AVILA nante é a «morte». A insignificáncia da nossa yida é traduzjda por ele nas várias reaccôes das velhas que jogam para gastar e iludir o tempo, esquecer a morte. Ironiza o ódio das Teles ás Sousas e da D. Procópia ä D. Biblio-teca, a vaidade fútíl das Albergarias que «só tém um fim na existencia: estrear todos os semestres um vestido no jardim»; a comi-cidade da Úrsula «cuja missäo no mundo é fazer rir os outros», os brasôes e a caridade da D. Biblioteca, a aceitacäo servil da Eleu-téria, da Adélia, dá Porfíria e da D. Restituta — moídas de paciéncía, de inveja e de fel no círculo com que rodeiam a sempre «majes-tosa Teodora» — para fugir ä reaiidade (...). A estupidez carre-gada de ternura da pobre Joana (...) de mäos enormes, de mäos roídas, de mäos só dor,..» (...) serve-lhe para subiímar esta pobre criatura que «näo soube nada na vida, näo foi nada na vida, näo percebeu nada na vida», ela que é a «expressäo maxima da dor». A obra näo tem história. Descobriu o drama da vida e desdobra--o em cenas e figuras impressionantes, carregadas de considera-côes pessoais. Lilaz Carrico in Literatura Prática, ano, págs. 363/364, PORTO EDITORA, 1990 13 de Novembro 0 uco sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persists.. Uma vila encardida — ruas desertas — pátios de lajes soer-guidas pelo único esforco da erva — o castelo — restos intactos de muralha que näo tém serventia. Uma escada encravada nos alvéolos das paredes näo conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. A torre — a porta da Sé com os santos nos seus nichos — a práca com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou--se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de siléncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando tudo. Vi näo sei onde, num jardim abandonado — Inverno e folhas secas — entre buxos do tamanho de árvores, estátuas de granito a que o tempo corroera as feicôes. Puíra-as e a expressäo näo era grotesca, mas dolorosa. Sentia-se um esforco enorme para se arrancarem ä pedra. Na reaiidade isto é como Pompeia, um vasto sepulcro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos... Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia 8 9 e o häbito näo deixam vir ä superficie. Afigura-se-me que estes seres estäo encerrados num invölucro de pedra: talvez queiram falar, talvez näo possam falar. Silencio. Ponho o ouvido ä escuta e ouco sempre o trabalho persistente do caruncho que röi hä seculos na madeira e nas almas. 15 de Novembro As paixöes dormem, o riso postigo criou cama, as mäos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e so um ruido sobreleva, o da morte, que tern diante de si o tempo ilimitado para roer. Hä aqui odios que minam e contraminam, mas, como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciencia e infinita e mete espigöes pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambicäo näo avanca um pe sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, näo se lhe ouvem os passos. Na aparencia, e a insigni-ficäncia a lei da vida; e a insignificäncia que governa a vila. E a paciencia, que espera hoje, amanhä, com o mesmo sorriso humilde: — Tern paciencia — e os seus dedos ägeis tecem uma teia de ferro. Näo hä obstäculo que a esmoreca. — Tern paciencia — e rodeia, volta aträs, espera ano aträs de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressäo e o mesmo sorriso estam-pado. Ja a mentira e de outra casta, faz-se de mil cores e toda a gente a acha agradävel. — Pois sim... pois sim... — Näo se passa nada, näo se passa nada. Todos os dias dizemos as mes-mas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e faze-mos as mesmas mesuras. Petrificam-se os häbitos lentamente acumulados. E o tempo möi: möi a ambicäo e o fei e torna as figuras grotescas. Reparem, ve-se daqui a vila toda... La esta a Adelia, o Pires e a Pires como figuras de cera. Ninguem mexe. Num canto mais escuro a prima Angelica nao levanta a cabeca de sobre a meia. Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar. Chega o cha, toma o cha, e apega-se logo a mesma meia, a que maos carido-sas todos os dias desfazem as malhas, para que ela, mal se erga, recomece a tarefa. Um dia — uma semana — um seculo — e so o pendulo invisivel vai e vem com a mesma regularidade impla-cavel — pra a morte! pra a morte! pra a morte! Passou um minuto ou um seculo? Sobre o granito salitroso assenta outra camada denegrida, e as horas caem sobre a vila como gotas de agua duma clepsidra. De tanto ver as pedras ja nao reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pes e ninguem ouve seus passos. Todos os dias os leva, todos os dias toca a finados. O nada a espera e a D. Procopia a abrir a boca com sono, como se nao tivesse diante de si a eternidade para dor-mir. Tudo isto se passa como se tudo isto nao tivesse importan-cia nenhuma, tudo isto se passa como se tudo isto nao fosse um drama e todos os dramas, um minuto e todos os minutos... Nao ha anos, ha seculos que dura esta bisca de tres — e os gestos sao cada vez mais lentos. Desde que o mundo e mundo que as velhas se curvam sobre a mesa do jogo. O jogo banal e a bisca — o jogo e o da morte... O candeeiro ilumina e a som-bra roi as fisionomias, a majestosa Teodora, a Adelia, a Eleu-teria das Eleuterias, o padre. Salienta-se do escuro uma boca que remoi, a da D. Biblioteca: os padres exaltam-na, a Igreja exalta a sua caridade, que rebusca a desgraca para lhe dar tres vintens. So distingo, despegadas dos cranios, as orelhas do res-peitavel Elias de Melo e do impoluto Melias de Melo, lividos como dois fantasmas. Ambos regulam a consciencia como quern da corda a um relogio. Dividas sao dividas. A D. Leocadia poe acima de tudo o seu dever, e leva para casa uma orfa a quern 10 11 sustenta e que lhe entrapa as pernas. A luz do candeeiro ilumina--lhe as mäos ósseas e secas que enchem a sala toda e o mundo todo... A D. Procópia odeia a D. Biblioteca, mas nem ela sabe o que está por trás daquele ódio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua ä vida. Matar matava-a eu, mas várias pala-vras me detém. Detém-me também um nada... Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece ä luz do inferno. Mas nin-guém arrisca um passo definitivo. Tudo isto parece que flutua debaixo de água, que esverdeia debaixo de água. Näo sei bem se estou morto ou se estou vivo... Decorre um ano e outro ano ainda. O relento sabe bem, e o tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero aumenta, näo se traduz em palavras. As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressäo, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debrugadas sobre a mesa as figuras näo bolem. Näo bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa näo säo as palavras do padre — Jogo; — nem o que a Adélia diz baixinho ä Eleu-téria, para que a velha temerosa ouca: — A nossa Teodora está cada vez mais moca!... — O que me interessa säo as figuras invi-síveis: é a dor dessas figuras imóveis, e sobre elas outra figura maior, curva e atenta, que há séculos espera o desenlace. A vila petrifica-se, a vila abjecta cria o mesmo bolor. Mora aqui a insignificäncia e até á insignificäncia o tempo imprime carácter. Morám na viela íngreme e caseosa, que reve humidade em pleno veräo, velhas a quem só restam palavras, presas, ali-mentadas, encarnicadas, como um doido sobre uma coroa de lata que lhe enche o mundo todo. Mora dum lado o espanto, do outro o absurdo. E todos ä uma afastam e repelem de si a vida. Mora aqui a Teles que passa a vida a limpar os móveis, só e fechada com os móveis reluzentes, talvez resto de um sonho a que se apega com desespero, e velhas só mesuras, só baba, só rancor. Ter uma mania e pensar nela com obstinaeäo! Criá--la. Ter uma mania e vé-la crescer como um filho!... Mora aqui a D. Restituta, sempře a acenar que sim ä vida, e a Ursula, cuja missäo no mundo é fazer rir os outros. Cabem aqui seres que fazem da vida um hábito e que conse-guem olhar o céu com indiferenca e a vida sem sobressalto, e esta mixórdia de ridículo e de figuras somíticas. Mora aqui, pare-des meias com a colegiada, o Santo, que de quando em quando sai do torpor e clama: — O inferno! O inferno! — Morám as Teles, e as Teles odeiam as Sousas. Morám as Fonsecas, e as Fonsecas passam a vida, como bonecas desconjuntadas, a fazer cortesias. Morám as Albergarias, e as Albergarias só tem um fim na existencia: estrear todos os semestres um vestido no jar-dim. Morám os que moem, remoem e esmoem, os que se fecham