O VESTIDO COR DE FOGO I Por esse tempo, era eu um rapaz fogoso e robusto. Com a minha saúde, a minha mocidade e a minha inexperiencia, (posto me considerasse já muito experiente) näo saberia, ainda, apro-fundar fosse o que fosse. Mas tinha ideais. Os meus ideais eram nitidos, simples, generosos, e apareciam-me como absolutamente certos. Nascido e crescido no seio duma família burguesa —por-tuguesa ä maneira traditional— seguia quase sem dar por isso muitos dos conceitos, preconceitos, juizos, costumes e crencas da minha família. De alguns, porém, me afastara provisoriamente o género de vida que levara em Coimbra, a influéncia de certos livros alias nem sempře bem entendidos, a de vários companhei-ros, a propria natureza dos meus estudos: Acabara de me formar em Medicína. Partira para Lisboa, onde montara consultório sob patrocinio duns parentes bem relacionados. Assim é que professava em politica ideias tidas por avanqa-das; deixara de praticar quaisquer actos do culto religioso; preo-cupava-me, ou julgava preecupar-me, com coisas de ordern social; e cria, e fervorosamente me propunha, trabalhar para o progresso da humanidade. No fundo, representava muito melhor do que pödia sabe-lo eu proprio o tipo social da família a que pertencia. 167 HISTÓRIAS DE MULHERES Mas era, indiscutivelmente, uma natureza generosa e ampla, bem inclinada. Sem vaidade parva nem falsa modéstia o digo, — corn a sinceridade que, neste pequeno depoimento, procurarei manter em tudo que diga. Entristeciam-me, pois, quer a miséria, quer a ignorancia, quer o atraso moral que deprimem ainda tantos seres, alguns dos quais estruturalmente honestos, porventura superiormente inteligentes^ e trabalhadores desde tenra infäncia ä extrema velhice. Incomo-davam-me to das as for mas de fanatismo e sectaŕismo estreito: tanto de carácter religioso, corao social ou politico. Via (ou supu* nha ver) irmäos meus em todos os homens; pensando, embora, que muitos deles haviam de ser corrigidos, ensinados, até combati-dos, até severamente castigados. Amava, amava as mulheres coni sensualidade, estima e ternura. Sinceramente me julgava, perante elas, um sensual, urn sentimental e um idealista. Decerto me näo tinham inspirado grande ternura ou respeito as que até entäo fisicamente amara. Mas até essas näo pudera amar (amar da maneira que qualifiquei) sem uma ponta de afectividade e umas: veleidades de moralista regenerador. Em qualquer dos casos, nunca chegava a desprezá-las. As mais desgracadas me pareciam simples-mente desgracadas: ou irresponsáveis dignas duma caridade superior, ou vítimas inocéntes das circunstäncias e do mundo. Claro que náo existiriam, estas, numa sociedade mais bem organizada. Preparava-me eu para colaborar, com as minhas fracas forcas, no advento de tal sociedade. Confessarei que nem sempře as minhas atitudes exteriores para com as mulheres correspondiam aos meus verdadeiros sen-timentos Ultimos ou juizos. Acusaram-me algumas de ser duro, autoritário ou caprichoso; e bem certo que muitas vezes as trata-va, pelo menos, com impaciéncia: Há tantas coisas miudinhas nás; mulheres, — que lhes säo täo importantes! e que a gente dificil-mente pode compreender... Estava satisfeito com a profissäo em que me ta treinar, pois acreditava poder ela satisfazer, em grande parte, os meus anseios de bondade humana, proteccäo aos mais fracos, serena altivež perante os poderosos, assisténcia gratuita aos desvalidos, etc. Esperava encontrar uma doce companheira que abengoasse com olhos de agrado estas minhas louváveis disposicöes, animan-do-me e consolando-me nas horas amargas, partilhando comigo a plenitude dos momentos de triunfo... Em suma: o eterno sonho da clássica felicidade do lar! E a mim mesmo prometia levar uma vida limpa, corajosa, activa, calma apesar dos inevitáveis emba-teS) — e bem diferente da que via ser aspiracäo de vários meus camaradas de estudo, ou realidade florescente de muitos meus conhecidos. Assim esperava chegar ä velhice acompanhado pelo amor de minha mulher, a afeicäo de meia dúzia de amigos esco-lhidos, e o respeito dos filhos a quem deixaria náo uma fortuna, mas um bom nome e um bom exemplo. Era pois, por esse tempo, um simpático rapaz ingénuo, sau-dável, idealista, — a ponto de várias vezes ter que esconder de meus camaradas precisamente as exceléncias do meu carácter. Até já por esse tempo suspeitava que os mais dos homens odeiam, desprezam ou escaraecem as nossas mais auténticas virtudes,— pelo menos quando as náo sustentem as trombetas da celebridade, os triunfos materiais, ou quaisquer bens de igual jaez. Náo obstante a minha ingenuidade e a minha inexperiéncia, até já por esse tempo suspeitava es ta dolorosa verdade. Cria, no entanto, que sempře as nossas verdadeiras virtudes acabam por se impor — e nos impor. Estava, pelo menos, decidido a impor eu as minhas. Se neste esbogo do que entäo era me favorego a mim proprio, näo sei. Tal näo é minha intencäo. Mas täo vulgar se torna iludir-se a gente quando fala de si! principalmente quando pinta um auto-retrato duma época sempře lembrada com em-beveeimento! Näo devo, näo posso garantir a semelhanca objec-tiva deste meu breve auto-retrato. Só posso garantir a minha sinceridade ou boa fé ao esbocá-lo. Isso, posso. II Sucedeu entäo que pela primeira vez vi Maria Eugénia, num baue. Foi num baile de Carnaval, em casa particular. Os donos JOSE REGIO 168 169 HISTÓRIAS DE MULHERES da casa eram gente rica, mas de riqueza recente. Nio tinham, pois, ensaiado grandes esforgos para a esconder: Se o ambiente náo demonstrava requintado gosto, era, porém, de luxo e facili-dade. Algumas raparigas estavam fantasiadas. Lindamente vestida á mo da dos bons tempos románticos, (ou assim me pareceu) Maria Eugenia brilhava como princesa da festa. Notei-a logo que entrci na sala. Como fora levado por urn amigo, ou coisa parecida, muito popular entre a juventude feminina elegante, pedi-lhe que me apresentasse. Ele olhou-me nos olhos, sorriu-še, e disse-me, er-guendo ameacadoramente o dedo: — Cautela... — Há grande perigo? Encolheu um pouco os ombros, com um trejeito da boca: — Nunca se sabe. Mas tomou-me pelo braco e foi apresentar-me. Dancei com ela várias vezeš, conversámos. Era um prazěr levá-la nos bracos, leve como uma pluma, sentindo, ao mesmo tempo, arfar o seu busto como o corpo duma pomba que se agar-rou. Também era um prazer falar-lhe, ouvi-la falar. A sua conver-sa pareceu-me despretensiosa, viva, quase infantil. No fim da noite, (depois mo contaram) já várias pessoas presentes borda-^ varn maliciosos comentários sobre as minhas atencoes para com o meu par. Na verdade, ao reentrar essa noite no quarto, eu es-tava apajxonado. Maria Eugenia era pequenina, (eu, pelo contrario, sou um homem alto e forte) mas táo bem proporcionada, tao bem-feita, que, sozinha, parecia de estatura normal. Se nela havia alguma desproporgao, essa redundava ainda num esquisito encanto: Sim, tinha o pescoco talvez demasiado alto; raas fino, flexivel, bran-co — duma brancura ardente que o natural rosado da face ao mesmo tempo completava e salientava. Com uma pele de tal fínura e cor, grande erro fora pintar-se. Efectivamente, só pintava os lábios. Esses, porém, lembravam uma pequenina chaga em san-gue. Os seus cabelos eram dum castanho batido de reflexos de oiro. Os olhos grandes, um bocadinho salientes, glaucos, cheios de luz. E todos os seus mais tracos e feicöes, näo sendo de im-pecável correccäo, continuamente os animava uma sedutora ex-prcssäo de infantilidade e curiosidade. Quase se tornavam comoventes. Eis a minha mais pertinaz Iembranca da Maria Eugenia que primeiro conheci. Propriamente do que dissemos essa noite, näo conservo recordagäo nenhuma. Decerto, eu mal sabia o que esta-va dizendo; e a qualquer coisa que ela dissesse acharia encanto. Foi a sua pele, foi o seu colo, foram os seus cabelos e os seus olhos, foi o seu pescoco alto, foi o riso daquela sua boca peque-na, escarlate, carnuda, foi o que nela havia de inquietantemente feminino aliado a näo sei qué de criancice, — que desde logo me atrairam. Por isso entro aqui nas particularidades do seu retrato. Mas durante meses julguei que sobretudo me inspirava ela um meigo sentimento de ternura. De facto, a minha ternura por ela cra muito real. O género dessa ternura, é que eu näo sabia ainda distinguir. HI E comegou entre nós aquele periodo que chamam de namo-ro. Maria Eugenia era filha unica dum oficial reformado e uma senhora que, parece, näo recebera em solteira grande educagäo. A posigäo e as relacöes do marido lhe tinham dado certo verniz. Näo era preciso muito mais para que D. Altina (tal era o nome de minha futura sogra) fizesse no meio burgués que se tornara seu a figura decente de qualquer outra. Näo obstante, algumas vezes, entre si, aludiam as suas mais familiäres amigas ä condi-gäo inferior donde viera. E o mais inocentemente deste mundo repetiam engracadas anedotas a respeito das suas faltas de tacto, das suas pretensöes, dos seus vicios de vocabulário ou pronuncia, das familiaridades que tinha com as criadas, etc. Coisas para ma-tarem o tempo, e só entre si, pobres senhoras! Mas näo tanto