprimidos que, de qualquer módo , me fariam dormir. Ha estava lá, e os outros também. Acabavam de to-mar ° café. Pediu-me desculpa pela demora e depois pediu a fot mm 54 conta que demorou horas a chegar. Fiquei de pé, havendo já lugar onde me sentar, com uma vertigem que me impedia de falar. Quando consegui olhar para ela notei que estava cansada. Foi este o pretexto, depois de ela se ter levantado, despedido e comecado a andar ao meu lado em direccao ao meu carro, que invoquei para lhe dizer que náo era preciso falarmos, que podíamos muito bem fícar calados. Aš pessoas comecam a falar porque náo aguentam o siléncio. Mas eu precisava dele e quando ela comecava a dizer qualquer coisa eu repetia-lhe, baixinho, que nao era preciso falar. No carro pus música, o que me ajudou, e arranquei sem qualquer ideia de um trajecto. Alguns qui-lómetros depois parei o carro, desliguei a música e ouvi--me dizer: — Está muito cansada. O mais sensato é írmos para um quarto de hotel e dormirmos. Eu conheco um bom hotel aqui perto. Parecia lógico mas foi com espanto que ouvi a voz dela dizer: — Vamos. Arranquei em direccáo ao hotel e quando parei o carro perto da entrada ouvi solucos. Quando me virei para o lado vi-a a chorar. Disse-lhe: — Sou um estúpido. Peco desculpa. O que é que se pode fazer num quarto de hotel? Vamos antes apanhar ar. Fomos para uma esplanada com vista sobre a cidade e nao parámos nunca mais de falar. Tínhamos tanta pres-sa em contar tudo um ao outro que aconteceu por várias vezeš falarmos ao mesmo tempo e rirmo-nos disso. Vi-nham-nos coisas á cabeca que tínhamos para sempře es-quecido. Nao deixávamos de nos olhar nos olhos. Estáva-mos apaixonados, tinha a certeza, e tenho a certeza que ela também teve essa certeza. Depois de a levar ao seu carro, segui-a no meu até á porta da sua casa, onde ela voltou a entrar para conti- nuarmos a falar sem parar, agarrados pelos olhos e agora também pelas maos. Já era tarde. Perguntei-lhe quando é que nos poderíamos voltar a ver, e ela disse-me que tinha muito trabalho no princípio da semana mas que poderíamos jantar na quinta-feira, para eu lhe telefonar. Era preciso aguentar uns dias mas eu nunca mereci facilidades e sabia como ocupar aqueles da melhor ma- neira: com ela. Segunda, terca e quarta-feira mandei-lhe flores, sempře as mesmas, sempře as minhas preferidas, vários tele-gramas, de que gosto por causa do ritmo imposto e pela urgéncia, poemas que mandava entregar por um servico de mensageiroš e um livro de fotografias que curiosamen-te juntava as amantes dos grandes fotógrafos, fotografa-das pelos próprios. Nesses trés dias nao me lembro de ter pegado no "telefone. Quinta-feira acordei feliz e passei o dia feliz. As seis da tarde em ponto marquei o numero, escrito em várias /•fólhas, náo fosse perder-se. Atendeu-me uma voz mascu-lina que me disse que ela nao estava em casa. As sete li-guei de novo. Atendeu-me uma outra voz masculina que • me disse que ela nao estava. Ás oito a mesma voz disse--me o mesmo. As nove e depois ás dez repetiu-se o que eu já sabia. A minha ansiedade crescia enquanto a impa- | eiéncia da voz que me respondia a tornava mecánica aos meus ouvidos. Procurei acalmar-me como podia justifi-cando a auséncia com um qualquer motivo imprevisto e, quando já náo podia, com a ajuda eficaz de ansiolíticos. Acabei por adormecer. Sexta-feira acordei feliz. Claro que ia estar com ela. ; Claro que a qualquer altura ela me ia telefonar para me , pedir desculpa do sucedido e eu lhe diria que náo pedis-se desculpa de nada, que eu é que tinha de lhe pedir desculpa por ser assim impaciente. Näo saí de casa e quando tomei duché tive o cuidado de pôr o auscultador fora do descanso. Mas o telefóne nunca tocou ou se tocou näo era ela e eu nem ouvi quem era nem o que me diziam e desligava depressa porque es-tava ä espera de urna chamada muito