na cozinha. Aquele hörnern curvado tinha cada vez menos o teu cheiro e nem sequer inspeccionava as minhas orelhas, para ver se estavam sujas. Ja näo me chamavas porco, e tinhas sempre a barba por fazer. Ela sussurrava: "meu querido, meu querido." Do meu quarto sentia o teu corpo a enrolar-se sobre ti como um bicho- de- conta, ouvia os murmürios dela, cada vez mais suaves e distantes. Näo foi por te ter encontrado a dormir sobre o peito dele, naquela tarde morna de domingo. Näo foi por isso que me tui embora. Foi porque ele era belo, de uma beleza ofus-cante que eu nunca tive, e tu parecias um monte de cinzas colado ao corpo dele. A Sombra das Nüvens no Mar So nos livros o amor racha coracöes em relämpago. Dinamene tomava vagares, e quando atingia o sobressal-tado sossego do acordo consigo mesma, o seu corpo muda-va-se. De negro fazia-se branco, de branco doirado, e depois moreno espesso. Talvez fora da ilha o tempo voltasse e Dinamene pudesse conquistar a efemera angustia de uma identi-dade de mulber. Tentarabarcos e pässaros, as ondas e depois o fundo do mar, mas as äguas e os ares devolviam-na repe-tidamente. Queria morrer e flutuava. Queria amar-se e mudava. Acordava sem saber de si, o sangue em forma de pedra, as pernas de ämbar, os cabelos de cedro velho e o rosto de mogno como uma mobilia de paläcio. Amägoa das materias — pedra 62 I in£s pedrosa FICA COMIGO ESTA NOITE | 63 ou madeira ou ferro ou c-uro ou barro — chorava em círculos pesados dentro dela. Se ao menos tivesse memoria. Olhava e tudo o que via era beleza: encostas verdes carregadas de flores, uma cidade cor-de-rosa encostada a navios grandes que ä noite iluminavam o mar todo ä volta. Mas nem estas coisas simples Dinamene chegava a nomear. Quando se aproximava das palavras, o seu corpo transfigurava-se e era como se a vida recomecasse de um princípio que ela já conhecia mas nunca chegava a aprender. De qualquer maneira, as pessoas ficavam paradas a contemplá-la. Diziam: "Coitadinha! Täo bonita!" e ela sentia um fio de água (ou seiva, ou lama, ou ouro, depen-dendo do dia) descer-lhe pelo rosto. Sonhava que era uma rapariga como as outras, com uma só pele para envelhecer devagarinho e coleccionar fotografias e remorsos. Havia no sonho uma voz fatalista: "Serás sempře uma árvore apaixo-nada pelos barcos, é essa a tua maldicäo", e quando ela queria perguntar porqué o sonho acabava e o espelho dos lagos mostrava-a outra, cada vez mais condenada ä eternidade, que é o sítio de ondetodas as recordacoes desapareceram. Olhava para as barrigas redondas das mulheres, cheias, efémeras, intimas e distantes como brinquedos, olhava-as com tal auséncia que as comovia. As mulheres pegavam na cabecaloura ou negra de Dinamene e encostavam-na apele estoirada dos seus ventres. O som monótono da mortali-dade deixava-a com saudades de ser feliz. Dinamene nasceraum dia, experimentara o terrivel prazer da precaridade. As vezeš, os olhos dos homens tra- 64 iněs pedrosa ziam-lhe um violento odor a lenha e leite, uma coisa que escaldava como sangue a jorros de pulsos abertos. Tentara rasgar a pele com uma tesoura funda, e de imediato ela se lhe mudara em granito escuro, brilhante. Meteu-se-lhe entáo na cabega que a ilha havia de ter um buraco, um lugar por onde a queda pudesse ser definitiva. Há muitos anos, na escola, Dinamene aprendera a fugir de pocos, grutas e covas porque no centro da terra ficava o inferno, mas agora ela náo tinha qualquer ideia do que fosse uma escola. Gorreu a ilha toda muitas e muitas vezeš, e quanto mais corria mais o seu corpo se afastava da terra. Pisava orquideas e elas vol-tavam-se para o sol, como se em vez de pisadas tivessem sido acariciadas pela brisa do mar. Correu tanto que acabou por provocar os ventos e congregar as nuvens que andavam lá longe pelos continentes do mundo. A ilha pós-se a baloicar como uma alma confusa e entornou Dinamene para dentro de uma fortaleza de pedra roubada ao tempo dos piratas. A primeira sala parecia uma caixa de fósforos gigante, onde os fósforos desenhavam um labirinto de andaimes. Ao fundo da sala havia uma enorme mesa de madeira, daquelas de desenhar cidades ou meditar sobre o esplendor da verdade. Dinamene acabou por reparar que sempře que suspirava um dos fósforos caía e aparecia um desenho em cima da mesa do fundo, que podia ser de frades ou arquitectos ou poetas. Queria tocar-lhes, mas os desenhos esfumavam-se, desfaziam-se em giz nas máos dela. E o giz marcou o caminho da segunda sala, que era FICA C O M I G O ESTA NOITE 6 5 depois de uma ponte