ä pressa e por dentro com uma mania, e os que se aborrecem um dia, uma semana, um ano, até chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da mořte. Mora aqui o egoísmo que faz da vida um casulo, e a ambi-cäo que gasta os dentes por casa, o que enche a existencia de rancores e, atrás de ano de chicana consome outro ano de chi-cana. Cabem aqui dentro as velhas cismáticas, atrás de interes-ses, de paixöes ou de simples ninharias, dissolvendo-se no éter, e logo substituídas por outras velhas, com as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os mesmos ou outros ridículos, fedo-rentas e maníacas; os homens a quem se foram apegando pela vida fora dedadas de mentira, prontos para a cova — e o Gabiru e o seu sonho. Cabe aqui o céu e as lambisgóias com as suas mesuras, a mořte e a bisca de trés. E cabe aqui também uma velha eriada, que se näo tira diante dos meus olhos. Obsidia--me. Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas. A Joana é uma velha estúpida. 12 13 Serviu primeiro na vila, serviu depois na cidade. Serviu com uma saia rota, as máos sujas de lavar a louca, uma camisa, os usos e seis mil réis de soldada. Lávou, esfregou, cheira mal. Serviu o tropei, a miséria, o riso, que caminha para a mořte com um vestido de aparato e um chapéu de plumas na cabeca. Para contar fio a fio a sua história bastava dizer como as máos se lhe foram deformando e criando ranhuras, nodosidades, códeas, como as máos se foram parecendo com a casca duma árvore. O frio gretou-lhas, a humidade entranhou-se, a lenha que rachou endureceu-lhas. Sempře a comparei á macieira do quintal: é ino-cente e útil e náo ocupa lugar. A vida gasta-a, corroem-na as lágrimas, e ela está aqui tal qual como quando entrou para casa da D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar. Já ninguém estra-nha — nem ela — que a Joana aguente, e a manhá a encontre de pé, a rachar a lenha, a acender o lume, a aquecer a água. Há seres criados de propósito para os servicos grosseiros. Por dentro a Joana é só ternura, por fora a Joana é denegrida. A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste também as árvores. É uma velha alta e seca, com o peito raso. O hábito de car-regar á cabeca endireitou-a como um espeque, o hábito das cami-nhadas espalmou-lhe os pés: a recoveira assenta sobre bases sóli-das. Parece um homem com as orelhas despegadas do cranio e olhos inocentes de bicho. É destas criaturas que dáo aos outros em troca da soldada o melhor do seu ser, que se apegam aos filhos alheios e choram sobre todas as desgracas. Ainda por cima dedicam-se, e quando as mandám embora, porque náo těm ser-ventia, poem-se a chorar nas escadas. Mal se compreende que, depois de uma vida inteira, esta mulher conserve intacta a inocencia de uma crianga e o pásmo dos olhos á flor do rosto. Trambolhoes, fome, o frio da pobreza — o pior — e, apesar de amolgada, com uma saia de estamenha, no pescoco peleš, as máos gretadas de lavar a louca, uma coisa que se náo exprime com palavras, um balbuciar, um riso... Misturou ä vida ternura. Misturou a isto a sua propria vida. Aqueceu isto a bafo. Tem as máos como cepos. 16 de Novembro Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificäncia. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificäncia, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, esconde--la, esquecé-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartôes-de-visita. Se eu pudesse, restrin-gia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borráo. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetacäo criptogämica, nascida ao acaso num sítio húmido. Těm o seu rei, as suas paixôes e um cheirinho suspeito. Desapa-recem, ressurgem sem razáo aparente dum dia para o outro num palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo. Absor-vem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma escorrencia fosforescente, que corresponde talvez a sentimen-tos, a vícios ou a discussôes sobre a imortalidade da alma. Sempře as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até ä cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesám toneladas, tém a espes-sura de montanhas. Sáo as palavras que nos contem, sáo as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por criar uma atmosféra que a arranque ä vida e ä morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. 