f ■íl Principais obras do autor: • Um Hontem Näo Chorá, 1960 i • Angústia para o Jantar, 1961 • Felizmente Há Luarl, 1961 | • Todos os Anos, pela Primavera, 1963 j • OBaräo, 1964 • Awŕo da Barca do Motor Fora de Borda, 1966 • A Cuerra Santa, 1967 • A Estátua, 1967 I • As Mäos de Abraäo Zacut, 1968 • Sua Excelencia, 1971 1 » Ese ForRaparigaChama-se Custodia, 1978 J • Crónica Atribulada do Esperancoso Fagundes, 1980 | • Chůva na Areia, 1982, adaptacäo televisiva de um \ romance que ficou inédito, Agarra o Veräo, Guido, Agar- } ra o Veräo Luis de Sttau Monteiro (1926-1993) Nota biobibliográfica Nasceu em Lisboa, em 3 de Abril de 1926. Aos 13 anosfoi viver para Londres, onde seu pai desempenhava as funcoes de embaixador. 0 tempo que af passou terá condicionado muitos aspectos da sua formacao estética e literária. Nesses anos, viveu de perto a tragédia da Segunda Guerra Mundial, De regresso a Portugal, licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa, tendo exercido, por um bre-ve periodo de tempo, a advocacia. Publicou o seu primeiro romance em 1960, Um Homem Náo Chorá. Em 1961, publica-se Angústia para o Jantar, que o colocou, desde logo, num iugar de relevo no panorama da literatura portuguesa. Desse mesmo ano é também a peca Felizmente Há Luar!, que revelou um dos mais notáveis dramaturgos das nossas letras. Foi-lhe atribuído, em 1962, o "Grande Prémio de Teatro". Por várias vezeš, foi preso pela PIDE, devido ao cunho irreverente que impos á sua obra. Fez parte do conselho redactorial de "A Mosca", suplemento do Diário de Lisboa, onde se celebrizou pela criacao da irreverente figura da Guidinha. Trabalhou em publicidade e escreveu, também, sobre gastronomia, com o pseudónimo de Manuel Pedrosa. Foi jornalista e colaborador regular de várias publica coes - Diário de Lisboa, Se7e, O Jornal, Expresso. f: I LUÍS DE STTAU MONTEIRO Ao Fernando deAbranches Ferräo -amigo de todas as horas - que quase me obrigou a escrever esta pe$a. Teatro Pe$a em 2 actos HOLYOAKE (Making an effort) - I have injured no man's reputation, taken no man's property, attacked no man's person, violated no oath, taught no immorality. I was asked a question and answered it openly. I should feel myself degraded if I descended to finding out if my convictions suited every man in the audience before I uttered them. What is the morality of a law which prohibits the free publication of an opinion? ERSKINE - You must have heard me state the law that if it be done temperately and decently, all men are at liberty to state opinions. HOLYOAKE - Then liberty is a mockery. The word temperate means what those in authority think proper. ERSKINE - An honest man speaking his opinions decently is entitled to do so. HOLYOAKE - It must be already clear to you, gentlemen of the jury, that 1 am here for having been more honest than the law happens to allow. What is this temperate? What is intemperate? Invective, sarcasm, p... ALEXANDER - Personality. HOLYOAKE - Thank you, Mr. Alexander. ALEXANDER - Pleasure. HOLYOAKE - ... and the like. But these weapons are denied only to those who attack the prevailing opinion. JOHN OSBORNE A subject of scandal and concern PERSONAGENS Manuel - 0 mais consciente dos populäres Rita - A muiher do Manuel Antigo soldado - Um antigo soldado do regimento de Gomes Freire Vicente - Um provocador em vias de promocäo Dois polfcias - Iguais a todos os polfcias Värios populäres - 0 pano de fundo permanente D, Miguel Forjaz Trés conscienciosos governadores do Reino Dois denunciantes que honraram a classe Beresford Principal Sousa Morais Sarmento Andrade Corvo Frei Diogo de Melo - Um homem sério que destoaria nesta peca se nela nao figurassemrtambém, Antonio de Sousa Falcáo - O inseparável amigo e Matiide de Melo - A companheira de todas as horasde O General Gomes Freire DAndrade - que está sempře presente embora nunca apareca. Actol ACTO 1 Ao abrir o pano, a cena está ôs escuras, encontrando-se uma única personagem intensamente iluminácia, ao centro e a f rente do palco. Esta personagem está andrajosa-mente vestida. MANUEL A pergunta é acompa- Que p0SS0 eu fazer? sjm: qUe posso eu nhada dum gesto que fazer? revela a impotencia da personagem perante o fia ^0js passos em direcfao ao fundo do problema em causa. pQ\COi detém-se, e continua) Este gesto é franca- mente "representado". 