importante. Ás seis horas telefonei-lhe. Urna das duas vozes mas-culinas, que confundia, disse-me que ela näo estava em casa. As sete, äs oito, äs nove e äs dez fíz o mesmo e a res-posta, qualquer que fosse a voz mas nunca a dela, era a mesma. Enlouquecia. Näo conseguia encontrar qualquer justificacao por mais que procurasse, e eu procurava, que näo fosse o ela desejar que.eu enlouquecesse. Eu näo acreditava e, de hora em hora, tomava um ansiolítico. Também acabei por adormecer. Sábado acordei a sofrer. Um sofrimento muito antigo, igual ao que pela primeira vez senti quando a minha mäe me deixou em casa dos meus avós e me mentiu ao dizer-me que ia ficar comigo e no outro dia, quando acordei, me disseram que ela tinha partido. Por isso a única coisa que eu teria de perdoar ä minha mäe nunca perdoei. Mas se ela telefonasse eu perdoá-la-ia. Eu precisava que ela me telefonasse, nem que fosse por misericórdia, para me dizer que desaparecesse. Dir-lhe-ia que tinha razäo, que näo a merecia, que era melhor para ela, já que para mim agora tanto fazia. Mas ela nunca telefonou. Passei horas sentado na mesa a olhar para o telefóne e a escrever coisas que iam perdendo o sentido. Eu já näo sabia nada. Näo sei se dormi. Sei que estava doente, que tinha dores no estômago e nos dentes. Sei que näo estava nada bem e que näo havia ninguém para me ajudar porque nem procurava lembrar-me de mais alguém. Sem esperanca alguma, ao princípio da tarde de sábado telefonei. Ouvi urna das vozes dizer que ela estava a dormir. Desliguei, peguei no carro e fui. I0( I m - Subi a correr quatro langos de escadas, toquei ä cam-painha, e por detrás da porta apareceu um rapaz bonito que me falou com urna voz familiär. Apresentei-me e pedi para entrar. Atenciosamente levou-me para urna sala com flores, disse-me para me sentar e perguntou-me o que queria beber. Sentou-se ao meu lado, depois de me ter ido buscar um copo de água, e disse baixinho: — Ela gosta muito de voces. Näo percebi. Pensei que fosse um erro de gramática e pedi-lhe para repetir. Ele repetiu e eu compreendi. — A situacäo é delicada. O namorado chegou hoje de Amsterdäo e estäo os dois a dormir. Näo sei se a devo :ir acordar para lhe dizer que está aqui. Peco desculpa. O que é que acha? Levantei-me, gragas a urna inesperada vontade, e disse que eu é que lhe pedia desculpa, que näo sabia, que lhe pedia simplesmente, se ele me fizesse esse favor, que j lhe dissesse que eu pedia desculpa e que näo voltaria a telefonar ou a mandar o que quer que fosse, que tinha muito respeito. Näo me lembro dos dias que se seguiram. Sei só que Ü näo fiz disparates. Eu mereco o pior e näo lhe devo fugir. O veräo chegava ao fim, os meus amigos voltavam de férias e eu estava triste mas já näo estava sozinho. Näo lhes contei o que acontecera porque näo saberia como sem que me vissem chorar, e eu sou um forte. Näo lhe vbltei a telefonar ou a mandar o quer que fosse porque nem sequer deixei que tal me ocorresse. Passaram oito dias quando recebi urna carta. Era urna carta dela, da minha preferida, a carta mais horrível que alguma vez li. Dizia para eu näo lhe telefonar mais, gara parar de lhe mandar telegramas, poemas, livros, e .que uäo gostava de flores. Dizia ainda que amava alguém. 01 a única carta que rasguei. B 1 Nunca mais nos falámos. Cumprimentamo-nos ä dištancia quando por acaso nos encontramos num restaurante ou num bar. Se penso nela é só para me repetir que ela continua a merecer o meu amor e que o que aconte-ceu só aconteceu por minha culpa, por näo reparar, como devia ter reparado, que havia sempře alguém ao šeu lado que eu näo via, o que é perdoável, fascinado como ficava pelos olhos dela, tal como uma lebre paráda no meio da estráda encandeada pelos faróis do carro em que vai em-bater para se ferir. Trés cartas anexas Minha querida desaparecida, apesar de estar täo zangado consigo näo