temporänea (1922-1926) e Athena (1924-1925), näo tiveram influéncia marcante e profunda sobre o publico em geral, näo logrando impor-Ibe os nomes mais significativos do primeiro modernismo portugués. O espectáculo fora intenso e fulgurante, mas breve e, em muitos casos, mortifero. A aventura esgotara alguns dos seus actores: Mário de Sá-Carneiro suici-dou-se tout court; Raul Leal e Angelo de Lima suicidaram-se simbolicamente na loucura; Luis de Mon-talvor veio a morrer, em 1947, num trágico e estranho «acidente», de automóvel; Fernando Pessoa suicidou--se devagar, mas com eficácia, no quase-siléncio do retiro, da náusea e dos copinhos de aguardente (que näo matam, mas ajudam); Alfredo Guisado suicidou--se no siléncio. Mas nem o devastador rescaldo chegou para impor, em termos de rentabilidade, a «sinceri-dade» do investimento feito... Por outro lado, a maior figura do primeiro modernismo, Fernando Pessoa, näo chegou a publicar, durante todo o periodo que durou este movimento, um único livro. Com excepcäo da sua estreia em livro, com Mensagem, é aos elementos do grupo da presenqa que se vai dever o arranque da publicacäo da obra completa de Fernando Pessoa, a qual, neste momento, ainda prossegue. Os do Orpheu fulguraram, e recolheram logo ao ineditismo. Caberia aos homens do segundo modernismo ressusci-tá-los, valorizá-los, impô-los e, como diria Eduardo Lourenco, meté-los dentro da História da Literatura, onde näo tinham naturalmente nascido nem posterior-mente tentado entrar. II / O SEGUNDO MODERNISMO: A «PRESENCA» Seul Vart m'agrée, parti de ľinquiétude, qui tende a la sérénité. André Gide O primeiro numero da revista presenga apareceu no dia 10 de Marco de 1927, na cidade de Coimbra, com um subcabecalho que indicava tratar-se de urna «Folha de Arte e Critica». Os directores e editores da revista eram Branquinho da Fonseca, Joäo Gašpar Simöes e Jose Regio. A revista comecou por ser quin-zenal mas, a partir do quarto numero, deixou de res-peitar-se a periodicidade iniciál. No entanto, com maior ou menor regularidade, ela foi saindo durante 13 anos, até Fevereiro de 1940, data da publicagäo do ultimo numero (editaram-se, ao todo, cinquenta e seis, isto é, uma média de cinco por ano). Nesse primeiro numero, saído fez há pouco cinquenta anos, Jose Regio, que publicara dois anos antes os Poemas de Deus e do Diabo e tinha, incontesta-velmente, um grande ascendente intelectual sobre os seus companheiros de tertúlia, assinava um artigo pro-gramático que, em termos de grande abertura, indicava as linhas de forca orientadoras da revista: «Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artistica. A primeira condicäo duma obra viva é pois ter uma personalidade 26 27 e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou näo) čerta sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excéntrico, estranho, extravagante, bizarr o... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astu-ciosa. Eis como também pertence ä literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade propria»29. Neste texto invulgarmente firme, Regio interligava, com subtileza, dois conceitos: o de originalidade e o de sinceridade.jA literatura näo original, isto é, näo nascida da «parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de urna personalidade artistka », cedo se mostrava como aquilo que era: uma obra näo profundamente necessitada, näo sincera, um tronco morto, uma retórica sediga. Era o caso de quase toda a literatura portuguesa publicada no primeiro quartel do século xxj Esse ponto era explícita e elo-quentemente sublinhado no texto de Regio: «Pre-tendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferio-rizam grande parte da nossa literatura contemporä-nea, roubando-lhe esse carácter de invencäo, criacäo e descoberta que faz grande a arte moderna. Säo eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade de uma literatura contemporänea está documentada pelos nomes que mais aceitagäo publica gozam. É triste — mas é verdade. Em Portugal, raro urna obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gosto da retórica (e diga-se: da mais sediga) morde os pró-prios temperamentos vivos; e se a obra de um moco traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germes de literatura viva se desenvolvem. O pe-dantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo. (...) Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só entao os criticos Portugueses comegam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua ve-Ihice precoce e paramentada. Regra geral os nossos criticos sao amadores de antiguidades.» 30 (os itálicos sao nossos). Quando hoje se relé o «programa» da presenga, até pelo que ele tem de amplo e pouco claramente circuns-crito (nele cabia, nem mais nem menos, qualquer obra com algum interesse...), torna-se difícil compreender algumas das variadas e, nalguns casos, muitíssimo bar-rocas acusagoes de que a revista coimbrá veio a ser alvo: «subjectivismo», «umbilicalismo» «esteticismo», «a-historicismo», «individualismo», «pessoalismo», «psicologismo», «formalismo», «intemporalismo», «eternismo», «torre-de-marfismo»... (Por vezeš carre-gava-se um pouco no sal e aludia-se a «esteticismo fe-chado» ou a «umbilicalismo trágico»). Raramente um movimento literário terá desencadeado, em Portugal, uma tao florida panóplia de qualificativos redutores! Ao ponto de se pensar que, se a presenga nao tivesse existido, teria sido preciso inventá-la... Definir, é sempře limitar. Definir de modo deliberadamente redutor — como, muitas vezeš, se fez — é apenas propor, como descrigao do objecto que se visa, uma caricatura de uma sombra. É um acto de «des-leitura», cometido sem inocéncia. ,Os textos programáticos da presenga sao claros, desde o primeiro numero; o que nem se-quer excluirá algumas justas observagSes e reservas que se lbe possam fazer, como sao, até certo ponto, algumas daquelas — táo civilizadamente articula-das! — que lhe fez, ao longo dos anos, Eduardo Lou-rengo. Mas os textos, as intengoes e, nao pouco frequentemente, os actos críticos, sáo, repetimos, 28 29 muito claros. Quando por exemplo se diz (e disse-se vezeš sem conta) que £oi «esse esteticismo quejsolou. a Presen£a-:das^inqmĚt-a§oes^ú&.yM por um lado, um uso abusivamente limitado do significado de «vida» («o amor. depravado», as «escavag5es freudia-nas», o «subjectivismo doentio», o «egocentrismo agudo feito de isolamento, de solidao, de impoténcia de amar, de megalomania»31 sáo também parte inte-grante da «vida»), por outro, passa-se ao lado das ver-dadeiras intencoes e dos textos publicados. Logo no n.° 9 da revista Presenga, de Fevereiro de 1928, no célebre manifesto intitulado «Literatura livresca e literatura viva», ÍJosé Régio como que antecipadamente se defendia deste tipo de acusacáo, em termos de inex-cedível eloquéncia: «Quer isto dizer», perguntava, «que as preocupátjoes de ordem politica, reiigiosaTrpa-triótica, social, ética, — háo-de,^orcpsapíé^te^ěr' h&-nídas da Obra de Arte? De módo nenhum. E quem dirá que tais preocupacoes sáo banidas da obra de um Dostoiewsky, ou dum Ibsen, dum Strindberg ou dum Pirandello, dum Gide ou dum Shaw, dum Claudel ou dum Gorkyy; dum Antero ou dum Tagore? í O Artista é homeme^na sua humanidade que a Arte1 aprof unda />5'.: >' raizes. As obr as de Arte mais completes podem ser,' mesmo, aquelas em que mais complexamente se agitam todas as preocupacoes de que o homem é vííima... glo-riosa vítima. E a paixlépoHtica, a paixao patriótica, arpaixao reíigiosa, como a paixao por uma ideia ou por um ser humano — podem inspirar grandes e puras Obras de Arte. Mas... entendáhió-hos: O que entáo ínspira a Obra de Arte — é a paixao; e uma paixao considerada infamante ou uma paixao considerada no-bre — podem da mesma forma inspirar Obras eleva-das sob o ponto de vista que nos interessa: estético. O ideal do Artista nada tem com o do moralista, do patriota, do crente, ou do cidadáo: Quando sejam pro-fundos e