Salvador janta no Lamas Victor Giudice "Durante a empresa é que o pavăo abre a cauda." (Mauricio del Giudice) Por timidez ou năo, Salvador sempre foi discreto. Jamais diria aos colegas que sente ojeriza a voltar para casa assim que termina o expediente, depois de ficar trancado nove horas no banco declamando parcelas intermináveis ŕ procura de diferenças irrisórias. Primeiro, porque ninguém compreenderia. E, segundo, por que segundo? Incapaz de inventar outro motivo que sublinhasse o primeiro, Salvador se refugia na incompreensăo alheia. As pessoas năo entendem os sentimentos. Assim, năo gostar de voltar para casa pode parecer aos outros que ele despreza a companhia da mulher e dos filhos, e isso năo é verdade. O que Salvador reclama é o direito de respirar a brisa noturna em completa solidăo, pensando no que quiser, fantasiando as ruas, os transeuntes, para depois regalar-se na mesa de um restaurante, sem dar satisfaçőes a quem quer que seja. Pelo menos uma noite em cada męs ele consegue coragem e, sobretudo, dinheiro para realizar o sonho. Coragem, devido ŕ sensaçăo de culpa que lhe corta o coraçăo quando chega em casa ŕs dez e tanto e năo sabe o que dizer ŕ mulher. Dinheiro, porque, para Salvador, jantar num restaurante pesa na balança. Mas o remorso dura apenas a meia hora antes do sono. Além do mais, se amanhă ou depois ele se confessasse, teria alguma coisa para contar a Deus. Foi com esse pensamento que saltou do metrô no Largo do Machado e respirou a brisa a caminho do Lamas. Era uma dessas noites de dezembro carioca e dizendo-se dezembro carioca năo se precisa acrescentar nada com relaçăo ŕ temperatura. Alguns fregueses reclamavam da refrigeraçăo do restaurante porque esfriava os pratos. No entanto, sentir o contraste entre o calor de dezembro e o frio do Lamas era para Salvador a suprema delícia, o aconchego em pleno verăo. Já com o suor congelando sobre a pele, sentou-se numa das poucas mesas vagas, junto ŕ parede lateral, e pediu um chope. Outra alegria era ver o garçom aproximar-se trazendo na bandeja um pedido seu. Se demorasse năo tinha importância: a espera aumentava o prazer final. Mas năo houve demora. Logo que a bebida pousou em sua frente, ele tratou de pedir o prato preferido: filé ao ponto com batatas fritas, presunto e ervilhas. Em seguida, tomou dois goles de chope, respirou fundo e consolidou a felicidade. Estava só, num restaurante abarrotado de pessoas ruidosas, e podia observar todas elas. Na mesa da direita reparou num homem de costas para ele, acompanhado de uma negra de beleza incorreta e de outra mulher, clara, portadora de todos os requisitos inerentes ŕ sexagenária típica: cabelos brancos, obesidade, óculos bifocais e sorriso opaco. Salvador tem o hábito de circular os olhos pelo ambiente enquanto bebe. Desse modo consegue ver tudo sem que se veja que ele está vendo. Sempre teve medo de ser pego observando alguém. Foi por essa razăo que năo entendeu quando o homem da direita virou a cabeça e lhe dirigiu um olhar atento. Năo durou mais que um segundo, mas foi certeiro e pontiagudo. Salvador sentiu os olhos esverdeados esbarrarem nos seus. Era um moço de vinte anos no máximo. Quase um menino. O rosto fino e esbranquiçado, meio imberbe, os lábios inexpressivos sob um bigode que năo se impunha. Salvador năo deu importância ao fato e voltou ao chope. Em outra mesa, estava um casal de perfil para ele. Pareciam amantes. O homem, um dançarino de tangos, de cabelos grisalhos e camisa de seda preta, segurava a măo de um anjo esvoaçante, num vestido de viscose branquíssima, visivelmente mais nova que o namorado. A expressăo de falsa incredulidade assumida pelo anjo acirrava a paixăo do parceiro. Salvador observava-os com toda a comodidade, pois pressentira que em nenhum momento os dois abandonariam a troca de emoçőes. Eram belos porque pareciam unidos justamente por suas diferenças. Admirou-os por mais de um minuto, e é possível que os admirasse até o final do jantar, caso o rapaz da direita năo tornasse a virar a cabeça em sua direçăo. Dessa vez ele notou que a negra e a sexagenária haviam imitado o gesto do companheiro. Os tręs olhares se uniram num foco único e atingiram-no por uma fraçăo de tempo que para uma vida é irrelevante, mas para um olhar é uma vida. Engraçado como logo a seguir o trio continuou a