f, • Eis os títulos da sua obra poética: Poesia, 1944. Dia do Mar, 1947. Coral, 1950. No Tempo Dividido, 1954. Mar Novo, 1958. Cristo Cigano, 1961. Livro Sexto, 1962. Geografia, 1967. Antológia (1944-67), 1968. Grades, 1970. ' Dual, 1972. O Nome day Coisas, 1977. «Sempre a poesia foi para mim uma perseguicäo do real. Um poe-ma foi sempre um cfrculo tracado ä roda duma coisa, um cir-culo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dessa busca atenta. Quem procura uma relacäo justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espirito de verdade que o anima, a procurar uma relacäo justa com o hörnern. Aquele que vé o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espäh: toso sofrimento do mundo. Aquele que vé o fehómeno quer ver todo o fenómeno. E apenas uma questäo de atencäo, de sequéncia e de rigor. E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justica pela propria natureza da sua poesia. E a busca da justica é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética [...].' Pois a justica se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordern do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixäo, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixäo. Esta logica é íntima, interior, consequente consigo propria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciencia.»223 a mo strAr», at***, Obra Poetka II Livro Sexto 108 Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetracäo na habitacäo secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu proprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto pai-ra roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rošáda do fundo. E abro bem os olhos no siléncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espacos matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhä é igual ao princípio do mundo e aqui eu /venho ver o que jamais se viu. O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sir-vo para que as coisas sé vejam. E eis que entro na gruta mais interior e mais ca-vada. Sombrias e azuisrsäo águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste siléncio. Quereria que o contivesse para sempře o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas. Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balanca. A linha das águas é lisa e limpa como urn vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de gloria matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidäo com a cara encos-tada contra as pedras. f RESSURGIREMOS Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos E em Delphos centro do mundo Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta Ressurgiremos ali onde as palavras Säo o nome das coisas E onde säo claros e vivos os contornos Na aguda luz de Creta Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo Säo o reino do homem Ressurgiremos para olhar para a terra de frente Na luz limpa de Creta Pois convém tornar claro o coracäo do homem E erguer a negra exactidäo da cruz Na luz branca de Creta 109 mm 'M' Obra Poética I Coral TU'E EU Tu e eu vamos No fundo do mař Absortos e correntes e desfeitos. Agora és transparente Ä tona do teu rosto vém peixes E vens comigo Morto, morto, morto, Morto em cada imagem. PA Os troncos das árvores doem-me como se fossem [os meus ombros Doem-me as ondas do mar como gargantas de [cristal Dói-me o luar — branco pano que se rasga. SONETO DE EURYD1CE Sophia de Mello Breyner Andresen Euryclice perdida que no cheiro E nas vozes do mar procura Orpheu: Auséncia que povoa terra e céu E cobre de siléncio o mundo inteiro. Assim bebi manhäs de nevoeiro E deixei de estar viva e de ser eu Em procura de um rosto que era o meu O meu rosto secreto e verdadeiro. Porém nem nas marés, nem na miragem Eu te encontrei. Erguia-se somente O rosto liso e puro da paisagem. E devagar tornei-me transparente Como morta nascida ä tua imagem E no mundo perdida esterilmente. De No Tempo Dividido? /Ta «Na luz oscilam os mültiplos navios Caminho ao longo dos oceanos frios As ondas desenrolam os seus bracos E brancas tombam de brucos A praia e longa e lisa sob o vento Saturada de espacos e maresia E para träs de mim fica o murmürio Das ondas enroladas como büzios.»225 P4-TA A rt£-rťb£f4 «Tempo de solidlo e de incerteza Tempo de medo e tempo de traicao Tempo de injusti$a e de vileza Tempo de negacao Tempo de covardia e tempo de ira Tempo de mascarada e de mentira Tempo de escravidao Tempo dos coniventes sem cadastro Tempo de siléncio e de mordaca Tempo onde o sangue nao tem rasto Tempo da ameaca.»227 ru^o u^c/ ?^v) «Eis-me Tendo-me despido de todos os meus mantos Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses Para ficar sozinha ante o siléncio Ante o siléncio e o esplendor da tua face Mas tu és de todos os ausentes o ausente ^ Nem o teu ombro me apoia nem a tua mäo me toca O meu coracäo desce as escadas do tempo em que näo moras E o teu encontro Säo planícies e planícies de siléncio Escura é a noite -:, Escura e transparente Mas o teu rosto está para alem do tempo opaco E eu näo habito os jardins do teu siléncio Porque tu és de todos os ausentes o ausente.: ,226 ff «Vinha dum mundo Sonoro, nítido e denso. E agora o mar o guarda no seu fundo Silencioso e suspenso. E um esqueleto branco o capitäo, Branco como as areias, Tem duas conchas na mäo, Tem algas em vez de veias E uma medusa em vez de coragäo. E em seu redor as grutas de mil cores Tomam formas incertas quase ausentes E a cor das águas torna a cor das flores E os animais säo mudos, transparentes. E os corpos espalhados nas areias Tremem ä passagem das sereias — Das sereias leves de cabelos roxos Que tém olhos vagos e ausentes E Verdes como os olhos dos videntes.»230