0 publico tem de entender, logo de entrada, que tudo o que se vai passar no | paico tem um significa- do preciso. Mais: que os gestos, as palavras e o cenário säo apenas elementos duma Nn- guagem a que tem de adaptar-se. Felizmente Há Luar! Ve-se a gente livre dos Franceses, e zasl, cai na mao dos Ingleses! E agora? Se acabamos com os Ingleses, ficamos na mao dos reis do Rossio... Entre os tres o diabo que escolha... (Pausa) Deus todo-poderoso para a f rente... Deus todo-poderoso para trás... Sua Majestade para a esquerda... Sua Majestade para a direita... (Pausa) E enquanto eles andam para träs e para a frente, para a esquerda e para a direita, nös näo passamos do mesmo sitio! Ilumina-se, subitamente, o fundo do palco. De pe e sentadas, värias figuras populäres conversam. Algumas dormem estendidas no chäo. Uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga novo. (Avanca e detem-se junto duma mulher ainda nova, que dorne, no chäo, coberta por uma saca) A Rita dorme. A que horas chegou ela? Ao dizer isto, a perso-nagem esta quase de costas para os especta-dores. Esta posicao e deliberada. Pretende--se criar desde ja, no publico, a consciencia de que ninguem, no decorrer desta peca, vai esbocar urn gesto para o cativar ou para acamaradar com ele. (0 reu nao se senta ao lado dos juizes.) Muda de torn a voz. Esta a imitar, com sar-casmo, alguem que se nao sabe quern seja. Entende-se, todavia, que a personagem se refere ao ambiente politico da epoca. Volta ao seu torn de voz habitual. A pergunta näo é diri-gida a ninguém. 16 0 gesto é lento, delibe-radamente sarcástico. O tom é irónico. O prtmeiro popular volta a sentar-se. Comeca a ouvir-se, ao íonge, o ruído de tam-bores. Aigumas personagens mostram čerta agita-Cäo. I.0 POPULÄR (Levantando-se dum salto e macaqueando as maneiras dum fidalgo, finge tirar um reló-gio do bolsodum colete inexistente) Saiba, meu senhor, que a Senhora D. Rita chegou tarde. Eram quase cinco horas pelo meu relógio de ouro. (Finge levantar o relógio para o ver melhor, Desfaz o gesto com violéncia e continua em tom raivoso) Aiguém aqui tem relógio? (Como ninguém responde, volta a dirigir--se a Manuel) Esqueceram-se dos reiógios em casa... MANUEL Está bem. Está bem. (Dá um safanäo na rapariga, que se levan-ta com lentidúo) Säo horas de nos irmos indo, mulher. RITA Já? ARFLUAR-02 17 Fetkmente Hó Luaii MANUEL Lembra-te do que temos de andar. (Ouve o son) dos tambores) Que e isto? (Todos se tevantam e escutam a medo. Alguns pegam nos seus objectos pessoais -cestos, manias esfarrapadas, uma abobora, etc. - e preparam-se para fugir. Outros, parados, esperam que o som dos tambores indi-que a direccdo da marcha das tropas. 0 rufdo afasta-se. Ficam todos calados, indecisos.) 1.° POPULAR Nao vem para ca. 0 ANTIGO SOLDADO Estas cantigas sao inventadas No regimento de Freire d'Andrade Sao cantadas com o estiio De la re 6 liberdade. 1.° POPULAR Onde aprendeu vossemece isso? 0 ANTIGO SOLDADO Em Campo d'Ourique - ja la vao mais de dez anos -, quando eu era soldado no regi- Em torn de quern evoca o passado com saudade. 0 grupo comeca a pres-tar atenfáo ao diáíogo. mento de Comes Freire... Aqui onde me véem já andei nas guer-ras... RITA Com o general? 0 ANTIGO SOLDADO Com o general, pois! 2. ° POPULAR Conte la, homem... 3. ° POPULAR Em que guerra e que vossemece andou? UMA VELHA E foi na guerra que aprendeu a cantar? (0 antigo soldado rise) Entao onde foi, homem? (Juntam-se todos a volta do antigo soldado, que se destaca do grupo e avanca para o proscenia seguido de todos.) 