128 JUSTINO DE MONTALVÄO rosa. Era ele ! Quis gritar, mas a voz saiu-lhe um rouquido covarde; ainda tentou empinar o odře, mas a garganta fechara--se, o vinho era amargo... Um suor frio molhava-lhe a fronte curta. Era ele ! Sob táo grossa chůva, por táo gelada noite, viera do seu túmulo buscar as pecas de oiro !... E de novo reconheceu o mercador, que ia avancando lentamente, majestoso e frio como uma estátua que se movesse, — e que afinal entrou a soleira da porta escancarada. Tinha o mesmo ar do monte, sinistro e gélido... Trazia as mesmas botas aítas de montar, o mesmo casaco de ratina... Parecia agora de mármore — tanto os seus passos eram firmes e pesados. Vinha muito lívido, que é assim que se volta da mořte; e estendendo a mao mirrada e velha, já roída da cova, teve um sorriso semelhante a um vago relámpago na boča des-carnada. Depois apontou as moedas, sobre que o bandido se acur-vara. A ventania abrandava, a chůva caía menos... Entao, numa voz cava, o mercador disse: — Vem comigo ! A sua figura agora era maior, de uma tranquilidade imensa, e, aproximando-se, causava um frio de gelo, que assim é o frio das tumbas. O outro quis erguer-se, fugir, esconder as pecas. A máo seca do espectro, apontando, rija como ferro, paralisava-o. A sua figura era cada vez mais fantástica, mais imperturbável o seu rosto. E o bandoleiro caiu morto sobre as cinzas ainda quentes — onde as pecas de oiro se espalharam, enquanto algumas rola-ram e tiniram, — porque nunca assassinos puderam fugir áque-les que os vém procurar de tao longe !... FIGUR AS DE BARRO (1910) i....." j ANTONIO PATRÍCIO S U Z E Oh! dolce, delia soglia del lupanare mirar le vergini stelle! GABRIELE D'ANNUNZIO — La meretrice di Pirgo Näo posso dormir. Como há mais de oito dias näo recebi carta da Suze, e a minha absurda vaidade se recusa a crer que ela me esquega, ponho-me a pensar, com urna perversidade triste, que tenho escrito loucuras a um cadáver. Na ultima contava ela com urna coragem simples, como o mais fútil incidente, que ia entrar para o hospital para ser ope-rada. Anunciava-me isto, entre um projecto de vestido gris-taupe, que iria bem ä sua tinta de viciosa pálida, e urna chuva de deta-lhes sobre a gata, a amar com romance e com luxuria um gato magro do terceiro andar. Se tivesse sido operada e convalescesse, já decerto me teria mandado uma telegrama. É pois forcoso convencer-me que a minha pobre Suze — "era uma vez"... Repito alto para mim mesmo: está morta, está morta a Suze ! Logo que o disse alto, todo o meu temperamento de actor o acre-ditou, e em todo o meu ser, essa auto-sugestäo ressoou em dobres, agudamente, por essa rapariga de viňte e trés anos com quem vivi dois meses. FICgÄO - 5 130 ANTONIO PATRÍCIO ANTONIO PATRÍCIO 131 A morta (é certo, é positivo que morreu) era alta e magra. Aqui mesmo, no meu quarto, onde certa noite ela tomou chá entre os meus livros. a vejo atirar o chapéu de rendas caras, em que havia heráldicas tulipas, acender com um gesto fino um 1 dos Laferme, correr a mäo na testa com o gesto da Duse nas catástrofes supremas, e dar-me fumo e destino e sonho. Aqui mesmo. Naquele espelho prolongou com um traco de crayon os olhos vagos, ali apalpou as molas do divä, e no toilette atou horas depois, in memoriam, as fitas de seda azul que lhe prendiam a camisa nas espáduas... (Mas assim, näo consigo dizer o que ela foi. Preciso calmar a minha febre e comecar pelo comeco). Vi-a a primeira vez este Veräo, no teatro, e logo a destaquei. Os seus cabelos de crianca escandinava, loiro cendrado e seda palha em que havia reflexos quase brancos, tufavam na testa sob o chapéu preto, descaíam a esquerda, subiam ä direita recortando a témpora em ogiva, inverosímeis como raios de um sol de vicio, quimicos, absurdos... So depois me convenci que