Sérgio Sant´Anna: Um discurso sobre o método Ele se encontrava sobre a estreita marquise do 18º andar. Tinha pulado ali a fim de limpar pelo lado externo as vidraças das salas vazias do conjunto 180 1/5, a serem ocupadas em breve por uma firma de engenharia. Ele era um empregado recém-contratado da Panamericana - Serviços Gerais. O fato de haver se sentado à beira da marquise, com as pernas balançando no espaço, se devera simplesmente a uma pausa para fumar a metade de cigarro que trouxera no bolso. Ele não queria dispersar este prazer misturando-o com o trabalho. Quando viu o ajuntamento de pessoas lá embaixo, apontando mais ou menos em sua direção, não lhe passou pela cabeça que pudesse ser ele o centro das atenções. Não estava habituado a ser este centro e olhou para baixo e para cima e até para trás, a janela às suas costas. Talvez pudesse haver um princípio de incêndio ou algum andaime em perigo ou alguém prestes a pular. Não havia nada identificável vista e ele, através de operações bastante lógicas, chegou à conclusão de que o único suicida em potencial era ele próprio. Não que já houvesse se cristalizado em sua mente, algum dia, tal desejo, embora como todo mundo, de vez em quando... E digamos que a pouca importância que dava a si próprio não permitia que aflorasse seriamente em seu campo de decisões a possibilidade de um gesto tão grandiloqüente. E que o instinto cego de sobrevivência levava uma vantagem de uns quarenta por cento sobre o seu instinto de morte, tanto é que ele viera levando a vida até aquele preciso momento sob as mais adversas condições. No seu bolso, por exemplo, depois que se fora o cigarro, só restavam a carteira profissional e algumas poucas moedas, insuficientes para tomar o ônibus lá na Central do Brasil, numa hora em que os trens já teriam parado. Até a Central, ainda dava para ir a pé, quando ele costumava andar de cabeça baixa, não por um sentimento de humilhação, em particular, mas como uma forma de achar moedas, o que não era tão raro assim, uma vez que, com a depreciação crescente do valor dessas moedas, muitas pessoas não se davam mais ao trabalho de curvar-se para pegá-las, quando as deixavam cair. Antes de pegar o serviço, hoje, no turno das quatro horas da tarde, que se estenderia até a meia-noite, ele hesitara bastante em gastar o dinheiro da passagem. Mas o vazio no estômago falara mais alto e ele usara parte dessa grana com um cafezinho, enchendo três quartos da xícara com açúcar, o que lhe proporcionava umas tantas calorias, embora ele não pensasse assim, em termos de calorias, mas da diminuição da vontade de comer e, como requinte, que um cigarro, mesmo pela metade, era bem mais saboroso depois de um café. Ele meditara também sobre as condições meteorológicas, olhando para o céu e concluindo que o tempo continuaria firme, o que significava que ele poderia passar a noite num dos bancos ou gramados do centro da cidade. Costumavam causar-lhe tédio, quando dormia na rua, as manhãs sem destino até a hora de pegar o serviço, procurando distrair-se olhando o mar e os aviões na ponta do Aterro, perto do aeroporto, ou frangos giratórios nos fornos envidraçados ou, nos cartazes de cinema, mulheres nuas e homens de ação. Mas este era um problema para amanhã e depois de amanhã, no máximo, porque no terceiro dia sairia o pagamento. Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível. A data de pagamento, porém, era um marco cronológico ao qual ele se apegava. O sujeito que o recrutara por um salário mínimo lhe dissera que ele ainda tinha sorte, pois o desemprego grassava no país. Era um sujeito que gostava de usar verbos desse tipo, de dicionário, que lhe pareciam conceder dignidade e pompa às suas palavras, embora ele não chegasse a materializar em sua mente tais substantivos abstratos. Autoridade e importância, sim, eram prerrogativas das quais ele se revestia em seu cargo, ele ali sentado com a gravata e a palavra, enquanto que os homens que desfilavam à sua frente permaneciam de pé e mudos, a não ser por certas respostas quase monossilábicas como “sim senhor”, ou “não senhor” quando se tratava de vícios como a cachaça. Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as condições climáticas, uma colonização de degredados e a mistura de raças. Ele era um homem da iniciativa privada numa posição de comando intermediário, embora achasse que ganhava pouco, o que era amenizado pela perspectiva de subir alguns degraus, desde que fosse perseverante e duro até o ponto da inflexibilidade. E o nome Panamericana se revestia para ele de uma aura multinacional, apesar de não ser mais do que isso, uma aura esperta que, a bem da verdade, contaminava mesmo o homem lá na marquise, em seu uniforme com aquelas letras gravadas significando para ele alguma coisa que não entendia bem e por isso respeitava, algo ligado a competições esportivas que o Brasil disputava. Alguma coisa imponente, sem dúvida, tanto é que eles eram proibidos, em tese, de vestir os uniformes fora do horário do trabalho, justamente para evitar que os empregados manchassem aquele nome envergando-o em botequins ou bancos de praça e gramados. Mas a perspectiva de passar a noite num desses dois últimos locais trazia em seu bojo a vantagem de que, não indo para casa, ele não presenciaria o que lá estivesse se passando, com a mulher e os três filhos diante de uma despensa - que era como eles chamavam alguns caixotes empilhados totalmente vazia. Não que ele estivera pensando nisso em seu trajeto rumo à marquise, muito pelo contrário; ele costumava desligar-se dos problemas da casa tão logo punha os pés na rua. Sabia que as mulheres eram capazes de verdadeiros milagres, como uma contabilidade não escrita de ovos e farinha tomados emprestados umas das outras na vizinhança, mas se um homem se encontrasse por perto todas as queixas recairiam sobre ele. Pelo menos era o que ele pensava, quando estava pensando nisso. Tais aflições subsistiam, porém, apenas como uma espécie de latência dentro dele - uma ausência boa - ali na marquise, e não teriam aflorado juntamente com o próprio meio de livrar-se delas, caso ele não identificasse os gritos em coro das pessoas lá embaixo como pedidos para que ele pulasse. Não que ele se dispusesse a ceder àqueles apelos, bem entendido; apenas descobria, um tanto perplexo e até fascinado, que esta era uma alternativa plausível para um ser humano como ele, em dificuldades, mas de posse de todos os seus movimentos. E isso lhe concedia uma liberdade insuspeitada e uma leveza, uma vez que um fio muito tênue podia separá-lo da meta comum à espécie, que é não sofrer. Pode-se indagar a respeito do medo. Se ele não tinha medo de estar ali suspenso? Mas é preciso não esquecer que ele estava habituado a ocupar posições delicadas no espaço. Outro, em seu lugar, talvez se magoasse com o pouco caso que a assistência dava à sua vida. Mas, como já vimos, ele também se dava pouca importância, como um coadjuvante muito secundário, quase imperceptível, de um espetáculo polifônico. Por isso, também jamais se cristalizara a hipótese de forçar o destino com uma arma na mão, assaltando pessoas físicas e jurídicas, embora passasse por sua cabeça, como na de todo mundo, de vez em quando... E nesse espetáculo havia os que se colocavam como espectadores nos mais baixos degraus da fama e ele mesmo, se fosse numa dessas manhãs em que flanava sem destino, teria se postado na platéia para matar o tempo, mas sem voz ativa, porque era um homem sóbrio em seus atos, modesto. Então não sentiu mágoa e até sabia, sem trazê-lo à consciência que em ajuntamentos semelhantes existiam aqueles, como certas mulheres (às vezes já com uma vela na bolsa), que passavam aflitamente a mão no rosto e diziam falas melodramáticas