18 19 Felizmente Hó Luar! 0 ANTICO SOLDADO (Oiha para o ctilo, tentando recordar-se) Ota dcixem ver... Urna noite, em Juiho, os rapazes lá do quartel organizaram uma festa em honra da Senhora da Piedade. Vocěs haviam de ter visto aquilo... A rapaziada fardada, no meio do povo... E raparigas? Aquiio é que era... (Dá um beliscäo na cara de Rita) Onde aparecia o regimento de Gomes Frei-re näofaltavam raparigas! E ele? UMA VOZ O ANTICO SOLDADO Ele? OUTRA VOZ O general, hörnern... O ANTIGO SOLDADO Um amigo do povo! Um hörnern äs direitas! Quem fez aquele näofezoutroigual... Acto I Fala com entusiasmo. Ve-se que Comes Frei re é o seu herói. Este silěncio é pesado. ; As personagens olham para as máos e para os iados. Foram longe de inais e sabem-no. Ain-da těm nos ouvidos o ; iuído dos tambores, símbolo de uma autori-dade sempře presente e sempře pronta a interferir. Fala muito depressa. Está cada vez mais excitado. Faz com as mäos o gesto de quem toca tam-bor. MANUEL Se ele quisesse... (Siiencio) VICENTE Se ele quisesse? Mas se ele quisesse o que? Voces ainda nao estao fartos de generais? Cornetas, tambores, tiros e mais tiros... Bestas! (Sobe a urn caixote) Tu, Jose: (Aponta para urn dos presentes) Tens sete filhos com fome e com frio e vais para casa com as maos a abanar. Julgas que o Comes Freire os vai vestir? (Aponta para o outro) E tu, que nao comes desde ontem - estas com pressa de ir para a guerra? Julgas que matas a fome com as baias? Idiotas! Nenhum de voces tern urn tecto que o abrigue no Inverno, nenhum de voces tern onde cair morto, mas, ma! passa um tambor, nao ha urn so que nao queira ir atras dos soidados. Catrapum! Catrapum! Catrapum, pum, pum! - Idiotas! Olha !a: (Aponta para o antigo soldado) Se o teu Gomes Freire e tao bom como 20 21 Actol dizes e se a "rapaziada" lá do regimento é como tu a descreves, expiica lá o que estás a fazeraqui... (O antigo soldado encolhe os ornbros) Näo abres a boca? Pois entäo falo eu! (Para o grupo) Este hörnern está aqui porque já näo serve para nada. Ouviram? Está aqui porque já näo interessa aos generais. O que eies querem é servir-se da gente! Quando um hörnern chega a velho e já näo pode andar por monies e vales, de espingarda äs costas, para eles se encherem de medalhas, tratam-no como um pobre fugi-do ä polícia: abandonam-no, mandam-no para a porta das igrejas pedir esmola, e que a Virgem se compadeca dele... (Para o antigo soldado) Que te dizem eles, os teus generais, os tais com quem te bateste, quando te encontram na rua, miserávei, sem um naco de päo para comer? Sa bes o que te dizem? Sabes? Viram--se para as mulheres, e justifícam os cinco réis da esmola, dizendo que te bateste como um valente na campanha do Rossilhäo. E tu? Matas a fome com os cinco réis e.com a recor-dacäo da campanha. Mas eles.,. eles väo para casa encher a panca! Disso podes estar certo... Pronuncia 3 palavra "rapaziada" com sar-casmo. Fala alto, em tom de triunfo. A medida que fala vai--se excitando cada vez mais. O ANTIGO SOLDADO VICENTE Nao e desses... Nao e de-sses... Entao de quais e ele? Duns que nao existem? E um santo, o teu general... 0 ANTIGO SOLDADO Nao 6 um santo, e um homem como todos nos, mas... VICENTE "Mas"? Nao ha "mas" nem meio "mas", 0 que ha e homens e generais. Ou se e por uns, ou se e por outros. 