quando se tenham moldado de uma, čerta individualidade, tanto o qye se cháma um yício^corilo o que se cháma uma járfííde ^oSem igualmente ser agentes de criagao, artística: podem ser elementos de vida de uma Obraj Náo sei se deveria ser assim — mas é assim» 0\j Este rirme arrimar-se a uma «viva» qua-lidade artística que nada exclui do que ao homem diz respeito, será, ao longo dos anos, pisado e repisado, quase até á náusea (mas com poucos efeitos visíveis nas reaccoes dos usuais comentadores da história lite-rária). No ensaio que, em Í938, dedicou a Antonio Botto e o Amor, voltaria á carga: «Mergulhe em que mergulhar as suas raízes, a arte realiza sempře, e pelos seus únicos meios enquanto arte, esta espiritualízagao do homem. E nao é senao em virtude desta moralidade intňnseca da arte que as paixoes infamantes e os ví-cios, as ideias falsas e o egoísmo, as inclinacóes doen-tias e todas as misérias da humanidade se redimem através da visáo do artista que deles próprios se nutre como homem. Outra moralidade nao devemos pedir á obra de arte como obra de arte. Ora assim como pode servir a moral mas livremente, espontaneamente, involuntariamente, com seus próprios meios e por de-terminacao da sua própria natureza, — assim pode a arte servir a religiao, a filosofia, a ciéncia, a sociologia, a política. Só assim, porém. E eis o que nem sempře satisfaz certos maníacos da accao imediata, e outras espécies de maníacos. Estes — náo podem perdoar á arte a independéncia que ela afirma até quando serve: Dir-se-ia odiarem tudo o que se liberta da escravidao a que eles próprios se condenam.»33 Nesta ilimitacSo exigente que Régio e os seus companheiros da Presenga viam como a característíca -inerente da obra de arte válida, nesta «aproximacáo» ampla e generosa- 30 31 mente plurifacetada (o objecto artistico e poliedrica-mente rico), estava prodigiosamente presente a grande sombra tutelar de Flaubert: «Du temps de La Harpe», dizia ele, numa carta a George Sand, «on etait gram-mairien; du temps de Sainte-Beuve et de Taine, on est historien. Quand sera-t-on artiste, rien qu'artiste, mais bien artiste? Ou connaissez-vous une critique qui s'inquiete de l'oeuvre en soi, d'une facon intense?»34 Num texto publicado em 1944, no jornal 0 Primeiro de Janeiro, Regio resumira de modo lapidarmente em-blematico o programa englobante que for a, a seus olhos, o da Presenga: «A personalidade do artista-cria-dor nada proibe a «presenca» senao que se falseie; nada impoe senao que se revele.» 35 E, de novo, em 1956, no suplemento de «Cultura e Arte», de O Comercio do Porto: «0 que sucintamente acabamos de expor nos podera, desde ja, sugerir como a critica ! da presenga viria a ser fundamentalmente compreen-\ siva, ou visando a compreensao. Aceite o homem em ' toda a sua complexidade infinita, aceites todas as for-i mas de expressao desde que eficientes, — decerto es-! tava a critica da presenga menos sujeita a uma : ridfcula, a uma estupida posicao que, para cumulo, chega actualmente a merecer aplausos: a da quase sis-tematica oposicao do critico ao criticado; a duma po-bre, mesquinha, domestica, particular bulba entre os dois.» 36 (Os italicos sao nossos). Outra das vantagens de se recorrer aos textos de preferencia a seguir-se passivamente o rasto das len-das e dos lugares comuns (praticamente so ha vantagens em se adoptar uma atitude destas, embora o preco, em trabalho, seja indubitavelmente elevado!), eoar fresco de surpresa e descoberta que nao raro nos acolhe. A critica da presenga tern frequentemente. ja o dissemos, sido acusada de um formalismo ou este- ticismo «figido», «fechado», «tragico», algidamente remote em relacäo a urn algo a que se chama «vida». A presenga interessaria sobretjido_,a_forma... Já vi-mos o desmentido caloroso e empenbado que alguns textos de Regio (seleccionados de entre material de diferentes periodos) dab a este tipo de assercäo. Näo fiquemos por aqui. Joäo Gaspar Simoes-éusualmente tido pelo <>^á&^presenga.jye^nt&náo