como “pelo amor de Deus, não”, ou algo do gênero, e também aqueles outros que chamavam a polícia e os bombeiros, sendo que um carro da primeira corporação já chegava neste momento. Ele era um homem respeitador das leis e dos poderes e, em nome de tal respeito, medo até, levantou-se imediatamente para retornar limpeza das vidraças, quando um silêncio de expectativa neutralizado por um clamor de incentivo veio lá de baixo, para logo depois se transformar numa vaia, quando perceberam que ele era apenas um homem trabalhando, ainda que em condições precárias que sugeriam risco, ação, emoção, coragem. E esta vaia, sim, foi recebida por ele com mágoa, porque os gritos anteriores tinham sido algo assim como o entusiasmo da arquibancada diante de um atleta e, de repente, era como se ele houvesse executado ajogada errada. Com o escovão e o pano nas mãos, e o balde a seus pés, ele virou-se novamente para a platéia e deu um passo miúdo adiante, para ouvir distintamente os gritos de “pula”, “pula”. O fato é que ele jamais estivera num palco, num pedestal, e isso afetara sua modéstia. Não é preciso conhecer a palavra pedestal para saber que as estátuas repousam sobre uma base. Como também não é preciso conhecer a palavra polifônico para ouvir as muitas vozes e o conjunto de sons da cidade. E haveria sempre alguém que pudesse narrar isso por ele, até que as condições socioeconômico-culturais da classe operária se transformassem no país e ela pudesse falar com a própria voz. Quando isso acontecera, por exemplo, na Inglaterra, dera origem a fenômenos inesperados como os Beatles e os angry young men, jovens zangados. Já na União Soviética ou em Cuba, o brilho de algumas vozes fora abafado em nome de prioridades econômicas indiscutíveis. Ele vira, na abertura dos Jogos Olímpicos de Moscou, a saúde e a beleza da juventude soviética. Como todo mundo, no Brasil, ele dera o seu jeito de comprar um aparelho de TV. Comprara de um rapaz vizinho, sem exigir nota fiscal ou indagar sobre a marca ou procedência. O rapaz era um jovem zangado brasileiro e assaltava pessoas físicas, preparando-se para encarar as jurídicas, do ramo bancário. Ambos não conheciam os Beatles. As estátuas, ele conhecia bem, apesar de não ler as placas. Perambulava muito diante delas e intuía que eram erigidas (embora não utilizasse tal verbo, mais do estilo do chefe do Departamento de Pessoal da Panamericana) em homenagem a pessoas que teriam realizado feitos notáveis, tanto é que estavam ali em exibição pública, como exemplo moral. Não era bem o caso dele, certo, mas ele também estava provando do poder sobre a massa, como alguns daqueles homens ilustres. E isso ampliava, de repente, de maneira literalmente vertiginosa, a sua consciência social. Aquele pessoal lá embaixo, como ele próprio, a mulher e os filhos, não era gente bonita, bem alimentada e imbuída de elevados propósitos; pelo contrário, era preciso aplacá-los com sangue e circo. Então ele chegou a refletir - se se pode chamar assim o clarão de raiva que o atravessou - sobre métodos violentos de transformação da sociedade. Alguém mais cultivado poderia contrapropor métodos constitucionais de mudança. Mas isso poderia levar décadas ou um século, ou talvez não acontecesse nunca. E o caso dele era premente: a situação financeira de carência absoluta, agravada pelo fato de ter se destacado tanto nos últimos instantes na Panamericana, de forma incompatível com a política de pessoal da Companhia. E havia o fato principal de que ele tinha uma só vida para viver, apesar de, paradoxalmente, andar ventilando, nesses últimos momentos, como um exercício, a hipótese de livrar-se dela. Diante disso, a sociedade como um todo era uma abstração. Ele estava se tornando agora, sempre vertiginosamente, um individualista. Se tivesse uma arma na mão, talvez houvesse disparado a esmo. Ele não tinha tal arma e só poderia disparar contra si mesmo, em forma de uma tristeza pontiaguda. Em compensação isso ampliava sua consciência poética, talvez dando razão àqueles que vêem na arte uma redenção do sofrimento. Aproximava-se a hora do crepúsculo, uma hora bonita, ele também achava. Para realçar tal beleza na melancolia, havia a possibilidade desta tornar-se também a hora do seu crepúsculo, que ele podia fazer belo e significativo. Se pulasse, transformar-se-ia numa personagem de jornal, um mártir da crise econômica, merecendo mais do que um simples registro, porque teria conseguido transformar a avenida Rio Branco lá embaixo, assim batizada por causa de um barão (que ele desconhecia), num pandemônio, com o soar das sirenes e um carro do corpo de bombeiros que ocupara um bom trecho do asfalto, o Estado usufruindo da oportunidade de retribuir o dinheiro arrecadado dos contribuintes. Um cordão de isolamento já fora estendido para que ele não caísse em cima das pessoas e, sem sabê-lo, ele se avizinhava de um ideal romântico que é o de morrer jovem e no auge da fama. Só não era belo. Era um rapaz de vinte e cinco anos, embora não parecesse. Aos argumentos de praxe de que tudo isso de nada lhe serviria depois de morto, ele poderia contrapropor - se além de romântico fosse poeta ou filósofo - que estava gozando com a máxima intensidade os lances dramáticos que podiam anteceder a morte, como num duelo ao entardecer. A cidade era inquestionavelmente bela, com seus picos e montanhas, o oceano, algumas aves marinhas, outras não, um avião que pousava naquele instante, com seus passageiros que observavam a paisagem de um ângulo diverso do seu. É claro que não existe a beleza sem que a observe. Mas, por outro lado, não haveria tal intensidade na contemplação, no caso dele, não fosse certa iminência... Uma iminência que tornava mais perceptível do que nunca, aos seus ouvidos, a polifonia sinfônica das ruas, como se ele fosse um apreciador sofisticado de música aleatória, o que, quando nada, demonstrava que não é preciso estar a par de certas definições e correntes estéticas para usufruir dos efeitos e dos materiais que as compõem, que acabavam por se reunir numa espécie de zumbido cósmico que parecia nascer de dentro dele. Havia também qualquer coisa de existencialista nele, com esse negócio de viver intensamente um momento limite e dar-lhe um sentido, como alguma personagem de Jean-Paul Sartre, além de ter sido acometido, há pouco, de uma boa dose de náusea existencial em relação a si próprio e à massa humana. Por outro lado, mesmo em condições socioeconômicas mais favoráveis, haveria o absurdo da existência. Ele era um absurdo. Uma consciência largada no mundo, que podia morrer a qualquer instante e não era feliz. É claro que, do ponto de vista de uma abordagem psicanalítica, sua ânsia recém-aflorada de pular era passível de ser analisada sob outros ângulos, alguns menos, outros mais românticos ainda. O fato de sua força voltar-se contra ele próprio, num momento em que não podia dirigi-la para fora, era somente a parte mais óbvia da questão que, com um mínimo de paciência, poderia ser explicada a ele por algum psiquiatra do INPS, que a seguir o consideraria apto a retornar ao trabalho. Ele não era burro, apenas não crescera num ambiente propício a aprimorar sua educação. Quanto ao narcisismo, refletido no ato de pavonear-se no espelho da massa, ele poderia canalizá-lo para atividades socialmente mais ajustadas, como progredir no seu ramo de vidraças e assoalhos, até deixá-los tão impecavelmente limpos que lhe devolvessem uma imagem sem distorções e fantasias perniciosas. Ou, no caso de suas ambições ultrapassarem o âmbito do emprego para atingir o mundo dos espetáculos - como ocorria agora -, sempre restaria a possibilidade de buscar uma chance num programa de calouros da TV, ou no futebol, mas isso, no segundo caso, se não houvesse se