só entre si, que, pelo menos ao prineipio, se resguardassem gran-demente de as poder eu ouvir. Cheguei a suspeitar que, permi-tindo-me ouvi-las, de bom grado contribuiriam para me afastar JOSE REGIO 170 171 MSTÓRIAS DE MULHERES dum casamento considerado desigual. Na sua opiniáo implícita senáo manífesta, (e o que provava a imparcialidade dessa opiniáo era precisamente sérem elas amigas de «aquela boa D. Altina») a muitos respeitos superava o marido de táo boa senhora a sua respeitável consorte... Náo sei se pretenderiam insinuar a possi-bilidade de se repetir o caso no casamento da filha. A verdade é que também elas eram máes de jovens donzelas casadoiras, — cada uma das quais poderia convir muito melhor a um táo simpático: partido como eu. Ora se tendiam tais insinuagoes e conversas a desgostaremř -me de possíveis intentos matrimoniais, — baldadas conversas; baldadas insinuacóes! Nao me fora preciso muito para cordiak mentě ser recebido em casa do coronel Valadares. Cada vez mais apaixonado, nada fazia eu para esconder a razáo das minhasi repetidas visitas. Dentro em pouco, era o noivo reconhecido da menina. Cada vez mais apaixonado, — disse. Na verdade: cada vez mais apaixonado! Porqué? Nem o sabia. Só a experiéncia do casamento mo ensinou. Tudo, na pessoa física de Maria Eugénia, exercia em mim uma atraccáo de carácter secreto ou fatal. O ela ser pequenina, o ter o pescoco quase demasiado alto, o mostrar, quando ria, (e tantas vezeš ria!) um dentinho meio sobreposto aos mais, — bem podia eu entender que se tornassem defeitos para outro. Para mim, adquiriam quaiquer coisa de íntimo e tocante, que me enternecia. Eram coisas dela, particularmente suas, faziam parte dela. E a macieza da sua pele, os brilhos doirados do seu cabelo, a gentileza e fírmeza das suas formas, a luminosidade dos seus olhos variando entre o castanho-claro e o verde, — faziam-me sonhar a posse dessa adorável criaturinha como uma felicidade que eu náo merecia. A mim próprio me prometia tratá-la com requintes de amante poeta, e carinhosos cuidados de pai ou ir-máo mais velho; ainda que a diferenca das nossas idades náo íbsse grande. Mas, a meu lado, Maria Eugénia parecia táo frágil, táo delicada, quase táo pueril...! Como filha única, e assim franzina de constituicáo, sensívcl de saúde, — ela fora mais amimada que educada. Sem dúvida a JOSÉ RÉGIO 172 sua cultura era deficiente, mesmo para uma rapariga. Facilmente entristecia se a contrariavam. E, muito feminina, simultaneamente muito infantil, guardava consigo náo sei que que eu nao conhe-cia, onde eu náo entrava, que ela defendia, reservava ou disfarcava como instintivamente, e, por isso, exacerbava quase dolorosamente a minha contínua curiosidade de ela, o meu táo delicado como violento e másculo desejo de a fazer toda, toda minha. Táo mei-ga e frágil, táo maleável, táo pronta a satisfazer-se com qualquer pequena condescendéncia, táo inclinada ä jovialidade e ä fantasia,— decerto se deixaria moldar como cera branda logo que soubesse eu tocar-lhe com dedos finos, finos e firmes, dedos de marido e amante... Mas os meus dedos tremiam só de rocarem a sua pele transparente, as ondulacöes do seu cabelo, a forma do seu joelho ou do seu ombro. Os meus dedos tremiam, todo eu vibrava. Ansiava possuí-ia para poder, depois, amá-la com mais serenidade. Äs vezeš, pensava comigo: «Mas como sucedeu isto, assim táo depressa, porque?» Na verdade bastara o meu encontro com ela para eu sentir que a queria minha, e ela me estava destinada. Vir a té-la — era como recuperar alguém que já me pertencia. E em certos momentos me inquietava, ou quase assustava, o que nisto havia de obscuro e poderoso. IV Com tais extremos e fervores a tratava, que, meio a sorrir meio séria, meio triste, ela me disse, uma vez: — Olha que eu nao sou nenhuma santa! Tenho os meus defeitos... até dizem que muitos. — Bern sei — respondi-lhe eu, encantado. — Nem eu podia amar uma santa, ao menos como te amo a ti! Quero uma mu-lher... uma mulherzinha como tu... Estávamos em vésperas do grande dia; e já, entáo, muitas vezeš os meus beijos afogavam e completavam as minhas pala-vras. 173 HISTÓRIAS DE MULHERES v Näo rae ficou uma lembranca muito feliz do dia de noivado, Ter de figurar, de representar, de desempenhar um papel exterior e capital nos acontecimentos e cerimónias do dia, — pouco prazer me deu. Tanto mais que meus sogros haviam caprichado em revestir de espectáculo e pompa o casamento da filha. Esse dia só me era grato por ser início duma felicidade que eu ansiava por experimentar, por assegurar. E eu ansiava näo só possuir Maria Eugenia, como principiar completando a sua educacäo ao sabor do meu feitio; ou antes: dos meus spnhos, e do lar que idealiza-va. Só pensando que esse era o primeiro dia da minha felicidade, — o suportei. A nossa viagem de núpcias foi breve. Eu comecava a ter uma boa clientela, que näo podia abandonar por muito tempo. A minha embriaguez, a nossa embriaguez, é que se prolongou bem para alem da viagem de núpcias. A minha embriaguez, — digo bem: O termo felicidade por um lado exprimiria mais, por outro me-nos. Era de embriaguez o estado em que entäo vivia. Tanto assim que, por vezeš, nuns esquivos mas fulgurantes momentos de lu-cidez e cansaco, (alias cansaco ainda gostoso) eu me surpreendia aspirando ä felicidade mais regulär, mais tranquila, mais honesta, em que decerto ia entrar, e depois decorrer, a nossa vida comum. Mais honesta, — disse. Disse uma coisa terrivel... Como, quan-do, porqué, em que dia me veío a mim pela primeira vez esta verificacäo de näo ser inteiramente honesta a nossa vida? Só me lembro que me assaltou näo sei como, chegando de improviso lä das profundezas da subconsciéncia em que certamente andara ger-minando, — num qualquer dia, ou instante, de saciedade. Mas, tendo vindo uma vez, depois reaparecia em momentos idénticos, rápida como um claräo, intensa como ele, e perdendo-se logo, ou apagando-a eu logo, na consciéncia do prazer com que vivia. Porque nesse tempo, eu tinha muito gosto na vida! Com tal deleite me deixava ir vivendo, täo agarrado estava, por todos os: sentidos, ä minha embriaguez, que chegava a recear morrer ines-peradamente. Tardes havia, quando me achava só comigo na pe- JOSÉ REGIO 174 numbra do crepúsculo, em que uma vaga inquietacäo me ator-mentava: «Isto näo pode durar...» Tal inquietacäo como que se prendia äquele meu sonho duma vida mais regulär, mais tranquila, mais honesta... Mas aquilo ia durando. Muitas mulheres conhecera eu antes; e algumas cria, até, haver amado um pouco. Só agora, porém, conhecia verdadeiramente a voluptuosidade, — ou a minha capacidade de me afundar nela. So agora, que me casara, sabia o que era ter uma amante, que era minha mulher. Quero dizer que a minha embriaguez se comunicara ä minha bela cúmplice. A voluptuosidade era como um tépido, mole, envol-vente chäo movedico em que nos enterrávamos devagar, devagar, enlagados, multipHcado e requintado o prazer de um pelo do outro. O meu orgulho de macho podia estar satisfeito. Näo obstante, — como dize-lo? — näo obstante, também, por vezes, me vinha, quer logo após as nossas loucuras de amor, quer nos momentos de inquietagäo e lucidez em que sentia dever entrar a nossa vida noutro curso, também por vezes me vinha uma espé-cie de espanto: Como podia aquela criaturinha täo fragil, täo delicada, täo espiritual e franzina, corresponder assim, nos meus bracos, ao meu delirio...? E nem ousava levar adiante o meu pensaraento, sentindo que estava a ofender minha mulher. Hoje, posso ousar dizer tudo: Ora me parecia haver em Maria Eugenia uma cháma sempre mais ou menos pronta a ser ateada, e levantar labaredas, ora (e a ima-gem diz afinal o mesmo, só é mais brutal...) ora uma pequenina fera terrivel, insaciável, que, por menos que eu a provocasse, estava pronta a rugir, a manifestar-se, a estorcer-se... Alias, nem Maria Eugenia era täo fragil e franzina como parecia: O que lhe dava essa aparéncia —e uma aparěncia que se mantinha a despei to de tudo — era ser pequena, admiravelmente proporcionada, e fina em certas linhas e feicöes. Também, depois, cheguei a reparar numa sua particularidade comezinha, familiär, que quase me envergonhei de ter notado, e quase me envergonho de inserir (mas tem de ser) neste penoso documento: E que a todas as refeigöes comia bem, talvez demasiado bem para o que eu supu-nha ser a alimentacao duma rapariga delicada. Mas também, afi- 175 HISTÓRIAS DE MULHERES nal, näo era ela uma rapariga de saúde precária! Vim a reconhe-cer que, pelo contrario, tinha urna constituigäo muito mais resistente do que, nem sei bem porqué, eu julgara: Talvez porque seus pais ou ela propria o julgassem, ou aparentassem julgar. Claro que tais observagöes as näo poderia fazer senäo nos in-tervalos da nossa embriaguez, ou quando já essa embriaguez se ia atenuando numa certa saciedade. VI Pois como durar toda a vida aquela embriaguez primeira? As horas de saciedade comecaram a multiplicar-se, a prolongar-se, de modo que o meu desejo de Maria Eugénia já se näo reacendia senäo a espacos mais ou meno s reguläres, embora frequentes. Quando faio do