0 teu general, entao, e perfeito: nem sequer e portugues... (Muito excitado) Estrangeirado: estrangeirado e que eie e! MANUEL (Falando ao grupo) Estrangeirado ou nao, e capaz de se bater com os senhores do Rossio,.. VICENTE Mas nao se bate! Vaisverque naose bate! i E sabes porque? (Volta a falar para o grupo) O Comes Freire näo é desses. Fala com escárnio. Feüzmente Há Luar! Actol Porque está feito com des, porque essa ; Abre 05 bracos num gente é toda igual... O que interessa a uns ! gesto que abränge os interessa a outros, e a todos interessa que a \ presentes, 0 fundo do gente viva assim... palco, a miséria... UMA VOZ Ä polícia! (O grupo dispersa com rapidez enquanto pela esquerda do palco entram dois polfcias que se aproximam de Vicente, Este, de cima do caixote, continua a gritar. "Fujam! Fujam! A polícia!" até a dispersäo total do grupo. Durante a fuga dos populäres a I uz do fundo vai diminuindo de intensidade até desapare-cer completamente. Os polfcias aproximam--se de Vicente, que desce do caixote e acama-rada com eles. Ficam os trés, iluminados, no palco.) Fala com certa tristeza. VICENTE Há muito que os näo vejo. Que é feito? I.° POLÍCIA Sempře a mesma coisa: rondas, feiras, ser-vicoä porta deste ou daquele... sei lá. E tu? VICENTE Cá vour discutindo 0 general, de manhä, ä tarde e ä noite... Para esta cambada, 0 Frei-re é Deus. (Senta-se, descaica um sapato e comeca a consertá-lo) Se näo Ihe tratamos da saúde, talvez nos trate ele da nossa... 2.° POLÍCIA (Apanhando urna boneca esfarrapada de que urna mäe se esqueceu ao fugir) Olha, lá, Vicente: como conseguestu inspj-rar a confianca desta gente? VICENTE É simples: digo-lhes metade da verdade. Sonham com 0 Gomes Freire? Lembro-lhes que 0 Comes Freire é general e falo-lhes da guerra. Haverá alguém que se näo lembre da guerra? A vida tern sido uma guerra atrás da outra... Odeiam os Franceses e os Sngleses? Chamo estrangeirado ao Comes Freire... O que näo Ihes digo é que se ele näo fosse estrangeirado era... era como os outros... era mais urn senhordo Rossio... 2.° POLÍCIA E tu acreditas nele? VICENTE Näo. Só acredito em duas coisas: no dinhet-ro e na forca. O general näo tern uma nem outra. 24 25 Felizmente Há Luarl Acto I: 1.° POLÍCIA É por isso, entäo, que... (Os outros olham-no de f rente) Que... pois... 2 ° POLÍCIA Vá: acaba o que estás a dizer. 0 tempo passa e viemos aqui em service 1.° POLÍCIA Eu näo ia dízer nada... VICENTE (Calca o sapoto e levanta-se) ias, ias. las perguntar-me se foi por dinhei-ro que eu me virei contra os meus... Era ou näo era isso que me ias perguntar? 1.° POLÍCIA Na verdade. VICENTE Pois respondo-te, amigo. Respondo-te de boa vontade. (Comeca a passear em f rente dos poiícias) Nitida mente embara-cado. pala como um alucina-do, com frequentes pausas, que däo a : entender näo ser esta a primeira vez que pensa no assunto. Ao falar da cara, levan-ta-se, assumindo a posicäo dum senador romano. Alarga os passos. Tod os os seus gestos säo estudados. Sente--se que passou iongas Horas estudando os häbitos e os maneiris-mos dos membros da classe a que desejaria ter pertencido. Ao falar, faz gestos com as mäos, gestos lentos, precisos, copiados dum fidalgo qualquer que teve ocasiäo de obser-var de perto. De repente olha para os policias e compreen-de que estä a dizer coi-sas que näo deveria ter dito. Fecha as mäos. E verdade que nasci aqui e que a fome desta gente e a minha fome, mas... e igual-mente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles me vejo a mim proprio: sujo, esfomeado, condenado a miseria poraciden-te de nascimento. (Estaca no palco e toma umct posi<;ao de pessoa importante, de fidalgo retratado por urn artista mediocre do paco) Que diferenca ha entre mim e urn fidalgo quaiquer? Sera que tenho uma cara diferente? Sera que sou mais estupido? Mais baixo? Mais alto? Serao as minhas pernas e os meus bracos diferentes das pernas e dos bracos dum des-ses fidalgotes das touradas? Nao, meus amigos. A unica coisa que me distingue dum fidalgo e uma coisa que se passou ha muitos anos e de que nem sequer tlve a cuipa: o meu nascimento. (Pausa) Nasci a dois passos daqui, numa trapeira em que nenhum fidalgo entraria. Quando passo la a porta, so Deus sabe o que sinto... E por isso que odeio esta cambada a que pertenco, mas a que pertenco sem querer e com quern nao tenho nada de comum! Mas voces nao podem perceber isto... (Caiem si) Tenho estado a brincar, amigos. Querem saber porque vendo os meus irmaos? Pois vendo-os por amor a N. S. Jesus Cristo e a el--rei D.JoaoVl.que hatantosanosanda pelos ßrasis cuídando dos nossos interesses. (Rise) 1.