Fica Comigo Esta Noite Roubaram-lhe o computador as třes da raadrugada, quando estava sentado numa paragem de autocarro a escrever. Mateus gostava de passear a pé, sentia a inspiragao aproximar-se a cada passo. Depois sentava-se e escrevia, de forma caótica, as ideias e frases que lhe tinham ocorrido. Do outro lado da rua, a padaria da esquina ainda existia, com a mesma porta de vidro, agora com a moldura enferrujada. O cheiro do páo acabado de fazer, ao romper da manhá, era uma das boas memórias da sua infáncia. Sempře que olhava para aquela porta o cheiro voltava, como um vento alegre. As persona-gens encontrar-se-iam naquela padaria, estava decidido. De repente Mateus tinha uma navalha apontada ao peito, dois tipos facanhudos que diziam: "Passa para cá a máquina, FICA COMIGO ESTA NOITE 27 sem estrilho, ou f icas já aqui." Viu- se esfaqueado, morto em sangue no lixo da calcada, teve saudades do filme que agora já näo ia a tempo de fazer. Gostava tanto da Junqueira, sen-tia-se sempre seguro no siléncio nocturno daquela rua apa-' rentemente infinita. Nunca se cansava de olharpara o reflexo da lua e dos candeeiros nos carris e nos fios dos eléctricos. Morara ali durante a primeira meia dúzia de anos da sua vida e decidira que o seu filme comecaria naquela rua, antes do nascer do sol. Ainda tentou amaciá-los: "Oh meus, dou-vos a nartatoda que tenho, deixem-me o portátil, preciso dele para trabalhar, e foi a velha que mo deu, vai ficar lixada comigo..." Nada. Um Mac última geracäo, urna bomba, super artilhado — a mäe e o pai tinham-se quotizado, havia poucos meses, para lhe oferecerem essa máquina que ele näo pódia pagar. Näo queriam que lhe faltasse nada—ainda por cima era umbomfilho. 0 melhor amigo dos dois. Gompreendia-os. Desde pequeno que lhe contavamtudo, para que ele soubesse que pódia contar-lhes tudo. Tratavam todas e cada urna das namoradas dele como filhas. Depois esqueciam-se dos nomes delas ao ritmo a que ele próprio os esquecia. Tratava-se de urna família sincronizada no grau mais suave do esqueci-mento. Por isso ficavamtäo bem nas fotografias das revistas especializadas em amores felizes: a mäe e o filho junto a urna árvore de Natal frugalmente decorada com bolas bacas, ver-melhas e prateadas-, o pai e o filho, sorrindo, numa retrospectiva da Ginemateca; ou a mäe e o pai, sentados na esplanada do teatro D. Maria, explicando como tinham conseguido manter-se amigos depois da separacáo. Serenamente. E preservando sempre a intimidade da casa, que nunca mostravam. Maria Eduarda, a máe de Mateus, era uma das maiores actrizes da sua geracáo, com uma versatilidade de gato. De resto, adorava gatos, coleccionava-os, mesmo: pedia a cada amante que lhe deixasse um, ao partir, e baptizava-os com os nomes dos ho mens antigos da sua vida—"por uma questáo de memória", dizia, "parece-me que a auséncia de memória é a grande quaestio do nosso tempo". Gostava de palavras em latim e ideias de vanguarda, a máe de Mateus. E da Bíblia, que lia de forma heterodoxa. Educara o filho para a plastici-dade e para a aceitaeáo da diferenea. Gonfiava-lhe tranqui-lamente os seus problemas sentimentais; quando decidiu separar-se de Vítor, o pai de Mateus, foi o filho o primeiro a saber dessa decisáo, e combinou com ele a melhor forma de dar a notícia ao pai. Sempre en souplesse, como Maria Eduarda dizia. Também gostava muito de palavras em francés. Vítor bebia muito, e um dia Maria Eduarda cansou-se dos seus ataques de mau whisky. Nunca se tornara violento, isso náo — soltava uns gritos a despropósito, e depois chorava desaba-ladamente. Maria Eduarda apreciava a