eram auténticos. Os olhos eram claros, cinzento de água em névoa; a mascara alongava-se num focinhito sonämbulo; nariz incorrecto, quase grosseiro; boca grande, acolhedora, de comissuras em pontos de interrogacäo; e o mesmo perdia-se na nuvem de tule de um laco, esparso na gola impecável de um costume tailleur azul. Tinha muito da Sarah em nova: a cabeca de uma madona quattrocento em que vivesse a alma de Montmartre. Acompanhava-a outra que mal vi, fisgado pelo estranho do seu tipo. Toda a noite, ferozmente, a encarcerei no meu binó-culo e ela, exibindo atitudes de indiferenca numa galéria inter- 5 mina, nem sequer teve o ar de ver-me. Aborrecia-se com complacéncia, olhando sem fitar, cum-prindo com resignacäo esse destino de, sobre uma plateia do Porto, num barracäo de Fo/ies-Bregeiras, esfolhar a carícia exangue e lambedora das suas mäos de raca. No meu grupo faziam-se hipóteses. Cocotte ? Canconetista ? Talvez seja essa que se estreia amanhä. Todos a achavam imensamente estranha e alguma coisa feia. Quando ä saída ela passou, compondo um ar abstracto e um passo ondeante de serpente-fantasma, excitado e burro, disse näo sei que frase escória e ouvi numa voz de seda que range, esta coisa justa: imbécilel Deixei de ir ao teatro. Achei a vida toda täo imbecil como eu. Até que uma manhä Just irrompe no meu quarto e preludia felicíssimo: "Foste um doido em näo aparecer". Contou entäo: o empresário F. apresentara-o, e como eram duas e eu continuava incognito, apresentou por sua vez o conde C, que ao menos näo se arranjava mal. — "A tua, a do conde, chama-se Suzanne. A outra, a minha, é Gaby d'Anjou, é perfeita. Näo sei se reparaste: um corpo grego. Há uns poucos de dias que isto nem parece o Porto —". E partiu num turbilhäo de chance, dizendo apenas quase ä porta, que a Suzanne era finíssima, e se tolerava o conde é porque näo via melhor, e porque enfim, o Amieiro o näo veštia mal. Como mesmo escrevendo, estou morto por chegar ao quarto dela, direi j ä que almogámos a sós dias depois, e nem sei mesmo se comi, porque estendia as mäos em concha aos seus pés magros, para os sentir crispar-se com luxuria ao ranger da seda em folha seca... Foi rápido e simples. O meu amigo apresentou-me: o conde é lorpa, eu sou fino, ela é fina e... voilä / Aqui comeca a feiticaria, o encantamento em que essa serpentína bruxa me colheu, polarizando o meu desejo para o seu corpo elástico e felino, como se as suas mäos de pianista me cor-ressem na medula, e os seus olhos de névoa me perdessem em hipnose. De corpo e espírito era flexível como urna chama ao vento. Horas e horas, com febre, com riso, com desespero, vas-culho na memoria, recomponho o complexo encanto dessa rapa-riga que sabia de cor toda a Comédia Humana; tinha um vício pessoal, erudito, arqui-subtil; cinicamente ingénua, ingenuamente cínica; amoral e heróica, e que caminhava para o seu leito de cocotte com o ar redolente de Desdémona na cangäo do sal-gueiro... 132 ANTONIO PATRÍCIO ANTONIO PATRÍCIO 133 Oh! A sua cangao do salgueiro, miisica e versos de Bruant, como eu a trauteio ainda exasperado: Les ch' veux frisks, Les seins blasts, Les reins brises, Les pieds uses. Pierreuses, Trotteuses, A's marcher!t l'soit . .-.-^f Quand il fait noir Sur le trottoir. Os cabelos impossiveis, abusivos, excessivos, caiam-lhe nos ombros; a robe empire era ampla e branca, as mangas vibravam | em asas de serafim professional... Era uma aparicao de lenda rociada de agua Lubin — orvalho caro... Quando depois mais de perto a detalhei, achei-lhe um nao T sei quS de transido, de parado, especie de kakemono, especie de bebe enorme, enigmatico, aflitivo, como so um caricaturista-poeta M criaria, num instante de emocao e febre, de quimera e riso. Pobre f y Suze ! Era palida, palida, no seu roupao de