° POLÍCIA Pa reces um doutora falar... 2.° POLÍCIA E tempo de Ihe dízermos ao que vímos. Esíá a fazer-se tarde... (O primeiro polícia avanca e pôe-ihe a mäo sobre o ombro.) 1.° POLÍCIA Temos notícias para ti, amigo... VICENTE Costumo ser eu a ter notícias para voces... 1.° POLÍCIA Andámos toda a tarde ä tua procura. VICENTE Äminha procura? Fehzmente Há Luar! Domina-se. Adopta um tom de voz ironicamentě piedoso. Acto 1 Sarcástico. Osarcasmoétriste. Encoihe os ombros. A ideia de falar com o tenente näo o seduz. Comeca a ínteressar-se. Francamente interessado. l.° POLÍCIA Ä tua procura, sim, homem de Deus. És mais importante do que pensas. Temos ordens de te Sevar, ainda hojerä pre-senca... (Rise) Adivinha de quem... VICENTE O tenente quer falar comigo. 1,° POLÍCIA (Rindose) Näo é o tenente, homem. É pessoa mais grada. VICENTE O intendente? 2.° POLÍCIA Upa! Upa! O proprio. VICENTE l.° POLÍCIA Tanto também näo! Vais falar com um governador do Reino: O Sr. D. Miguel Pereira 28 29 Felizmente Há Luarl Forjaz. Chega-te? VICENTE Urn governador do Reino! Que me quer ele? 2.° POLÍCIA Sei lá. 1.° POLÍCIA Pode querer incumbir-te de urna missäo especial... 2.° POLÍCIA Ou quererfazer-te nossochefe... 1.° POLÍCIA (Rindo-se) Ou dar-te urna comenda... (Vicente afasta-se dos políáas. Caminha para a esquerda do palco e detém-se. Fala sozinho.) VICENTE Cheira-me a coisa graúda... Se eu souber fazer render o peixe, sou capaz de acabar Encolhe os ombros, exprimindo a impossibi-lidade de se compreen-derem os desfgnios e as intencöes dos podero- Acto I Em tom galhofeiro. Sorriem maliciosamen-te, sugerindo que seríam privilegiados se o facto acontecesse. com uma capela... ou chefe de polfcia, quern sabe? Eu, chefe de policial Estou a ver a cara do povo... Antes uma capeia: carruagem, criado de libre... o povo a vir bater-me a porta: (Num torn de voz humilde) Meu senhor: nos nao temos pao em casa... De-nos uma esmolinha por alma de quern la tern... Nao se esqueca de que tambem ja teve de mendigar... (Voltando ao torn de voz habitual) E eu la Ihes vou dando umas moedas, por caridade... (Vira-se para os polfcias) Gostavam de me ter como chefe? l.° POLÍCIA Näo queriamos outra vida... Nunca te havias de esquecer de que tínhamos sido nós os portadores da boa nova... VICENTE (Rindo-se com desprezo) Ah! ah! ah! Os degraus da vida sao logo esquecidos por quern sobe a escada... Pobre de quern lembre ao poderoso a sua origem... Do alto do poder, tudo o que ficou para tras e 30 31 ActOl vago e nebuioso. No Olimpo designam-se por pastores desencaminhados os que těm a ousadia de lembrar as promessas do passado ou de evo-car o initio da ascensäo... (Rindo-se) Airtda há pouco voces diziam que eu atrai-coara os meus... Nunca se fala de traicäo a quern sobe na vida... Quern sobe, amigos, larga os homens e aproxima-se de Deus! Passa a ser juígado por outras leis... Entäo voces julgam que, se eu fosse polícia, os queria debaixo das minhas ordens? A voces, que sabem como eu comecei? (Rise) Vá! Vamos embora. Näo convém que o Sr. Covernador tenha de esperar por quem o serve com tanta dedicacäo... 1.° POLÍCIA Aquilo que nós dissemos há bocado.. a brincar, Vicente. era (Vicente rise alto. As tres personagens viram as costas ao publico e encaminhamse para o fundo do palco com determinacao. A meio caminho, o fundo iluminase. De pe, a direita, D. Miguel Pereira Forjaz aguarda-os de bracos cruzados.) Em torn paternal. As tres personagens těm de actuar com determinacao para que näo haja dúvidas acer-ca da sua intencäo de se deslocarem dum local para outro. 