Sérgio Faraco A LUA COM SEDE (crónica) Na troca do século, meu futuro avô trocou a Itália pelo Brasil. Deixou Lauria, pequena cidade ao sul de Nápolis, entre a Basilicata e a Calábria, e veio dar no Alegrete com sua jovem mulher e a esperança de prosperidade e paz no Novo Mundo. E pôs-se a trabalhar. Fez uma família numerosa, um grande sobrado de oito quartos e uma fábrica de massas que chegou a ter noventa empregados, além de uma padaria e um armazém de secos e molhados. Orgulhava-se de ter sido cônsul da Itália. Faleceu nos primeiros anos cinqüenta, e os alegretenses, num preito ao trabalho, deram seu nome a uma avenida. Foto atual do sobrado que pertenceu a Brás Faraco. Na parte superior, ficava a residência da família; na parte térrea, inicialmente funcionava a alfaiataria e depois, o escritório da firma Faraco. O casal de italianos Brás e Francisca Faraco (Biagio e Francesca Maria) Era um italiano baixo e robusto, de olhar vivo e inteligente, que se vestia com esmerado gosto: terno, colete, gravata e o indefectível relógio de bolso com corrente, isso sem falar na bengala com castão de prata. Era afável no trato, mas de uma afabilidade que, inspirando confiança, também inspirava respeito. Meu pai e seus onze irmãos o chamavam de "papai", com senhoria, e nós, os miúdos, de "vovô" Faraco - fazia parte do respeito não dizer o prenome. Que me lembre, só na adolescência vim a saber que se chamava Brás. Sua "patria potestas" irradiava-se em todas as direções e alturas: no fim do ano letivo, os netos eram levados ao seu gabinete no sobrado para mostrar o boletim e ouvir os comentários pertinentes. Em certo ano ele me deu um abraço e vinte mil réis. De outros boletins, não me recordo e talvez nem me convenha Vovô costumava, à tardinha, visitar o pátio da fábrica, que limitava com o do sobrado e outros pátios do domus. Sentava nalgum lugar e ali ficava, como um poeta ou um filósofo, o queixo apoiado na bengala. Muitas vezes eu os espiava, esperando que, como os poetas e os filósofos, de repente se acordasse e fizessse algo inusitado. Mas ele não fazia nada. Sentava, pensava e ia embora. Uma noite de verão o vi no pátio já bem tarde. A lua, assoleada, dessorava sobre nossas cabeças, e me escondi atrás de uma mureta, a vigiá-lo. Ele andava de um lado para outro, abanando-se com uma pantalha, e a cada tanto ia olhar o velho poço do sobrado. Desconfiei: alguma coisa estaria tramando aquele vovô, na tórrida noite alegretense. Fazia eu mil conjeturas quando, levando um susto, vi que me olhava. " Vem cá", ele disse. Não me movi, paralisado, ele insistiu: " Anda logo". Pulei a mureta e me aproximei do poço, cheio de curiosidade e medo. Ele me segurou pelos ombros, fazendo com que me debruçasse no bocal, e senti no rosto, nos olhos, o frescor de um clarão leitoso: era a lua boiando lá no fundo! "A pobrezinha está com sede", ele disse, e por um momento - porque assim dizia o vovô - tive a maravilhosa certeza de que ela descera lá do céu para beber em nosso poço. Sobrado que pertenceu a Brás Faraco, na rua General Sampaio (1920). Sobrado da família de Brás Faraco, na década de 1920. Na parte térrea, funcionava a alfaiataria. No prédio ao lado, funcionava uma padaria e uma fábrica de massas ("A Industrial"). Na parte da frente, as vendas; na parte de trás, até quase a outra quadra, os fornos e as máquinas da fábrica de massa. Mais tarde, virou ferragem. No outro lado da rua, existia o armazém de secos e molhados, onde também veio a funcionar a ferragem. A Ferragem Faraco existe até hoje, agora sob a direção de um bisneto de Brás (José Lúcio Faraco). A frota de carroças era utilizada para distribuição de pães e bolachinhas nos bairros mais distantes do centro da cidade. ___________________________________________________________________________________________________ . Sérgio Faraco: Não chore, papai Embora você proibisse, tínhamos combinado: depois da sesta iríamos ao rio e a bicicleta já estava no corredor que ia dar na rua. Era uma Birmingham que Tia Gioconda comprara em São Paulo e enlouquecia os piás da vizinhança, que a pediam para andar na praça e depois, agradecidos, me presenteavam com estampas do Sabonete Eucalol. Na hora da sesta nossa rua era como as ruas de uma cidade morta. Os raros automóveis pareciam sestear também, à sombra dos cinamomos, e nenhum vivente se expunha ao fogo das calçadas. Às vezes passava chiando uma carroça e então alguém, querendo, podia pensar: como é triste a vida de cavalo. Em casa a sesta era completa, o cachorro sesteava, o gato, sesteavam as galinhas nos cantos sombrios do galinheiro. Mariozinho e eu, você mandava, sesteávamos também, mas naquela tarde a obediência era fingida. Longe, longíssimo era o rio, para alcançá-lo era preciso atravessar a cidade, o subúrbio e um descampado de perigosa solidão. Mas o que e a quem temeríamos, se