noite, sem as rosas do maquitlage que ela tao subtilmente esmaecia. Pobre Suze ! Nenhum pintor portugues, desde o Grao-Vasco, viu para alem do real como tu viste, nem como tu transfigurou uma mascara de gesso, patinada a lua, numa obra-prima irradiante. Tu que eu agora vejo como um marmore de desgraca, arre-piado, vestido a toa, sem maillot de seda, sobre uma mesa miser-rima de morgue; tu que tens jd talvez no ventre aberto o esver- : f dear levfssimo com que a Morte agora te maquilha; tu que depois j de tanto te venderes, cada vez eras mais tu e mais perfeita, — j ninguem ira junto do teu cadaver por-te o colar da Ordem do Desprezo que na vida te deu beleza e estilo. Foste um genio incompreendido, Suze. l!i o linico ponto de contacto que tiveste com dezenas de idiotas que eu admiro. Mas nao e isto o que me aflige, pois sei bem que se da Morte .v | me ouvisses e se da Morte me falasses, mais uma vez me dirias a tua grande frase, a frase-medalhao, a frase-refrem, que tao sin- teticamente define a tua graca, o teu génio, o teu vício, o teu desdém: — Tu sais, ga, c'est un detail. Para a Suze, tudo na vida era um detalhe. Ela que se deu a saborear a tantos homens, duvido bem que conhecesse um ensaísta, espírito de síntese, á Carlyle, que enquanto eu nesta noite de insónia a recomponho, com uma saudade sem esperanca, friamente medite um grosso torno, que deveria assim chamar-se: — A Filosofia de Suze (livro póstumo). E em subtítulo, de um chic transcendente: ensaio sobre a supramulher. Dir-se-ia no futuro: — isso é um detalhe, como outrora se disse: penso, logo existo, como hoje se diz: — o homem é uma ponte para o Sobre-humano, Se Eca de Queirós fosse ainda vivo, eu que nunca o conheci. havia de apresentar-lhe a Šuze, e juro, que a acharia bem mais subtil, bem mais complexa e humanamente fascinante, que o seu extraordinário figuríno — Carlos Fradique, dandy e epistológrafo. Fialho, mais feliz, p6de falar-lhe; viu-lhe gestos que valiam máximas, e ouviu-lhe memórias e anedotas bem mais significati-vas que parábolas. Mas por mais que insistentemente lho pedisse, nunca escreveu sobre ela: recusou-se. Náo posso eu, como quem empalha uma asa, amortalhar o génio da Suze em frases sábias, articular-lhe em sistema as for-mas típicas, erguer enfim essa arquitectura metafísica, que fica-ria na névoa das idades, como um farol para sempře... Nao, náo posso. Sinto ainda correr-me o corpo todo, em ondas lentas, o afago dos seus cabelos, dos seus dedos, que eram vivos, enervantes como línguas... E náo é assim, a ar der em desejo póstumo, que eu posso lancá-la á posteridade... De resto, Suze, que era para ti a posteri-dade ? Um detalhe, um detalhe apenas... Mas quero afirmar que nessa frase — que nem sequer para muitos que a beijaram, foi mais que uma ironia sem estilo — se condensa o estoicismo, o galbo heróico, que fez desta parisiense tao estranha na sua vida de cocotte nobilíssima, uma neta espiri-tual de Marco Aurélio. 134 ANTONIO PATRÍCIO ANTONIO PATRÍCIO 135 Foi nobre e foi cocotte. Náo estranhem. Viver, para uma mulher, na sociedade de hoje, é quase sempře prostituir-se. Mesmo as que casam, e que casando amavam os maridos, quantas vezeš náo sofrem sem desejo, urn cio incon-tinente, numa humilhacáo de prostitutas, até que toda a emocao se lhes estanque e o nabito lhes embote o corpo e o espírito ?... Depois da primeira fase, em que a sede de amor lhes doira a vida, quantas nao reconhecem no convivio que o seu idolo moral é um canalha, e que o amoroso é só o macho sórdido, sem deli-cadeza, sem ternura — contundente, ferodssimo, legal.... As outras, sáo apenas fémeas broncas presas á canga do lar animalmente, ou semiloucas resignadas que urn catolicismo cas-trador perdeu, ou indoles lunares de amorosas esperecendo de martírio e tédio. E