conversar como se nada houvesse acontecido. O sorriso da sexagenária permaneceu tăo insatisfatório quanto a beleza da negra. Salvador deu uma espiada na copa, mas ainda era cedo para o aparecimento da bandeja com o filé. Achou graça dos olhares e se concentrou em outra mesa, espremida por tręs gordos, com as papadas se derramando sobre os colarinhos. Sem trocar uma palavra, devoravam montanhas de batatas cozidas. Um deles passou os olhos em Salvador, sem notar que estava sendo observado. A voracidade dominava os tręs a tal ponto, que nem mesmo as trombetas do Juízo Final seriam capazes de abalá-los. Mas ai daquele que tentasse subtrair uma batata de seus pratos. Mais ao fundo, ele vislumbrou os personagens de outra mesa singular. Aquilo, sim, chamava a atençăo. Um velho com os cabelos pintados de um preto inescrupuloso, a pele ressequida e quebradiça, uma loura um pouco antes dos quarenta e muito depois dos trinta, despenteada e sem maquiagem, e uma menina mirrada de seis ou sete anos. Só a mulher e a criança comiam. Aliás, sem grande apetite. O velho tinha um prato intocado ŕ frente e, além de năo comer, fazia um esforço tragicômico para năo dormir, sem que as duas tomassem o mínimo conhecimento. Era como se já estivessem habituadas ŕ cena. Ŕs vezes a cabeça do homem tombava e se interrompia a poucos centímetros do prato. As primeiras quedas assustaram Salvador. Pareceu-lhe que o sujeito acabaria mergulhando a cara na comida. Depois a repetiçăo virou divertimento. Por uma espécie de instinto, assim que o rosto se avizinhava do prato, os olhos se entreabriam e davam o sinal para a cabeça tornar a se erguer. Mas logo que atingia o ponto mais elevado, estremecia, as pálpebras se fechavam e o pescoço dobrava, permitindo outro desabamento. Em poucos instantes, o espetáculo fez com que Salvador se alienasse do restaurante e de toda aquela gente que o enchia de vida. Em sua visăo só existia o homem da cabeça balouçante. Sorriu como uma criança diante da primeira girafa até que, numa reaçăo automática, levou a tulipa de chope ŕ boca e circulou os olhos: pronto. A mesa da direita desfechava outro ataque. O rapaz, a negra e a sexagenária estavam olhando. Expectantes. Como se ele devesse alguma satisfaçăo pelos desequilíbrios do Lamas, ou como se quisessem transmitir alguma mensagem intraduzível em palavras. Passado algum tempo, a negra desviou os olhos para a taça de sorvete, mas o rapaz e a sexagenária continuaram olhando. Salvador tentou concentrar-se no velho sonolento. Impossível. As pupilas teimavam em voltar ŕ mesa da direita. E voltaram. Apenas a sexagenária observava. O rapaz estava segredando alguma coisa ŕ negra. Salvador esvaziou a tulipa e fez um gesto ao garçom. Junto com o chope veio uma cesta cheia de fatias de păo e um pratinho de manteiga. Sem demonstrar preocupaçăo, ele passou manteiga numa das fatias, levou-a até os lábios, mas năo chegou a mordę-la: um dos tręs gordos, justamente o maior de todos, o que estava de costas, parara de comer e se voltara de corpo inteiro para Salvador. Ato contínuo, encaixou a cara redonda num par de lentes de miopia e investigou-o de alto a baixo, como quem diz: entăo é vocę que fica bisbilhotando nosso jantar? Concluído o exame, tirou os óculos, guardou-os no estojo, virou-se para a frente e recomeçou a comer. Salvador engoliu o păo e olhou para a copa. O filé năo aparecia, mas, encostado ŕ porta, um garçom se imobilizara, com uma bandeja cheia de pratos vazios equilibrada numa das măos e com os olhos fixos nele. Salvador baixou a cabeça, pegou outra fatia de păo e largou-a na cesta. Preferiu tomar um gole de chope e ficar apreciando a espuma. Era melhor năo arriscar olhares. Permaneceu assim durante cinco minutos. Depois, timidamente, deu uma olhada para a mesa da direita e relaxou: a negra terminara o sorvete, enquanto o rapaz e a sexagenária tomavam café. Conversavam com naturalidade e só trocavam olhares entre eles. O alívio aumentou quando ouviu os tręs gordos estourarem uma gargalhada em comemoraçăo ŕ chegada de outra raçăo de batatas. Salvador quase riu também. Afinal, estava tudo nos eixos. Só faltava o filé. Inspecionou a copa. O tal garçom continuava imóvel, com a bandeja repleta de pratos vazios e talheres sujos. O olhar, imutável. Achar que năo era admissível que um restaurante como o