o que tal qualificacäo possa ter de incomodamente «oficioso», a verdade é ter ele sido a personalidade presencista mais sistematicamente empenhada (e so-bretudo nisso empenhada) numa actividade critica de avaliagäo, seleccäo, interpretacäo, promogäo e sanea-mento da «coisa literaria» que, pelo seu volume, con-tinuidade e durabilidade, encontrará poucos pares na nossa História Literária (com altos e baixos, carecendo de uma solida cultura filosófica que o defendesse contra alguns seriös deslizes em que ocasionalmente cai37, com bases teóricas de uma flagrante fragilidade, Joäo Gaspar Simöes é, ainda assim, pěla independéncia de que sempře fez gala, pela coragem — aqui ou acolá minada por uma susceptibilidade de mau conselho —, pela intuicäo quase sempre certeira, pela persistente tarefa de uma omnipresente e incómoda vigiláncia focada sobre o «estado da república das letras», uma figura que näo poderá ser esquecida na História Literária Portuguesa do ultimo meio século). Vejamos pois, a seguir a Régio, que é a mais importánte personalidade total que a presenga revelou, o que teve a dizer Joäo Gaspar Simöes, o critico mais em evidéncia e mais sistemático do movimento, que pudesse legiti-mar a acusagäo de formalismo ou de esteticismo feita ao grupo. Logo no n.° 6 da revista (18 de Julho de 1927) publkava o autor de O Mistério da Poesia, um artigo intitulado Depots de Dostoiewsky. Nesse texto, 32 33 \ e logo no comedo, assim define ele a importäncia do romancista russo: «Em Dostoievsky tudo é vivo. A contribuicäo mais extraordinária com que o escritor : russo acorreu ä salvacäo da novela ocidental, foi preci-\ samente urna contribuiqao vital, biologica.» 38 (Os itá-! licos säo nossos). Independentemente das reservas que se possam pôr ao sentido que a palavra «biologica» ali possa ter, do que näo restam dúvidas é de que se näo faz uma defesa dos valores formats da arte do autor dos Karamazov 39. E para que näo haja, a este respeito, qualquer dúvida, G. Simöes esclarece, logo a seguir, o seu ponto de vista: «Desde Chateaubriand que se introduzira na novela francesa —, consequentemente, na europeia — o estilo, isto é, o culto da forma pela forma, clara negaqao das mais característícas qualida-des novelísticas: símpatia humana, perseguicäo exaus-tiva das pulsacôes mais vivas de cada coragäo e total divido de si proprio. Quer dizer, dum procedimento objectivo, externo, cairam os novelistas num subjecti-vismo formal em tudo contrario ä boa conduta dos criadores de microcosmos — que outra coisa näo de-/vem ser as verdadeiras novelas. E da introduqao sim-\ pies do estilo na criaqao novelistica, passou a novela j a sofrer de todos os males que a insisténcia do escritor j sobre a sua matéria plastica — a lingua — ocasio-\ nou.» 40 (Os itálicos säo nossos). E mais adiante, repi-i sando, para näo ficarem dúvidas sobre o que considera mais importante, na jicqao: «Ora o que mais peculia-riza uma novela é o fundo — o subsolo humano em que assenta a sua engrenagem cosmologica.» 41 (O itá-lico é nosso). Cremos que os extractos acima dados, com os quais näo precisamos sequer de estar de acordo (e de facto näo estamos: há, numa boa novela ou romance, muito mais do que o fundo...), säo abun-dantemente suficientes para demitirem, de urna vez por todas, a tendenciosa acusacäo de formalismo este-rilizador que pertinazmente tem sido feita aos presen-cistas. Pois näo vai Gaspar Simöes até ao ponto de tentar «reduzir» o valor exclusivo da forma, falando pejorativamente de «subjectivismo formal?»42 E näo considera também que um dos ingredientes da arte ro-manesca é o «total olvido de si proprio» de que o romancista deve ser capaz? E näo se opora este «olvido» ao täo decantado «subjectivismo»? Ainda no mesmo artigo, alude Joäo Gaspar Simöes, depreciativamente, a Flaubert, nos termos seguintes: «Se repararmos em Flaubert, encontrar-nos-emos com o mais perfeito exemplar dessa degradacäo. As suas obras säo verdadeiras arquitecturas em que o material construtivo é formado por um poderoso talento plás-tico, e em que a parte realmente humana é täo dimi-nuta e täo rigida que apenas alcanca comunicar-se-nos mercé dessa plasticidade e dessa rigidez estatuaria!» 