consciente ou inconscientemente, todas vao afinal prostituir-se. Só a moeda difere: nada mais. Mas se viver, para uma mulher, é quase sempre prostituir--se, nao o é menos afinal para um homem. Prostituir-se é deformar, ou anular mesmo, o que em nós há de individual e caracterizante, pela necessidade de captar alguém, patrao ou mestre, rico ou superior hirárquico, e até mesmo o pobre, que nos dá a ilusao de sermos bons e a consideragáo hipócrita dos outros. Cada um de nós, ao entrar na aula ou na oficina, no escritó-rio ou na reparticáo, no saláo ou na taberna, é postico, é con-vencional, é um outro; ao princípio confrangidamente, através de mil torturas, depois inconscientemente: mecanizado, defor-mado, quinquilharia andante e cérebro de lixos, contribuindo assim para esse ideal que nos empala, e os moralistas chamam — soli-dariedade humana. Era fácil mostrar como, violentando o temperamento, esta prostituicáo se repercute até nos gestos, na nossa maheira de andar e de vestir. E isto em todas as classes, porque ninguém é suficien-temente forte para se bastar a si mesmo; todos precisam da con-sideracáo dos outros, da opiniáo publica, e váo vivendo sob a garra do preconceito, que os desengonca e deforma, que os raqui-tiza e anula, como os saltimbancos as criancas. Quantos resistem integros ao regime penitenciário que é a vida de hoje em sociedade ? Alguns pelo isolamento; — bem pou-cos dos que ficam. Nao riam portanto ao ouvir que a Suze, a minha pobre Suze, foi nobre e foi cocotte. Cocotte, sim. Como nós todos. Porque, em suma, eu sou cocotte, tu és cocotte, ele é cocotte... Que horas seráo ? Deve ser quase madrugada. Eu bem queria nestas palavras de febre, silhuetar a Suze, ter um pouco de metodo, monografá-la. Mas nao posso, nao posso. Tenho aqui na minha mesa de trabalho o seu retrato, e nem sei como tenho coragem para escrever, como posso desviar os olhos da névoa abismal dos seus, que me transem de irremediá-vel e me enlouquecem de desejo. Desejo absurdo, que o impossí-vel hiperestesia, e me impregnou céíula a célula. Sinto no corpo todo a carícia opiada dos seus dedos, a sua carne sortílega, embruxada; a sua pele a fim da minha, e que com ela dialogava em sildncio, nas horas de esgotamento, reme-morando sensacóes agudas, fuígurantes... Vejo-a, vejo-a ! Passa a teoria das nossas noites (em que os seus tiques pro-fissionais me confrangiam) e ela era sempre de uma envolvéncia fluida, de uma estesia de actriz inconsciente, uma viciosa triste, insaciada, e uma boa e uma pobre rapariga. De comeco, podiam julgá-la artificial, táo estilizada era a sua graca, tanto o seu requinte parecia consciente e erudito, traindo-se em tudo: no andar elástico, no dandismo sóbrio, e até no ruge-ruge da sua voz de alcova e confidéncia. Mas náo: viam--na mal. Ela era assim sem esforco, naturalmente: ela nascera uma obra de arte. E todo o meu trabalho de esta noite me parece o de um doido que quisesse com poeira reconstruir uma obra--prima... Muitas vezeš já, aludi ao seu cinismo. Mas entendam-me: cinismo, disse-o o forcado genial de Reading — é a coragem de dizer as coisas como sáo e nao como deviam ser. E a Suze era assim, quando falava a alguém que á compreendia. Esses porém, eram raros, muito raros. Com uma intuicáo divinatória, balzaquiana, a Suze adivinhava as primeiras palavras o seu caso, lisonjeava-lhe os instintos, e assim durante o dia era, conforme o macho em catequese, canalha ou ducal, obscena ou protocolar. * 136 ANTONIO PATRÍCIO ANTONIO PATRICIO 137 Um deles, com quem viveu muito tempo, náo via na Suze um animal de vício em quintesséncia, e, estúpido, náo lhe sentia a graca esparrinhando génio: era apenas sentimental e jogador. Outra qualquer, para o prender, faria comédias románticas, e decerto orientaria o seu comércio