meu desejo de Maria Eugénia, quero dizer aque-le desejo que exige satisfacäo imediata e activa. Porque a sua simples presenca física continuava a exercer poderosa influencia em mim. Ve-la, ouvi-la, tocar-lhe, farejá-la, respirá-la, pensar comi-go: «e minha! minha!» — continuamente alimentava em certa parte do meu ser urna volúpia morna, um a disposicäo ao desejo que qualquer gesto, qualquer pretexto, podia levar ao paroxismo. Isto, sabia-o ela. E quando, pelo fim da tarde, após o meu: dia trabalhoso, de pantufas me estirava no maple da nossa casi-nha de estar, repetindo comigo ao vé-Ia cirandar, esbelta e fresca: «e minha! minha! posso te-la quando quiser! quantas vezes qui-ser!», — ela voltava-se de repente, um meio sorriso como que lhe pasmava no lábio pequenino, carnudo, os seus olhos esverdeados e luminosos enterravam-se nos meus com audácia, e eu com-preendia que era inútil envergonhar-me de ela me haver adivi-nhado. Maria Eugénia näo desgostava de ser täo constantemente desejada! täo fisicamente desejada. E aquela audácia dos seus olhos procurando sofregamente os meus, e dos meus afundando-se nos dela com tal intensidade, — já era um acto sexual. «Mas é assim que devem viver marido e mulher?» pensei um dia «É este o lar que sonhei?» VII Impossivel saber, mais tarde, quando em verdade nos acudiu pela primeira vez um pensamento que depots se nos enraíza na alma, tornado obsessáo; principalmente se, antes de ser claro, já sob a forma de intuicáo, pressentimento, inquietacáo, ou náo sei qué, nos persegue das obscuridades da subconsciéncia. «Mas é assim que devem viver marido e mulher? É este o lar que sonhei ?» Tais interrogates abrem uma época nas minhas relacóes com Maria Eugenia. Bem certo que já as pressupunha certa minha aspiragáo a uma vida mais honesta. Mas só agora se me formulavam distintamente. Talvez o mais grave, porém, fosse náo térem elas comegado a perseguir-me como ideia fixa, como preocupa$áo dolorosa, senáo depois dum minúsculo incidente que nunca mais esqueci. Disto me lembro, — que tal incidente pre-cedeu náo digo já as minhas dúvidas, digo as minhas pungentes meditagoes sobre a moralidade do nosso género de casamento. Uma vez, tínhamos ido a um espectáculo de circo. A dada aitura, uma rapariga, no meio da arena, jogava com quatro esfe-ras que apanhava nas máos, e se cruzavam e entrecruzavam no ar, descrevendo curiosas geometrias em movimento. Voltei-me para Maria Eugenia, ia dizer-lhe qualquer coisa... quando vi que ela náo seguia o trabalho da artista. Os seus olhos fixavam-se aguda-mente em qualquer ponto, e eu segui a direcgáo desse olhar: No pequeno corredor por onde os artistas entravam em cena, estava um homem. Era um belo homem, novo e forte, quase nu, — um atleta que decerto esperava o momento de exibir o seu numero. Entáo, com um sobressalto quase imperceptível, Maria Eugénia voltou os olhos para os meus, (o seu pequenino lábio carnudo, rubro, pendia um pouco em certas ocasióes); mas ela compreen-dera que eu seguira a direcgáo do seu olhar, — um olhar ávido, intenso, profundo, arrojado, que por de mais eu conhecia. Corou ligeiramente, (ou foi sugestao minha?) eu balbuciei o que queria dizer-lhe, ela respondeu-me com um desembaraco talvez afec-tado... Eis tudo. Mas este minúsculo incidente foi o início duma nova fase da nossa vida conjugal. JOSÉ REGIO 176 177 HISTÓRIAS DE MULHERES Sim, eu conhecia o ardor daquele pequeno corpo esbelto, ao mesmo tempo delicado e firmě, solido e flexivel, que uma forca como estranha convulsionava, em certos momentos, tornando-o quase terrível... Só me náo lembrara ainda, ou me náo detivera a pensar nisso, que tal ardor pudesse, alguma vez, solicitar outro homem. Corapreendia agora como podia ser; como seria natural, ou fatal, mais cedo ou mais tarde. Mas é que já era! Minha mulher admirara, desejara aquele Apolo de circo. Em pensamento, em imaginacáo, e ao menos por uns segundos, praticara com ele aquilo que lhe eu ensinara a ela... E uma disposicao que náo tivera ainda oportunidade de re-conhecer minha propria, ou nenhuma outra mulher pudera ainda ter-me revelado, acordou em mim com uma violéncia que me aterrava: a disposicáo para o ciume. Comecei, entáo, a observar Maria Eugenia desse ponto de vista. E verifiquei —mas como o náo verificara ainda? em que cegueira pudera ter vivido? — verifiquei que náo só Maria Eugenia atraia muito particularmente a atengáo dos homens (qualquer coisa, nela, como que alarmava o seu instinto) mas também os olhava muito ela mesma. Náo seriam, até, os olhos dela que ás vezeš chamavam os deles? Isto, como o náo notára ainda? A propria dissimulagáo de Maria Eugenia a denunciava: Os seus olhares eram rápidos, ab-sorventes, profundos, vibrados como golpes certeiros, — e logo ela olhava indiferentemente para outros pontos, e fingia terem sido casuais, também indiferentes, os seus primeiros olhares, e falava de qualquer coisa com uma verbosidade afectada. A verdade é que ela olhava muito os homens, embora sem insistir; embora recolhendo logo os olhos. Um furtivo olhar agudo lhe bastava para os examinar, os avaliar. E alguns havia que, sem dúvida, atraíam particularmente os seus olhos. Quero dizer que minha mulher os olhava do mesmo ponto de vista que geralmente nós temps, homens, para olhar as mulheres. Entáo'me veio esta dúvida humilhante e pungente: O que logo me impressionara em Maria Eugenia, e táo depressa me fi-zera crer que a amava a ponto de logo resolver torná-la minha mulher, — náo seria muito simplesmente o mesmo que sobre ela chamava o interesse de qualquer homem? Nao seria apenas a voluptuosidade que ela exalava como uma flor venenosa exala o seu perfume? aquele surdo mas ardente convite ao sexo, que to-dos os homens sensuais ouvem tao bem? O geral dos homens sabem perfeitamente do que se trata. Sao experientes, corruptos, cepticos, viciados. Quando conhecera Maria Eugenia, eu era ainda um sensual demasiado puro para o saber... Nao, eu nao queria crer nisto! eu nao podia crer nisto! Nem, decerto, estas coisas que hoje digo com uma precisao brutal, ou uma clareza pesada, as via, ou pensava, entao, de igual modo. Sem duvida influem na minha precisao ou clareza actual os va-rios acontecimentos posteriores. A verdade, porem, e que o meu ciume despertara, e muitas vezes rugia em mim furioso. Muitas e muitas vezes me era um tormento, um continuo alarme tor-' ■ turante, — passear, pela rua, com Maria Eugenia pelo brago... A verdade e que terriveis dtividas se tinham erguido em mim — i e nunca, depois, deixaram de me triturar. » Foram elas que me esclareceram sobre o genero de vida que famos levando: N6s nao tinhamos um lar. Nos nao eramos ma-rido e mulher, apesar daquela cerimonia que haviamos realizado, | : e a nossa religiao eleva a sacramento. Nos nao pass^vamos de \ do is amantes; e ja entre nos se esbocavam aquelas tempestades : e perversidades, aqueles conftitos e dissentimentos que sao usuais I numa uniao de amantes. Ora a culpa era minha, se a nossa li-; gagao nao chegava a tornar-se um sacramento. A culpa era minha, que so educava minha mulher para a sensualidade. Como nao seria natural que ela comegasse a ver outros homens, so-; nhando neles possiveis instrumentos de variacoes do linico pra-zer que lhe eu ensinara? E ah, como eu desejava que em verdade a culpa fosse toda minha! J- ■. j VIII j. Comecei, entao, a estudar minha mulher doutros pontos de ! vista. Propus-me educa-la — fazer dela minha amiga e companhei- JOSÉ REGIO 178 179 HISTÓRIAS DE MULHERES ra. Esforcei-me por moderar os próprios transportes a que me Quanto a Maria Eugenia, parecia folgar com esta minha vi- arrastava a sua carne... a minha carne. E desejei um filho que toria. Parecia näo compreender que era uma sinistra vitória so- estabelecesse entre nós lagos mais graves e mais íntimos, e a bre os meus sentimentos mais generosos e a minha natureza mais ocupasse, a ela, com as alegrias e os cuidados de mäe. ■ delicada. Vendo-me aduiado, procurado, bem recebido, e vendo-me Como disse, antes de casar, eu tinha näo só preocupagöes de ; ganhar dinheiro, — mostrava-se orgulhosa de mim; comecava a ordern social, como pretensöes a ser alguém no campo dos meus I admirar-me sinceramente; (pois me parecia agora que ela nao estudos profissionais. Decerto me conhecia entäo muito insu- 4. poderia ter-me admirado antes). ficientemente! e me conhecia mal ainda agora: Embora breve, a í Tudo isto — tudo isto o fui vendo fechado no meu gabinete, experiéncia da vida comum com Maria Eugenia já bastava a fa- I: quando, tendo-se-me revelado a torva disposicäo ao ciúme, e zer-me suspeitar ignoradas complexidades da minha natureza. principiando eu a considerar as sombras do carácter de Maria Todavia, sem dúvida havia em mim sinceras preocupagöes de Eugenia e čerta imoralidade em que iam decorrendo as nossas ordern social ou científica. Sobretudo a mortalidade infantil U relagóes, naturalmente me recurvei sobre mim mesmo, a interro- — suas causas, seus problemas e meios de assisténcia — era as- w ■.' gar a minha propria personalidade e a minha propria vida, alem sun to que me interessava, e em que me propunha especializar-me. de outros casos, outros problemas... Como, desde que me sou- Assinava muitas revistas, lia bastantes livros, dedicava-me aos i besse em casa, Maria Eugénia se habituara a borboletear em re- casos que me apareciam. í dor de mim, — eu inventava pretextos de trabalho urgente para Com o meu casamento, insensivelmente me ia tornando um i me encerrar com os meus livros, as minhas revistas, os meus médico como qualquer outro. Quero dizer que a minha profissäo -; exames de consciéncia. Ainda o näo fazia senáo äs vezeš. Mas, me näo vinha sendo, nos Ultimos tempos, senáo o que é, para pelo melancólico prazer que experimentava em me sentir ali encer- qualquer indivíduo sem aspiragóes, qualquer profissäo: um meio rado, defendido por aquela porta que separava o meu mundo de ganhar a vida. E como as toilettes de Maria Eugénia ficavam particular de tudo o mais, compreendia a minha necessidade de caras —ela amava o luxo e eu gostava de a trazer elegante e con--:.