Lamas contasse com um empregado que ficava o tempo todo parado como um idiota admirando os fregueses foi um pensamento inútil. O certo é que a imobilidade do homem com a bandeja coberta de pratos e talheres tornou-se o ponto de partida dos acontecimentos que transformaram a noite de Salvador no episódio mais marcante de sua vida, embora ele talvez nunca desse por isso. O fato é que dali para a frente — ou para trás — todos os parafusos responsáveis por sua estabilidade emocional afrouxaram. Quando finalmente surgiu o filé com as batatas e o presunto, ele năo percebeu a ausęncia das ervilhas. Espetou o garfo na carne, cortou um pedaço, meteu na boca, mastigou e engoliu, fazendo o possível para năo demonstrar seu verdadeiro estado de espírito. Apesar da vigilância do garçom com os pratos vazios, Salvador tentou uma rápida inspeçăo ao fundo do restaurante e teve um sobressalto, ao descobrir um casal silencioso que se embriagava com chope e steinhäger. Tanto o homem quanto a mulher estavam olhando para ele. Ou năo? Podia ser que estivessem acompanhando um garçom que havia passado rente ŕ mesa de Salvador com a bandeja coberta de tulipas. Mas, năo. O rapaz fez a volta numa coluna e se afastou em outra direçăo, enquanto os olhos do casal se mantinham na mesma: Salvador. Agora ele contava com tręs contemplaçőes distantes e fixas: as duas do par de embriagados e a do garçom paralisado junto ŕ copa, equilibrando os pratos. Em todo caso, năo havia nada a temer e muito menos a fazer. O casal estava bębado e o garçom devia estar esperando a copa esvaziar para entrar e largar a bandeja. Afinal, o movimento do Lamas năo é sopa. E a mesa da direita? Por que razăo naquele momento o rapaz e a negra teriam voltado a encará-lo com a mesmíssima seriedade de alguns minutos atrás? A sexagenária examinava a conta, enquanto os dois olhavam descaradamente. Foi demais. Salvador largou o garfo e a faca e se dirigiu ao toalete. Talvez houvesse alguma coisa estranha em sua cara, nos cabelos ou até na roupa. Quem sabe? Aproximou o rosto do espelho, puxou as pálpebras inferiores para baixo, virou a cabeça para um lado e para o outro, tirou o paletó, sacudiu-o, depois a gravata e a camisa. Só năo tirou as calças, porque no instante em que desabotoava o cinto, a porta se abriu e deu entrada a uma dama com um metro e noventa de altura, peruca ruiva e braços musculosos: um travesti. Desajeitado, Salvador procurou explicar a nudez com uma ginástica para coçar as costas. O travesti năo lhe deu a mínima atençăo. Salvador se vestiu, ajeitou os cabelos e saiu. Ao entrar no salăo, as pessoas sentadas em frente ao toalete voltaram-se para ele, atentas ao menor gesto seu. Ele fingiu que năo via, mas durante o trajeto de volta ŕ mesa distinguiu o movimento de diversas cabeças para apreciarem sua passagem. Pensou em fugir e nunca mais aparecer ali, mas se lembrou da conta. É claro que aquele batalhăo de garçons impediria sua fuga. Já sentado, comeu um pedaço de filé. Os fregueses tinham razăo: a refrigeraçăo esfriava a comida. Bebeu metade do chope e o passeio dos olhos comprovou a realidade. O rapaz da direita, a sexagenária, a negra, os tręs gordos, o velho dorminhoco, a loura despenteada, a menina magricela, o casal de bębados, os garçons, o travesti, seus acompanhantes, o anjo e o namorado, o gerente, enfim, todos os seres que compunham o universo do Lamas olhavam para ele, insistentes, como se dele pudesse brotar uma justificativa para suas presenças ali, naquele restaurante, naquela noite de dezembro carioca. Como prova irrefutável de que os olhares se dirigiam a ele — e só a ele — chegou a ver alguns clientes tocarem o companheiro com o cotovelo e levantarem o queixo para apontá-lo. A loura despenteada, por exemplo, sacudiu o velho sonolento até acordá-lo por completo. Salvador năo saberia dizer o que lhe parecia pior. Se os olhares ou o silęncio que os acompanhava. Porque assim que alguém começava a olhá-lo, parava de falar e de se mexer, transformando-se numa estátua e reduzindo ŕs pupilas o único indício de vida. Salvador sentiu o suor nas tęmporas e nas axilas. Por que faziam aquilo? Que é que estariam querendo dele? Por outro lado, por que se apavorar daquele jeito? Talvez tudo fizesse parte de uma brincadeira tramada em conjunto pelos freqüentadores do Lamas. Ele bem