resisto a es-crever-lhe. . Ontem, como sabe, foi quinta-feira e durante todo o dia esperei ouvir a sua voz porque precisava mesmo de ouvir a sua voz (näo é de falar consigo, é de ouvir a sua voz) e eu te-lefonei de hora em hora para o numero que vocé me deu e nunca era a sua voz, mas antes vozes diferentes cada vez mais impacientes com os meus telefonemas e tive de desistir. Mas do que eu näo posso desistir é de si. Se quiser eu digo-lhe porque. Se näo quiser eu näo lhe digo nada. Se quiser eu fico calado mais trés anos. Mas quero que saiba que acordo todos os dias a pen-sar em si, melhor e mais exactamente a olhar para si, é adormeco todas as noites a pensar em si, melhor a olhar fixamente para si, e por mais que me teňte distrair e fazer outras coisas — mas eu näo quero distrair-me e fazer ou-tras coisas — volto a pensar irremediavelmente em si. Disto näo tenho culpa porque näo há nada que possa fazer senäo pedir-lhe desculpa de ser assim. ItÚ Mas näo lhe peco desculpa nenhuma. Vocé é que me devia pedir desculpa de me tornar täo doce o mundo quando ougo a sua voz, que eu näo quero outra coisa senäo ouvir a sua voz. Fique, minha querida, com o que quiser de mim. Minha querida desaparecida, porque é que me deixa assim sem saber de si? Mesmo sem eu merecer acha que eu mereco mesmo que vocé me continue a tratar assim? Porque é que me deixa fícar assim ä espera, causando em mim a dor maior, que é a de me for-car a deixar de esperar por si, para logo a seguir ter urgen-temente de voltar a esperar por si? Será só para que eu -sinta essa dor? Ou será para que eu desespere mesmo? Má. pj;; Mas o que é que aconteceu para ter de ser assim? Será para eu voltar mais uma vez, sempře mais uma vez, a pensar no que aconteceu e no que näo aconteceu e näo a encontrar senäo a si? Como é que tem a certeza de que g|u mereco isto? Vá lá, diga-me pelo menos isso. Como é íque pode adivinhar que eu preciso tanto de si, se eu proprio nunca sei quanto? Será que o que me faz deixando--me assim o faz só por descuido? Näo acredito. Má. Pois fique a saber que eu näo desespero assim täo fa-cilmente e näo tenho a absoluta certeza de merecer isto que me faz e pode continuar assim que eu nem sequer 0$ importo. Continue a fazer-me o que quiser que eu nao me importo. Tudo é melhor do que näo me fazer nada e vocé faz-me até demais. Má. Continue lá. i;ií'i: SI Minha querida desaparecida, näo sabia que ia doer tanto assim e claro que sao só coisas dentro da minha cabeca mas säo sempře coisas dentro da nossa cabeca näo é e voce entrou dentro da minha cabeca e se disser que é fácil entrar dentro da minha cabeca eu zango-me ainda mais do que já estou porque näo é só na cabeca é no corpo todo e näo é só no corpo todo é no meu pequeno mundo todo que voce entrou ou eu quis que voce entrasse e agora näo há maneira de se ir embora nem que näo seja porque a ultima coisa que eu quero é que saia de dentro de mim pelo contrario eu quero que voce continue dentro de mim e faca o que bem entender comigo e fique todo o tempo que quiser e mais um bocadinho sempře mais um bocadinho que é o tempo que eu quero que voce fique dentro de mim e é escusado vir dizer-me para eu ser sensato porque isso ainda me faria ficar mais zangado porque primeiro vocé nem isso me diz näo me diz absolutamente nada e depois porque eu sou sensato. Vida em família Marta em casa da mäe pöe-se a pensar na sua vida mais recente encostada a duas almofadas da sala quase adormecendo. O pai está no escritório, fumando cigarro após cigar-ro, ä espera de um telefonema que näo chega. A mäe queimou-se ao entornar uma panela com doce de framboesa mas näo gritou. O doce caiu no chäo e ali se espalhou transformando a cozinha na cena de um crime. O irmäo mais novo brinca com o cäo no jardim ou-trora cuidado e ainda belo. É veräo e na piscina a água corre sem parar e conti-nua vazia. ftts