Euclides da Cunha - parte II O HOMEM A segunda parte de Os Sertões é a mais polêmica porque nela aparecem questões como a da formação racial do sertanejo e a dos males da mestiçagem. Euclides vê na mistura de raças um retrocesso: De sorte que o mestiço - traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares - é quase sempre um desequilibrado. (...) E o mestiço - mulato, mameluco ou cafuzo - menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com esta quase impossibilidade do mestiço para a civilização moderna, os sertanejos nordestinos (embora também resultantes de amplo caldeamento étnico) seriam diferentes por terem há muito se isolado no grande interior do país. Abandonados há três séculos, sem contatos maiores com o litoral desenvolvido, “nossos patrícios retardatários” – inversamente aos mestiços urbanos – não haviam sido corrompidos: O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estágio social superior e, simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios mais adiantados. Por isso, apesar de seu atraso mental, o sertanejo surge como um titã: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos* do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno**, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. (...) É um homem permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante imobilidade e à quietude. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se; (...) e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro***, reponta inesperadamente o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias. O isolamento do sertanejo o mantém preso a valores arcaicos como o messianismo, sobremodo em sua feição sebastianista*. A “tutela do sobrenatural” rege a vida cotidiana e as vicissitudes do meio intensificam a religiosidade e a consciência mágica do mundo. Um mundo de profetas, de iluminados, de místicos que, nas cidades da Costa, seriam considerados loucos, mas que ali, naquela civilização imobilizada na História, eram os líderes naturais, expressando os valores da comunidade. “ *Neurastênico: indivíduo mal-humorado e irascível. **Desempeno: elegância. ***Canhestro: desajeitado [LINK] próxima página