por esse fundo fadista e namo-risquento. A Suze náo. Parecia-lhe demasiado reles, insuporta-velmente folhetim. E foi por o jogo que o lacou. Pouco a pouco, por sugestóes dominadoras, foi-o conven-cendo de que ganhava sempře quando cedia passivamente aos seus caprichos, quando lhe dava mais vestidos, mais dinheiro: e em pouco tempo, ela era para esse jogador supersticioso, um ícone sagrado, tutelar, — Nossa Senhora da Sortě ao seu alcance... Dominava-o por completo. Se o traía, explicava-lhe com um ar vago e superior... que era para lhe dar chance; e todas as noí-tes o desgragado vinha implorar da Suze, aninhada num diva, com um pequenino ar de sibíla délfica, um pouco de sortě por amor de Deus!... Teve este espectáculo hiperdantesco: os Podereš Constituí-dos — em cuecas !... Ela os viu, aos redentores da pátria: viu como era piloso o sacro onde těm o fogo os oradores: foi calo-teada por economistas: sofreu contra a pele fina a camisola de flanela dos guerreiros. Mas o que mais magoou o seu desprezo foi a secura e a egolatria dos artistas. Para todos a sua arte era perfeita, radiando ilusáo, hipnoti-zando, Mais flexível que as nuvens sáo para o vento, o seu proteísmo teatral de prostituta mimava a cada um o seu ideál... Ah ! Mas como ela ficava, a minha Suze, a sua fadiga nervosa aniquilante, o seu imenso tédio neurasténico, querendo deser-tar de si, da sua alma e da sua pele enojada, para sempře !... B caída num esforco, amarfanhada, era ás vezeš triste como uma coisa morta, como uma asa ferida nalgum charco... Curtia assim consigo mesma horas de miséria moral e de exaspero, sem uma queixa, sem uma lágrima, num orgulho de sozinha, donde só ressumava o sofrimento, num gesto, num olhar, numa ironia. Uma manhá em Lisboa, acabávamos de almocar no nosso quarto, com a janela aberta para a Avqnida. Ela fumava um Laferme, devagar, no prazer subtil de soprar nuvens. E de repente, como a uma lembranca súbita, disse-me isto baixinho, num tom que nunca esquecerei: — Tu sabes: náo gosto de falar da minha vida. Nunca me queixei. Se agora te falo, é porque é para dizer bem... Neste horror, tenho tido dias de uma volúpia imensa. Nem sei como te diga. Come?o por me sentir doente, exasperada, sem poder mais... Eles vém e eu penso que vou morrer de nojo. Vem um, vém mui-tos... vém todos... Entäo, näo sei porque, sinto um bern-estar, um gozo doido; acho prazer a que me humilhem; parece-me que nasci para isso, que näo há destino melhor... e gozo... gozo... Depois, num riso seco: — Sinto a volúpia de um cristáo ás feras... Parou. Eu recebi num beijo o fumo do Laferme, e a Suze concluiu: — Que importa isto! É um detalhe... As outras, as vulgares, bestializavam-se: passada a crise hor-rível de adaptacáo, vendiam beijos, como um merceeiro vende arroz, um advogado eloquéncia, ou um diplomata uma colónia. A Suze näo; era esculturada em lava: era alguém. Prostituta ou esposa, seria sempře infeliz, seria sempře ela, seria sempře só. Pobre Suze! Alma apolínea, foi esbofeteada por fadistas que těm o nome em crónicas heróicas; sofreu-lhes. em noites de orgia besta, o suor e o vómito; e com uma clarividéncia trágica, pressentiu muita vez os haustos da manhä subindo, a olhar com a pele arrepiada a máscara bocal de algum cliente. Teve amantes ricos, equipagens, e as melhores horas eram quando sozinha, abandonada a si mesma, ouvia numa noite de Inverno, como uma confidéncia, o crepitar da lenha num fogäo... Teve paixôes sensuais que a torturaram, foi roubada impu-nemente muitas vezeš, e uma noite em Moscovo — caía neve — velando uma companheira moribunda, sem nada para empenhar e sem recursos, foi pôr no prego, jóia grotesquíssima! a própria dentadura da doente que, Deus louvado, era montada em oiro... Assim puderam comer aquela noite. É de estoirar a rir — náo Ihes parece ?... 