sensibilidade nos homens, desde que náo chegasse ao ponto do choro descon-trolado: "Seráuma falha de educacáo minha, decerto, mas a ideia de um homem está para mim ligada a solidez, proteccáo. Amo muito o teu pai, amá-lo-ei sempře, mas náo consigo viver com ele " Mateus compreendeu tudo, perfeitamente. Gomo também compreendia que o pai se sentisse só ao lado de 28 | INÉS PEDROSA FIGA COMIGO ESTA N O I T E | 29 I! li ; r ľ': 1 i II uma mulher que vivia sobretudo no palco. Gompreendia-os perfeitamente, sobretudo porque tinha a sorte de ja nao ser da geracao deles: uma geracao que se empolgara em grandes Utopias, que resistira a ditadura e depois se vira confinada a um quotidiano sem gloria. 0 primeiro livro do pai, Sonhos Selva-gens, tivera um acolhimento estrondoso. Fora publicado no inicio dos anos setenta, e a critica considerara-o "o Kerouac portugues". Depois disso, Vitor Ramos Forte nao voltara a publicar. Tornara-se comentador politico e havia vinte anos que, segundo dizia, andava a escrever "uma especie de Maias contemporaneo, que faz o balanco da nossa geracao perdida". Mateus telefonou ao pai: "Vitor. Oh pa, desculpa acor-dar-te a esta hora. Nao sei que faca. Gamaram-me o Mac agora mesmo. E o dinheiro. Dois gajos, aqui na Junqueira. Podes vir buscar-me?" Vitor foi. Pelo caminho sentiu-sefeliz. Gbstava de atravessar Lisboa de madrugada-, os lagos amarelos de luz no deserto das Avenidas Novas, a melancolia suave dos letrei-ros apagados do Va-Va e do Quarteto, os solavancos do velho Bairro Alto, onde a noite parecia nao ter fim. Pensou que aos 27 anos nunca se teria atrevido a acordar 0 pai a meio da noite, e a ideia de que o filho ainda chamava por ele quando se via aflito causava-lhe uma agradavel sensacao de triunfo pessoal. Mateus voltava-lhe de novo a casa. Ha dois anos tinha-se apaixonado por uma mulher mais velha, bi-divorciada e com dois filhos, e quase desaparecera. Estava nas nuvens, ria-se das dificuldades. Passava os dias a filmar congressos e conferencias ministeriais paraum canal de TV, mantendo 30 j I N É S P E D R O S A a forea necessária para ir trabalhando no seu filme, até que o subsidio aparecesse. Quando acabou o estágio no canal entrou num limbo auspicioso: o dia todo entre videos e o écran do Mac, a trabalhar no projecto. Čada vez menos atento a Clara, e menos ainda aos dois petizes. Que náo se via toda a vida atrás de uma cámara a filmař uns tipos de fato a apertar máos, parair ganhando a vida. Ainda se o enviassem para uma guerra qualquer—mas isso era só para as estrelas, ou entáo comprava-se feito ao estrangeiro. Vítor achou que o filho estava a crescer. Gostava de se ver nele, mas em melhor. Se náo tivesse casado táo cedo, talvez Vítor játivesse escrito o romance que se esperava dele. Avida obrigara-o a desistir dos seus projectos para sustentar afamília. A vida, earevolucáo: naquente décadade setenta, só um misantropo podia escapar ao apelo da cidadania — quem seria ele, se tivesse recusado o convite para subsecre-tário de Estado, que lhe permitia contribuir para a melhoria das condigoes de vida do seu povo? Mateus crescera em liberdade, estudara no estrangeiro, acabarapor decidir que o que procurava náo se achava em nenhuma escola. Era um miúdo que sabia o que queria. Vítor via em Clara uma ameaca de estagnagáo — primeiro a casa, depois viria o automóvel, mais crian$as, o estatuto, um cáo e um jardim. Nunca disse isso a Mateus, só á ex-mulher. Maria Eduarda, com o tal sentido de previsáo das mulheres, explicara-lhe que Mateus acabaria por sair sozinho daquela prisáo, desde que eles náo fizessem ondas: "Sobretudo, náo podemos dar-lhe FICA GOMIGO ESTA NOITE 3 1 I o bonus de um amor contrariado. Foi por causa disso que nós nos casámos a correr, lembras-te?" Náo, náo se lembrava. Lembrava-se apenas que o mundo parecia, naquela época, feito do toque da pele dela, da cor das gargalhadas dela, um lencol sedoso de paixáo. Lembrava-se apenas de amarpara lá de todos os limites, em alucinada felicidade. Lembrava-se sempře mais do que era conveniente, e calava-se. Vítor encontrou o filho sentado na beira do passeio. "Levaste tempo, porra. Estavaaquiapensar—achas que con-seguiram sacar-me dinheiro do cartáo?" 0 cheiro do carro do pai acalmou-o, como sempře. Foram á Polícia apresentar queixa, passava das quatro e meia da manhá quando chega-ram a casa. Vítor disse a Mateus que perdera o sono, e que lhe estava a apetecer uma conversa na varanda até ao nascer do sol. Mateus estava cansado, mas encolheu os ombros e aceitou o whisky que o pai lhe deu. Vítor tinha sido um grande apoio, na confusáo dos últimos meses, desde que o sorriso de Clara se tornara cada vez mais previsível, e uma vaga decepcáo comecara a tomar conta de todos os seus projectos. Agora já náo tinha muito que conversar: deixara Clara e sentia que, a pouco e pouco, a criatividade pura em que precisava de viver estava a regressar. "Está bem, Vítor, mais um copo. Que preciso mesmo de descanso. Amanhá vou ver os Oscares a casa duns gajos. Mas se queres desabafar, 'bora." Vítor só queria companhia. Perguntou-lhe se o projecto do filme estava a andar bem, e se queria ir com ele a um colóquio no Porto, no fim de semana seguinte. Näo lhe apetecia irsozinho, eiaveramäe de Maria Eduarda, entristecendo numlar de luxo, sempře comtantas saudades do neto, que nunca via. Mateus disse que näo lhe calhava mesmo nadá-, tinha combinado com uns amigos uma ida até ao Alentejo. "Qualquer dia morro, filho. E depois vamos os dois ter saudades da vida que näo partilhámos." Vítor já näo tinha pais, e a solidäo da ex-sogra parecia-lhe cada vez mais pró-xima. "Vítor! Que conversa. Todos vamos morrer, ninguém sabe quemvaiprimeiro. 0 que é que é isso, chantagens emo-cionais? Se eu vou lá, a avó comeca a chorar e a queixar-se de que ninguém gosta dela. Deprimente, näo estou nessa. Ouve lá, quase me esfaquearam há bocado." Falaram do filme. Mateus desistira de escrever o argumento, e tudo o que escre-via por estes dias eram pedidos de subsídio. Repetia ao pai que a escrita, como arte autonoma, tinha os dias contados, por exaustäo de sentido. 0 que interessava, agora, era reciclar e apropriar para a escrita todas as matérias que a excediam, a cor, a imagem, numa sobreposicäo de registos comuni-cantes. 0 filme que ele havia de fazer seria isso mesmo: uma colagem cubista de mundo s, que pudesse interpelar, näo o espectador, mas a pluralidade de perspectivas de todos os potenciais espectadores. Para isso era preciso resistir ä linea-ridade e a to do um conjunto de dogmas seculares — história, enredo, acgáo, suspense, emocäo — que haviam embaciado a capacidade de criacäo/recepcäo dos seres humanos. Vítor näo tinha dúvida de que o filho era um génio. Por isso lhe 3 2 INES P E D R O S A FICA COMIGO ESTA N O I T E 3 3 era täo fácil convencer amigos influentes a pagarem-lhe os projectos; acreditava no que dizia do filho — e a fé torna-se irresistível, sobretudo em épocas de poucafé. Uma das coisas que lhe tinha dado mais prazer nos Ultimos anos tinha sido a angariacäo de fundos para a revista que o filho lancara, em conjunto com a filha de um poeta consagrado e com o filho de um capitäo de Abiil.Abrupta — a revista que rompe todos os