-'''>^^^-,-:: criar um isolamento onde ninguém entrasse... onde a minha tente, invejada pelas outras— quase sem dar por isso ia renun-;:^ťSj|-^^^-i; mulher nao entrasse.,. onde, a sós comigo, pudesse voltar ao que ciando aos meus ingénuos sonhos de ser um médico dos pobreSj''.".-.^^^ dantes era. Ainda fugia de o reconhecer; e nem por isso podia um amigo das criangas infclizcs, um hörnern bom, independente, ^^S^ deixar de ver que, nos intervalos da nossa vida sensual e dos moral, uma excepcao no meio da corrupcäo que via alastrar-se, e--:f1|||i nossos brinquedos voluptuosos, — a presenca de Maria Eugenia me afligia... Pelo contrario, principiara agora a procurar uma ^OISII- me comegava a enfastiar, ou a pesar, ou a impacientar. Sem con- clientela de cabotinos ricos. As minhas próprias maneiras se tor- sentir, embora, em alimentá-la, tinha uma tendéncia para levantar navám mundanas. E pouco a pouco me fazia um profissional pequeninas questöes contra ela. Tanto mais que me obsidiava o apressado, hábil mas insensivel, interesseiro, cultivando a sua re- """ mesmo vago, informe, complexo, turvo sentimento de ciúme. putagäo pelo que uma excelente reputagao garante de lucros supe- ■ Neste entretanto me agarrei ao propósito de educar minha riores: precisamente, em suma, o tipo do médico elegante emulher para mim, tal como eu era consoante os meus melhores recherche que aprendera a detestar. Ora neste declive — eu triun- ;-;-V:.^ aspectos, e para o lar que sempre idealizara. Desde entäo me ator- fava! Já ia conquistando uma freguesia rica, já quase estava na :Wl|f;i mentava o remorso de a estar abandonando — sempre que (e, na moda, já se me ofereciam, ate, aventuras amorosas que tinha o:-:ä<. realidade, para lhe fugir por alguns momentos) me fechava no tacto de näo repelir abertamente... meu gabinete de trabalho. Assim as dificuldades se amontoavam JOSE REGIO 180 181 HISTÓRIAS DE M ULHERES sobre a minha pobre cabega, e a complexidade do nosso caso me afligia. Que bem se enganaria quem, pela nossa aparéncia em público, me julgasse a mim um marido feliz! No entanto, essa era a opiniáo publica, a nosso respeito: Nós éramos um modelo de casai feliz. Sé-lo-ia, ao menos, minha mulher, independente-mente da satisfagáo que, sem dúvida, Ihe proporcionavam os meus triunfos mundanos? Por certos fugidios mas reveladores indícios, parecia-me, ás vezeš, que nem sempře. Mas por que? Porque, se para a poupar abafava eu comigo as minhas tristes perplexidades? IX Talvez porque as mulheres pressentem, fárej am certas miu-dezas e subtilezas do sentimento. E talvez também por uma sim-ples razáo: Porque Maria Eugénia se aborrecia. Decerto, gentil-mente ouvia o que eu tentava comunicar-lhe da minha vida profissional, dos casos que me apareciam, dos meus estudos e dos meus interesses. Mas era a gentileza convencional de quem, por exemplo, atende uma visita bastante matadora. Eu era entáo para ela uma visita que fala; um estranho a quem se tem de ouvir com ar de agrado. Os seus olhos olhavam-me, e eu náo via neles nenhuma atencao viva; o sorriso que mais ou menos entreabria a sua boča devia acabar por cansá-la; e ás vezeš, sem dar por isso, Maria Eugénia bocejava. «Sou parvob pensava eu comigo, desesperado, procurando desculpá-la «Isto náo sao conversas para mulheres! Qualquer outra mulher se aborreceria com semelhante conversa. É preciso saber interessá-las, falar á sua sensibilidade...» O esforcp que fazia para me escutar, também o fazia Maria Eugénia para ler os meus livros; isto é: os livros que lhe eu re-comendava. Porque eu me propusera substituir por obras mais sérias, embora recreativas, as eternas novelas sentimentais e futilíssimas que espontaneamente ela escolhia. Breve constatei que náo levava até ao fim a maior parte das obras (precisamente as que eu tinha por melhores) e me mentia dizendo-me haver ter- minado a sua leitura. Quando realmente as lia, näo era senäo pelo mero Interesse da parte anedötica. Assim as confundia com as obras falsas e mediocres de sua natural preferencia, ou as näo distinguia dessas senäo no sentido depreciativo. De modo que toda a sua boa vontade redundava num esforgo esteril e dificil. De-pressa dei conta de se lhe tornarem näo so enfadonhas mas ate penosas, ate humilhantes, as conversagöes alias muito rudimentäres que eu ensaiava a tal respeito... Sim, humilhantes: Bern eu percebia no seu pobre sorriso forgado o vexame de quem näo compreendia, e sentia a täcita condenagäo alheia. Se me respondia, e falava, que dizia senäo inep-cias, puerilidades, ou coisas ouvidas a mim proprio, e deturpa-das? Quando, porem, ficava calada a ouvir-me, era sempre o mesmo ar embaracado, abatido, que näo conseguia dissimular por muito tempo... Näo sei que apontava na sua expressäo, näo sei que de vexado, ressentido, quase ofendido, que a mim proprio acabava por dolorosamente me constranger. Lembrava-me, entäo, que bem fäcil seria aparecer um desses belos palradores vazios, inconscientes e engragados como papagaios, que lhe contasse anedotas estüpidas, a lisonjeasse, a envolvesse na sua vivacidade sem conteüdo — e a seduzisse. Para isso lhe bastaria adular a sua mediocridade e excitar, habilmente, a sua sensualidade... aquela sensualidade cuja sofreguidäo eu täo bem conhecia. Qualquer forca, entäo, rugia ou fervia surdamente dentro de mim; e eu surpreendia-me a odiar minha mulher — como se ja fossem rea-üdade patente essas minhas puras imaginagöes. A verdade e que ora me inspirava uma piedade profunda, tocada de compreensäo e desänimo, aquele ar humilhado e ofendido de Maria Eugenia quando lhe eu falava em coisas acima dos seus reais interesses, ora uma hostilidade complexa e violenta. «Cheguei tar-de, e tarde. Ela foi mal educada, pobre rapariga!» pensava eu, nou-tros momentos. «Pobre rapariga» — era como pensava nela quando qualquer coisa me predispunha ä benevolencia em seu favor. Esta qualquer coisa era geralmente uma ternura (chamemos-lhe assim) de natureza sexual. Mas noutros momentos me atravessava o espirito este grito de raiva e desespero: «Ela e estüpida! e vulgär!» JOSE REGIO 182 183 HISTÓRIAS DE MULHERES Ousarei confessar que até isso, esse grito de raiva e desespe-ro ou o sentirnento que ele exprimia — excitava uma certa minha sexualidade, (nem ouso dizer voluptuosidade, embora o fosse; nem ouso dizer sensualidade) excitava uma certa minha sexualidade perante ela? Ousarei confessar que o amor sensual que me ela inspirava — em dados momentos se ia tornando rancor, sem deixar de ser sensual? e que a minha sensualidade rola-va, assim, nuns abismos de perversáo ou grossaria de que nunca me julgara eu capaz? e que a posse do seu corpo, da sua carne, me náo era entäo senáo uma espécie de sinistra vinganga, repug-nantemente saborosa...? Basta. Ouso dizer tudo, porque me pro-meti a mim proprio dizer tudo neste doloroso depoimento. O que havia de poderoso e terrivel no meu amor sensual por minha mulher, é que se alimentava de tendéncias minhas as mais obscuras e contraditórias; ou simplesmente variadas. Assim, por exemplo, bem eu sabia que de algum modo, ou ponto de vista, ela näo era estupida. Mas era como se o fosse para certas minhas pretensöes, aspiragöes, inclinacöes, que eu tinha por superiores. E pouco a pouco, independentemente dos momentos perturbados em que os meus sentimentos para com ela atingiam uma comp li-cagäo, uma estranheza, que a mim proprio me surpreendiam,— eu ia, permanentemente, deixando de a estimar. Sentia que nunca chegaria a fazé-la interessar-se pelo meu mundo profissional e cultural; ou por mim como homem desse mundo. Assim o meu mundo que eu supunha mais alto lhe ficava fechado... e eu tinha de me fechar nele, só. Desanimei. Desisti. Desisti, acusando-me embora de näo saber esperar, dar tempo ao tempo; continuando, embora, experiéncias e tentativas que de antemäo sabia improfi-cuas. Como um náufrago me agarrava a uns Ultimos recursos da esperanga que já náo possuía. O caso é que, se eu tomasse Maria Eugenia nos bragos e a sentasse nos joelhos, e brincasse com ela como se brinca com uma amante, oferecendo ä voluptuosidade pequenas e saborosas satisfagöes excitantes doutras mais