138 ANTONIO PATRÍCIO ANTONIO PATRÍCIO 139 Sabia de cor toda a Comédia humana'. viveu toda a comédia humana. Pobre Suze ! Tu ao menos näo precisaste de ser louca para seres šanta: ergueste-te sempře corajosa e simples, sem um abatimento ou uma queixa: e através de insultos e torpezas, conservaste puríssima, apolínea, uma alma aberta ao sol como urna rosa! Quantas vezes, calcada de verniz, tiveste fome, e com teu passo elástico de espectro, nem um só Cireneu topaste que ao estender-te a mäo, te näo pedisse gozo... Tu, Suze, sabias bem toda a piedade humana e como ela é antes... e depois. Se algum principe Nekhuladoff tentasse redi-mir-te, como a tua palidez riria de alto ao pobre místico, a ele que te falava de perdäo e arrependimento, quando os teus olhos de névoa viam claro, com um determinismo lúcido, fatal, que a tua vida era assim, irremediável, e nem tinhas ódios nem sede de justica, pois bem sabias que é inútil té-la para morrer ä sede... Conheceste príncipes, é certo, mas nem um místico: só mais ou menos imbecis... Näo te fossem falar do céu, — a ti que tan-tos viras de platina na boca de gozadores com avarias. Por isso näo tiveste gritos, näo te estorceste: nem sei mesmo se choraste. Posta em teatro, näo farías uivar as galerias nessa paródia de circo täo grotesca que é um quinto acto para burgueses e povinno; eras para os raros apenas como o mantoidismo poético da minha terra. Na tua voz de folha seca, dizias de todo o teu calvá-rio apenas isto: é um detalhe. Mas para mim, Suze, o teu corpo serpentino, que ora comeca a decompor-se, o teu génio a fagulhar num incéndio múrmúro de élitros e, sobretudo, o supremo encanto da tua dor heróica, sem desfaléncias e sem queixas, para sempre ficaräo no meu espí-rito, como qualquer coisa de belo, de perfeito, pois que correste os bastidores da vida, todo o egoísmo, toda a lama, toda a infä-mia, em vítima serena — täo serena como essas que na Grécia iam hirtas de dor entre colunas... E amaste sempre o sol! E amaste sempre o sol! Deixa-me lembrar-te: é a ultima carta que te escrevo. Desta vez serei sincero, porque estás morta, porque a näo lerás... Espera!... As nossas tardes no rio Doce, em Leca... Os olhos dos mortos ainda reflectem, ainda véem... Pudesse eu ir arrancar--tos, trazě-los nas máos com cautela, como dois pássaros mortos, e dar-lhes ainda a beber, pobrezinhos! — sol, mar, areias ruivas, águas correntes... Pudesse eu beijar-te os olhos mortos! Chamava-se Sol o nosso barco. Eu levava-o á vara, lenta-mente. Tiravas o chapéu, estendias-te á popa e nem falavas. De quando em quando, ia colar á tua a minha boca: beijava-te as pálpebras de manso. Parava sob um chorao, á sombra dos seus cabelos verdes. Cingia-te. Poisava a cabeca nos teus seios, que eram lindos, ter-sos como de virgem. Todo o teu corpo desfalecia, se humilhava no teu vestido de seda crua como o de uma crianca adormecida... E era entáo que eu sentia, que eu palpava, que eu vivia a vida divina do siléncio. Era mais vago o marulhar da ramaria e fazia mais siléncio, como faz mais siléncio, á noite, o acorde das ondas numa praia... Sentia-se cair siléncio como se sente cair névoa. As nossas bocas colavam-se num beijo húmido, calado, de uma volúpia tristíssima, confrangida. Era como uma despedida sem palavras, muito lenta, de dois suicidas... Eu náo te via os olhos, mas adivinhava-os: estavam maio-res, mais nevoentos, como janelas deitando para o siléncio que se cavava em torno, fazendo leito ao nosso pensamento pelo espaco. E confusamente sentíamos que o tempo passava, passava sempre entre os nossos corpos enlacados... Por fim — era á boca da noite — voltávamos. Devagarinho, dizias tu, devagarinho... Eu ia levando o Sol na água mortuária, e á nossa passagem, partiam sempre, iam partindo, pássaros mal adormecidos nos sal-gueirais das margens, reflectiam-se no rio em fugas de asas, e era tudo mais triste como se esse voo fosse o adeus de tudo... Quantas vezes te olhei com os olhos rasos ! Disfar^ava, náo queria nunca que mos visses. E, de repente, apertava-te os bra-cos, sacudia-te para me aturdir, para espancar a emocáo que me afogava numa maré de lágrimas represas. 