passado em sua infância um acontecimento absolutamente traumático: ter sido expelido, aos empurrões, de um time de garotos, por deficiência técnica possivelmente decorrente de suas deficiências físicas, ainda que ele fosse escalado na ponta-esquerda, posição que no Brasil costuma tornar-se a mais próxima possível da reserva. Tanto é que se comentassem com ele que o Brasil, em toda a sua história esportiva, jamais tivera em suas seleções um só ponta-esquerda que fosse o astro do time, ele captaria numa fração de segundo a origem e o espírito da coisa, remetendo-a a seu próprio caso e isso, sem dúvida, seria plenamente um insight, que o faria rir numa descarga nervosa, talvez convencendo-o a aceitar melhor seus próprios limites, pois ele nem mesmo era canhoto e tornava-se extremamente difícil cruzar a bola com o pé trocado. E ainda lhe restaria, uma vez diluída uma prejudicial imagem idealizada, torcer e identificar-se com um time que lhe devolvesse, de vez em quando, a sua dedicação com um campeonato; afinal nem todos podem pisar o palco. Mais difícil - e romântico - embora não impossível, desde que se encontrassem as expressões adequadas, seria aprofundar com ele a coisa no sentido de entendê-la, a sua tentação repentina de pular, como um desejo de retorno aos braços e seios maternos e talvez até a uma vida uterina, ao indiferenciado que a todos iguala, não houvesse sido esta sobressaltada por tentativas de morte contra ele e ainda por cima com a utilização de métodos inadequados - talvez sentidos por ele como maremotos no líquido em que boiava -, embora, depois de ele ter vindo insistentemente à luz, fosse encarado, por seu raquitismo, como um castigo e uma dádiva, o que já o colocava no mundo desde o início como um paradoxo e diante de um conflito. Pois o mesmo fato que o levava a ser sacudido e surrado quando chorava durante as noites, por sentir um oco inexplicável nas entranhas, era razão para ser embalado e amamentado em plena via pública, sob marquises (!) dos edifícios, porque a mãe complementava o magro orçamento doméstico mendigando no centro da cidade, para onde ele era trazido num trem elétrico (!) vestindo seus piores farrapos, se é que os havia e, nesse ponto, como prova material de penúria para os pedestres, ele bem valia o seu peso em moedas. E se depois de um primeiro tratamento de choque, no referido INPS, ele fosse encaminhado a um profissional gabaritado, no ramo da mente, este talvez pudesse anotar em seu bloquinho, não como uma certeza - pois aprendera a desconfiar delas - mas como uma bela hipótese a ser investigada, o fato de ele ter escolhido (ou ter sido escolhido por ela, pouco importa, pois não existem coincidências, mas causalidades necessárias) uma profissão que o levaria sempre para bem próximo das marquises e que agora estivesse na iminência de jogar-se de uma delas para cair dentro do berço, que era a calçada. A fortificar tal dedução, havia o fato indiscutível de que ele trilhara literalmente esta via na vida, onde era sempre obrigado a pegar um trem elétrico para chegar ao local de trabalho que se confundia com o mítico ponto onde seria acalentado e daí, talvez, se pudesse explicar-lhe seu delírio ambulatório e até curá-lo dele, pois num dia chave, como o de hoje, o ter gasto o dinheiro da condução de volta com um café e principalmente açúcar (pois a doçura na boca era um fator que, além das calorias, tinha necessariamente de ser levado em consideração) podia não passar do que provavelmente era: um mero pretexto a acobertar coisas mais reconditamente recalcadas no inconsciente. E o final de todo este encadeamento era que ele gastara o dinheiro do ônibus, o veículo que o levaria de volta ao sofrimento do lar, e não o daquele trem (o seu trenzinho elétrico de infância) que o conduzia ao aconchego do seio materno. E o profissional sorriria de prazer diante de tal insight não do paciente, mas dele próprio - que poderia até ser levado a um congresso e publicado na revista da Sociedade, espicaçando os lacanianos, eis que tais associações não se teriam devido a nenhum troca-letras ou aliterações, mas a imagens semanticamente justas, verdadeiro embrião para uma monografia que poderia ser intitulada A psicanálise da classe operária e, desta vez, sem qualquer ironia, a Europa verdadeiramente se curvaria diante do Brasil. É certo que tal profissional, por sua integridade, somada a uma boa dose de esperteza, se anteciparia com um post-scriptum às possíveis desconfianças diante de tal modelo, criticando-o ele mesmo justamente por sua perfeição, como a de um círculo, não deixando brechas, mas redimindo-o com o argumento de que muito mais do que pela justeza científica de uma resposta, um modelo psicanalítico se validava pela maior ou menor possibilidade de um paciente ajustar-se dentro dele, como num pijama de molde adequado, e residiria aí, precisamente, a possibilidade de cura, se se pode falar em cura quando se trata de uma coisa volátil como a mente, que, como a alma, não ocupa propriamente um espaço. E, de qualquer modo, dentro das limitações de uma tentativa de conhecimento que não chega a ser uma ciência, mas um método, talvez propiciaria este modelo que o paciente pudesse voltar para casa, em vez de dissipar seu dinheiro na rua, e lá beijar a mulher no rosto como qualquer cidadão de classe média. Para então concluírem juntos, paciente e analista, que no princípio e fim de tudo está sempre o amor e, neste ponto, concordariam todos, freudianos, lacanianos e junguianos-bio-energéticos, que o que importava, no fundo, na relação analítica, era a cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, entre analista e analisando, pena que tal tipo de cliente em potencial, este que estava suspenso por um fio entre vida e morte, na marquise, não pudesse pagar para ver isso de perto. Então só lhe restava o amor de fato. O amor de uma mulher, por exemplo, que lhe estendesse a mão neste momento crucial. Não a mulher dele, evidentemente, pois a relação que se estabelecera entre ambos nos últimos tempos, depois dos desgastes da vida em comum, era aquela que pode estabelecer-se entre um pedaço de pau e um buraco, mais ou menos ajustados em suas dimensões, porém dissociados de uma configuração gestaltiana que os integrasse dentro de um todo que incluiria um aspecto de sublimação espiritual, aquilo que os seres humanos costumam denominar amor. Ou mesmo um desejo intenso pela carne alheia que fosse mais do que o apaziguar de uma coceira. Mas a natureza não queria nem saber das condições extrabiológicas: no fim de nove meses dava filho e ele já tinha três. Boa parte daquela massa arfante que circulava pelas ruas lá embaixo era proveniente do encontro de corpos em tais circunstâncias de pobreza material e do espírito, então era natural que, em termos de qualidade, houvesse uma baixa progressiva. O amor que o poderia ter salvo seria, por exemplo, o de uma datilógrafa que às vezes ele via fazendo horas extras numa das firmas para as quais ele era designado para a limpeza. Era uma jovem bem proporcionalmente rechonchuda, que provavelmente se tornaria gorda, com o correr do tempo. Mas isso era um problema para depois, do qual ele não se ocupava em suas fantasias, pois estamos no terreno do presente imediatíssimo. Além de ele verdadeiramente admirar-se com suas formas e com o modo velocíssimo da moça bater à máquina sem olhar para as teclas, havia um detalhe que fornecia a ela uma aparência simultaneamente distinta e distante (porque ele conhecia bem o seu lugar no mundo): os óculos. Parecia-lhe incrível que uma mulher fosse ao mesmo tempo jovem e desejável e complementada por um par de óculos que fazia vir à mente dele professoras meigas que ele não tivera a oportunidade de conhecer. Eram