43 Este texto tem um duplo interesse: por um lado, re-forga, de modo quase eloquentemente polémico, o ponto que temos vindo a expor; por outro, na medida em que frontalmente se opöe ä proclamada, fascinada e pertinaz admiracäo de Regio pela arte romanesca de Flaubert, mostra, de modo dramaticamente impressio-nante, que a presenqa esteve muito longe de ser a academia rigidamente monolítica que dela quiseram fazer alguns detractores primários. As ideias circulavam li-vremente e livremente se opunham, — até entre os seus dois principals directores... Se, por fim, sondarmos a este mesmo respeito, os textos de Adolfo Casais Monteiro, que veio a ser, com Regio e Simöes, director da presenqa, a partir de 1931, concluiremos que também näo é por aqui que se achará apoio para o apodo de formalismo que tem sis-tematicamente perseguido o grupo de Coimbra. No 34 35 n.° 17 da revista, de Dezembro de 1928 (altura em que era já colaborador, mas ainda näo director), Ca-sais Monteiro, num texto Söhre Ega de Oueiroz, faz esta afirmacäo de clareza meridiana, quanta äs suas intengôes: «Julgar urna obra. pelo critério de perfei-cäo — ao menos pelo critério de perf eigäo clássica a que estamos afeitos — equivale a condená-la; per f eigäo é urna palavra desqualificada, desde que se des-cobriu, no hörnern como na natureza, um perpétuo jogo de contrastes e de antiteses.»44 (O itálico é do proprio Casais Monteiro). E, adiante, acrescenta: «É por esta nova escala de valores usados nos Maias que Ega atinge, quanto a mim, a sua verdadeira medida. Antes pode ser tudo o que quiserem, menos humano; quer dizer, quanto a um módulo, o do ideal do romance realista, os seus primeiros romances säo quase perfeitos; quanto a um ideal, o verdadeiro ideal da arte antiformalista, os Maias é um livro extraordina-riamente mais belo» 45 (Os itálicos säo nossos). Cre-mos que, em termos de r ej eigäo de uma arte pura-mente formalista, dificilmente se poderia ser mais eloquente. .. até ao ponto de se cometer o indesculpável erro de avaliagäo crítica que é tomar Os Maias por um «verdadeiro ideal da arte antiformalista» (a fuga ao modelo do romance francés e a aceitagäo do modelo do «roman-fleuve» ingles näo fazem de Os Maias um romance formalmente imperfeito.) Por outro lado, também näo devemos, a partir daqui, precipitar-nos a concluir que os valores formais näo eram tidos em conta por Casais Monteiro ou por Gaspar Simöes: todo o exercício da actividade crítica destes dois im-portantes críticos é explícito testemunho do contrario (a coragem com que ousaram separar o trigo do joio, em termos de exigéncia estética, por alturas do advento do neo-realismo, é um exemplo entre mui- tos). Num livro publicado no Brasil, em 1961, Clareza e Mistério da Crítica, Casais Monteiro diz, por exemplo, em certo ponto: «Já se tem visto fazer um grande elogio duma obra, para no fim, em rápidas linhas, se reconhecerem as deficiéncias do seu estilo. Aprecia-se a verdade da análise, ou o valor social dum romance, para se acabar por confessar que está mal escrito, ou a intriga é frouxa, ou a construgäo desequilibrada. Ora, num tratado de psicologia ou de ciéncias sociais, seme-Ihantes deficiéncias podem ser perfeitamente secundá-rias, quando tais obras säo susceptíveis de as ter — pois que, por exemplo, näo há perigo de se acusar de ser falsa a intriga dum tratado de economia politica, e, emfoora isso sej a desagradável, a falta de estilo dum estudo psicanalitico näo afecta o seu valor intrin-seco.»46 (É, no entanto, este mesmo Casais Monteiro quem, ao citar os romances de maior nomeada do século XX, coloca, ao lado das indiscutiveis obras-pri-mas que säo A Montanha Mágica, A la recherche du temps perdu e Ulisses, o inepto, informe e mal estru-turado Jean