paradigmas comecara com o patrocínio de um Banco e de uma empresa de cosmética. Gomo as pressöes comerciais se tivessem tornado excessivas para os objectivos da revista, Mateus dissera ao pai que tinha que conseguir um financia-mento menos careta. Vítor procurara entäo outros amigos, e arranjaraum subsídio do Estado. Tratava-se de uma publi-ca^äo cultural de periodicidade deliberadamente irregular (como a vida) que apostava na multidisciplinaridade e na diferenca. Divulgavam projectos interactivos, tudo o que curto-circuitasse a tradicional definicäo de cultura e de autoria, confiantes num génio geracional muito superior a mera soma dos talentos individuals. Mateus näo conseguia admirar o pai, e isso incomo-dava-o. Considerava-o fraco, umtipo do passado, incapaz de se mover mentalmente no novo universo da liberdade. Urn linear, ainda: todaa vida apaixonado por uma só mulher e por meia-duzia de ideias e fidelidades. Mas a forma como Vitor aderia ao que lhe dizia, num amor cego e tantas vezes gaguejante — como se Mateus fosse a ultima causa heróica do mundo — enternecia-o. Vitor näo conseguia despegar-se do passado. Dia a dia ele lhe aparecia mais refulgente, na ultima lágrima de cada garrafa. "Gosto de te ter outra vez em casa, filho. Nunca me habituei ä solidäo. Mas também näo consigo imaginär outra mulher no lugar da tua mäe." Vitor invejava os amigos que se queixavam da dificuldade de empurrar os filhos para fóra do ninho. Mateus suspirou: "Näo sabes fechar portas. AMaria Eduarda é história. Arquiva. Enäotepreocupestanto comigo." Os óculos dourados do pai cintilavam com os reflexos da luz da rua. Abarba parecia mais escura, como no tempo em que Mateus era pequeno. Mateus disse que se ia deitar. Vítor pediu-lhe que ficasse só mais meiahora, até que o sol acabasse de nascer. "Tens medo do escuro?", riu-se o filho. "Tenho. Se ficares comigo com-pro-te um computador novo igualzinho ao que te roubaram." Mateus voltou a rir-se: "Estás comos copos. Dás-mosequise-res, se näo, eu cá me arranjo. Boa noite." Aluz da casa de banho, a estátua africana do corredor parecia sorrir misteriosa-mente. Mateus lembrou-se do jeito que a Clara tinha de man-ter a calma e de ficar calada, mas com um sorriso, urna tarde inteira. Gostou de ter ainda essa recordacäo: sem pormeno-res destes näo se consegue filmár nada de bom. Vítor ficou ä varanda enquanto o sol varria as últimas sombras da noite, entoando urna cancäo de embalar de que já näo recordava as palavras. Era qualquer coisa sobre estrelas e anjos que enxo-tavam papöes, qualquer coisa simples, repetitiva e agora impossível, preša apenas por uns farrapos de música. 34 j INES P E D R O S A FICA COMIGO ESTA NOITE | 35 A Cabeleireira "Bem-aventurados os mansos, porquepossuiräo a Terra EVANGELHO S E G U N D O SÄO M AT E U S, 5, S Faz bem em cortar o cabelo. Eu também gosto mais de cabelos curtos. Pelo corte do cabelo vé-se quem é a pessoa. Se tem imaginacäo, capacidade de melhoria. Um cabelo comprido näo tem ciéncia nenhuma; se for bonito, é porque nasceu assim. E urna questäo de sorte, e a sorte näo diz muito da pessoa. Näo lhe pertence. As mulheres tém medo de cortar o cabelo por causa doshomens. 0 meupai deixou de me falar, a primeira vez que eu cortei o cabelo. Ficou um més inteiro sem me dirigir a palavra, a dar-me desprezo. Nunca mais o deixeicrescer.Asvezes ele perguntava: "Entäo, rapariga, esse teu cabelo nunca mais cresce?" E eu dizia que näo, que devia ser doenca. Aparava-o todas as semanas. Foi aí que decidi que queria ser cabeleireira. Ele dizia que era castigo divino, FICA COMIGO E S T A N O I T E | 37