os óculos um símbolo de inacessibilidade e cultura e as fantasias chegavam a ele primeiramente em forma de preliminares, como levá-la ao cinema, à Quinta da Boa Vista, até um dia pegar na mão dela, para só depois, muito aos poucos, ir pegando no resto. O momento em que ele a possuiria seria um acontecimento solene, quando deveria munir-se de toda a delicadeza e a última coisa a retirar do corpo dela, se ele efetivamente retirasse, seriam os óculos. Porque esses óculos, sem que ele o soubesse, eram o seu fetiche. Talvez ele se espantasse ao saber que também dentro dela se passavam devaneios, nos quais um homem sensível acabaria por descobrir a alma gentil que se abrigava naquele corpo curvado sobre a máquina e atrás daqueles óculos. Embora ela mantivesse relações esporádicas com um contador casado e com um jovem vizinho de bairro, que tinha um automóvel, ainda não se desfizera do seu sonho de casar-se com alguém que verdadeiramente precisasse dela, como algum jovem estudante de medicina que chegaria ao final do curso com todo o sacrifício, do qual ela compartilharia com alegre resignação. E se ela conhecesse um homem assim quando ele se encontrasse à beira do desespero, seria capaz de entregar-se ainda mais vitalmente, gozando entre lágrimas da comovente alegria que é poder estender a mão àquele que se afoga, para trazê-lo não só à tona, mas aos píncaros do sublime. O problema é que para se ter direito ao amor, no desespero, é preciso carregar algum tipo reconhecível de beleza, nem que seja através de obras, como um Toulouse-Lautrec. Embora Van Gogh, apesar de tudo... Quanto a ele, o homem na marquise, fora destinado a essa solidão radical que é a feiúra na pobreza. Mas ele seria até capaz de reconhecer, modestamente, se tivesse tido a tal educação mais aprimorada, que Toulouse-Lautrec sofrera mais do que ele, porque provara daquele mundo onde as mulheres eram belas, e os homens, artistas tão sequiosos dessa beleza, que às vezes um deles, por carência dela, se mandava daquele mundo para outro melhor. Então só lhe restava, de fato, o amor de Deus ou a Deus que, através de uma das suas personae cristãs, o Filho, podia ser visto concretamente de braços abertos dominando a cidade. Podia ser visto privilegiadamente dali de onde ele estava, o homem da marquise. Iluminava-se o Cristo durante as noites e apagava-se ao amanhecer; encobria-se de nuvens negras em dias de tormenta e era visto a brilhar novamente quando voltava a bonança. Mas nunca, desde a inauguração da estátua, em 1931 - incluindo a visita do Papa, em 1980 -, fora visto mexendo um só dos braços para apaziguar uma dessas tormentas, individuais ou coletivas, nem quando eram as águas das chuvas que, descendo do morro que sustentava a sua imagem, iam provocar a catástrofe lá embaixo, levando na enxurrada casas, animais e pessoas e induzindo estas pessoas a pensar em algum castigo que certamente teriam merecido. Não era então previsível que movesse o Cristo um dos dedos que fosse, pelo homem na marquise, ainda mais que, se se encontrava este em posição tão periclitante, era de posse de um livre-arbítrio muito mais acentuado do que normalmente dispunham as pessoas na sua posição, tomando-se esta no sentido mais amplo possível. Pois não só ele dominava as alturas, como fora parar ali por dever de ofício e não pelo desespero - a não ser o inerente ao próprio ofício - e podia descer no momento em que quisesse, inclusive pelo lado de dentro do prédio. E, se não o fazia, era pelo pecado do orgulho. Embora por várias vezes houvesse abandonado o Cristo por ídolos de periferia como orixás e exus, já ouvira falar, este homem, durante as catequeses de infância, em sua paróquia - depois das quais era servido um lanche-, que os pobres mereceriam um lugar de destaque no reino dos céus e que, por outro lado, os suicidas não teriam perdão. Para encontrar-se então com Deus, no seu caso particular, era preciso sobretudo ter paciência. E o que o homem fez foi abrir os braços para o Cristo, movido um pouco por uma súplica vaga, porque ele não sabia como sair honrosamente daquela armadilha, e um pouco por exibicionismo ou espírito de imitação, que não raro são a gênese da loucura, quando um ser humano percebe que, se não podem certas realidades ser transformadas, pode-se simplesmente mudar a si mesmo, trocando-se um papel modesto por outro melhor, como o de Napoleão ou outro general, em casos extremos, ou de um simples guarda de trânsito, nos menos graves. Imitação que, naquele caso específico, fez sucesso, pois a massa vibrou lá embaixo, talvez pela popularidade do modelo, talvez por acreditar que a personagem que o encarnava finalmente iria voar. Foi neste momento que se fez ouvir a voz. A voz trovejou não das alturas, mas da sala da firma de engenharia: - O senhor desça já daí porque está preso - disse um policial, empunhando seu revólver. Logo percebeu que incorrera numa impropriedade semântica que podia trazer graves conseqüências, se o homem descesse e, por isso, estendeu um dos braços dali do peitoril da janela para agarrá-lo. Pela primeira vez, na vida, este outro homem era tratado de senhor; tratamento, porém, que adivinhava seria imediatamente abandonado uma vez nos braços truculentos da Lei. Então recuou na marquise até um limite tão preciso e precário que, fatalmente, o colocava sob a jurisdição do corpo de bombeiros. O representante mais categorizado desta corporação, que ali estava, fora submetido a um treinamento durante o qual se levara em conta, entre outras disciplinas, as humanidades. Fez um sinal para que o membro da outra corporação se recolhesse a um canto discreto e assumiu o comando das operações com um discurso para o qual se preparara desde o dia em que, assistindo a um filme pela TV, descobrira que a sua verdadeira vocação era ser bombeiro. Um discurso onde o formalismo era substituído, juntamente com as armas, pelo tratamento mais brasileiro-homem-cordial do “você . - Rapaz - ele disse. - Pra tudo na vida há remédio e você ainda vai rir dos problemas que te levaram até aí em cima, seja lá o que for. Por que não chega mais perto pra gente conversar? Ou se quiser fala daí mesmo, que nós estamos aqui é pra te ajudar. Apesar das misturas de concordância e de uma certa armação na fala, sua voz alcançara justamente aquele tom de cumplicidade afetiva, amorosa mesmo, precioso para se estabelecer uma relação. E é preciso não esquecer que o homem não se instalara ali com a intenção de pular; apenas fora tentado, inadvertidamente, pela vertigem e poder das alturas. Virou-se então para o bombeiro, que já saltara para a marquise, sob aplausos do público volúvel, e sorriu encabuladamente, como que pedindo desculpas. Poderia ter explicado, simplesmente, que estava limpando vidraças e que tudo não passava de um mal-entendido, era só ver o balde etc., e checar na Panamericana - Serviços Gerais. Mas a verdade é que haviam ocorrido em sua mente alguns fenômenos bastante complexos, que modificaram a sua visão de mundo e que ele gostaria de expor, inclusive a si mesmo, mas para os quais não encontrava palavras. - É como se fosse um outro, compreende? - ele disse ao bombeiro, que o abraçava sem encontrar resistência, para conduzi-lo à sala. - Alguém possível dentro de mim, que estivesse soprando pensamentos na minha cabeça. Neste momento, ele deu um largo sorriso, porque essas eram justamente as tais palavras. Porém o treinamento do bombeiro não chegara a considerar certos aspectos mais recônditos, sutis e contraditórios da mente e, como um profissional objetivo dentro das limitações dos seus deveres, não teve dúvida em seu veredicto. - É louco - avisou lá para dentro, ao mesmo tempo que empurrava o homem para o interior da sala, onde foi imobilizado. Ele fora