140 ANTONIO PATRÍCIO ANTONIO PATRICIO 141 Queria gritar, queria chamar-te meu amor e... odiava-te. Que-ria beijar-te as máos, vestir-te de meiguice, e dizer-te a ánsia, o sonho doido de viver contigo sem palavras — como as estátuas dos túmulos nas criptas... Queria bater-te, cuspir-te, demolir-te, como faz um tufao a uma árvore sozinha, e a puxar-te os cabelos de crianca, ir gri-tando, gritando sempře: prostituta... prostituta... Hoje tenho remorsos. Mas tu compreendes, tu bem sabes: era quase loucura. Náo podia perdoar á tua graca ter-se deixado poluír, náo podia perdoar ao teu gemo a tua derrota, nao podia perdoar-te, Suze, que fosses vítima. Ah! ter piedade, ter piedade... Mas isso é pouco, muito pouco: é um sentimento consolador só para eunucos. E eu queria amar-te ao sol, Suze, olhando as árvores irmámente, todo o nosso desejo a escorrer luz... A noite vinna. Seguíamos enlacados, e eu cansava-me no esforco imenso de te nao magoar... Tu bem sabias, tu bem sabias... Segundo a segundo, o meu martírio pesava o tempo como se uns pontěiros de relógio me ferissem os nervos... Tu bem sabias. Tanto sabias, que por fim me beijavas na těsta, quase maternal, e a tua voz de folha seca rangia este refrém de Outono: "Isso passa. É um instante, é um detalhe." Minha pobre Suze, como tu eras justa, como tu adivinha-vas, bruxa de vinte anos, para alem da hora que passa, o nada que virá. A tua desgraca era suprema, porque tu eras aquela que nao se ilude nunca. Ainda assim, penso comigo: quem sabe! quem sabe! Se ela me visse como eu sou, se eu náo fosse com ela sempře actor, se eu náo fosse o ser falso, o clown céptico mascarrando com riso o sentimento; se eu nao me amordacasse a cada instante, e tivesse podido ser eu mesmo... Se visses, Suze, a criatura que eu escondo; se soubesses que afinal eu sou bem simples e como eu amo a vida toda de maos postas... Se em vez de analisar, eu me entegasse; se eu esquecesse os livros e os outros e te falasse táo naturalmente como o meu san-gue fala nas artérias... quem sabe !... Talvez, Suze, se eu fosse o que nao viste, o que te fala agora... Porque eu lembro-me, eu lembro-me. Duas horas houve que nos vivemos um no outro, fora do espaco, fora do tempo... Tu bem sabes, tu lembras-te. Era madrugada. Estavamos deitados. Todo o meu ser vivia de ti, morria em ti. O nosso desejo ardera, estava morto. Que fadiga a nossa, que fadiga !... A rua despertava, ouviam-se pregdes, o sol luzia nas frin-chas: eu tinha a cabeca contra o teu peito, perdidamente, como contra a esperanca, como contra o future.. Embebia-me em ti, aspirava o teu corpo, a tua came, a sua tristeza imensa, a sua saudade de tudo o que nao teve, de tudo o que nao foi... e juro — que em nenhum jardim, em nenhuma aurora, uma flor com orvalho me ungiu assim de sonho, me fez assim vibrar no impossfvel de um amor perfeito. Levantamo-nos, saimos, e logo a rua, os outros, a vida dos outros, se apossou de mim, me perverteu, me obrigou a mentir, a torcer-me... e eu ri, eu ri imbecilmente, de n6s, da nossa vida, e dessas horas em que auscultei contra o teu peito — o impossi-vel de um sonho sempre erguido !... Pois se esta noite mesmo, ao comecar a escrever, ao pensar em ti — na tua morte, Suze ! — eu fui palhaco, eu quebrei em esgares a emocao, e mimei um ar gelado, ir6nico, impossivel, quando queria chorar perdidamente, quando queria beijar os pes ao teu