14 15 Remoem hoje, amanhä, sempře, as mesmas palävras vulgares, para näo pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta--nos para lidar com ele. Nenhum de nós repara no que está por trás de cada sílaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza. Construímos cenários e convencionámos que a vida se passasse segundo certas regras. Isto é a consciencia — isto é o infinito... Está tudo catalogado. Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e sons. E, como a existencia é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro das casas de granito salitroso, as paixôes tecem, na escuridäo e no siléncio, teias de escuridäo e de siléncio. Na botica sonolenta ao pai sucede o filho sobre o tabuleiro de gamäo. Quero resistir, afundo-me. Comeco a perceber que o hábito é que rae fez suportar a vida. Äs vezeš acordo com este grito: — A morte! a morte! — e debalde arredo o estúpido aguilhäo. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulcro vazio. Oh como a vida pesa, como este único minuto com a morte pela eternidade pesa! Como a vida esplěndida é aborrecida e inútil! Näo se passa nada! Näo se passa nada e eu sinto aqui ao lado outra vida que me mete medo e que näo quero ver! Essa vida talvez sej a a minha verdadeira vida. Mas o pior é que eu per-cebo que, se se apodera de mim, näo posso mais viver. Agarro--me com desespero ao hábito e äs palavras. Tu näo existes! Tu näo existes! O que existe é isto com que lido todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os seres com quem falo todos os dias. — E tu rodeias-me, tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempře. Näo te posso ver!... Se há momentos em que o caixäo que um galego leva äs cos-tas me cháma ä realidade, ao espanto, desvio logo o olhar e í reentro á pressa na vida comezinha. Finjo que sorrio e esqueco. Mas sempře náo posso! Ano atrás de ano náo posso! Nao há mais nada! Nao há mais do que estas figuras paradas, e as horas I verdes que de espaco a espaco caem como gotas de água no fundo dum subterráneo. Outro ano ainda! Outro passo ainda para a mořte! Sinto uma dor sem gritos por trás da imobilidade. Cada hora é menos uma hora na minha vida. E o tempo foge, o tempo cor de mata-borráo que ao granito salitroso junta camada dene-grida, e as almas sepultadas outra pazada de cinza... Há momentos em que as figuras tem tanta vida como os santos imóveis nos seus nichos — mas há momentos em que cada um redobra de proporgoes, há momentos em que a vida se me afigura ilu-minada por outra claridade. Há momentos em que cada um j grita: — Eu nao vivi! Eu náo vivi! — Há momentos em que deparamos com outra figura maior que nos mete medo. A vida é só isto? Por mais que queira náo posso desfazer-me de peque-nas accoes, de pequenos ridículos, nao posso desfazer-me de imbecilidades nem děste ser esfarrapado que vai de pólo a pólo. ! Tenho de aturar ao mesmo tempo esta ideia e este gesto ridí-culo. Tenho de ser grotesco ao lado da vida e da mořte. Mesmo í quando estou só, o meu riso é idiota. E estou só e a noite. Por ! trás daquela parede fica o céu infinito. Para nao morrer de i espanto, para poder com isto, para náo ficar só e o doido, é 1 que inventei a insignificancia, as palavras, a honra e o dever, j a consciencia e o inferno. | E ainda o que nos vale sáo as palavras, para termos a que | nos agarrar. 1 É entáo um mundo de fórmulas a que eu obedeco e tu obe- • deces? Sem ele náo poderíamos existir. Se víssemos o que está por trás, náo podíamos existir. O nosso mundo náo é real: 16 H — 2 17 vivemos mim mundo como eu o compreendo e o explico. Näo temos outro. Estamos aqui como peixes num aquário. E sen-tindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até ä cova sem dar por ela. E näo só esta vida monstruosa e grotesca é a única que podemos viver, como é a única que defendemos com deses-pero. — Pois sim... pois sim... — Estamos aqui a representar. Estamos aqui todos ao lado da mořte e do espanto a jogar a bisca de trés. Estamos aqui a matar o tempo. Este passo, que é único e um só, damo-lo como se fosse uma insignificancia. Mais fundo: näo existem senäo sons