completas, ela seria feliz. O caso é que seria feliz se a deixasse palrar (e entäo se exprimia com vivacidade, graga, pitoresco, verve.,.) sobre as coisas que a ela em verdade lhe importavam, e a mim näo: questöes com as criadas, bisbilhotices a respeito dos vizinhos, os namoros ou ca-samentos das amigas, os pequeninos escändalos da roda das nos-sas relagöes, bagatelas de toilette, divertimentos... Mas ai, nem sempre estava eu agora disposto a fingir interessar-me por tais ninharias, que ma tornavam vulgar! Nem sempre me inclinava a condescender com a sua mediocridade. E entäo, pelo meu ar de enfado, o meu siléncio, ou mesmo qualquer comentário irónico ä importäncia por ela dada a tais motivos de conversa, Maria Eugenia, subito, caia em si: percebia que me estava enfadando. Tentava outros assuntos... mas como era inepto o que dizia! Como era afectado, ou constrangido, o tom com que o dizia! Bem pre-ferível té-la deixado falar das coisas que em verdade lhe importavam — as do seu pequenino mundo. Decerto, äs vezeš me recriminava eu proprio: Por que näo deixá-la ser como era? Näo era amorosa, meiga, alegre? Näo me encantava, dantes, nela, o que me aborrecia agora? Tinha eu alguma grave razäo de queixa contra ela? Haveria coisa mais insensata que os meus ciúmes, nascidos de pequenos motivos afinal naturais em qualquer mulher nova e ardente? E näo seria feliz com ela qualquer outro — outro que näo tivesse as minhas esquisitices e as minhas exigéncias? alguém que näo tomasse por superioridade propria o que bem podia ser estreiteza de espíri-to, deficiéncia de compreensäo, falta de caridade e verdadeiro amor...? Desgragadamente, eu era assim! E näo me queria corrigir, pois antes me queria sal var dos abismos a que me empurravam as necessidades do casamento. Debatiamo-nos, pois, num circulo fechado, moviamo-nos num beco sem saída. Vai, uma vez, ela disse-me: — Já näo gostas de mim como dantes! — Es tonta — respondi eu, distraido. — Näo, — tornou ela — bem sei que näo gostas! Serei muito estúpida... muito pouco ilustrada... mas entendo algumas coisas. Olhei-a, e, de repente, vi-a: tal como a via dantes, quando näo sabia que espécie de amor ela me inspirava: pequenina, frá- JOSÉ REGIO 184 185 HISTÓRIAS DE MULHERES gil, encantadora, com os seus olhos volúveis na cor como água, os seus cabelos ondados raiados de reflexos de oiro, o seu pesco-co alto e fino, o seu que de tocantemente pueril... Mas estava séria, agora, e o seu olhar perscrutava-me, cheio de tristeza e recri-minagoes. — Náo gostas! näo gostas! — repetiu com uma espécie de raiva. — Maria Eugenia...—balbuciei, abalado — ora vejamos... — Náo gostas! Mas que mal te fiz eu? Anda, diz: Que tens tu contra mim? Levantou-se, excitada pelas suas próprias palavras. Mas, ines-peradamente, rompeu num choro que a sufocava, e de novo caiu no seu maple, Tomei-a nos bragos, apertei-a contra o peito, embalei-a, fa-zia-lhe festas como quando se quer calar uma crianca dorida, e, ao mesmo tempo, lhe chamava tonta, lhe dava diminutivos mei-gos, um pouco ridículos, e lhe enxugava as lágrimas com beijos. Era a primeira yez que a via chorar; e ve-la chorar tornava-se-me intolerável. Parecia-me que ela nunca devera chorar. — Bern sei que näo sou mulher para um hörnern como tu... — murmurou contra o meu peito, por entre o seu choro que parecia näo ter fim. — Cala-te, cala-te... Acabei por a levar ao colo para o nosso quarto. Nos meus bracos, ela recuperava o seu ardor e a sua alegria. E era semprc como se uma forga terrível e alheia — um impeto que me espanta-va, vindo näo sei donde — convulsionasse aquele corpo quase de crianca; no entanto firme, resistente, modelado, completo, de ver-dadeira mulher. Outra forga havia na minha carne que cor-respondia äquela, e assim eram possiveis os nossos entendimen-tos provisórios, apesar do nosso desacordo, quase permanente, noutros campos. Dessa vez, cheguei a esperar que (mas näo sabia como, nem porque) se iniciasse entre nos uma uniäo doutra natureza. Pois näo haveria nada, a näo ser aquele delirio em que nos misturá-vamos, nada que transcendesse as nossas incompatibilidades? Cheguei a lembrar-me de que fora educado numa familia reli-giosa — e houvera urn tempo em que também fora religioso: Talvez a religiäo tivesse alguma palavra a dizer-me que me ilumi-nasse, me encaminhasse... X Antes comegou, porém, entre nós, uma fase ainda mais estra-nha das nossas relagoes: Mentíamo-nos mutuamente; e ambos nos adivinhávamos muito bem urn ao outro. De contínuo surgiam entre nós pequeninas questöes, ridículos desacordos, a propósito dos quais nos fulminávamos com olhares secos e palavras de fe-rozes subentendidos. Mas logo abafávamos a profunda animosi-dade que procurava respirar por esses breves escapes; — e das coisas importantes que verdadeiramente nos separavam, näo, näo se falava! Sorríamos forgados, pálidos, ainda, da violenta emoeäo que qualquer pretexto servia a solevar em nós, e desesperados, cada vez, porque mais uma vez denunciávamos um ao outro sen-timentos profundos que quereriamos esconder, aniquiiar... Em publico, esta triste comédia requintava. De modo que toda a gente, incluindo meus sogros, continuava a considerar-nos urn dos mais felizes casais conhecidos. Intimamente, eu agradecia a minha mulher nunca se ter abrido com os pais: Tinha uma espécie de subtil pudor da nossa desgraca. Na tendéncia, porém, que tantas vezes me dominava, para culpar Maria Eugénia, pensava: «Ela näo se cala senäo por vaida-de! Näo quer que se saiba que nos näo entendemos... näo quer dar esse gosto äs amigas. Nem quer perder a sua posigäo social, ou as toilettes que lhe eu compro, ou o seu publico prestígio de esposa amada e amante...» Noutros dias, pensava doutro modo: «Tera ela, alguma vez, sondado a realidade do nosso desentendi-mento? Sem dúvida, em alguns rápidos momentos se tem aper-cebido, ou parece ter-se apercebido, da profundeza das nossas incompatibilidades. Mas esses momentos passam. Bem capaz é ela de os esquecer: ě täo pueril! täo futil! Decerto lhes näo vé ne- JOSÉ REGIO 186 187 H1STÓRIAS DE MULHERES nhuma continuidade verdadeira. Quem sabe se näo julgará rela-tivamente feliz o nosso matrimonio?» Entáo me vinna, äs vezeš, um movimento de amor —verdadeiro amor— por minha mu-iher: Desejava que assim fosse, e ela vivesse enganada; ou, pelo menos, näo soubesse ver a verdade toda. Poderia julgar-se mais ou menos feliz, e só eu me sentiria desgracado. Tantas coisas!, todavia, me demonstravam a inconsisténcia desta interpretacao! Quanto ao mais, eu vivia, por assim dizer, num. desleixo. Lutava por manter a minha reputacäo profissional, porque os gastos da nossa vida o exigiam: levávamos uma vida brilhante. Mas tra-balhava sem prazer, ou procurando no trabalho o único prazer duma evasäo ao meu infortúnio doméstico. Também ia desespe-rando de ter o filho que tanto desejava, como um laco que ver-dadeiramente nos unisse, minha mulher e eu: como uma santifi-cacáo daquela nossa odienta mancebia. «Ela é esteril!» gritava de mim comigo «é estéril, como,..» Nem ousava completar o meu pensamento, por envolver uma comparacäo brutalmente ofensiva para minha mulher. A hipótese de a esterilidade ser minha, näo a queria admitir. Por breves alusöes que irresistiveímente era arrastado a fazer, Maria Eugenia entendera o meu desejo. O seu desejo, dela, é que näo parecia coincidir muito com o meu. Pelo menos, disso tive uma declaracäo cabal. Uma tarde, ä mesa, falávamos duma vizi-nha que era mäe pela sexta vez. Maria Eugenia observou: — Seis filhos! Deus nos defenda. Eu fiquei silencioso. Mas ela percebera que a minha vontade natural seria talár, desabafar. E por uma dessas pequeninas, po-derosas tentacóes demoníacas de nos exasperarmos um ao outro íargando remoques, sorrisos ou risos envenenados, gestos reticen-tes, Maria Eugenia insistiu, com uma espécie de sarcasmo: — E ela é capaz de estar satisfeita! — E capaz. Toda a cena seguinte se poderia ter evitado, se me tivesse eu ficado por aqui. Cedi ao mesmo impulso nocturno e hostil a que ela cedia: — E capaz, e é natural. — Natural, com seis filhos?! Bern eu compreendia que ela näo procurava senäo obrigar-me a falar. Quisera ficar calado, mas näo podia resistir. Depois dum pequeno siléncio, disse: — Olha, ao menos um, é quase indispensável num casal. E há mulheres que até näo desgostam de ter mais. Nasceram para mäes. Näo achám isso uma desgraca, ter fiihos... Ela ficou um momento sem dizer nada. E eu via-lhe os de-dos um pouco gordos, de unhas pintadas, (porque ela tinha os dedos um pouco grossos — pormenor em que só tarde reparara...) tremerem sobre o fruto que näo conseguiam descascar. De repen-te, sem poder conter-se, ergueu-se de ímpeto. Voltou-se para mim, com uns olhos fixos: — Eu näo sou dessas, näo é verdade? näo é o que queres dizer? Pois é verdade! prefiro näo estragar o meu corpo. Esta confissäo brutal indignou-me. Levantei-me também. E, sentindo-me empalidecer, perguntei-lhe: — Só o teu corpo te interessa? Estávamos um diante do outro, muito perto, olhando-nos com ódio; com verdadeiro ódio. Essa alusäo ao seu corpo, ä beleza do seu corpo que näo queria