32 Fingindo-se incrédulo. Fala com seguranca e a conviccäo de quem sabe que agrada ao papa e aos que se mos-trem ainda mais papis-tas do que ele. WLUAR-03 33 1.° POLÍCIA Excelencia. D. MIGUEL (interrompendo-o com am gesto) Este homem e seguro? Pode confiar-se nele? VICENTE (Avancando e fazendo uma venia prolon-gada) Como em Deus, Excelencia. Honesto e dedicado a el-rei como eu, havera poucos fidalgosneste Reino... D. MIGUEL Fidalgos? VICENTE Fidalgos, Excelencia! De muitos poderia eu contar coisas de espantar. E certo que so poderia falar dos que andaram la por fora. As Francas deram a volta a minha cabeca... Hoje sao mais os estrangeirados do que os Portugueses... (Cospe com repugndncia) Feüzmente Há Laar! Acto! D. MIGUEL Que sabe voce do meu primo? VICENTE (Espantado) Do primo de V. Excelencia? D. MIGUEL Falo do general Comes Freire d'Andrade. VICENTE Sou urn homem do povo, Excelencia... Tenho o general Gomes Freire na conta em que o tem o povo. D. MIGUEL E em que conta o tem o povo? VICENTE Excelencia: Se pusermos de parte a pessoa ďel-rei e a vossa, a ninguém tem o povo mais amor do que ao primo de V. Excelencia. Sol-dado distinto, súbdito fiel... Em ninguém pôe o povo mais esperanca do que no general... O espanto de Vicente pode revestir a forma dum olhar interrogador para os dois policias que o ladeiam. Fixa atentamente D. Miguel porque näo tem a certeza de estar a agradar. A meio da frase faz uma pausa para estudar a reaccäo do govern ador, e reco-meca. Francamente adulador; ! 34 irritado. Vicente comeca a com-preender que se enga-nou ao gabar Comes Freire, mas ainda näo sabc que caminho há--do tomar. Com esperanca. Como quern pede des-culpa. Com escárnio. D. MIGUEL Esperanca de qué? VICENTE (Depois de examinar o governador com atencäo) Excelencia: fala-se de... fala-se de... V. Ex.a näo pode ignorar que se fala de revo-lucäo. D. MIGUEL E liga-se o nome de meu primo a essa revo-lucäo? VICENTE O povo fala... D, MIGUEL O povo fala... E que interessa o que diz o povo? VICENTE Hä quem diga que a voz do povo e a voz de Deus... Mas tambem hä quem diga o contrario! Bern vistas as coisas, que pode a voz do povo contra a voz d'el-rei? 35: Felizmente Há Luar! Acto I UMA VOZ (Vinda de fora do palco e aumentando a intensidade á medida que o principál Sousa se aproxima dos presentes) Diz o "Eclesiastes" que, tendo Deus divídí-do o género humano em várias nacôes, a cada uma delas deu um princípe que a gover-nasse... (O principál Sousa surge no palco, impo-nentemente vestido) É de origem divina o poder dos reis e é por-tanto a sua - e näo a do povo - a voz de Deus. Fala com irónia, como um homem que, tendo sido aceite num dube dc acesso difícil, se ädapta ímediatamente ä linguagem dos sócios mais antigos. VICENTE (Com humildade) O povo, Reverenda, näo leu o "Eclesiastes" e pouco se preocupa com a origem do poder. Interessa-íhe mais o prečo do päo... Talvez, se o ensinassem a lerr tomasse conhecimento do "Eclesiastes"... PRINCIPAL SOUSA E talvez náo, meu filho: a sabedoria é táo perigosa como a ignoráncia! Ambas podem afastar o homem de Deus e dos seus cami-nhos. Sei bem como a palavra "liberdade", na boča dos demagogos, se torna aliciante e admito, até, que o soberano, por vezeš, tenha ido contra a lei estabelecida, mas esta inter- rupcáo duma lei particular é justificada pela lei geral, que Ihe confia todo o poder neces-sário para a salvacáo do Estado... Compreendes, meu filho? VICENTE Se compreendo, Reverenda! Ä medida que vou envelhecendo, a minha capacidade de compreensäo torna-se cada vez maior... D. MIGUEL (Para o principal Sousa) De toda a parte me vem relatórios inquie-tantes, Reveréncia. O povo fala abertamente em revolucäo... Nas lojas de bebidas, mur-murando-se o nome de Comes Freire... VICENTE No Cais do Sodré há um café, Excelencia, onde se reúnem todos os dias os defensores dosistema dascortes... D. MIGUEL A revolta de Pernambuco incendiou