Eugénio de hndrade Aiitologia Pessoal da Poesia Portuguesa Toda a nave cavalga (como no espago os astros) Do principio do mundo até ao fim do mundo ESTADO SEGUNDO, XXI Ama como a estráda comega ALEXANDRE O'NEILL UM ADEUS PORTUGUES Nos teus olhos altamente perigosos vigora ainda o mais rigoroso amor a luz de ombros puros e a sombra de uma angustia ja purificada Nao tu nao podias ficar presa comigo a roda em que apodreco apodrecemos a esta pata ensanguentada que vacila quase medita e avanga mugindo pelo tunel de uma velha dor Nao podias ficar nesta cadeira onde passo o dia burocrático o dia-a-dia da miséria que sobe aos olhos vem as maos aos sorrisos ao amor mal soletrado á estupidez ao desespero sem boca ao medo perfilado á alegria sonámbula á vírgula maníaca do modo funcionário de viver Nao podias ficar nesta cama comigo em tránsito mortal até ao dia sórdido canino policial até ao dia que nao vem da promessa purissima da madrugada mas da miséria de uma noite gerada por um dia igual 488 489 Eugénio de knáraáe hnloloQia Pessoal da Poesia Portuguesa Nao podias ficar presa comigo á pequena dor que cada um de nós traz docemente pela mao a esta pequena dor á portuguesa táo mansa quase vegetal Nao tu nao mereces esta cidade nao mereces esta roda de náusea em que giramos até á idiotia esta pequena mořte e o seu minucioso e porco ritual esta nossa razao absurda de ser Nao tu és da cidade aventureira da cidade onde o amor encontra as suas ruas e o cemitério ardente da sua mořte tu és da cidade onde vives por um fio de puro acaso onde morres ou vives nao de asfixia mas ás maos de uma aventura de um comércio puro sem a moeda falsa do bem e do mal. * Nesta curva tao terna e lancinante que vai ser que já é o teu desaparecimento digo-te adeus e como um adolescente tropeco de ternura por ti. CÁO Cao passageiro, cao estrito, cao rasteiro cor de luva amarela, apara-lápis, fraldiqueiro, cao liquefeito, cao estafado, cao de gravata pendente, cao de orelhas engomadas, de remexido rabo ausente, cao ululante, cao coruscante, cao magro, tétrico, maldito, a desfazer-se num ganido, a refazer-se num latido, cao disparado: cao aqui, cao alem, e sempře cao. Cao marrado, preso a um fio de cheiro, cao a esburgar o osso essencial do dia-a-dia, cao estouvado de alegria, cao formal da poesia, cao-soneto de ao-ao bem martelado, cao moído de pancada e condoído do dono, cao: esfera do sono, cao de pura invencao, cáo pré-fabricado, cao-espelho, cáo-cinzeiro, cao-botija, cao de olhos que afligem, cao-problema... Sai depressa, ó cao, děste poema! 490 491