cadaver... E que tinha medo, um raedo horrivel de que os outros me vissem, porque para eles 6 uma torpeza amar-te assim. Eu podia dormir contigo, dar-te dinheiro... s6 n5o podia amar-te. Para todos os crimes hd uma indulgencia feita de cum-plicidade, menos para um crime assim: nao tern remissao: e imo-ral e e grotesco. £ preciso que a dor me abale todo, me fite de frente, e me hipnotize o seu olhar de chama, para eu poder dizer como te amava, como te amo. Perdoa, perdoa. Aqui me tens aos pes do teu cadaver. Toda a vida morreu para mim: a seiva gelou nas veias das drvores; o mar que eu amei tanto, nao me importa. A vida agora e este horror: uma sala de morgue, mesas ovais de marmore, cadaveres sem nome, ja esquecidos, e entre eles, Suze, o teu cadaver. 142 ANTONIO PATRÍCIO ANTONIO PATRÍCIO 143 Como irás tu para a cova ? Quem te vestiu ?... Foram mäos sem carinho, mercenarias. Vejo-te, digo-te adeus, Suze... O teu cadaver transe, em pedra de martírio. Pareces mais alta, mais comprida. Näo te souberam pentear; deixam-te o cabelo em desalinho e, näo sei porqué, está mais claro, de uma seda mais pura, mais de infáncia... Tens um vestido preto (com que me foste esperar; há quanto tempo ?...) sapatos de verniz, pontiagudos... fivelas de oiro... meias de seda nos teus artelhos finos de cegonha. Cruzaram-te de certo as mäos no peito, mas escorregaram, descaíram, e amarelas, outonais, dizem ainda: "é um detalhe ape-nas, um detalhe..." E o que mais me entristece é que tens frio: as mäos da podri-däo väo-te gelando. Oh ! As tuas noites na cova, Suze !... Abriram-te o ventre no hospital. Suturaram-to ä pressa, sem cuidado. Se te tirassem os nervos... Bern sei que é doido, mas que querem ?... Ficava assim mais sossegado. É amanhä que te enterram ?... Hoje mesmo ? Deve ser quase dia, minha Suze. Deixa beijar-te as mäos geladas, de mansinho, enquanto falo... Assim. A minha febre aquece-tas: verás... Näo te descerro as pálpebras. Para que ? Está ainda escuro. Tens saudades do sol, minha pobrezinha ?... A ultima vez, quando almocámos na praia, ao pé de Leca, olhaste-o tanto que logo pensei que ias morrer... Todo o teu corpo diz adeus ao sol. A mais ninguém. Família ?... Nunca quis saber de ti: contaste-mo sem queixa, simplesmente. Disseste como sempře: é um detalhe... Que fica de ti Suze ? A memoria da pele é passageira, e é muito incerto que a tua graca vá dourar uma saudade. Ninguém irá ao teu enterro e ainda bem! Por tua causa, ninguém se irritará jantando á pressa; ninguém irá, de sobrecasaca e mau humor, fazer-te o necrológio ao cemitério. Näo teras latím grunhido por um clérigo, nem essa coisa triste e täo grotesca — um círio laico em ar solené, com fungagá e arenga humanitáría. Vais para a cova só, como viveste; e depois de te teres dado a tantos homens, vai parecer-te natural que te amem vermes... Até na mořte és discreta, minha Suze, pois nem sequer virás numa gazeta. Foste perfeita: és perfeita. Amaste a beleza sempře com lou-cura: nas nuvens, nos maquereaux, nas pupilas das jóias, nos cre-púsculos... Ensinaste-me o desprezo sem palavras, a dor sem confiděn-cia, feita orgulho. Deixa beijar-te ainda as maos geiadas. Quern me dera guardá-las para sempře, em mármore; suspendé-las como um ex-voto á cabeceira, as tuas pobres maos tao humiíhadas, esfolhando eternamente sobre a vida o perdáo dos que a entendem: — o desprezo. ... Oico horas. Uma, duas... oito. Oito horas! Se eu pudesse dormir ! E agora mesmo, ao enfiar-me na cama extenuado, eu oico a voz da Suze, voz de seda que range, a segredar-me: — Mon pauvre ami! Quoi ?! Qu'est-ce qui ťattriste ? Ma mort ?... Mais, tu sais, ca c'est un detail. Sim, um detalhe... como tudo, terminando no mármore frio de uma morgue, ou a uma esquina de rua banalmente. Como tudo. SERÄO INQUJETO (1910)