tínhamos a Birmingham? Era a melhor bicicleta do mundo, macia de pedalar coxilha acima e como dava gosto de ouvir, nos lançantes, o delicado sussurro da catraca! Tínhamos a Birmingham, mas era a primeira vez que, no rio, não tínhamos você, por isso redobrei os cuidados com o mano. Fiz com que sentasse na areia para juntar seixos e conchinhas e enquanto isso, eu, que era maior e tinha pernas compridas, entrava n’água até o peito e me segurava no pilar da ponte ferroviária. Estava nu e ali mesmo me deixei ficar, a fruir cada minuto, cada segundo daquela mansa liberdade, vendo o rio como jamais o vira, tão amável e bonito como teriam sido, quem sabe, os rios do Paraíso. E era muito bom saber que ele ia dar num grande rui e este num maior ainda, e que as mesmas águas, dando no mar, iam banhar terras distantes, tão distantes que nem a Tia Gioconda conhecia. Eu viajava nessas águas e cada porto era uma estampa do cheiroso sabonete. Senhores passageiros, este é o Taj Mahal, na Índia, e vejam a Catedral de Notre Dame na capital da França, a Esfinge do Egito, o Partenon da Grécia e esta, senhores passageiros, é a Grande Muralha da China – isso sem falar nas antigas maravilhas, entre elas a que eu mais admirava, os Jardins Suspensos que Nabucodonosor mandara fazer para sua amada, a filha de Ciáxares, que desafeita ao pó da Babilônia vivia nostálgica das verduras da Média. E me prometia viajar de verdade, um dia, quando crescesse, e levar meu irmãozinho para que não se tornasse, ai que pena, mais um cavalo nas ruas da cidade morta, e então vi no alto do barranco você e seu Austin. Comecei a voltar e perdi o pé e nadei tão furiosamente que, adiante, já braceava no raso e não sabia. Levantei-me, exausto, você estava à minha frente, rubro e com as mãos crispadas. Mariozinho foi com você no Austin, eu pedalando atrás e adivinhando o outro lado da ventura: aquele rio que parecia vir do Paraíso ia desembocar no Inferno. Você estacionou o carro e mandou o mano entrar. Pôs-se a amaldiçoar Tia Gioconda e, agarrando a bicicleta, ergueu-a sobre a cabeça e a jogou no chão. Minha Birmingham, gritei. Corri para levantá-la, mas você se interpôs, desapertou o cinto e apontou para a garagem, medonho lugar dos meus corretivos. Sentado no chão, entre cabeceiras de velhas camas e caixotes de ferragem caseira, esperei que você viesse. Esperei sem medo, nenhum castigo seria mais doloroso do que aquele que você já dera. Mas você não veio. Quem veio foi mamãe, com um copo de leite e um pires de bolachinha-maria. Pediu que comesse e fosse lhe pedir perdão. E passava a mão na minha cabeça, compassiva e triste. Entrei no quarto. Você estava sentado na cama, com o rosto entre as mãos. “Papai”, e você me olhou como se não me conhecesse ou eu não estivesse ali. “Perdão”, pedi. Você fez que sim com a cabeça e no mesmo instante dei meia-volta, fui recolher minha pobre bicicleta, dizendo a mim mesmo, jurando até, que você podia perdoar quantas vezes quisesse, mas que eu jamais o perdoaria. Mas não chore, papai. Quem, em menino, desafeito ao pó de sua cidade, sonhou com os Jardins da Babilônia e outras estampas do Sabonete Eucalol não acha em seu coração lugar para o rancor. Eu jurei em falso. Eu perdoei você. Alcântara Machado: Gaetaninho (in Brás, Bexiga e Barra Funda) - Xi, Gaetaninho, como é bom! Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão. - Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro. Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo. - Subito! Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro. Êta salame de mestre! Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem. Mas se era o único meio? Paciência. Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Caetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou. Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio. Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído. Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo. O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando. - Você conhecia o pai do Afonso, Beppino? - Meu pai deu uma vez na cara dele. - Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou! O Vicente protestou indignado: - Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando! Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades. O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa. - Passa pro Beppino! Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua. - Vá dar tiro no inferno! - Cala a boca, palestrino! - Traga a bola! Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai do Gaetaninho. A gurizada assustada espalhou a noticia na noite. - Sabe o Gaetaninho? - Que é que tem? - Amassou o bonde! A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras. Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha. Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.