Christophe, de Romain Rolland. Aqui parece-nos tratar-se menos de uma Mcida aceitagäo do «impuro» romanesco do que de um claudicar do sen-tido critico, de resto quase sempre täo agudo, no autor de O Romance e os seus Problemas...) Voltando por fim a Regio, näo gostariamos de dei-xar ipassar em claro uma carta sua dirigida ao seu camarada Joäo Gaspar Simöes, em 1927, e por este há pouco revelada. Nela, a propósito de uma leitura que andava, por essa altura, a fazer, de Dostoiewsky, comentava: «Tentando já falar como critico, O Idiota parece-me dos livros mais bárbaróš',' menos construi-dos, do Autor, mas talvez um pouco por isso mesmo dos mais completos, complexos e originais. Todo ele está cheio de alma e até da vida de Dostoiewsky...» 47 36 37 (O itálico, em «por isso mesmo», é nosso). Parece-nos que Régio, com toda a sua argúcia e finura críticas, se enganava singularmente ao articular a originalidade e complexidade do romance russo com a suspeita de desarrumo e «barbárie»... Dostoiewsky era um singular arquitecto do romance, que sabia pór o leitor em constante situacáo de perplexidade perante a escorre-gadia indefinicáo psicológica dos ipersonagens. Simples-mente, a opacidade e o aparente «mistério» destes sao-nos dados por intermédio de uma técnica muito clara, muito concertada, muito pensada e muito ar-guta — técnica que a Régio e aos outros críticos da presenga terá porventura esčapádo. Sej a como for, da-mos este texto como exemplo, apenas por ser sinto-mático da completa auséncia de fanatismo formalista entre os homens que, em 1927, apareciam a exigir, náo uma literatura formalmente «perfeita», mas sim, e muito decididamente, uma «literatura viva», surta de personalidades «de uma originalidade inevitável» 48, uma literatura que deveria propor-se como «grande meio de exprimir, expandir, comunicar o que em parte (...) parecia transcender a literatura.»49 Quem eram os homens que se juntaram á volta da presenga, que influéncias os dinamizavam, em que sub-solo mergulhavam as suas raízes culturais? Nascidos quase todos á volta de 1900 (Adolfo Casais Monteiro, mais novo, é de 1908 e Adolfo Rochá de 1907), eram, pelo menos, numa boa dezena de anos mais novos do que Fernando Pessoa (1888-1935). O periodo da sua estada em Coimbra cobre os anos que se seguiram imediatamente á I Guerra Mundial. Por essa altura, dominava os horizontes literários europeus o grupo da Nouvelle Revue Francaise, na qual brilha- vam os nomes de André Gide (o «contemporäneo capital*, de que falava um dos seus pares), Jacques Riviere, Paul Valéry, Jean Cocteau, Marcel Proust, Paul Claudel, Albert Thibaudet, conjunto que, náo sem per-fídia, era conhecido, nos meios artisticos parisienses, por «la bande ä Gide»... Num testemunho de que mais tarde fará anteceder as suas Oeuvres Completes, Roger Martin du Gard, um dos espíritos mais hones-tos, equilibrados e precisos de todo o grupo, referir--se-á assim ao agrupamento que veio a conhecer, em 1913, ano da publicagäo do seu romance ]ean Barois: «A f alange da N. R. F. oferecia-me, de repente, uma coisa muito diferente: uma acoľhedora família espiri-tual, cujas aspiragoes e pesquisas eram semelhantes äs minhas, e na qual eu podia ter lugar sem nada alienar da minha independéncia de espirito, — porque nada havia de menos doutrinário do que este livre agrupamento de amigos, muito especiosamente qualificado de «capela» por aqueles que os julgavam de fora» 50. Como a N. R. F., a presenga virá a ser também um «livre agrupamento» de amigos, sem nada de «doutri-nario»; como a N. R. F., virá a ser apelidada de «cape-linha fechada» por aqueles que a julgariam de «fora». A História repete-se. O grupo da N. R. F. nada tinha, realmente, de uma academia fechada e dogmática. Como mais tarde, a presenga, repetimos, o seu programa caracterizava-se pela auséncia de fronteiras. Näo era um grupo doutrinário; näo propunha uma «ideologia». Num texto que dedicava ä memoria do seu amigo Oscar Wilde, André Gide anotou uma