do café que já vinha em grossas ondas do coador lá na cozinha, eu náo disse nada. sc-qucr Ihe virei o rosto. continuci alisando o Ringo, meu vira-lata. e fui pensando que o primeiro cigarro da manhá. aquele que eu acenderia dali a pouco depois do café, era, sem a menor sombra de dúvida. uma das sete maravilhas. O ĽSPORRO O sol já estava querendo fazer coisas em cima da cerracäo, c isso era fácil de ver, era só olhar pra carne porosa e fria da massa que cobria a granja e notár que um brilho pul-verizado estava tentando entrar nela, e eu me lembrci que a dona Mariana, de olhos baixos mas contente com seu jeito de falar, 25 29 linha dito minutos antes que "o calor de ontcm foi so urn aperitivo", e cu sentado alt no terraco via bem o que cstava se passando. e percorria com os olhos as arvores e os arbustos do terrcno, scm esquecer as coisas mcnorcs do meu jardim, e era largado ncssa quieta ocupacao que sentia os pulmdcs mc agradecercm os dedos cada vcz que o cigarro subia a bcKa. e cla ondc estava eu sentia que mc olhava e fumava coma cu, s6 que punha nisso tima ponta de ansicdadc, ccrtamcnte mc qnestionando com a rebarba dos trejeitos, mas eu nem cstava ligando pra isso, queria era o silencio. pois cstava gostando de de-niorar os olhos nas amorciras dc folhas novas, sc destacando da paisagem pcla imper-tinencia do seu verdc (bonito toda vida!), mas metis olhos de repente foram conduzi-dos, e essas coisas quando aconteccm a gente nunca sabe bem qual o demonio, e. apesar da ncblina. eis o que vejo: um rombo na minha cerca-viva, ai de mim, amasso e quei-mo o dedo no cinzeiro, ela nao cntendendo me petguntou "o que foi?", mas eu scm res-ponder me joguci aos tropecocs escada abai-xo (o Bingo, ja no patio, me aguardava eletrizado). e ela arras de mim quase gritando Í0 ' -nas o que foi?", e a dona Mariana corrida da enzinha pelo cstardalhaco, esbugalhando as lentes grossas, cmbatucando no alto da escada, pano e panela nas maos, mas eu nem via nada, deixei as duas pra tnis c dcsabalci fcito louco, e assim que cheguei |>crto nao agucntci "malditas salivas filhas-da-puta", e pondo mais forca tornci a gritar "filhas-da-puta, filhas-da-puta", vendo uns bons palmos dc ccrca drasticamente rapelados, vendo uns bons palmos dc chao forrados dc pcqtienas folhas, é preciso tcr sanguc dc chncareiro pra saber o que i. isso, eu estava uma vara vendo o estrago, eu estava puto com aqucle rombo, c só pensando que o ligustrn niio devia ser assim essa papa-fina, tanta trabalheira pra que as sauvas metessem vira-e-mexe a fucii, c foi numa rajada que me lancei armado no cerreno ao lado, campeando logo a pista que me conduzisse ao formigueiro, seguindo a tri-Iha Ljmufl.ida ao pc do capim alto, eu que haveria aquela hora de surprecndé-las enfur-nadas, tao ativas noite afora com o corte e com a coleta, e tremendo, e espumando, eu sem demora descubro, c dc baldě já na mao deito uma dose dupla de veneno em cada olheiro, c'uma gana que só eu é que set o 31 que e porque só eu č que sei o que sinto, puto com essas formigas táo ordeiras. puto com sua exemplár eficiéncia, puto com essa organizatao de merda que deixava as pragas de lado e mc consumia o ligustro da ccrca-viva, daí que propiciei a clas a mais gorda bcbcdcira, encharcando suas panclas subter-ráneas com farto caldo de formicida, cuidan-ilo de náo deixar ali qualqucr sobra dc vida. uipando de feclio, na prensa do calcanhar, a boča de cada olheiro, e cu já vinha voltando dnquele lerreno baldio, largando ainda vigo-rosas fagulhas pelo caminho. quando notci que cla e a dona Mariana, nessa altura. esta-varn do conversinha ali no pátio que fica en-trc a casa c o gramado, a bundinha dela rccostada no pára-lama do carro. a claridade do dia lhe devolvendo com rapidcz a dcsen-voltura de femcazinha emancipada, o vesti-do duma simplicidade seleia. a bolsa pendu-rada no ombro caindo até as ancas, um cigarro entre os dedos. c lagarelando táo dcmocraticamente tom gente do povo, que era |K>r sinal uma das suas ornamentacóes prediletas, justamente ela que nunca dava o ar da sua graca nas áreas de servico Iá da casa, se fazendo aiender por mim fosse na cama ou pela caseira no tcrraco, dcixando o café só a meu cargo na falta da dona Mariana, eu só sei que de cara enfezada. e sem olhar pro lado delas, entrei curvado pela porta do quartinho de ícrramcntas ali mesmo embaixo da escada. larguci lá os apetrechos que linha carrcgado pra dar cabo das cortadeiras, mas, previdcnte, aproveitei a provisáo das pratc-leiras pra me abasteccr de outros venenos, alem de eu mesmo, na rusticidade daquelc camarim, entre pincéis, carvao e restos de tinta, me embriagar ás escondidas nutn galiio de ácido, preocupado que cstava eni maqui-lar por dentro as minhas vísceras, salx:ndo de aniemáo que náo ia nisst) nada de su|«ír-fluo, cu só sei que quando sai de novo ali pro pátio as duas já náo conversavam mais, uma e outra, cmbora lado a lado, se encon-travam habilmente separadas, ela náo só ti-nha forjado na caseira uma