repercutidos. Decerto näo passamos de ecos. Submeto-me, subjugas-me. Já näo reparo, já vejo turvo. — Jogo! — E de repente todo o meu ser é sacu-dido pelo espanto que tacteia ä minha roda. Raras vezeš entra-mos em contacto, mas sinto-o aqui ao meu lado — sem nos che-garmos a entender. Nem quero! Nem quero! Se me alheio um momento, dou um grito de dor. Escaldo-me. Na verdade o que eu näo posso é ver, o que eu näo quero é ver! A vila regula-se por hábitos e regras seculares — mas há outra coisa enorme para lá do cenário de que me redeio. Para näo ter medo criei eu isto, para a näo ver criou o Santo o inferno. Há outra coisa esfarrapada e dorida. — Jogo! — Čada vezme sinto mais reles, cada vez as palavras me parecem mais gastas. Há outro ser que vai de pólo a pólo... Esta figura grotesca näo é a minha figura. O salitre roeu os santos nos seus nichos — roeu-os também o sonho... Curvado sobre a mesa repito os mes-mos gestos inúteis para näo desatar aos gritos. — Jogo! — Isto para fingir que é indiferente o que nos rodeia, que estamos habi-tuados ao que nos rodeia, que sorrimos ao que nos rodeia! Está ali a mořte — éstá aqui a vida — está aqui o espanto — e só a ninharia consegue deitar raízes profundas. 20 de Novembro Fecho os olhos. A chůva desaba interminavelmente do céu, e na luz turva vejo sempře a vila, com as mesmas figuras de museu sentadas namesma sala... Insignificancia, insignificancia, insignificancia. Portas chapeadas que rangem nos gonzos como portas de prisao, fachadas com os vidros partidos, e uma, duas, trés camadas de pó sobrepostas. Loj as térreas donde vem um bafo húmido que trespassa... Como todas as almas, todas as janelas estáo perras, e o tempo vai substituindo uma figura por outra figura, uma pedra por outra pedra. Ponho-as em fila diante de mim, com os seus penantes usados, grotescas e maníacas. Con-sidero. Vejo vir os gestos, as cortesias, as accoes do confim dos séculos. Isto é nada — é vulgar e quotidiano. É uma aparencia. A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro. Atrás desta vila há outra vila maior. A lentidáo, o gesto usado, a meia-tinta, mesmo em plena luz, toldam-me a visao. Sobre cada ser caiu uma camada de pó. A vila é isto — e a vila nao é isto. Que me importa a Adélia, um dia de inveja, um dia de aquiescencia, um sorriso, baba, mesura atrás de mesura? Outra velha mexe por trás desta velha mesquinha. As letras assi-nadas, as letras protestadas děste ser absorto, o exagero minús-culo, tem outra significacáo. A realidade é a manha, a astúcia que cada um poe em jogo. Náo há velhas com cartas na mao; há orgulho, soberba, inveja paciente. Há intuitos, cautela de quem caminha na ponta dos pés. Há forcas e experiéncia, ava-reza e astúcia. E mais fundo outro, outro subterraneo... Todas as palavras que se empregam těm, alem da significacáo banal, uma significacáo que cada um pesa e calcula, — e outra significacáo superior. Há palavras que requerem uma pausa e silén- 18 19 7^ cio, e há palavras que é preciso afundar logo noutras palavras. Há pelo menos dois seres neste homem que toda a gente conhece, pautado, regrado, metódico. Ele e o doido morto por fazer esga-res. Ele e o doido que só consegue comprimir á forca de pon-tualidade. Esta velha náo é a velha com quem lidamos — é outra. Tem tido um trabalháo para fazer mal, nunca conseguiu fazé--lo. Se se arrisca, há-de contar consigo mesma para se contra-riar. É uma discussao que nao acaba, com a boča amarga, arre-pendimento — e por fim nao realiza uma catástrofe autentica, que a engrandeca. Curvada sobre o lar, remexe sempře as mes-mas cinzas Mas... Todos se defendem. Por isso existe uma čerta grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem só vive de deta-lhes e as manias těm uma forca enorme: sao elas que nos sus-tentam. Reparo melhor na vida secreta e na vida subterránea. Com-preendo como é difícil viver todos os dias e todas as horas, como através de tudo é forcoso seguir um fio invisível — e ser reles e sorrir. Gasta-me uma forca superior, e com todas as chagas e todos os vícios, com a vida mesquinha e a vida quotidiana, o nada, o penante usado, o fel e o vinagre, tenho de arcar com uma coisa imensa de que me separa apenas um tabique. Tudo o que faco é um arremedo. Está ali