Antológia Pessoal da Poesia Portuguesa VITORINO NEMÉSIO ARTE POÉTICA A poesia do abstracto? Talvez. Mas um pouco de calor, A exaltacäo de cada momento, É melhor. Quando sopra o vento Há um corpo na lufada; Quando o fogo alteou A primeira fogueira, Apagando-se fica alguma coisa queimada. É melhor! Uma ideia, Só como sangue de problema-, No mais, näo, Näo me interessa. Uma ideia Vale como promessa, E prometer é arquear A grande flecha. O flanco das coisas só sangrando me comove, E uma pergunta é dolorida Quando abre brecha. Abstracto! O abstracto é sempře reducäo, Secura. Perde; E diante de mim o mar que se levanta é verde: Molha e amplia. Por isso, näo: Nem o abstracto nem o concreto 413 Eugénio de Andrade Säo propriamente poesia. Poesia é outra coisa. Poesia e abstracto, näo. DEPROFUNDIS Do profundo abismo em que me achei, E em que näo me lembro se caí ou fui precipitado, Da lama fofa e a ferver de que me cozi, clamei A vós, Senhor, surdo e infinito: Sejas tu neste grito Para todo o sempře louvado. Sejam vossos ouvidos atentos (ah, Senhor, Assim se diz, assim seja!) Á voz da minha culpa e do meu nada - Maior, neste clamor E na miséria que esse oihar deseja, Que toda a coisa principiada, O meu corpo é moído e ardente Como a areia do deserto De que o teu vento faz as ondas da cegueira Rotativa e lunar; Tenho o meu lado aberto Por uma lanca rasteira, E näo por te imitar. Aqui, das toalhas da aflicäo Pela canalha rasgadas E em minhas chagas embebidas, hnlologia Pessoal da Poesia Portuguesa Levanto o meu queixume, Pura evaporacäo, Secada pelo teu lume, Em sangue e mijo molhadas, Senhor, que me sujei na forca da agonia E em minhas lágrimas me lavo, Como um velhinho fazia No catre do hospital, fedendo a murta e alho bravo -Uma algália nas partes, algodäo num ouvido: Só por cima da colcha uma mosca o afagava Enquanto ele chorava, Todo borrado e comovido, Sim, daqui, děste abismo trivial A que só as palavras däo fundura, A ti clamo. Ab re o meu pedernal, Que a seca estéril rege; Monda o vil coracäo com que te amo E, ainda que eu fraqueje, Cava-me até ao fio de água pura. Abre os seios dos meus ossos E a cerracäo tenaz dos meus tendöes: Assim se abrem os pocos Que däo de beber aos leöes. Aí, Senhor, a tua estrela, Quanto mais podře eu for ä tona, Mais brilhará, profunda e bela Como o luar e a beladona. 414 415