as almas. PRINCIPAL SOUSA Há que apagar o fogo perseguindo os insensatos, Sr. Covernador. Se o poder é de 36 37 Felizmente Há Luar! Ado I origem divina, os que contra ele se batem, a si mesmos trazem a condenacao, como S. Paulo inculcou aos Romanos... D. MIGUEL (Para Vicente) Tenho urna missäo para si. Quero que se tome conhecido para os lados do Rato e que veja quern entra em casa de meu primo. Quero que me venha aqui trazer, todas as manhäs, uma lista das pessoas com quem o general se dá. Uma lista a que näo falte nin-guém. Se cumprir esta missäo com o zelo que Ihe impôe o seu dever e a gravidade da situa-cäo, prometo-lhe que näo acabará os seus dias a pedir. Interessa-lhe a chefia dum posto de polícia? VICENTE Só me interessa, Excelencia, a oportunida-de de servir el-rei e a Patria. Nada mais me interessa, Agora - ou mais tarde, como chefe de polícia - é oquefarei... (Vicente faz urna vénia.) PRINCIPAL SOUSA Vá, meu filho, e ajude-nos a cuidar do rebanho, indicando-nos as ovelhas tresma-Ihadas antes que elas contagiem as restan-tes. Que Deus o proteja na sua missäo. (Vicente faz outra vénia e, iadeado pelos doís polícias, avanca para o centro do palco enquanto a luz do fundo se apaga.) VICENTE (Rindo-se) E falavam voces de traicäo... (Rise mais) Como véem, näo se trata de traicäo, mas antes pelo contrario, de zelo e dedicacäo pela causa da Pátria e ďel-rei... (Rindo-se mais ainda) Até Deus está comigo, näo ouviram? Diz--me com quem andas e dir-te-ei quem és... Estende o braco num gesto que, näo sendo o da bencäo, deve, toda-via, sugeri-lo. I.0 POLÍCIA (Irónico) Referes-te a Deus ou a ti? (Vicente ri. Saem os tres pela esquerda, enquanto o principal Sousa e D. Miguel avan-cam até se encontrarem no centro e a f rente do palco, Vem faiando) PRINCIPAL SOUSA Se a um ministro de Deus é permitido odiar, que o Senhor, um dia, perdoe o ódio que tenho aos Franceses... 38 39 Felizmente Há Luar! Veja, Sr. D. Miguel, como eles transforma-ram esta terra de gente pobre mas feliz n urn antro de revoltados! Por essas aldeias fora é cada vez maíor o numero dos que só pensam aprender a ler... Dizem-me que se fala aber-tamente em guilhotinas e que o povo canta peías ruas cancôes subversivas. D. MIGUEL A polícia näo chega para arrancar os pas-quins revolucionários das portas das igre-jas... O mundo parece estar atacado de loucura, Reverenda... PRINCIPAL SOUSA Maior é, por isso mesmo, a nossa responsa-bilidade. Esta noite sonhei que nos, os gover-nadores do Reino, tinhamos sido destacados, peio Senhor, para a primeira linha de comba-te eterno entre o bem e o mal. Temos urna missäo a cumprir, urna missäo sagrada e penosa: a de conservar no jardim do Senhor este pequeno canteiro portugués. Enquanto a Európa se desfaz, o nosso povo tem de con-tinuar a ver, no Céu, a Cruz de Ourique. D. MIGUEL Se a Europa nos desse ouvidos... BERESFORD (Avancando do fundo do palco e falando) A Europa... A Europa... Deixai-a que ela Em tom de confidéncía, Fala como um hörnern desiludido que, depois de ter dado o melhor do seu trabalho, se ve incompreendido e desacreditado. Acto I Aponta para o tecto. Beresford vem fardado. Afarda, ainda que reguiamentar, näo é espaventosa e está um pouco usadá. 0 principal näo gosta de Beresford e faia-lhe sem sorrir. Beresford fala como quem fala a urna crian-ca. Fala para D. Miguel, mas vé-se que se refere a Beresford, para quem olha ao falar no Conse-Iho da Regéncia. nem se perde nem carece dos vossos conse-Ihos. (Cumprimenta os dois) Exceléncias: näo vim aqui para perder tempo com conversasfilosóficas. Venho falar--Ihes de coisas mais sérias. PRINCIPAL SOUSA O marechal Beresford sabe de alguma coisa mais séria do que a conservacäo do reino do Senhor? BERESFORD (Encolhendo os ombros) Poupe-me os seus sermöes, Reverenda. Hoje näo é domingo e o meu senhor näo é vassalo de Roma. PRINCIPAL SOUSA (Para D. Miguel) O