estreita, e quando ela entrou na segunda sala comecou a nevar lá fora. Dinamene olhou para as mäos porque de repente o seu corpo fazia um barulho de livro desfolhado, e a pele desátou a encarquilhar-se-lhe muito depressa, até ficar cor de pergaminho, como os velhos ou os recém-nascidos. Näo havia ali espelho que confirmasse a situaclo de Dinameme. De qualquer modo, Dinamene era imune aos espelhos. Só a água lhe reflectia os contornos, em dias de controladaluz. Deitou-se no chäo, ao lado de uma espiral de flores que ali havia, e deixou-se cobrir pelas pétalas brancas e vermelhas, que lhe imitavam o frio da neve e o sabor metálico do sangue. E entäo Dinamene lembrou-se. As imagens acudiam-lhe em tropei, recortadas em riso, assimétricas, numas cores ferozes de vida. Tinha um enorme cravo vermelho no cabelo em forma de estrela do mar e as suas mäos pequenas, paci-entes, construíam uma cidade de fósforos. Grescera em volta daquela cidade. Quando acabou de crescer verificou que a sua cidade estava rodeada por uma verdadeira muralha de papel. Pegou na primeira folha e leu o que estava escrito. Amor, amor, amor, ah, minha Dinamene, eternamente. Soltou uma gargalhada e caiu do céu uma luz que se ateou aos fósforos e reduziu a cinzas a sua infancia inteira. Dinamene decidiu esquecer. Goleccionou fotografias até inventář uma familia que lhe ficasse bem. As vezeš deixava-se arruinar, äs vezeš bordava panoš para os barcos que partiám. Quando se cansou de imaginär comecou a copiar gestos e sentimentos dos romances. Náo corria o perigo da seriedade, porque tinha um guarda-roupa faustoso dentro da cabeca. Nada era para sempře, nada merecia o empenhamento de uma existéncia, rudo fogo que arde. Era a única mulher que gostava de envelhecer. Ente-diava-a a ideia de acordar todos os dias da vida com a mesma pele lisa de objecto sem passado. Amava as imperceptiveis corrosoes do tempo-, talvez por isso, parecia cada dia mais nova. Ganhou fama de bondosa por alheamento, táo deter-minada se apresentava sempře a estudar a sombra das nuvens no mar. Intrigava-a a persisténcia que as pessoas punham nos actos, para o bem como para o mal. Por isso mesmo, desencadeava paixóes furiosas. Trogava da persisténcia das guerras e dos sentimentos, vivia o poder absoluto da indife-renca material. Nunca saíra da ilha, que é o mesmo que dizer que jamais lhe pertencera, porque tinha todos os sentidos pousados nas substánciaspassageiras. Divertia-a o jogo das intensidades, donde comecou a murmurar-se que mentia. Numa hora beijava, na seguinte enxotava e ria. Até que os limites humanos do desengano coincidiram com os limites físicos da ilha, e a coleccáo de apaixonados transbordou numa multidáo de revoltados. Dinamene foi convidada para uma festa no alto do monte, num palácio onde morrera um rei estrangeiro. Quando ela entrou, com um vestido da cor do Tempo, todos — homens e mulheres — suspiraram de desejo e pavor. Avanca-ram para ela com uma garrafa cheia de um líquido dourado 66 I inés p e d r o s a FICA COMIGO ESTA N O I T E | 67 e pediram-lhe que bebesse aquele néctar feito de propósito para ela. Dinamene bebeu e rejuvenesceu. Parecia que aquela bebida continha a fórmula da felicidade eterna. De čerta forma, eraverdade. Naquele jarro estavamaslágrimas detodas as pessoas que a tinham amado. De madrugada, a pele de Dinamene desátou a escureeer. Gomo se o corpo tivesse deci-didopreencher-lhetodos os espacosem branco davida. Foi assim que Dinamene passou da vida á arte, de ser humano a parecer literal: a alma encheu-se-lhe de estruturas precá-rias, o corpo esvaziou-se-lhe em sucessivas acumula9Óes de cor. Até ao instante em que, deitada sob as pétalas, Dinamene se lembrou de rudo e depois esqueceu-se e nasceu a chorar. Todo o Amor 68 ines pedrosa Espero-te, emsobressalto, comtodas as velas da alma acesas, tremendo ao vento quente de Julho. Aqui ninguém nos conhece — aqui ninguém pode fazer troca do nosso pobre, eterno, inconsolável amor. Um amor que ninguém entende, minha querida—nem nós. Vejo-te, com o teu vestido branco de bordado inglés, as sandálias demasiado altas, o calor do Veräo desabando numa chůva de luz em redor do teu corpo, no terraco da Torre de Menagem do castelo de Estremoz. Vejo-te primeiro de costas, os cabelos louros inundados de sol sobre os bracos e o vestido branco, inclinas-te sobre as ameias e fotografas a cidade. Espero que tu te voltes para que o meu deslumbramento se imobilize sobre o teu corpo em movimento, o teu sorriso infinito, desesperadamente FIGA COMIGO ESTA N O I T E 69