A Cor dos Anjos No ano passado toda a gente teve a delicadeza de náo me falar do Natal. 0 Frank e a Martha arrastaram-me para casa dos pais deles no Connecticut, e nemum cheiro a azevinho havia no ar. Ninguém falou em estrelas, pinheiros ou ilumina-9óes, náo houve presentes, nem esses chňstmas carols que tu andavas sempře a cantarolar. Meu anjo. Atelevisáo esteve sempře ligada num canal culinário. Evitaram cuidadosa-mente tudo o que tivesse um qualquer laivo de juventude, music videos, desportos radicais. Nos canais normais eles tinham medo que aparecesse, pela milionésima centésima vez, a imagem do aviáo a entrar pelas torres, entrevistas com as familias dos sobreviventes, ou aqueles infindáveis debates em que tu me morres outra vez, submersa no horror abstracto FICA COMICO ESTA NOITE I 103 dos nümeros. E depois hä sempre alguem, do outro lado da mesa dos debates, que interrompe para perguntar: "E quantos morreram no Chile, a 11 de Setembro de 1973? E na Palestina ocupada? E em Hiroxima? E em..." E nessa altura a tua morte ja nem e nada, tu nunca foste ninguem — so a filha felizarda de um emigrante portugues cheio de sorte. Uma jovem felizarda que numa bela manhä de Setembro teve 0 azar de entrar no sitio errado ä hora errada. "Oh pä, da maneira que estä 0 mundo... pelo menos a miüda näo sofreu." Gäes. Antes ladrassem. Antes me esquecessem, os que me querem consolar assim. Coitados. 0 que e que eu diria a urn tipo que perdeu a filha — e por sua culpa? Porque fui eu 0 culpado, sim. Hä um ano que o shrink anda a tentar convencer-me que näo, mas por mais mortais encarpados que fa9a ao Freud, eu sei que tenho culpa. Pelo menos de näo ter morrido contigo. Sim, ao menos que tivessemos morrido nos bracos urn do outro, ao menos que eu tivesse podido beijar-te, sussurrar-te que tudo aquilo era apenas urn pesadelo, que daqui a pouco acordarias e tudo estaria bem, como quando tinhas seis anos e bastava contar-te uma histöria de palavras mägicas. Tu estavas a passar uns dias em casa de uma amiga, downtown, e lembraste-te de ir matar saudades do pai. Matar saudades, Caracas. E 0 esperto do pai tinha decidido ficar mais urn bocado na cama com uma namorada, para aproveitar bem a alforria temporaria. Sofrias tanto, por causa dos namorados. Mas eu sabia limpar-te as lägrimas. Levava-te ao colo ate ao espelho, fazia-te rir, no fim ja acreditavas que 0 azar era deles. E quer 0 shrink que eu volte a namorar. Fäcil de dizer. Encontro-te, dia apös dia, hora a hora, em cada rapariga. Vou pela rua e vejo-te, todas as adolescentes de cabelo laranja ou liläs (mudavas muito de cabelo) se parecem contigo. 0 que e estranho, porque tu eras incomparavel. Aprincipio gritava 0 teu nome. Cheguei a correr aträs delas, a agarra-las. Agora continuo a ver-te, mas calo-me. Ja sei que näo podes ser tu— convenco-me de que näo podes ser. Fui ao Kinko's fotocopiar trezentosflyers com a tua cara, recortada de uma fotografia de ferias, com os meus telefones por baixo, em nümeros grandes. Passei dias a colar essas fotocopias pelas paredes da cidade. Nova Iorque estava coberta de fotocopias de sorrisos desapare-cidos, com nümeros de telefone garrafais. Durante semanas, que eu fui esticando ate ao Inverno, havia aquela esperanca de que tu estivesses em qualquer lado, de que tivesses conseguido fugir de alguma maneira, por alguma escada esquecida. As vezes estou no cafe e levanto-me de repente, ergo a mäo para te acenar quando tu entras. Entäo a rapariga ver-dadeira, que näo es tu, franze 0 sobrolho, com urn ar descon-fiado, e eu vejo que aquele rosto näo e 0 teu—embora, querida filha, tu fosses muito desconfiada. Muito credula e muito desconfiada. Nunca chegaste a ter idade para 0 pacato meio termo. Desvio 0 olhar para 0 vazio, aträs da rapariga que jä näo es tu, e continuo a acenar, ate que ela perceba que näo estava a tentar meter conversa. Nos primeiros meses, quando eu 104 I N PEDROSA FICA COMICO ESTA NOITE | 105 corria para os bracos dessas multiplas mistificac^es de ti, elas acarinhavam-me: "Nao, nao sou eu, desculpe." Sor-riam-me, tinham pena. Digam la o que disserem, a