estragar, fizera rugir em mim todos os meus chimes recalcados. Lembrei-me, neste momento, dos ho-mens desconhecidos que ela olhava na rua, dos homens desco-nhecidos que a olhavam a ela, e a desejavam... ■— E a ti? — disse-me ela — o meu corpo já te näo interessa? — Interessa-me de mais! — gritei sem saber o que dizia. Pequenina, com o seu pescoco alto, a leve cabeca airosa er- guida numa atitude ameacadora, ela fazia-me pensar, agora, numa vibora que de sob os meus pes se erguesse para me morder. — É isso o que te pesa, näo é? ainda teres algum interesse por mim? Eu voltara o rosto para a näo ver: era-me demasiado penoso vé-la, Procurava reprimir as palavras grosseiras, violentas, que numa onda me vinham ä boca. Por fim, só lhe disse: — Estás satisfeita? Provocaste esta cena! Mas cuidado, Maria Eugénia... JOSE REGIO 188 189 HISTÓRIAS DE MULHERES Quando voltei a casa, Maria Eugenia estava doente, de cama. Falou-me com o rosto de lado, numa voz dorida, sem erguer os olhos para mim. Pediu-me que a deixasse sozinha essa noite. Dormi no quarto de hóspedes. Andámos ressentidos e magoados durante uns dias; embora nos falássemos, e coméssemos e dor-missemos juntos. Depois, recomecou a nossa vida normal, Normal? Sim, eu quase me ia habituando a tal género de vida. Esforcava-me por a considerar mais ou menos normal. Näo vive-riam assim a maior parte dos casais? E voz corrente que entre todos os casados há pequenas zangas, discussöes, amuos... e depois tudo se resolve, precisamente em virtude de serem casados. O leito comum resolve muitas pendéncias, — näo é esta a opi-niäo das próprias boas e honestas mäes de família? Estas coisas lembrava eu a mim proprio, no intuito de oferecer quaisquer sa-tisfagöes ao que em mim havia de mais superficial, social, ou näo sei que. A verdade, porém, é que algumas vezes tais razöes ou satisfagöes me pareciam simplesmente repugnantes! Via, entäo, com insofismável clareza, o fracasso da minha vida. Quanto a Maria Eugenia, parecia adaptar-se muito melhor. As pequenas questöes repetiam-se frequentes, por qualquer moti-vo ou até sem motivo. Como que havia entre nós um permanente e desconhecido motivo de luta. Quando a questäo era mais tempestuosa, minha mulher descobrira o meio de me castigar: Recolhia ä cama; e falava-me, depois, com o rosto de lado, numa voz dorida, sem erguer os olhos para mim, — acabando por me pedir que a deixasse sozinha essa noite. Afinal, näo era só essa noite. Embora nos falássemos no dia seguinte, (äs vezes, num torn terrivelmente afectado) Maria Eugenia, depois do jantar, dizia-me, simulando uma naturalidade e urn desprendimento que bem sa-bia näo me convencerem: — Vens tarde?... Eu continuo adoentada. Tenciono deitar-me cedo. Boa noite! Levava a perversidade a ponto de me estender a boca. E eu beijava-a com uma onda de raiva a dementar-me, porque já sabia o que significava aquilo: De regresso, acharia fechada a porta do nosso quarto; e teria de dormir mais uma, duas, trés noites, no JOSE REGIO 190 quarto dos hóspedes. Isto humilhava-me até diante das criadas. Quando, ä noite, Maria Eugenia repetia a cena, estendendo-me a pequena boca de lábio carnudo, rubro, algumas vezes subiu em mim o desejo de lhe morder essa boca, 1ha morder até sentir o gosto do seu sangue; e tomando, depois, nas mäos, nas minhas mäos, o seu pescoco alto, delgado, cor de marfim, apertar, aper-tar... Maria Eugenia conseguia exacerbar a este ponto o meu ódio por ela (ou pelo que nela eu näo podia suportar) e o meu desejo da sua carne. Entäo, para me vmgar, e também porque o sentia, eu gritava mentalmente, com furor e desespero: «Casei com uma prostituta! Ela sente como uma mulher perdida...» Para voltar, depois, a ser recebido no nosso quarto, tinha de fazer a corte a minha mulher. Eu conhecia o seu temperamento: Sabia que, para me repelir de si, ela fazia violéncia sobre si propria. Isto exaspe-rava ao mesmo tempo o meu furor e os meus desejos. Após a reconciliacäo, o nosso amor, ou como se lhe cháme, atingia o delírio dos primeiros tempos; mas infinitamente requintado, com-plicado, por tudo o que depois viera. Assim ia correndo essa nossa vida que, noutros momentos, me esforcava eu ainda por considerar mais ou menos normal! Este era o lar que tinha, — eu que sonhara levar uma vida limpa, corajosa, activa, calma apesar dos inevitáveis embates, iluminada até ao fim pelo amor santificado duma verdadeira esposa, o res-peito dos filhos, a honestidade do lar... E, äs vezes, esta perple-xidade pungente me assaltava: «Quais seräo as minhas culpas em tudo isto? Sem dúvida também tenho culpas, e grandes...» Para esquecer, tanto quanto possível, o descalabro da minha uniäo conjugal, procurava remergulhar no trabalho. Ai! o meu in ter esse era forgado, e continuamente perturbado pelos episódios domés-ticos. Por sua vez, Maria Eugenia distraía-se. Recomegara a frequen-tar relacóes de solteira que o nosso casamento interrompera: relacóes que eu estava longe de aprovar inteiramente, por nem sempre me parecerem bem escolhidas e recomendáveis. Tinha muitas amigas, que a acompanhavam quando eu näo podia. Tornara-se uma mulher extremamente elegante e mundana; em- 191 HISTÓRIAS DE MULHERES bora, para o meu gosto e para o meu senso, houvesse na sua elegancia algo de extravagante, ou exibicionista, que me näo parecia muito proprio numa senhora casada, nem muito distinto no melhor sentido do termo. Náo me atrevia a criticar directamen-te nem as suas toilettes nem as suas relagöes; mas ela sabia per-feitamente o que eu pensava a tal respeito. Bela, estava mais bela que nunca! (se é que, na verdade, era bela). Quero dizer que mais do que nunca era eu invejado pelos outros homens como seu feliz possuidor legítimo. Aos olhos dos estranhos, e mercé duma espécie de tácito acordo em virtude do qual nos tratávamos, diante deles, com uma simulacäo que os enganava, — continuávamos passando por um casal feliz. É táo fácil enganar o comum das pessoas estranhas! Algumas vezeš, no meio do nosso fingimento de felicidade conjugal, jogávamos um ao ou-tro as mais aceradas ironias, ou trocávamos, até, olhares quase ferozes: ironias, olhares, que alias nos náo atrevíamos a trocar quando sozinhos, a näo ser nos momentos de franca luta. Mas ninguém compreendia nada. XI Na realidade, trés coisas me acorrentavam a minha mulher: O desejo, pois continuava eu a desejá-la como se deseja uma amante. Sem dúvida correspondia o seu tipo físico, a sua cárne, a näo sei que obscura e poderosa preferencia da minha. O ciúmé, pois nunca mais deixara este sentimento de estar ligado äs mi-nhas relagöes com ela; e a sua elegancia, o seu género de vida, as suas relagöes, os seus divertimentos sem mim, o que eu via nos olhos dos outros homens quando a fitavam, o que julgava ler nos dela quando, por vezes, de relance examinava um simples desco-nhecido que nos rogava na rua, e até de aspecto que se me afigu-rava reles!, — tudo contribuía a exacerbar esse meu sentimento doentio. E uma terceira coisa muito diferente, pois era de carácter moral: a dolorosa dúvida sobre as minhas responsabilidades no nosso desentendimento. Sim, algumas vezes me vinha do fundo JOSE REGIO 192 de mim este problema: «Terei eu feito alguma coisa em favor de ela?» E ä volta desta pergunta se multiplicavam as minhas per-plexidades: «Teria eu tido a devida persisténcia no quase nada que ensaiara? Tentara, a valer, salvar a nossa uniäo? Eu que so-nhara contribuir para o progresso do mundo, para a reforma da criatura humana, — em que medida contribuíra, realmente, se-quer para o progresso moral da mulher com quem casara?» Um grande cansago, porém, um grande cansago, um grande desäni-mo e um desespero antecipado acompanhavam quaisquer minhas novas tentativas de «recomecar o nosso casamento». «A mulher com quem casara!» pensava, do mesmo passo «Mas que sabia eu, sequer, do seu passado, da sua vida de solteira, da sua verdadeira personalidade, das pequenas aventuras que já ti-vera, ou näo tivera, quando a tomara por minha mulher? Quem me garantiria que, vendo-a passar pelo meu brago, nos näo se-guisse com olhos irónicos um ou mais de um hörnern?» Tais eram os torvos lacos que, näo obstante a separagäo cada vez mais escavada entre nos, profundamente me prendiam ainda a Maria Eugenia. Assim iamos vivendo numa alternativa de pequeninas questöes, palavras amargas ou de sentido duplo, en-saios mais ou menos frustrados de provisório entendimento, ex-plosöes de ressentimento e ódio, reconciliagöes só possibilitadas quer pelas exigéncias da carne, quer pela cobardia ante o escän-dalo e a opiniäo publica. Ate que depois, qualquer coisa se me revelou de mais terrivel, — que simultaneamente me poderia pren-der a Maria Eugenia por cadeias ainda mais sinistras, ainda mais tristes, e impossibilitar de vez toda a uniäo moral... Uma noite, havia espectáculo de gala no Teatro Nacionál. Tínhamo-nos prevenido com bilhetes. Embora, para mim, aquela vida näo fosse viver, (e talvez por isso mesmo) frequentávamos toda a espécie de diversöes, continuando a levar uma brilhante vida mundana aos olhos de toda a gente. Viviamos num esplén-dido primeiro