observacäo que o dramaturgu irlan-dés um dia lhe fizera: «F£á duas espécies de artistas: uns trazem respostas, os outros fazem perguntas. Con-vém saber se se pertence aos que respondem ou aos que perguntam; porque aquele que pergunta, näo é 38 39 minca aquele que responde» 51. A gente da presenga, como a da N. R. F., era mais inclinada a perguntar, do que a responder. Para eles, a funcäo da arte era «por bem» um problema, mais do que resolve-lo. Em arte, observava Gide, näo há problemas de que a propria obra de arte näo seja a suficiente solucäo. Con-cluir, excedia o pelouro e a competéncia do artista: «O publico, hoje em dia», diria Gide prefaciando o seu romance, O Imomlista, «ja näo perdoa que o autor, depois de pintar a accäo, näo se manifeste a favor ou contra; mais ainda, em pleno desenrolar do drama, quer que ele tome partido, que se pronuncie franca-mente por Alceste ou por Filinto, por Hamlet ou por Ofélia, por Fausto ou por Margarida, por Adäo ou por Jeová. Näo quero afirmar, é claro, que a neutralidade (ia dizer: a indecisao) seja a marca de um grande es-pírito; mas creio que a muitos dos grandes espíritos repugnou bastante... concluir — e que o facto de bem expor um problema näo pressupôe que ele já esteja resolvido» 52. Digamos, de modo resumido e brutal, que o artista, segundo o código libérrimo da presenga, näo aceitava mandates externos: acolhia apenas os que livremente escolhia por convirem ao seu génio proprio. Čada artista era pois livre de seleccionar as cadeias e as condicionantes que Ihe permitissem dar o melhor de si: nada mais oposto, num programa assim deli-neado, ao estreito e asfixiante espírito de escola. Por isso, os homens da presenga, ao recuperarem, divulgarem e promoverem os companheiros mais velhos do primeiro modernismo, faziam-no sem espírito de academia feohada ou de cenáculo reservado: «... nunca o autor» [Regio], observará um dia o poeta dos Poemas de Deus e do Diabo, falando em seu nome, «nunca o autor abracou o Modernismo senäo como livre Academia de criacäo Uberrima. Nunca outra lei aceitou no Modernismo, nem nenhuma escola ou cor-rente modernista se lhe impôs crítica ou dogmatica-mente. Por criadores individuals teve sempre as grandes personalidades modernistas que o apaixonaram. Só por um Modernismo assim aberto lutou na presenga e tem continuado a lutar até hoje: pela liber-dade que pertence a cada artista original de forjar ele mesmo, e para si mesmo, as suas leis ou evasôes. Melhor: de se näo submeter senäo aos limites, regras, fugas, caracteres a que o submeta a sua propria natu-reza humano-artística. A substituigäo de uns dogmas estéticos por outros (e pouco importa que a uns chámem tradicionais e a outros modernos ou modernistas) näo lhe in t er es sa.» 53 (Este ultimo itálico é nosso). Esta submissäo do artista sobretudo äs leis do seu proprio génio, fora ja um dos dogmas de Flaubert que teve, pelo menos em Jose Regio, uma decisiva influéncia: «Ou plutôt ľ Art est tel qu'on peut le faire: nous ne sommes pas libres. Ghacun suit sa voie, en dépit de sa propre volonte», dizia o autor de Madame Bovary, em carta ä sua amiga George Sand54. Outro dos autores da presenga, um articukdo e profundo en-saísta e pensador aforistico injustamente esquecido, Jose Bacelar, repisará a mesma tecla: «Ora um dos seus [dos politicos] manejos aliciantes mais insisten-tes consiste justamente em chamar o artista — «ä vi-da». Vejamos porém com cuidado o significado que a isto se pode dar. (...) O artista só deve seguir um caminho: aquele que o seu génio interior lhe impöe. Acontece, porém, esta coisa «extraordinaria»: é que estes caminhos säo e seräo sempre de uma variedade infinita.» 55 O grupo da N. R. F. oferecia, pois, um leque de «sugestöes» exemplares: defesa da originalidade e do génio interior do artista, com o corolário da preserva- 41 cáo da sua liberdade interior, sinceridade, com todas as harmonicas que a perturbam, tónica nos valores es-pecificos da arte (em arte <'■< 60 61