pena e uma coisa boa. Tenho pena de ti, amor lindo, uma pena infe-lizmente muito intermitente, quase sempre mais pequena do que a raiva que tenho de mim mesmo. E a pena dos outros foium grande conforto. Apaparicaram-me, levaram-me ao colo para a cadeira do psiquiatra. Ate me arranjaram emprego. Evitaram cuidadosamente qualquer referenda a filhos, em particular meninas. Agora ja ninguem tern pena. Dizem-me que tenho que reagir, que a vida continua, que ja la vai um ano. Acham que estou a reagir bem, porque tomo todos os com-primidos que o shrink me impinge e trabalho que nem um louco, fins de semana incluidos. E engordei, o que e sempre um grande alivio para os amigos. Engordei porque carrego na dose de cerveja, e deixei de ter paciencia para cozinhar. 0 rolo de came que tu adoravas, os grelhados aromaticos que eu fazia quando tu nao querias comer para nao engordares, para que me serviriam agora? Vivo de fatias de pizza. Como ja nao ando a farejar namoros, nunca mais tive de fazer de conta que gosto de sushi. Nem tenho de me preocupar em olear os musculos no gym. Aboa noticia e que ja ninguem esta preocupado comigo. A ma noticia e exactamente a mesma. Gaso eu tente falar de ti, um minuto que seja, cortam-me o pio. Dizem que ja devia ter "feito o luto". Aparentemente, ha um tempo certo para isso, e eu estou a pisar o risco. A-tor-nar-me inconveniente. A ponto de chumbar, na opiniao dos meus amigos. Depois de todo o carinho e apoio que me deram. Que ingrato, realmente. Todos acham que eu preciso deumamulher. Há vinte e dois anos que vivo emNovalorque, e agora repararam que uma mulher faz sempre falta. Dantes, os homens invejavam-me os namoros ("nao te cases, rapaz, náo sej as parvo") e as mulheres deles achavam que eu fazia bem em náo te impor uma madrasta. Passavam a vida a gabar a minha relacáo excepcional contigo. Agora, pequenina, é como se tu nunca tivesses existido. Devia ter sido eu a morrer naquele dia, sozinho. Tele-fonava-te e dizia-te que te continuaria a amar e a acarinhar até ao fim da vida, e que só me zangava contigo se tu decidisses náo ser feliz. Há noites em que consigo sonhar que estávamos lá os dois, mas conseguiamos saltar sobre as chamas e correr pelas escadas de servico antes do desabar das torres. E continuamos a correr durante horas, de máos dadas, pela escuridáo, e depois o céu volta a ser azul e nós ficamos deitados na relva, abrac^dos, a chorar e a rir. Depois percebo que estou só a sonhar e comeco a esforcar-me por prolongar o sonho, esticá-lo até ao sono derradeiro. Obrigaram-me a mudar de casa. Levaram a tua roupa e escrivaninha, e o caixote dos CDs. Quiseram fechar o resto num cofre, longe da minha vista — cadernos, cartas, livros sublinhados, bonecas, jóias. E aconselharam-me a náo ver tantas vezes os videos, e as fotografias. Mas eu náo quero esquecer-me de ti. Nos primeiros meses tinha medo de que o esquecimento me anestesiasse, mesmo sem eu querer. 106 INES PEDROSA FICA COMIGO ESTA NOITE | 107 Agora já percebi que, pelo contrario, o teu riso se torna cada vez mais real, ä medida que o tempo passa. E a tua voz, can-tarolando. Até o teu cheiro. Sei tudo o que tu me respon-derias em cada situacäo — porque agora respondes-me sempře, já näo fazes só "hum-hum" com os headphones na cabeea. Mas continuo a acordar a meio da noite com a tua voz, aterrada, no gravador de mensagens do meu cellphone (que estava desligado, claro). Dizias que haviaum fogo hor-ríveluns andares abaixo, perguntavas-me onde estava: "Pai, pai, onde é que tu estás?" Nunca percebi se terias chegado a perceber que ias morrer. Se priméiro desmaiaste com o fumo e já näo děste por nada, ou se. Toda a gente me garante que tu näo děste por nada, claro. Esta unanimidade parece-me muito suspeita. Querem perdoar-me ä forca, porque näo se pode viver com um imperdoável. Só a tua mäe näo me perdoou: "Näo te perdoo que näo tivesses sabido tomar conta da minha filha." Mas este desabafo näo me magoou nem me comoveu. Ela largou-te com quatro anos, bolas. Podia ter-lhe dito... tanta coisa que lhe podia ter dito. Mas calei-me, por uma questäo de justica elementar. Se ela näo nos tivesse abandonado, nós näo teriamos vindo para Nova Iorque. E tu repetiste-me muitas vezes que eu era o melhor pai e a melhor mäe do mundo. Alem disso, amavas Nova Iorque — mesmo, ou sobretudo, quando te zangavas com ela. Amavas esta cidade como se ama uma só vez uma pessoa, até ao extremo de todos os sentimentos. Talvez nunca tenhas chegado a amar ninguém assim. 