andar, näo tinhamos filhos, oferecíamos sempře a mesma aparéncia dum casal feliz. Apesar das palavras, das ex-pressöes, das atitudes, das cenas em que, tanta vez, me revelara Maria Eugenia sentimentos näo menos assustadores que os meus 193 HISTÓRIAS DE M ULHERES proprios, ainda hoje me pergunto se ela teria verdadeira cons-ciencia da profunda incompatibilidade que entre nös se manifes-tava. Era täo pueril, täo fütil, täo propensa a divertir-se, täo fäcil de se acomodar a qualquer vida que lhe näo roubasse as suas vaidades femininas, os seus prazeres mundanos... E de cada vez que nos reconciliävamos, parecia esquecer tudo. Ora nessa noite, eu vestira-me para o espectäculo. Esperava no meu gabinete, dispondo uns livros, quando Maria Eugenia surgiu ä porta, embrulhada num casaco de luxo que näo enfiara. Hä uns dias que estävamos em boas relagöes. Mais uma vez — ainda mais uma vez! — prometera eu a mim mesmo consa-grar-me ä regeneraqäo de minha mulher. Eis o termo que espon-taneamente me acudia ao espirito, quando resolvia empreender uma educagäo que ninguem lhe dera no devido tempo. Sorrindo, com os seus olhos fosforescentes erguidos para mim, ela deixou cair-lhe aos pes o agasalho de luxo. Tinha um vestido cor de fogo, sem enfeites, que, porem, lhe moldava todo o corpo franzino e solido, como se ao mesmo tempo o cobrisse e o des-nudasse. Mas os bragos ficavam-lhe nus, completamente nus os ombros, e a nu o comego dos seios, entre quais briihava uma rosa de crisölitas. Sempre sorrindo, Maria Eugenia voltou-se. O decote desda-lhe ainda mais, as costas ficavam-lhe nuas quase ate ä cinta. Näo sei bem o que se passou em mim; senti uma onda de sangue queimar-me todo o rosto. Era milagre aquele vestido segurar-se, näo cair. Por isso mesmo a imaginagäo via inteiramente nua aquela mulher, (por baixo dele parecia näo haver nada) embora so o estivesse em parte. Maria Eugenia voltou-se de novo. O mesmo sorriso de satis-fagäo lhe pairava nos läbios sangrentos e polpudos; e os seus olhos brilhavam como as crisölitas da pequenina rosa entre os seios. Sim, estava provocadoramente bela! — e sabia-o. Quando o sabia e que tinha aquele sorriso nos läbios, aquela fosforescencia nos olhos. «Que falta de senso!» pensei «Mas esta mulher näo com-preende... Sera isto um desafio que me langa?» Eu näo sabia se, na realidade, aquele vestido cor de fogo escandalizaria alguem. A mim, escandalizava profundamente. O sorriso como que se embaciou na boca pintada de Maria Eugénia; (ela continuava a pintar só os lábios); e depois ficou parecia colado, empedernido, constrangido como o dum mane-quim. Decerto, alguma coisa lera Maria Eugénia no meu rosto, que lhe regelara a satisfagäo com que se me viera exibir. — Nao gostas...? — perguntou-me timidamente. — Maria Eugénia, — disse-lhe eu, sério — pode ser que esse vestido seja lindo. Mas näo me parece muito proprio... Näo, näo gosto dele para ti! Um ligeiro rubor lhe subiu ä fronte, os seus olhos, de subito, ficaram duros; e, ao cabo duma pausa, murmurou: — Já devia esperar isso... — Entäo... por que o escolheste? por que o mandaste fazer, se já suspeitavas que eu näo gostaria? — Náo me visto só para ti... ou conforme o teu gosto. Näo tens grande gosto nestas coisas. — Maria Eugénia, — tornei, esforgando-me por domar a vio-léncia que me cachoava nas veias — bem sabes que já és uma mulher casada... uma senhora... E eu quero-te só minha! Tenho ciúmes, bem sabes, quando os outros alguma coisa podem ver, sequer, da tua beleza. Se me quiseres fazer a vontade... Ela chegou-se a mim, passando-me os bragos nus ä roda do pescogo: — Faz-me tu a vontade. Tu percebes pouco de modas. Asse-guro-te que o vestido está perfeitamente proprio. E se me achas linda com ele... Rogava-me os bragos nus pelo pescogo, pela cara, chegando o seu corpo ao meu com uma gentil reserva que imitava o pu-dor, e era, sobretudo, preocupagáo de näo amarrotar o seu belo vestido. Como doutras vezeš, em que ela assim me vencia, já os meus bragos apertavam a sua cintura contra os meus flancos, e os meus lábios, ainda sem beijar, passavam devagarinho na sua carne. De repente, afastei-a de mim com um sobressalto de revolta: — Vamos, Maria Eugénia! Tenhamos juízo. Tu tens outros vestidos. Näo te levo comigo assim vestida. JOSE REGIO 194 195 HISTÓRIAS DB MULHERES — Procurarei on tra companhia — disse ela, fechando-se re-pentinamente num tom seco e rispido. Passou os dedos, muito de leve, pelo cabelo, a compor-se, e apanhou o casaco do chäo. Deu urn passo para a porta, ia sair, e eu gritei: — Maria Eugénia! — Que é? — Queres que te diga que acho esse vestido pouco decente? Näo basta dizer-te que näo gosto dele? — Haverä quem goste. — Näo me fagas perder a cabega, Maria Eugenia! Tu és uma mulher casada, e honesta, näo és uma estrela de palco! — Olha que näo sei se sou honesta — disse ela com uma frieza propositada. Cresci para ela, a tremer: — Tu calas-te?! — Näo! — repetiu ela com o mesmo furor concentrado, afron< tando-me — näo sei! näo sei se sou uma mulher honesta! Näo gosto de agradar só a ti. E näo é o que pensas de mim? anda, diz lä, näo é? Eu sabia que ela näo gritava isto senäo para se vingar, ten-do compreendido que me exasperava e ofendia até ao mais rai-voso desespero. Nunca, na verdade, me parecia täo inteligente como quando, erguendo para mim a sua pequena cabega airosä de vibora, me fazia frente dizendo coisas destas. Entäo, o mei£ brago levantou-se de repente, e os meus dedos estalaram na sua face. — Oh!—fez ela com um pequeno gemido sufocado. Vadlou, encolhendo-se um pouco contra a parede, como no receiö de que eu lhe batesse mais. Depois levou os dedos, de unhas pintadas, ä face onde aparecia uma roseta, e os seus olhos es-tavam ab er tos para mim, fitos numa expressäo de idiotia que eu nunca lhe vira. Os seus seios seminus, onde brilhava o ade-: rego de crisólitas, ergueram-se numa espécie de suspiro solu-gado, como äs vezes tern as criangas mimalhas. Entäo, a suä vista tornou-se-me intolerável. Saí para o corredor. Dei uns passos, ao acaso, fui contra um móvel, estive parádo uns instantes, sem pensar em nada. Lembrei-me, nem sei como, de averiguar se as criadas teriam dado fé da cena. Fui até ao fim do corredor, e ouvi-as falar na cozinha. «Näo deram por nada!» pensei quase satisfeito. E voltei para dentro do meu gabinete. Maria Eugénia estava ainda na mesma posigäo, com os dedos de unhas cor de purpura na face inflamada. Meio en-colhida, e apesar do seu belo vestido de gala, parecia agora insignificante, frágil, indefesa, como uma crianga. De repente, sem relagäo nenhuma com esta imagem, vi-a vestida de noi-va, com um sorriso tímido e feliz, tocantemente constrangi-do, — quando lhe eu metia o anel no dedo. Atirei-me entäo a seus pés, abragando-a pela cintura contra o peito, num frene-si furioso: — Perdoa-me! perdoa-me... — Deixa-me — gemeu ela rompendo, finalmente, em solugos. — Por causa disto! por causa disto! — repetia eu rasgando o seu vestido com as unhas e os dentes. E ao mesmo tempo a es-magava contra mim, a sacudia como querendo embalá-la, cobria de béijos esse mesmo seu vestido, e lhe levantava a cabega para lhe sugar a boča ou beber as lágrimas nos olhos. — Deixa-me... — continuava ela a gemer, quase nua nos meus bragos. E de vez em quando: — Isto náo tem jeito! Temos de acabar com isto! Mas näo sabia defender-se. Parecendo-me, entäo, que os meus transportes poderiam aterrá-la, comecei a falar-lhe mais branda-mente, a deitar as culpas sobre mim, a prometer-lhe um futuro completamente diverso, convencido, na verdade, de me ser pos-sível tratá-la de aí em diante como ela deveria ser tratada, como uma pobre crianga que era preciso proteger, — tudo no meio de carícias agora extremamente demoradas, voluptuosas, instintiva-mente requintadas... E nessa noite, o nosso delírio ultrapassou o das nossas pri-meiras noites de amor. Nunca o meu prazer fora täo profundo; e eu bem sabia que o dela igualava o meu. JOSÉ RĚGIO 196 197 HISTÓRIAS DE MULHERES XII Quando, na manhä seguinte, acordei do longo entorpecimen-to como quem volta dum abismo de inconsciéncia, a lembranca de tudo caiu sobre mim, sufocante. A minha impressäo era de ser um homem perdido, amarrado a uma mulher perdida. Algo de irremediável e tenebroso se dera na minha vida, — que eu já náo podia remover. E tudo via, agora, com insofrível clareza, sen-tado na cama ao lado de Maria Eugenia, que ainda dormia: Que poderia ser, de ora em diante, a nossa vida? Sem dúvida se repe-tiriam, com mais ou menos longos intervalos, as cenas da véspe-ra. Eu habituar-me-ia a bater-lhe, tratando-a, nesses momentos, como um carroceiro ou um souteneur trata a amante. Ela habi-tuar-se-ia a que eu lhe batesse. Mais facilmente se igualaria, essa mulher que era minha mulher, a desgracada amante do souteneur ou do carroceiro, do que se tornaria a esposa que eu sonhara. E depois viriam as reconciliagöes, as lágrimas, as promessas, as carícias, o delírio no lei to comum. O nosso prazer complicar-se-ia, exasperar-se-ia pela propria lembranga das brutalidades anteriores... A nossa triste uniäo cimentar-se-ia da nossa propria igno-mínia, Viveríamos