platéia, mas me aguardava também cum arzinho sensacional que era dc esbofeteá-la assim de cara, e como se isso náo basiasse ela ainda por cima foi me dizendo "náo é pra tanto, mocinho que usa a razáo", e eu confesso que essa me pc-gou em cheio na cancla, aquele "mocinho" foi de lascar, inda mais do jeito que foi dito. 52 V3 tinha na obscrvacäo de resto a mcsma com-|X>sta displicčncia quc ela punha cm tudo. qualqucr coisa assim. no caso, que bcir.ua o distanciamcnlo, como se isso dcvesse nc-ccssariamcnte fundamentar a scnsatez do comentário, e isso só scrviu pra mc deixar mais puto, "pronto" eu disse aqui comigo como se disscsse "é agora", eu que ficando no cntrave do "mocinho" pódia pcrfeitamcn-tc Ihc dizcr "fui mais manipulado pclo tempo" (sc bcm quc cla näo (osse lá entendcr que vamagcm eu tirava disso), passando-lhc também um sabäo pclo uso, enfadonho no íundo, da irónia maldosa, näo que eu culti-vasse um gosto raivoso pelo verbo carran-cudo, puxando ai pro trágico, näo era isso e nem o scu comrário, mas a ela, que via na-qucla práiica um alto cxerrício da inteligencia, viria bem a calhar se eu entäo sisudo Ihe Icmbrassc que näo dava qualquer mistura irónia c sólida envergadura, c muitas outras coisas eu poderú contrapor ainda a sua glosa, pois era fáciJ de ver. entre escancaradas e encobcrtas, a reprimenda múltipla que trazia, fossc pcla minha cxtremada dedicacáo a bi-chos e plantas, mas a reprimenda, porventura mais queixosa. nor eu näo aruar na cama com igual tempcratura (quero dizer, com a mcsma ardéncia que empreguei no extcrmi-nio das formigas), sem contar que ela, de olho no sanguc do tcrmometro, sc mctcra a regular também 0 mercúrio da racionalidade, scm suspeitar que minha razao naquclc mo-mcnto trabalhava a todo vapor, suspcitando menos ainda quc a razáo jamais é fria c scm paixáo. só pcnsando o contrnrio qucm náo alc.inca na rctlexao o miolo propulsor, pra vcr isso é prcciso scr rcalmentc pcnetrnme. náo quc cla náo fosse inteligente, sem dúvida que era, mas nao o bastante, só o suficicnte, e cu podena atrevido largar ás soltas o ra-ciocinio, espremendo ate' ao bagaco o griio do sen sarcasrao, mas cu niio falei nada, nao disse um isto, tranquei minha palavra, ela náo tcve o bastante. só o suficiente, eu pen-sava, por isso já estava lubrificando a lingua vipeřina entorpecida a noite inteira no avon-chego dos raeus pes e etcetera, eu só sei que continuei de cabeca baixa mas avancando, as coisas aqui dentro se triturando, e eu linha, e isso era fácil de ver, a dona Mariana pri-mc-iro. mas estava na cara que náo era a dona Mariana, nem era cla, náo era ntnguém cm particular pra ser mais claro ainda, mas mes- mo assim eu pcrgumei "ondc esta o seu An-tonjo?" e pcrguntei isso pra cascixa dum jeito mais ou menos equilibrado c de quern quasc, mas so quasc, esta so dominando. mas tambem nao tinha a mcnor importancia se nao fosse bern assim. meu estomago era cle mesmo uma pancla e eu cstava co'as formi-gas me subindo pcla garganta, sem falar que eu ja puxava ali pro palco quern estivesse a meu alcancc, pois nao seria ao gosio dela, mas, sui generis, eu havcria de dar urn es-pctaculo sem plateia, dai que fui intimando duramcntc a dona Mariana, a quern, de novo cmbatucada, lornei a perguntar "onde esta o seu Antonio?", forjando dessa vez na voz a mesma aspercza que marcava minha mascara, combinando estrcitamente essas duas fcrramentas, o alicatc e o pe-de-cabra pra lhe arrancar uma palavra. nao que eu fosse exigir do seu marido o resgate daquele rombo, nao que ele pudesse responder pela sanha das formigas, mas — atrelado a colera — eu cavalo s6 precisava naquele instante dum tiro de partida, era uma resposu, era so de uma resposta que eu precisava, me bastando da caseira qualquer chavao do dia-a-dia "o To-nho foi pertinho ali embaixo mas volta logo" 36 ou, mais cuidadosa, a dona Mariana podia inclusive justificar "elc saiu cedinho pra pe-gar o leite lá na venda e já deve bem de cstar chegando" e cla ainda. numa das suas tira-das. pódia até dizer dum jeito asceta "o To-nho tava numa das panelas c deve de eslar agora estrebuchando co'as saúvas" e nem que ela tivesse de dizer, c*uma ponta de ra-zäo alias, que de nada adiantava o maľido estar on näo ali, mc explicando (novidade!) que as cortadciras trabalbam em geral no eseuro da noiteTo que näo importava na ver-dade é o que cla fosse lá contar, c isso só mesmo um tolo d que näo via, fosse resposta ciosa ou arredia, cu só sei que baštou a dona Mariana abrir a boca pr'eu desembestar "eu \i disse que o horário aqui é das seis žs qua-jro^ depois disso eu näo quero ver a senhora na casa, nem ele na minha frente, ma£dcntro desse horário eu näo admito, a senhora cstá entendendo? e a senhora deve dizer isso ao seu marido, a senhora está me ouvindo?*r e o mcu berro tinha forca, ainda que de substancia só tivesse mesmo a vibracäo (o que näo é pouco), e foi tanta a repercussäo que a dona Mariana näo sabia o que fazer, sc cha-mar o marido pra que cumprisse o que eu 37