que poderia passar a perna em todos eles. Era só pagar a conta e dar uma banana monumental para aquele bando de gozadores. Mas, durante um tempo desmedido, foi incapaz de levantar um dedo. Suas emoçőes transitavam entre o ódio e a humilhaçăo, com paradas obrigatórias no medo, na esperança e numa inexplicável hipocondria. De uma hora para outra, tornou-se consciente de todos os órgăos do corpo e passou a temer pelo mau funcionamento de algum deles. Principalmente do coraçăo, cujo ritmo se acelerava. Enquanto isso, as pessoas olhavam, indiferentes ao tempo e ao final dos tempos. Enfim, Salvador teve a estúpida certeza de que năo se tratava de uma brincadeira. Nesse momento, o ódio balançou entre o rapaz da direita, primeiro a encará-lo, e o gordo que o inspecionara com os óculos de miopia. De repente, ele viu naquela carantonha esférica e rosada a reencarnaçăo de algum mandarim impiedoso, ocidentalizado ŕ custa das iguarias do Lamas. Se pudesse, teria estrangulado o gordo ou teria estrangulado todos os fregueses daquela noite. E eles o olhavam, paralíticos, silenciosos e ameaçadores. De que seriam capazes, caso Salvador ensaiasse uma retirada? Sem dúvida iriam linchá-lo, rasgá-lo em pedaços e devorar suas vísceras como sobremesa. O velho dorminhoco mantinha as pálpebras abertas. A negra apertava entre o indicador e o médio da măo direita um cigarro, cuja brasa queimaria sua epiderme em questăo de minutos. Mas năo se movia. De longe, Salvador percebeu que o travesti apresentava uma expressăo que ia além da seriedade. Os lábios se estendiam por dois ou tręs milímetros, somente num canto da boca, e fabricavam um cinismo sob medida. Nunca teria visto esses e outros pormenores se năo fosse ele próprio o centro das atraçőes. Divisou quatro mulheres lindíssimas e notou que as quatro usavam broches, colares, brincos e anéis de marcassita. Reparou numa jovem que se sentara com a saia arregaçada até os quadris, exibindo na coxa visível uma tatuagem arroxeada. Na mesa vizinha ŕ do casal de embriagados, havia dois senhores de cabelos ralos, elegantemente vestidos e de măos dadas, como namorados recentes. Constatou que os tręs gordos, um segundo antes de se fixarem nele, haviam recebido mais uma travessa de batatas, tręs tulipas e dois cálices de steinhäger. Assustou-se com o olho solitário sob um boné azul, numa cara alongada, de feiçőes duras. A outra vista se achava coberta por uma venda negra, como as dos piratas. Surpreendeu-se com a calma do gerente, que, antes de ficar olhando para ele, teve o cuidado de apoiar os cotovelos no balcăo e descansar o queixo sobre as falanges. A pose demonstrava a intençăo de permanecer em atitude contemplativa por mais de um século. Salvador sentiu a derrota. Năo havia uma única mesa vazia e todas olhavam para ele, silenciosas e eternas. Mas um pânico meio desajeitado adquiria forma em seu cérebro. Uma forma disforme que aumentava de tamanho e que poderia, em último caso, ser a soluçăo. A tortura já se prolongava por meia hora, quando Salvador percebeu a existęncia de um atalho formado pela fila de mesas iniciada com a do rapaz da direita. Logo adiante havia um caminho que conduzia ao toalete, outro em direçăo ŕ copa e um terceiro que se ligava ao corredor da saída. Se ele se levantasse de um salto, em poucos segundos estaria na rua, e a surpresa talvez năo deixasse as pessoas impedirem sua passagem, caso fosse essa a intençăo geral. Esperou um minuto, convocou todas as forças, ergueu a tulipa com naturalidade e encostou-a nos lábios. Largou o copo e apanhou um guardanapo de papel. Amarrotou-o, saltou da cadeira, atirou-se na trilha formada pelas mesas, tropeçou num pé de sandália, equilibrou-se, passou pela copa, viu as últimas caras que o fitavam, ganhou o corredor da saída e suspirou de pernas bambas e vitorioso no asfalto da Marquęs de Abrantes. Livre do Lamas. Livre do pesadelo. Livre da liberdade de passar uma noite em cada męs realizando sonhos libertários. Só o ritmo do coraçăo ainda o amedrontava. Mas quando chegou ŕ primeira esquina, a vida e o coraçăo voltaram ao normal. Arriscou um olhar para trás. Na entrada do Lamas tudo parecia em ordem. Degustou o susto e a coragem para se desfazer dele, ŕ medida que respirava a brisa da noite pelo caminho de volta ao metrô. Ainda năo eram dez horas. Quando entrasse