atolados na indignidade, na perversao, — c ricos, sem filhos, oferecendo as mais brilhantes aparéncias mun-danas aos olhos exteriores. Ou, entáo, as eriadas acabariam por dar conta do nosso viver. Falariam. Todos os nossos conhecidos saberiam tudo, e comentariam «a cöisa» entre si, embora, claro está, como gente condescendente e bem educada, (demais a mais experiente de vários casos parecidos — com ou sem brutalidades— em vários casais) perfeitissimamente fingissem connosco nada saber. Eis o lar que me estava destinado, a mim que sonhara um verdadeiro lar! Quando o remoer destes pensamentos terrivelmente lúcidos se me tornou insuportável, deixei-me escorregar da cama. Abafa-va, agonizava nesse quarto conjugal! Entreabri as portadas da janela, entrou um raio de sol. O dia já devia ir alto. Contemplei, entáo, demoradamente, minha mulher. Ela meneara-se um pou-co, mas continuava dormindo. Tinha um brago nu de fora da roupa, estendido para o meu lado, e, como estava mais exposto ä luz, eu via uma veiazinha azul que lhe vinha ter ao pulso. O pes-cogo quase demasiado longo (e que, todavia, náo chegava a sé-lo) emergia, cor de marfim, grácii e ao mesmo tempo firmě como um caule, das rendas amarrotadas da camisa. E de narinas no ar, a boča entreaberta, a cabega derrubada sobre os cabelos desman-chados, solevando e abaixando o lengol fino com o arfar caden-ciado do seio, ela tinha uma expressäo de tranquilidade que me pareceu insolente, com näo sei que de cändido, ou satisfeito, e, ousarei dize-lo, bestial... Os meus olhos foram de ela para todo o quarto; encontra-ram, quase esfrangalhado no tapetě, o vestido cor de fogoj depois recairam nela. Atraia-me aquela boca meio aberta, que me apete-cia, mais uma vez, morder. Mas aquele pescogo alvo e tentador, veio-me ideia de o tomar nas mäos e apertar, apertar... «Maria Eugenia» disse baixinho, comigo. Tive uma espécie de subito pavor, juntei a minha roupa, e fui-me arranjar para o quarto de banho. Depois, saí para a rua. Estava um dia admirável; ou devia de estar um dia admirável: porque a mim, aquele sol magnífico parecia-me estranho, frio apesar de espalhar calor e luz. Também aquele céu azul me näo dizia nada. Chamei um taxi, mandei que me levasse para a Baixa. No Rossio, porém, todo aquele movi-mento da vida usual me deu a mesma impressäo insólita de per-tencer näo ao mundo täo meu conhecido, mas a um mundo sepa-rado de mim, alheio, longinquo apesar de täo perto. Eu andava como sonämbulo no meio de tudo; e, acordando a espagos, via as pessoas apressadas que se cruzavam, os pequenos grupos nos pas-seios, os eléctricos subindo ou descendo com a sua alegre estridéncia de ferragens e campainhas, as frontarias dos cafés e as fachadas das casas, os automóveis passando rápidos e buzinan-do. E sempre aquela animagäo me parecia já nada ter comigo, — por eu andar vivendo como num mundo ä parte. Compreendi, entäo, que me näo saira um momento da cabega, ou das profunde-zas do ser, aquele encadeado de sinistras previsöes que, no meu quarto, me dera uma sensagäo de abafamento: «Que poderia ser, de ora em diante, a nossa vida? Sem dúvida se repetiriam, com JOSE REGIO 198 199 HISTÓRIAS DE MULHERES mais ou menos longos intervalos, as cenas da vespera. Eu habituar-me-ia a bater-lhe, tratando-a, nesses momentos, como um carroceiro ou um souteneur trata a amante. Ela habituar-se-ia a que eu lhe batesse. Mais facilmente se igualaria, essa mulher que era minha mulher, a desgracada amante do souteneur ou do carroceiro, do que se tornaria a esposa que eu sonhara. E depois vi-riam as reconciliagoes, as lagrimas, as promessas, as caricias, o delirio no leito comum.» Etc., etc. Meti-me noutro taxi, voltei! para casa. Entrei sub-repticio, procurando amortecer o ruido dos passos a ver se conseguiria passar desapercebido de Maria Eugenia. No corredor, a criada, que me nao esperava, deu um pequeno grito. Impus-lhe silencio com o dedo nos labios, furioso. Pelos olhos que ela esgazeou para mim, senti que o meu aspecto a amedrontava. Passando perto da casa de banho, ouvi Maria Eugenia cantarolar dentro. Aproveitei, entao, a oportunidade, e fui buscar uma pequena mala; enchi-a, quase ao acaso, de roupa minha que remexi nas gavetas, desci as escadas, deixei a mala junto a porta. Voltei a subir sem rumor, fechei-me no meu gabi^-nete. Peguei duma folha de carta, e escrevi: Maria Eugenia Tenho de partir, Saio de Lisboa. Nao posso continuar a viver com a mulher contra quern levantei a mao, nem essa mulher deve poder continuar a viver dignamente comigo. Perdoa-me e procura ser feliz. Muito breve receberds outras explicacdes e terds noticias minhas. Nao te aflijas. Assim e melhor para ambos. Assinei, meti isto dentro dum envelope, escrevi fora: para a Maria Eugenia; deixei a carta sobre a minha mesa de trabalho e encostei a porta do gabinete. Na realidade, eu nao compreendia claramente que so entrara em casa para fazer estas coisas senao a medida que as ia fazendo. Passava eu no corredor, e Maria Eugenia saia do quarto de banho. Era espantoso! Vinha toda fresca no seu roupao de seda, parecia j& se nem lembrar da nossa tempestuosa cena da vespera. — Ah! — fez ela — pensei que tinhas saido. Mas que tens? — Eu?! nada. — Estás com uma cara esquisita. Mas näo tinhas saido? — Tinha. Voltei porque precisava deste livro. — Livro? que livro?! Eu näo trazia livro nenhum comigo, nem pasta ou o quer que fosse onde o metesse. Ri forcado, esbocei o gesto de palpar o bolso interior do casaco. — Quero dizer: uns papéis. Hesitei um instante, disse: — Ate logo. Suavemente, ela poisou a mäo no meu peito. — Näo tens boa cara... E baixando um pouco a voz: — Ainda é por causa das cenas de ontem? Näo jurámos es-quecer isso?... para sempre? Näo vamos agora ser sempre feli-zes?... Fitei-a com uma intensidade que eu proprio sentia. E de repente, agarrando-lhe a cabeca entre as mäos trémulas, mordi-lhe a boca de modo que ela se debateu um pouco. — És bruto... — gemeu, entre ressentida e agradada. A sua voz tinha um torn de magoada meiguice, um amolecimento que eu bem conhecia. Foram estas as ultimas palavras que lhe ouvi. E, mais uma vez, eram palavras que profundamente chocavam näo sei que de muito delicado no meu ser. Näo obstante, correspondiam perfeitamente ä violéncia do meu gesto. XIII De casa de meus pais, aonde me acolhera, escrevi a minha mulher propondo-lhe o divórcio, com todas as condicöes favorá-veis para ela e todas as culpas sobre mim. Houve protestos, es-cändalos, tentativas de entendimento, etc. Mas eu consegui liber-tar-me, e em parte salvei a dignidade da minha vida. Minha ex-mulher continuou a ser uma mulher da moda, embora num JOSE REGIO 200 201 HISTÓRIAS DE MULHERES meio já inferior (no meu entender) ao que fora nosso. Parece-me que teve amantes; parece-me nem sei que mais. Sempre evitei voltar a encontrá-la, voltar, sequer, a vé-la, — o que nem sempre me foi possível — mas näo desconhecer inteiramente a vida que ievava. Isto, näo podia! Tinha de saber que ela näo descia de todo, nem era desgragada. Creio que, de čerta maneira, comecei a amá-la um pouco melhor, desculpando-a como se desculpa quem mor-reu, — depois que nos separámos. Ainda bem!, ainda bem que ela tem sabido manter, até hoje, uma aparéncia de dignidade mundana sobre a verdadeira decadéncia moral que é sua. Ainda bem que tem sabido näo cair no numero daquelas a quem a opiniäo publica ostensivamente condena. Isto bastará, decerto, para que näo seja infeliz, facilitando-lhe, demais, vida quase lu-xuosa a pensäo que me obriguei a atribuir-lhe, Quanto a mim... Sabem o que é um homem perfeitamente desenganado, todavia näo mau, e persistindo sempre em respei-tar qualquer coisa de superior que nem sabe bem definir? Eis, me parece, o que fiquei sen do. Mas a lembranca do meu casa-mento sempre me ficou pungindo, e nunca a remexo sem que dois profundos sentimentos se me descubram como enraizados na alma: o da revolta, ou indignagäo, e o do remorso. Revolta contra urna traicäo de que fui vítima, — que traigäo, porém? — e remorso dum crime de que me sinto culpado sem saber qual, sem saber porqué. PEQUENA CO MÉDIA I Mal se espalhou pela vila que o Feliciano Medeiros caíra na rua com urna conges täo, um pensamento fulgurou no cérebro näo muito amplo da boa D. Assuncäo Meireles: «Agora! agora é que ela há-de saber tudo'.» E talvez nem seja demasiado arrojo afirmar-se que mal chegara D. Assuncäo Meireles a sentir a morte de Feliciano — marido da sua amiga Estefänia — tal a satisfacäo, a desopressäo, o alívio que lhe proporcionava esse pensamento. «Agora é que ela há-de saber! agora é que ela há-de saberb con-tinuava pensando a excelente senhora durante os dias de mais tempestuosa dor da sua amiga. Ora esta obsessäo da excelente senhora tem a sua história. E será preciso dizer-se (näo o adivinhou, já, o leitor?) que o ela do seu desabafo se reportava precisamente a D. Estefänia Laranjo Soares Medeiros — ao presente viúva na verdade inconsolável? II Quando, uns viňte e cinco anos atrás, se soube na vila que o Feliciano Medeiros pedira a mäo da Estefänia Soares — foi um JOSE REGIO 202 203 HISTÓRIAS DE M ULHERES