108 I N P E D R o s A Namoradas, dizemeles.Ásnovinhas, dá-mevontade de lhes chamar meu anjo, como te chamava a ti. Quanto as da minha idade, radiografo ao primeiro olhar o pendor controleiro e acusador. A segunda noite já estariam a competir com o meu amor desaparecido. Abaralhar tudo. A contar todas as histórias de mortes na familia, até á quinta geracáo. Jesus. A quantidade de gente que me veio contar desgracas de filhos, sobrinhos e afilhados mortos em aci-dentes horríveis. Ou entáo entrevadinhos—para que eu enten-desse a sortě que tenho, percebes? Este Natal, decretaram oficialmente terminada a época do luto. Queriam levar-me de consoada em consoada, can-tando e ressuscitando até ao Ano Novo. Mandei-os bugiar. No dia de Natal levantei-me cedo e decidi ir ver os anjos nas ruas de Nova Iorque. Amanhá estava muito fria, uma dessas manhás em que nascem nuvens azuis da nossa respiracáo. Sempře imaginei que os anjos gostavam de nuvens e frio, pelo menos era o que tu me dizias, quando passeávamos, de mao dada, até á pista de gelo do Prospect Park. Gostavas tanto de patinar no gelo. Mas náo havia agora anjos á vista — só meia dúzia de raparigas de gorro, com ar apressado, carrega-das de sacos de embrulhos, nenhum ser alado com o cabelo roxo e uma coleccáo de piercings a brilhar. Caminhando pela manhá deserta, passei pelo hospital onde dantes fazia voluntariado e entrei para dar sangue. No dia de Natal há sempře mais feridos do que dadores, é uma coisa que náo ocorre as pessoas. Fui ficando por lá, na sala FICA COMIGO ESTA NOITE | 109 de espera das urgéncias, consolando criangas feridas, algumas delas doentes e abandonadas. Passei o dia a inventář histórias de monströs afáveis em planetas distantes e consegui esquecer-me das horas. Desde que tu desa-pareceste, o tempo tornou-se pesado, cada hora repete a tua vida inteira e o desespero da tua auséncia. Percebi que me conduziras os passos até este hospital para me ofereceres outra vez a possibilidade do riso. Anjo lilás. Obrigado pelo teu presente de Natal. Sempre tiveste urn talento especial para me surpreenderes. Deves moer o juízo ao Velhote das barbas, ai em cima. Eu sei que näo acreditava nele, nunca acreditei. Nem quando tu desapare-ceste no inferno das torres — a partir dessa data passei até a odiá-Lo. Claro que só se odeia aquilo em que se acredita, nisso tens razäo, querida. O teu riso com guizos de renas, natal em todas as estacöes. Mas o pior é que quando muita gente acredita em alguma coisa, essa coisa passa a existir mesmo. Para mim o Grande Manipulador de Marionetas nunca existiu, mas já reparaste quantas guerras existem no mundo, desde sempre, por causa Dele? O teu riso com dedos de sol, a dizer-me que Ele é igual a nós, ao que imaginamos de nós. Tantas criangas sem ninguém, pelo mundo fóra, sussur-ras-me tu. Nenhuma delas serias tu, digo-te eu, e o teu riso aquece-me, faztroga de mim. Preciso tanto que fagas troga de mim. Talvez um dia encontre esse teu riso trocista, vais emprestá-lo a um rosto inesperado, provavelmente de uma cor diferente do teu. Tanto que tu gostavas de cores diferen- tes, da radiosa diferenga de qualquer cor. 0 teu riso, agora em arco-iris, ilumina essa crianga que ainda näo conhego, que näo sei se algum dia quererei conhecer. Talvez o riso seja mais contagioso do que a dor. Talvez. Mas, por agora, dou as mäos ä memoria da tua voz para regressar a casa, dangando do passeio para o asfalto as cangöes de Nova Iorque que tu can-tavas por cima da mmha voz, quando eute ralhava. Por agora, dango entre os arranha-ceus ate que eles se diluam, dango como se tu pudesses renascer da ägua dos meus olhos, inundada de luz. 110 I INES PEDROSA FICA COMIGO ESTA NOITE 111