em casa, se a mulher viesse com perguntas, ele teria o que contar. Se ela năo acreditasse, azar. Que é que se vai fazer? Nem sempre uma realidade é tăo real quanto outras. Foi no carro do metrô, vazio ŕquela hora, que Salvador se lembrou outra vez da conta. Quantos chopes teria tomado? Havia o păo, a manteiga, o filé com as batatas e o presunto. Era uma desonestidade năo pagar. É claro que o gerente e os garçons estariam dizendo cobras e lagartos a seu respeito. O sujeito se senta num restaurante, pede chope, filé et cetera, e só porque meia dúzia de curiosos fica olhando, ele se levanta e sai correndo sem pagar a despesa? Salvador se sentiu ridículo. Na verdade, năo tinha havido nada demais. "Eu é que vivo me assustando ŕ toa", pensou. Tudo por causa dessa maldita timidez. Saltou na Central e pegou o metrô de volta para o Largo do Machado. Refez a caminhada com o crânio recheado de intençőes burocráticas e invadiu o Lamas ŕ procura do gerente. Mas o fogo apagou na entrada do salăo, porque novo silęncio dominava a noite. O gerente, os garçons e todos os fregueses — os mesmos de antes — dirigiam os olhos a algum ponto. Que ponto seria esse? Năo foi difícil descobrir. Os olhares que há poucos instantes por um triz năo o destruíram, contemplavam agora um dos devoradores de batatas, precisamente o mais gordo dos tręs, o das lentes de miopia, o mandarim ocidentalizado. Salvador percebeu que até os dois colegas de obesidade encaravam o amigo. Apesar de ter abaixado a cabeça, o gordo levantava os olhos ininterruptamente, como se tramasse um contra-ataque. Bafejado pelas alegrias da vingança, Salvador passou a contemplar o mandarim. Súbito, o gordo ergueu o rosto, colocou os óculos e ficou de pé. Desfechou ŕs pessoas mais próximas um olhar de quem enxerga e, valendo-se do polegar e do indicador, pegou uma das batatas da travessa ainda intacta. Como um artista, executou um gesto amplo e circular para exibi-la aos interessados. A batata desapareceu na palma de sua manzorra. Num movimento rápido, a măo esquerda cobriu e descobriu a direita. Em lugar da batata, ele segurava a haste de uma rosa branca, recém-desabrochada, cujo perfume se esparzia pelo restaurante. Com uma inesperada elegância para um corpanzil de mais de cem quilos, o gordo arremessou a flor a uma das quatro damas das jóias de marcassita. O gesto provocou discretas exclamaçőes. O gordo se animou. Levantou as măos e mostrou-as espalmadas, para provar que estavam completamente vazias. Entăo, esfregou uma na outra e tirou um ás de ouros do nada. Prendeu-o entre os dedos, girou o pulso e a carta desapareceu. A măo tornou a se mover e o ás ressurgiu acompanhado de um nove de espadas. Outro giro no ar e as duas cartas eram quatro. As quatro, dez. As dez, dezessete. As dezessete, quarenta. As quarenta, setenta e oito. Um tarô. Separou os vinte e dois arcanos, entregou-os ŕ menina magricela e passou as cinqüenta e seis cartas que sobraram, da măo esquerda para a direita: sumiram todas. Pegou os vinte e dois arcanos, embaralhou-os e tirou um. Era a Morte. Salvador teve a impressăo de que o mandarim mostrara a carta a ele, como uma advertęncia. A seguir, largou os arcanos restantes com a menina, rasgou a Morte em quatro pedaços, atirou-os para o alto e aparou-os num prato vazio. A carta caiu inteira. Escolheu outro arcano. A Temperança, com uma figura de mulher alada, que passa o líquido de um jarro para outro. Entregou a carta ŕ negra, levantou uma tulipa cheia de chope e entornou a bebida em outra vazia. Ao ser derramado, o chope se tornou rubro como sangue. Fez a operaçăo inversa: o sangue virou leite. Tornou a derramar: o leite virou água. A água virou vinho. O vinho virou sangue e o sangue virou chope. O gordo bebeu a tulipa inteira. Agora as exclamaçőes dominavam o ambiente. As pessoas sorriam. Salvador sentiu inveja do mandarim. Năo satisfeito, o gordo fixou o cabo de uma faca entre os dentes e virou a cabeça para trás até a lâmina ficar vertical. Sem olhar para baixo, segurou a travessa de batatas com uma das măos e um cálice de steinhäger com a outra. Mas Salvador năo conseguiu assistir ao final do número. Anônimo e amargo, foi-se embora. A dois quarteirőes do Lamas, ouviu uma retumbante salva de palmas. Pegou o último metrô e voltou para casa. Graças a Deus a mulher já estava