traído, mas, por outro lado, o seu salvador - se podia chamá-lo assim - aplicara-lhe um rótulo novo que lhe oferecia também uma nova identidade, talvez explicando suas novas sensações, que agora ele preferia guardar para si mesmo. “É como se tudo não passasse de um sonho, inclusive eu e o bombeiro.” Um sentimento, aliás, sumamente agradável, porque o libertava de certas cadeias. Ele estava enganado, mas não muito longe da verdade, embora o estivesse da originalidade: ele não era um sonho, mas uma alegoria social. Social, política, psicológica e o que mais se quiser. Aos que condenam tal procedimento metafórico, é preciso relembrar que a classe trabalhadora, principalmente o seu segmento a que chamam de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar, literariamente, com a própria voz. Então se pode escrever a respeito dela tanto isso quanto aquilo. Mas nesse ínterim chegava suado, gordo e ofegante ao recinto uma personagem bastante próxima da realidade: o chefe de pessoal da Panamericana - Serviços Gerais. Vinha imbuído de formalismo, dignidade e prerrogativas do seu cargo, além de premido pelo medo de perdê-lo, diante de uma publicidade que não era bem o que o departamento de Relações Públicas da firma tinha em mente. Com os pés bem fincados no chão, disse: - Você desonrou o uniforme. Pode trocar de roupa e me entregá-lo pessoalmente. O ato que acaba de cometer é falta grave, passível de justa causa. E portanto está demitido. Suas palavras judiciosas visavam, desta vez, muito mais do que impressionar estilisticamente a audiência, assegurar a todos que estava fazendo o melhor possível nas circunstâncias, uma vez que o seu olhar clínico para bêbados, vagabundos, ladrões e malucos falhara lamentavelmente naquele caso. Inadvertidamente, estava cometendo mais um erro: suas palavras foram registradas pela imprensa, um tanto frustrada até então com a negativa do homem da marquise em dar qualquer depoimento em que as suas motivações se mostrassem claras. E louco era uma palavra que os editores, a não ser os dos jornais populares, consideravam um tanto vaga. E o executivo não apareceu bem na história, onde, ao contrário do que pensava, também não era sujeito, mas uma reles peça, primeiro passo numa derrocada que se iniciaria com a sua demissão e terminaria com o seu suicídio, quando, por um sentimento inato de justiça, viesse a aplicar em si próprio o mesmo código severo que costumava destinar aos subordinados. Mas isso já é outra história. Nesta, apenas os policiais ficaram impressionados. Embora também não encontrassem as palavras justas para dizê-lo, viram ali uma manifestação do poder temporal e também daquele outro, maior, que fora ofendido numa de suas principais personae. E, como punição exemplar aos desesperados, mais desespero. o veterano de tantos incêndios e escombros de enchentes -, e disse que o rapaz só ia trocar de roupa no hospital psiquiátrico, para onde seria levado. Suas palavras também foram registradas e, mais uma vez, com toda a justiça, a corporação apareceu bem diante da opinião pública, como um lampejo de esperança de que nem tudo estaria perdido. Quanto à personagem principal da história, o homem da marquise, ao saber do seu destino, em outras circunstâncias talvez se sentisse ferido em seu ponto mais vulnerável, o que o teria feito, quem sabe, aproveitando a vigilância afrouxada, pular enfim para a morte. Não por causa da perda do salário, propriamente, pois já se encontrava há muito a um pequeno passo do vazio econômico absoluto. Mas porque perceberia, com clareza, que a Panamericana tinha sido até então para ele não apenas um emprego, uma firma na qual trabalhava, mas um invólucro, materializado pelo uniforme, dentro do qual se enfiava - ele que se sentira, desde o berço, como uma espécie de coisa oca - e que, se não lhe fornecia uma identidade marcante, o tornava parte de uma equipe, como no futebol, permitindo que - contrariando o regulamento - passeasse entre os mendigos do Aterro sem sentir-se um deles, ainda que também não tivesse nem um puto no bolso. O sujeito do corpo de bombeiros - que indiscutivelmente surgia diante dos seus olhos como a pessoa de maior autoridade moral, dentre todos, ali - falara numa troca de uniformes no hospital psiquiátrico, do mesmo modo que fizera, a propósito dele, sem titubear, um diagnóstico preciso: louco. Não havia então por que desconfiar e ele caminhava com uma satisfação até ansiosa para trocar de papel e de equipe. Na verdade, ele já se encontrava sob outra jurisdição. Não a dos dois homens de branco que chegaram para levá-lo numa ambulância, ele envergando o uniforme da Panamericana e tudo. A jurisdição sob a qual ele se encontrava era a do “outro”, aquele alguém possível que soprara pensamentos em sua cabeça, sobre a marquise. E ele previa, intuitivamente, que lá no hospital deveria haver um pátio onde, flanando à vontade debaixo das árvores ou sentado num banco, ele teria todo o tempo do mundo para encontrar e conhecer o tal “outro”, até que os dois se tornassem a mesma pessoa e falassem com a mesma voz. O Cobrador Rubem Fonseca NA PORTA da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco. Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muita. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado. Só rindo. Esses caras săo engraçados. Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se năo fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente. Uma injeçăo de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticăo: A raiz está podre, vę?, disse com pouco caso. Săo quatrocentos cruzeiros. Só rindo. Năo tem năo, meu chapa, eu disse. Năo tem năo o quę? Năo tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direçăo ŕ porta. Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, măos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estăo me devendo muito. Abri o blusăo, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coraçăo: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chăo, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as măos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda. Eu năo pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro! Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta. * * * A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e ŕs vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estăo me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estăo me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita. Rua Marechal Floriano, casa de armas, farmácia, banco, china, retratista, Light, vacina, médico, Ducal, gente aos montes. De manhă năo se consegue andar na direçăo da Central, a multidăo vem rolando como uma enorme lagarta ocupando toda a calçada. * * * Me irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha. Ontem de noite eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para vender na Cruzada, e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar tęnis num daqueles clubes bacanas que tem por ali tocou a buzina. Eu vinha distraído pois estava pensando na Magnum, quando a buzina tocou. Vi que o carro vinha devagar e fiquei parado na frente. Como é?, ele gritou. Era de noite e năo tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e atirei no pára-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito. Ele arrancou com o carro, para me pegar ou fugir, ou as duas coisas. Pulei pro lado, o carro passou, os pneus sibilando no asfalto. Parou logo adiante. Fui até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha. Girou a cabeça que estava encostada no banco, olhos muito arregalados, pretos, e o branco em volta era azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro. E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse — vocę vai morrer, ô cara, quer que eu te dę o tiro de misericórdia? Năo, năo, ele disse com esforço, por favor. Vi da janela de um edifício um sujeito me observando. Se escondeu quando olhei. Devia ter ligado para a polícia. Saí andando calmamente, voltei para a Cruzada. Tinha sido muito bom estraçalhar o pára-brisa do Mercedes. Devia ter dado um tiro na capota e um tiro em cada porta, o lanterneiro ia ter que rebolar. * * * O cara da Magnum já tinha voltado. Cadę as trinta milhas? Pőe aqui nesta măozinha que nunca viu palmatória, ele disse. A măo dele era branca, lisinha, mas a minha estava cheia de cicatrizes, meu corpo todo tem cicatrizes, até meu pau está cheio de cicatrizes. Também quero comprar um rádio, eu disse pro muambeiro. Enquanto ele ia buscar o rádio eu examinei melhor a Magnum. Azeitadinha, e também carregada. Com o silenciador parecia um canhăo. O muambeiro voltou carregando um rádio de pilha. É japonęs, ele disse. Liga para eu ouvir o som. Ele ligou. Mais alto, eu pedi. Ele aumentou o volume. Puf. Acho que ele morreu logo no primeiro tiro. Dei mais dois tiros só para ouvir puf, puf. * * * Tăo me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol. Fico na frente da televisăo para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisăo e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele săo certinhos e săo verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos văo todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Năo perde por esperar. Meu arsenal está quase completo: tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38, duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facăo. Com o facăo vou cortar a cabeça de alguém num golpe só. Vi no cinema, num desses países asiáticos, ainda no tempo dos ingleses um ritual que consistia em cortar a cabeça de um animal, creio que um búfalo, num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitadores eram verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue esguichando. * * * Na casa de uma mulher que me apanhou na rua. Coroa, diz que estuda no colégio noturno. Já passei por isso, meu colégio foi o mais noturno de todos os colégios noturnos do mundo, tăo ruim que já năo existe mais, foi demolido. Até a rua onde ele ficava foi demolida. Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhă/ Essa é mais uma chance que eles/ tęm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./ Ela corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela năo entende. Continuo: Sabia sambar e cair na paixăo/ e rolar pelo chăo/ apenas por pouco tempo./ Do suor do seu rosto nada fora construído./ Queria morrer com ela,/ mas isso foi outro dia,/ ainda outro dia./ No cinema Íris, na rua da Carioca/ o Fantasma da Ópera/ Um sujeito de preto,/ pasta preta, o rosto escondido,/ na măo um lenço branco imaculado,/ tocava punheta nos espectadores;/ na mesma época, em Copacabana,/ um outro/ que nem apelido tinha,/ bebia o mijo dos mictórios dos cinemas/ e o rosto dele era verde e inesquecível./ A História é feita de gente morta/ e o futuro de gente que vai morrer./ Vocę pensa que ela vai sofrer?/ Ela é forte; resistirá./ Resistiria também; se fosse fraca./ Agora vocę, năo sei./ Vocę fingiu tanto tempo, deu socos e gritos, embusteou/ Vocę está cansado,/ vocę. acabou,/ năo sei o que te mantém vivo./ Ela năo entendia de poesia. Estava solo comigo e queria fingir indiferença, dava bocejos exasperados. A farsanteza das mulheres. Tenho medo de vocę, ela acabou confessando. Essa fodida năo me deve nada, pensei, mora com sacrifício num quarto e sala, os olhos dela já estăo empapuçados de beber porcarias e ler a vida das gră-finas na revista Vogue. Quer que te mate?, perguntei enquanto bebíamos uísque ordinário. Quero que vocę me foda, ela riu ansiosa, na dúvida. Acabar com ela? Eu nunca havia esganado ninguém com as próprias măos. Năo tem muito estilo, nem drama, esganar-se alguém, parece briga de rua. Mesmo assim eu tinha vontade de esganar alguém, mas năo uma infeliz daquelas. Para um zé-ninguém, só tiro na nuca? Tenho pensado nisso, ultimamente. Ela tinha tirado a roupa: peitos murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com nódulos de celulite, gelatina estragada com pedaços de fruta podre. Estou toda arrepiada, ela disse. Deitei sobre ela. Me agarrou pelo pescoço, sua boca e língua na minha boca, uma vagina viscosa, quente e olorosa. Fodemos. Ela agora está dormindo. Sou justo. * * * Leio os jornais. A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. O bacana do Mercedes com roupa de tenista morreu no Miguel Couto e os jornais dizem que foi assaltado pelo bandido Boca Larga. Só rindo. Faço um poema denominado Infância ou Novos Cheiros de Buceta com U: Eis-me de novo/ ouvindo os Beatles/ na Rádio Mundial/ ŕs nove horas da noite/ num quarto/ que poderia ser/ e era/ de um santo mortificado/ Năo havia pecado/ e năo sei por que me lepravam/ por ser inocente/ ou burro/ De qualquer forma/ o chăo estava sempre ali/ para fazer mergulhos./ Quando năo se tem dinheiro/ é bom ter músculos/ e ódio./ Leio os jornais para saber o que eles estăo comendo, bebendo e fazendo. Quero viver muito para ter tempo de matar todos eles. * * * Da rua vejo a festa na Vieira Souto, as mulheres de vestido longo, os homens de roupas negras. Ando lentamente, de um lado para o outro na calçada, năo quero despertar suspeitas e o facăo por dentro da calça, amarrado na perna, năo me deixa andar direito. Pareço um aleijado, me sinto um aleijado. Um casal de meia-idade passa por mim e me olha com pena; eu também sinto pena de mim, manco e sinto dor na perna. Da calçada vejo os garçons servindo champanha francesa. Essa gente gosta de champanha francesa, vestidos franceses, língua francesa. Estava ali desde as nove horas, quando passara em frente, todo municiado, entregue ŕ sorte e ao azar, e a festa surgira. As vagas em frente ao apartamento foram logo ocupadas e os carros dos visitantes passaram a estacionar nas escuras ruas laterais. Um deles me interessou muito, um carro vermelho e nele um homem e uma mulher, jovens e elegantes. Caminharam para o edifício sem trocar uma palavra, ele ajeitando a gravata borboleta e ela o vestido e o cabelo. Prepararam-se para uma entrada triunfal mas da calçada vejo que a chegada deles foi, como a dos outros, recebida com desinteresse. As pessoas se enfeitam no cabeleireiro, no costureiro, no massagista e só o espelho lhes dá, nas festas, a atençăo que esperam. Vi a mulher no seu vestido azul esvoaçante e murmurei — vou te dar a atençăo que vocę merece, năo foi ŕ toa que vocę vestiu a sua melhor calcinha e foi tantas vezes ŕ costureira e passou tantos cremes na pele e botou perfume tăo caro. Foram os últimos a sair. Năo andavam com a mesma firmeza e discutiam irritados, vozes pastosas, enroladas. Cheguei perto deles na hora em que o homem abria a porta do carro. Eu vinha mancando e ele apenas me deu um olhar de avaliaçăo rápido e viu um aleijado inofensivo de baixo preço. Encostei o revólver nas costas dele. Faça o que mando senăo mato os dois, eu disse. Para entrar de perna dura no estreito banquinho de trás năo foi fácil. Fiquei meio deitado, o revólver apontado para a cabeça dele. Mandei que seguisse para a Barra da Tijuca. Tirava o facăo de dentro da perna quando ele disse, leva o dinheiro e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel Nacional. Só rindo. Ele já estava sóbrio e queria tomar um último uisquinho enquanto dava queixa ŕ polícia pelo telefone. Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma festa. Seguimos pelo Recreio dos Bandeirantes até chegar a uma praia deserta. Saltamos. Deixei acesos os faróis. Nós năo Lhe fizemos nada, ele disse. Năo fizeram? Só rindo. Senti o ódio inundando os meus ouvidos, minhas măos, minha boca, meu corpo todo, um gosto de vinagre e lágrima. Ela está grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho. Olhei a barriga da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei o revólver na tęmpora dela e fiz ali um buraco de mina. O homem assistiu a tudo sem dizer, uma palavra, a carteira de dinheiro na măo estendida. Peguei a carteira da măo dele e joguei pro ar e quando ela veio caindo dei-lhe um bico; de canhota, jogando a carteira longe. Amarrei as măos dele atrás das costas com uma corda que eu levava. Depois amarrei os pés. Ajoelha, eu disse. Ele ajoelhou. Os faróis do carro iluminavam o seu corpo. Ajoelhei-me ao seu lado, tirei a gravata borboleta, dobrei o colarinho, deixando seu pescoço ŕ mostra. Curva a cabeça, mandei. Ele curvou. Levantei alto o facăo, seguro nas duas măos; vi as estrelas no céu, a noite imensa, o firmamento infinito e desci o facăo, estrela de aço, com toda minha força, bem no meio do pescoço dele. A cabeça năo caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha tonta nas măos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e outro e a cabeça năo rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o páralama do carro. O pescoço ficou numa boa posiçăo. Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez, enquanto o facăo fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! a cabeça saiu rolando pela areia. Ergui alto o alfanje e recitei: Salve o Cobrador! Dei um grito alto que năo era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto derrete. * * * Uma caixa preta debaixo do braço. Falo com a língua presa que sou o bombeiro que vai fazer o serviço no apartamento duscenthos e um. O porteiro acha graça na minha língua presa e me manda subir. Começo do último andar. Sou o bombeiro (língua normal agora) vim fazer o serviço. Pela abertura, dois olhos: ninguém chamou bombeiro năo. Desço para o sétimo, a mesma coisa. Só vou ter sorte no primeiro andar. A empregada me abriu a porta e gritou lá para dentro, é o bombeiro. Surgiu uma moça de camisola, um vidro de esmalte de unhas na măo, bonita, uns vinte e cinco anos. Deve haver um engano, ela disse, nós năo precisamos de bombeiro. Tirei o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senăo mato as duas. Tem mais alguém em casa? O marido estava trabalhando e o menino no colégio. Amarrei a empregada, fechei sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro quarto. Tira a roupa. Năo vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida. Estăo me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Năo tiro. Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiă. Abri-lhe as pernas. Coloquei os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura năo foi fácil, a buceta era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas. Mesmo assim năo foi fácil, sentia o meu pau esfolando. Deu um gemido quando enfiei o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua bunda. Meu pau começou a ficar lubrificado pelos sucos da sua vagina, agora morna e viscosa. Como já năo tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do umbigo dela. Vę se năo abre mais a porta pro bombeiro, eu disse, antes de ir embora. *** Saio do sobrado da rua Visconde de Maranguape. Uma panela em cada molar cheio de cera do Dr. Lustosa/ mastigar com os dentes da frente/ punheta pra foto de revista/ livros roubados./ Vou para a praia. Duas mulheres estăo conversando na areia; uma tem o corpo queimado de sol, um lenço na cabeça; a outra é clara, deve ir pouco ŕ praia; as duas tęm o corpo muito bonito; a bunda da clara é a bunda mais bonita entre todas que já vi. Sento perto, e fico olhando. Elas percebem meu interesse e começam logo a se mexer, dizer coisas com o corpo, fazer movimentos aliciantes com os rabos. Na praia somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores pois năo temos aquela barriga grande e a bunda mole dos parasitas. Eu quero aquela mulher branca! Ela inclusive está interessada em mim, me lança olhares. Elas riem, riem, dentantes. Se despedem e a branca vai andando na direçăo de Ipanema, a água molhando os seus pés. Me aproximo e vou andando junto, sem saber o que dizer Sou uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida, e o cabelo dela é fino e tratado, o seu tórax é esbelto, os seios pequenos, as coxas săo sólidas e redondas e musculosas e a bunda é feita de dois hemisférios rijos. Corpo de bailarina. Vocę estuda balé? Estudei, ela diz. Sorri para mim. Como é que alguém pode ter boca tăo bonita? Tenho vontade de lamber dente por dente da sua boca. Vocę mora por aqui?, ela pergunta. Moro, minto. Ela me mostra um prédio na praia, todo de mármore. * * * De volta ŕ rua Visconde de Maranguape. Faço hora para ir na casa da moça branca. Chama-se Ana. Gosto de Ana, palindrômico. Afio o facăo com uma pedra especial, o pescoço daquele janota era muito duro. Os jornais abriram muito espaço para a morte do casal que eu justicei na Barra. A moça era filha de um desses putos que enriquecem em Sergipe ou Piauí, roubando os paus-de-araras, e depois vęm para o Rio, e os filhos de cabeça chata já năo tęm mais sotaque, pintam o cabelo de louro e dizem que săo descendentes de holandeses. Os colunistas sociais estavam consternados. Os granfas que eu despachei estavam com viagem marcada para Paris. Năo há mais segurança nas ruas, dizia a manchete de um jornal. Só rindo. Joguei uma cueca pro alto e tentei cortá-la com o facăo, como o Saladino fazia (com um lenço de seda) no cinema. Năo se fazem mais cimitarras como antigamente/ Eu sou uma hecatombe/ Năo foi nem Deus nem o Diabo/ Que me fez um vingador/ Fui eu mesmo/ Eu sou o Homem Pęnis/ Eu sou o Cobrador./ Vou no quarto onde Dona Clotilde está deitada há tręs anos. Dona Clotilde é dona do sobrado. Quer que eu passe o escovăo na sala?, pergunto. Năo meu filho, só queria que vocę me desse a injeçăo de trinevral antes de sair. Fervo a seringa, preparo a injeçăo. A bunda de Dona Clotilde é seca como uma folha velha e amassada de papel de arroz. Vocę caiu do céu, meu filho, foi Deus que te mandou, ela diz. Dona Clotilde năo tem nada, podia levantar e ir comprar coisas no supermercado. A doença dela está na cabeça. E depois de tręs anos deitada, só se levanta para fazer pipi e cocô, ela năo deve mesmo ter forças. Qualquer dia dou-lhe um tiro na nuca. * * * Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensaçăo de vitória, de euforia que me dá vontade de dançar — dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chăo, meu corpo se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco. Quem quiser mandar em mim pode querer, mas vai morrer. Estou querendo muito matar um figurăo desses que mostram na televisăo a sua cara paternal de velhaco bem-sucedido, uma pessoa de sangue engrossado por caviares e champăs. Come caviar/ teu dia vai chegar./ Estăo me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. A moça do prédio de mármore? Entro e ela está me esperando, sentada na sala, quieta, imóvel, o cabelo muito preto, o rosto branco, parece uma fotografia. Vamos sair, eu digo para ela. Ela me pergunta se estou de carro. Digo que năo tenho carro. Ela tem. Descemos pelo elevador de serviço e saímos na garagem, entramos num Puma conversível. Depois de algum tempo pergunto se posso dirigir e trocamos de lugar. Petrópolis está bem?, pergunto. Subimos a serra sem dizer uma palavra, ela me olhando. Quando chegamos a Petrópolis ela pede que eu pare num restaurante. Digo que năo tenho dinheiro nem fome, mas ela tem as duas coisas, come vorazmente como se a qualquer momento fossem levar o prato embora. Na mesa ao lado um grupo de jovens bebendo e falando alto, jovens executivos subindo na sexta-feira e bebendo