outra coisa quando falo, quando me calo, quando me rio. E falo mais alto porque a ouco mexer... Todos suportam o drama de todos os dias, o cinzento de todos os dias, as aflicóes e a usura que tornám as figuras ridí-culas e cocadas. Todos suportam os tratos que envelhecem e pre-param para a cova, os pequenos interesses, a inveja, a ambi-cao, a dor física. Todos os dias a Hermengarda amarga os brasoes da Biblioteca, a Bisbórria todos os dias cisma na sua respeitabi-lidade, e aturam o azedo que pouco e pouco se deposita nas almas — e com isto uma coisa desconforme, que se levanta e deita connosco, näo se tira do nosso lado, em quem ninguem fala e com quem temos por forca de coabitar; diante de quem e forcoso ser vulgär e dissimulado, fazendo que a näo vemos e com ela ä cabeceira da cama... Aträs da insignificäncia andam os ceus, os mundos, os vaga-lhöes doirados. Anda o desespero. Anda o instinto feroz. Aträs disto andam as enxurradas de söis e de pedras, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Aträs do tabique e das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas. Aträs das palavras com que te Hudes, de que te sustentas, das palavras mägicas, sinto uma coisa descabelada e frenetica, o espanto, a mixördia, a dor, as forcas monstruosas e cegas. Em certas ocasiöes, se as palavras e a insignificäncia desa-parecessem da vida, so ficava de pe o espanto. So a insignificäncia nos permite viver. Sem ela jä o doido que em nös prega tinha tomado conta do mundo. A insignificäncia comprime uma forca desabalada. Para näo ver, para näo ouvir, e que nos curvamos sobre a mesa de jogo. Para te näo ouvires a ti mesmo, para näo veres o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas, usura imensa que näo sentes e que te vai levar para o escantilhäo söfrego, que te vai mergulhar no silencio profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos, desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais velhos, todos os dias acordamos mais inüteis. Todos os dias acordamos com mais fei. E todos os dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos sobre esta mesa de jogo, näo vendo, fingindo que näo existe, o espanto que estä ao nosso lado, e o espanto pior que trazemos connosco. Chama-se a isto o quoti- 20 21 diano. Isto näo tem importäncia nenhuma. Com isto enchemos a vida até chegar a morte. Esta mesa de jogo é a nossa existencia vulgar, a vida de todos os dias, com o galope da outra vida ao lado. Näo se passa nada! Näo se passa nada! No Veräo o calor sufoca, de Inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amolece, dissolve pilares das janelas, casebres e a oliveira da práca, só tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um círculo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragédia — e as montanhas näo desistem. De quando em quando, na solidäo que ä noite redobra, caem do alto da Sé as badala-das, uma a uma, pausa a pausa. O som tem um peso descon-forme. Estamos aqui todos ä espera da morte! Estamos aqui todos ä espera da morte! 0 SONHO 6 de Dezembro Chove. Čada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em convencoes até ao pescoco: usa-mos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que náo distingo estes seres da minha propria alma; há dias em que através das mascaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassi-bilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e deses-peram. Pressinto uma vida oculta, a questao é fazé-la vir á supu-racáo. Esta manha de chůva é um minuto no rodar infinito dos sécu-los, e os seres que passam meras sombras. Tudo isto me pesa e pesa-me também nao viver. Do fundo de mim mesmo protesto que a vida náo é isto. A árvore cumpre, o bicho cumpre. Só eu me afundo soterrado em cinza. Terei por forga de me habituar á aquiescéncia e á regra? Crio cama, e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da mořte mais fundo e mais perto. — É necessário abalar os túmulos e desenterrar os mortos. É o Gabiru que se poe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. Olhos magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que abomino, é a única parte do meu ser que me interessa. Ás vezeš deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos o espero. 22 23