dormindo. Se ela se metesse a fazer perguntas, ele năo saberia o que dizer. Victor Giudice, no período em que trabalhou no Jornal do Brasil, de 1994 a 97, se destacou pelo companheirismo e pelo bom humor que marcava suas histórias. Os casos com que divertia seus colegas geralmente diziam respeito a duas de suas maiores paixőes: os livros e a música. Em 1995, ele ganhou o Pręmio Jabuti pelos contos reunidos em "O Museu Darbot e outros mistérios", que recebeu o seguinte comentário da presidente da Academia Brasileira de Letras, a escritora Nélida Pińon: "Victor Giudice é um escritor contemporâneo completo. Sua busca por uma linguagem mais simples só prova que deixou de ser um escritor de vanguarda para se tornar um mestre. Já é um clássico." Victor Giudice (1934-1997) nasceu em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. Aos cinco anos de idade mudou-se para Săo Cristóvăo, transformado, segundo a crítica, em seu "grande sertăo ficcional" , onde viveu mais da metade de sua vida. Foi professor, bancário, jornalista, músico, ensaísta e crítico. A partir de 1968, intensificou suas atividades como escritor, tendo publicado seis livros: Necrológio (contos, Editora O Cruzeiro, 1972), Os banheiros (contos, Editora Codecri,1979), Bolero (romance, Editora Rocco, 1985), Salvador janta no Lamas (contos, Editora José Olympio, 1989), O museu Darbot e outros mistérios (contos, Editora Leviată,1994) e O sétimo punhal (romance, Editora José Olympio, 1996). Salvador janta no Lamas ganhou o Pręmio "Ficçăo 89", da Associaçăo Paulista de Críticos de Arte. O museu Darbot e outros mistérios foi agraciado com a maior distinçăo literária do país, o Pręmio Jabuti, e foi lançado no Salăo do Livro de Paris em 1998 (Le Musée Darbot et autres mystčres, Editions Eulina Carvalho). Para o teatro, escreveu Baile das sete máscaras, inédito, e o monólogo Ária de serviço, encenado pela atriz Bete Mendes, no Centro Cultural Banco do Brasil, em 1991. Compôs e executou ao vivo a trilha sonora da peça Prometeus, do Grupo Mergulho no Trágico. Suas atividades como professor incluem, além de oficinas de criaçăo literária, cursos de Introduçăo ŕ Ópera, Wagner e Música Sinfônica, ministrados no Centro Cultural Banco do Brasil e em outras instituiçőes. Participou das Rodas de Leitura, no CCBB, e na Casa da Leitura e viajou pelo país como conferencista. Vários de seus contos foram publicados nos Estados Unidos, Argentina, México, Portugal, Alemanha, Hungria, Polônia, Bulgária, Tchecoslováquia. Uma de suas narrativas mais populares, O arquivo, foi o conto brasileiro mais publicado no exterior. Outro conto, Carta a Estocolmo, foi considerado, nos Estados Unidos, um dos quinze melhores trabalhos de ficçăo científica de 1983 e consta da antologia Antaeus (The Ecco Press, Nova York, 1983). Publicou ensaios e resenhas no Jornal do Brasil, O Globo, Folha de Săo Paulo, O Estado de Săo Paulo, Suplemento Literário do Minas Gerais, etc. Durante tręs anos assinou a coluna Intervalo, especializada em música erudita, no Jornal do Brasil, tendo sido esta sua última atividade. A editora José Olympio planeja a publicaçăo de uma coleçăo que reunirá todos os seus contos. Do primeiro volume constarăo O museu Darbot e outros mistérios e o romance inédito e inacabado Do catálogo de flores. A armadilha Murilo Rubiăo Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez. Năo demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resoluçăo irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas năo escapava qualquer ruído que indicasse presença humana. Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a măo esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito năo fosse utilizada. Mesmo assim năo conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violęncia que ela veio abaixo ruidosamente. Năo se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chăo, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direçăo do intruso, ordenou-lhe que năo se afastasse. Também a Alexandre năo interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensaçăo de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul. Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante: — Estava ŕ sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre năo deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num văo de escada. O outro teve que insistir: — Afinal, vocę veio. Subtraído bruscamente ŕs recordaçőes, ele fez um esforço violento para năo demonstrar espanto: — Ah, esperava-me? — Năo aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse ŕ tona uma irritaçăo antiga: — Impossível! Nunca vocę poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Vocę é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome. — Năo sabia das suas viagens nem dos seus disfarces. — Entăo, como fez para adivinhar a data da minha chegada? — Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posiçăo em que me encontro, aguardava-o certo de que vocę viria. Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam. Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intençăo e antecipou-se: — Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema. — Nada — respondeu, procurando dar ŕ voz um tom despreocupado. — Nada? Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhaçăo. Tentou revidar com um palavrăo. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no. — Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso vocę năo sabia! Um leve clarăo passou pelo olhar do homem idoso: — Calculava, porém desejava ter certeza. Começava a escurecer. Um silęncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscęncias que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam. O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse. Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa: — Seu caduco, năo tem medo que eu aproveite a ocasiăo para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver. — Năo, além de desarmado, vocę năo veio aqui para matar-me. — O que está esperando, entăo?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo! — Năo posso. — Năo pode ou năo quer? — Estou impedido de fazę-lo. Para evitar essa tentaçăo, após tăo longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala. Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Năo a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chăo. Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave. Lançou-se na direçăo dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário: — Eu esperava que vocę tentaria o suicídio e tomei precauçăo de colocar telas de aço nas janelas. A fúria de Alexandre chegara ao auge: — Arrombarei a porta. Jamais me prenderăo aqui! — Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta. — Gritarei, berrarei! — Năo lhe acudirăo. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos. E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo: — Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos. Murilo Eugęnio Rubiăo nasceu em Silvestre Ferraz, hoje Carmo de Minas — MG, no ano de 1916. Formado em Direito, foi professor, jornalista, diretor de jornal e de estaçăo de rádio (Rádio Inconfidęncia). Foi o responsável pela organizaçăo do Suplemento Literário do Minas Gerais (1966). Publicou seu primeiro livro de contos "O ex-mágico" em 1947; "A estrela vermelha" (1953); "Os dragőes e outros contos" (1965); "O pirotécnico Zacarias" e "O convidado" (1974); "A casa do girassol vermelho" (1978); e "O homem do boné cinzento e outras histórias" (1990). Teve seus principais contos traduzidos para diversos idiomas, alguns adaptados para o cinema e outros encenados. Faleceu em Belo Horizonte, em 1991, onde residiu a maior parte de sua vida. O texto acima foi extraído do livro "Para Gostar de Ler — Vol. 9 — Contos", Editora Ática — Săo Paulo, 1984, pág. 17. O encontro Lygia Fagundes Telles Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem. "Onde, meu Deus?! - perguntava a mim mesma - Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?" Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo - disso estava bem certa - era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?” Fui andando em direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras. Um vapor denso subia, como um hálito daquela garganta de cujo fundo insondável, vinha um remotíssimo som de água corrente. Àquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?” Sacudi a cabeça, não, a lembrança - tão antiga quanto viva - escapava da inconsistência de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia? Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto. Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” - a razão ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de encantamento, se recusava a voltar. Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de expectativa. “A expectativa está só em mim” - pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto pisava naquele -mesmo chão que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre as árvores. - “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” - fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez. “A cilada” - pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfaze-la? Lembrei-me do sol, lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda. “Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por ali. Apanhei um pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem. Um pássaro cruzou meu caminho num vôo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem - esperança. “Agora é tarde!” - murmurei e minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?” A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata. Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.” Ao lado da fonte, estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento. Aproximei-me. Ela lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no, regaço. - Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa... Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma vermelha. Fixei-me naquela fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos. - Você mora aqui perto? - Em Valburgo - respondeu sem levantar a cabeça. Mergulhara tão profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranqüilamente desesperada, se é que cabia tranqüilidade no desespero. Perdera toda a esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação. - Valburgo, Valburgo... - fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região. - Fica logo depois do vale. Não conhece Valburgo? - Conheço - respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais. Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!” - Eu esperava uma pessoa - disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco. - Gustavo? Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito. - Gustavo - repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo. Encarei-a. Mas por que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.” Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A cena esboçou-se esfamadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela noite das vozes. exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra. Moveu-se a máscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atrozos rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena explodiu em, meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as -abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue. Senti o coração confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos dedos contra os olhos. -Era quase insuportável a violência com que o sangue me golpeava as fontes. - Você devia voltar para casa. - Que casa? - perguntou ela abrindo as mãos. Olhei para suas mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto. - Por que não vai procurá-lo? - lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é que ela também suspeitava de que estava tudo acabado. Escurecia. Uma névoa roxa - e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão parecia envolvê-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem. -Vou-me embora - disse apanhando o chapéu. Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violência arrancou-a daquela apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis retê-la.. - Há ainda uma coisa! Ela então voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia-se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra. - Há ainda uma coisa - repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu. - Eu fui você - balbuciei. - Num outro tempo eu fui você! - quis gritar e minha voz saiu despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaçada, se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer. - Não! - gritei, puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores. Fui atrás. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores, flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o uivo do vento. Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.