antes de encontrar a madame toda enfeitada para jogar biriba ou falar da vida alheia enquanto traçam queijos e vinhos. Odeio executivos. Ela acaba de comer. E agora? Agora vamos voltar, eu digo, e descemos a serra, eu dirigindo como um raio, ela me olhando. Minha vida năo tem sentido, já pensei em me matar, ela diz. Paro na rua Visconde de Maranguape. É aqui que vocę mora? Saio sem dizer nada. Ela sai atrás: vou te ver de novo? Entro e enquanto vou subindo as escadas ouço o barulho do carro partindo. * * * Top Executive Club. Vocę merece o melhor relax, feito de carinho e compreensăo. Nossas massagistas săo completas. Elegância e discriçăo. Fica quieto senăo chumbo a sua barriga executiva. Ele tem o ar petulante e ao mesmo tempo ordinário do ambicioso ascendente egresso do interior, deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena, católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando na PUC, a mulher transando decoraçăo de interiores e sócia de butique. Como é executivo, a massagista te tocou punheta ou chupou teu pau? Vocę é homem, sabe como é, entende essas coisas, ele disse. Papo de executivo com chofer de táxi ou ascensorista. De Botucatu para a Diretoria, acha que já enfrentou todas as situaçőes de crise. Năo sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador. Sou o Cobrador!, grito. Ele começa a ficar da cor da roupa. Pensa que sou maluco e maluco ele ainda năo enfrentou no seu maldito escritório refrigerado. Vamos para sua casa, eu digo. Eu năo moro aqui no Rio, moro em Săo Paulo, ele diz. Perdeu a coragem, mas năo a esperteza. E o carro?, pergunto. Carro, que carro? Este carro, com a chapa do Rio? Tenho mulher e tręs filhos, ele desconversa. Que é isso? Uma desculpa, senha, habeas-corpus, salvo-conduto? Mando parar o carro. Puf, puf, puf, um tiro para cada filho, no peito. O da mulher na cabeça, puf. * * * Para esquecer a moça que mora no edifício de mármore vou jogar futebol no aterro. Tręs horas seguidas, minhas pernas todas escalavradas das porradas que levei, o dedăo do pé direito inchado, talvez quebrado. Sento suado ao lado do campo, junto de um crioulo lendo O Dia. A manchete me interessa, peço o jornal emprestado, o cara diz se tu quer ler o jornal por que năo compra? Năo me chateio, o crioulo tem poucos dentes, dois ou tręs, tortos e escuros. Digo, tá, năo vamos brigar por isso. Compro dois cachorros-quentes e duas cocas e dou metade pra ele e ele me dá o jornal. A manchete diz: Polícia ŕ procura do louco da Magnum. Devolvo o jornal pro crioulo. Ele năo aceita, ri para mim enquanto mastiga com os dentes da frente, ou melhor com as gengivas da frente que de tanto uso estăo afiadas como navalhas. Notícia do jornal: Um grupo de gră-finos da zona sul em grandes preparativos para o tradicional Baile de Natal — Primeiro Grito de Carnaval. O baile começa no dia vinte e quatro e termina no dia primeiro do Ano Novo; vęm fazendeiros da Argentina, herdeiros da Alemanha, artistas americanos, executivos japoneses, o parasitismo internacional. O Natal virou mesmo uma festa. Bebida, folia, orgia, vadiagem. O Primeiro Grito de Carnaval. Só rindo. Esses caras săo engraçados. Um maluco pulou da ponte Rio-Niterói e boiou doze horas até que uma lancha do Salvamar o encontrou. Năo pegou nem resfriado. Um incęndio num asilo matou quarenta velhos, as famílias celebraram. * * * Acabo de dar a injeçăo de trinevral em Dona Clotilde quando tocam a campainha. Nunca tocam a campainha do sobrado. Eu faço as compras, arrumo a casa. Dona Clotilde năo tem parentes. Olho da sacada. É Ana Palindrômica. Conversamos na rua. Vocę está fugindo de mim?, ela pergunta. Mais ou menos, digo. Vou com ela pro sobrado. Dona Clotilde, estou com uma moça aqui, posso levar pro quarto? Meu filho, a casa é sua, faça o que quiser, só quero ver a moça. Ficamos em pé ao lado da cama. Dona Clotilde olha para Ana um tempo enorme. Seus olhos se enchem de lágrimas. Eu rezava todas as noites, ela soluça, todas as noites para vocę encontrar uma moça como essa. Ela ergue os braços magros cobertos de finas pelancas para o alto, junta as măos e diz, oh meu Deus, como vos agradeço! Estamos no meu quarto, em pé, sobrancelha com sobrancelha, como no poema, e tiro a roupa dela e ela a minha e o corpo dela é tăo lindo que sinto um aperto na garganta, lágrimas no meu rosto, olhos ardendo, minhas măos tremem e agora estamos deitados, um no outro, entrançados, gemendo, e mais, e mais, sem parar, ela grita; a boca aberta, os dentes brancos como de um elefante jovem, ai, ai, adoro a tua obsessăo!, ela grita, água e sal e porra jorram de nossos corpos, sem parar. Agora, muito tempo depois, deitados olhando um para o outro hipnotizados até que anoitece e nossos rostos brilham no escuro e o perfume do corpo dela traspassa as paredes do quarto. Ana acordou primeiro do que eu e a luz está acesa. Vocę só tem livros de poesia? E estas armas todas, pra quę? Ela pega a Magnum no armário, carne branca e aço negro, aponta pra mim. Sento na cama. Quer atirar? pode atirar, a velha năo vai ouvir. Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo suspendo o cano até a altura da minha testa. Aqui năo dói. Vocę já matou alguém? Ana aponta a arma pra minha testa. Já. Foi bom? Foi. Como? Um alívio. Como nós dois na cama? Năo, năo, outra coisa. O outro lado disso. Eu năo tenho medo de vocę, Ana diz. Nem eu de vocę. Eu te amo. Conversamos até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra Dona Clotilde e levo pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha entre goles. * * * Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missăo. Sempre tive uma missăo e năo sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serăo mortos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facăo, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocęs serăo usados. Beijo o meu facăo. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; năo serei apenas o louco da Magnum. Também năo sairei mais pelo parque do Flamengo olhando as árvores; os troncos, a raiz, as folhas, a sombra, escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de chăo de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles olhassem para os lados. Já năo perco meu tempo com sonhos. O mundo inteiro saberá quem é vocę, quem somos nós, diz Ana. Notícia: O Governador vai se fantasiar de Papai Noel. Notícia: menos festejos e mais meditaçăo, vamos purificar o coraçăo. Notícia: Năo faltará cerveja. Năo faltarăo perus. Notícia: Os festejos natalinos causarăo este ano mais vítimas de trânsito e de agressőes do que nos anos anteriores. Policia e hospitais preparam-se para as comemoraçőes de Natal. O Cardeal na televisăo: a festa de Natal está deturpada, o seu sentido năo é este, essa história de Pagai Noel é uma invençăo infeliz. O Cardeal afirma que Papai Noel é um palhaço fictício. Véspera de Natal é um bom dia para essa gente pagar o que deve, diz Ana. O Papai Noel do baile eu mesmo quero matar com o facăo, digo. Leio para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, para os jornais. Nada de sair matando a esmo, sem objetivo definido. Eu năo sabia o que queria, năo buscava um resultado prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu erro era năo saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim mudaremos o mundo. É a síntese do nosso manifesto. Ponho as armas numa mala. Ana atira tăo bem quanto eu, só năo sabe manejar o facăo, mas essa arma agora é obsoleta. Damos até logo ŕ Dona Clotilde. Botamos a mala no carro. Vamos ao Baile de Natal. Năo faltará cerveja, nem perus. Nem sangue. Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro. Texto extraído do livro "O Cobrador", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979, pág. 165.