reino de Deus está a saque e os inimigos do Senhor já näo se encontram apenas na rua... Há-os nos palácios e no proprio Conse-Iho da Regéncia. Ao que o mundo chegou, para que me veja obrigado a aceitar o auxílio dum herege a fim de combater outros here-ges... 40 41 Felizmente Há Luar! Acta [ BERESFORD Senhores: Deixemos o reino de Deus para outra ocasiäo. O que me traz aquí é bem mais grave. Enquanto estamos a conversar - neste mesmo momento - conjura-se abertamente em Lisboa. Dentro de minutos vem aqui um oficiat repetir a VV. Ex.as o que me disse ontem, ä noite, em minha casa. Oicam bem o que e!e diz, porque, da deci-säo que tomarmos, depende a cabeca de V. Ex.a, Sr, D. Miguel, os meus 16 000$00 anuais e a possibilidade de o principál Sousa continuar a interferir nos negócios deste Reino. D. MIGUEL Querem matar-me? BERESFORD Talvez näo o queiram, mas těm de o fazer. Quando se carrega no gatilho duma espín-garda, a bala tem necessariamente de sair, ainda que se tape a boča do cano com a máo, ou que ali o Sr. Covernador reze trěs tercos para a reter. Näo há receio nem irónia na voz de D. Miguel... Beresford é um hörnern prático, que encara objectivamente a reali-dade. O seu tom de voz está de acordo com a sua maneira de ser. D. MIGUEL (Falando sozinho) Sempře a Revolucäo Francesa... (Para os dois) Temos de a impedir seja como for. Temos de a impedir com tal brutalidade que ninguém volte a conjurar neste Reino... Se o náo fizermos, se tivermos piedade, ou escrúpulos, mais tarde ou mais cedo voltare-mos ao mesmo. BERESFORD Conheco o nome de alguns conspiradores, mas näo sei quem seja o chefě... PRINCIPAL SOUSA O nome do chefe é o que menos interessa. Ninguém se lembra do nome do tocador de trombeta que fez abater os muros de Jericó, mas Jericó caiu... D. MIGUEL (Para Beresford) Quem é o oficial que nos anunciou? BERESFORD Um tal Andrade Corvo de Camóes. Mau oficial, ignorante, e julgo, até, que pedreiro--livre. PRINCIPAL SOUSA Mas dedicado, ao que parece. 42 43 BERESFORD Dedicado ä sua propria causa, como todos os da sua iaia... Pretende ser promovido pela denúncia, já que o näo pode ser por mérito. (Sorri) É aquilo a que se cháma aqui um bom rapaz: bem vestido, amigo dos prazeres e com täo poucos conhecimentos que, se el-rei voltasse do Braši!, bem o poderia fazer moco do paco... D. MIGUEL (Para Beresford) Ainda há pouco saiu daqui um hörnern que confirmou tudo o que V. Ex.a diz... Um tal Vicente... BERESFORD (Rindo-se) Dois denunciantes: um Corvo e um Vicente. Säo as armas da cidade... D. MIGUEL Deve estara chegar. PRINCIPAL SOUSA Vamos, entäo, recebé-ío. j Felizmente Há Luar! Beresford fa f a com des-prezo. Acto I (Viram as costas ao publico e encami-nham-se para o fundo do palco enquanto, pela esquerda, en tram Andrade Corvo e Morals Sarmento, embucados.) CORVO 800$00 por ano! Com 800$00 por ano, um hörnern pode fazer figura nesta cidade... MORA1S SARMENTO E a mim? Quanto me daräo a mim? CORVO Näo tome a sério o que Ihe digo, capitäo. Tudo isto näo passa de uma esperanca. É bem possível que näo me déem nada... MORAIS SARMENTO Com 800$00 por ano, nunca mais punha os pés no regimente. CORVO Deixemo-nos de sonhos e vamos andando. Suas Exceléncias devem estar ä nossa espera. (Andrade Corvo dá um passo, mas o amigo agarra-lhe o braco e detém-no.) MORAIS SARMENTO So uma coisa me preocupa... CORVO Que e? MORAIS SARMENTO Oqueväodizerde nös. CORVO 0 que estä feito, estä feito. De qualquer forma, näo se esqueca, capitäo, de que nos enforcariam com toda a certeza se Ihes pas-sasse peia cabeca que tfnhamos tido conhe-cimento de tudo e que tfnhamos ficado cala-dos... (Sorri) Olhe, meu amigo, a partir de hoje so temos uma coisa a fazer: ser mais reaiistas do que o proprio rei. Dessa forma compreenderäo que actuamos por amor ä Pätria e a el-rei... MORAIS SARMENTO Muitos duvidaräo. CORVO Chamaremos jacobinos aos que duvida-rem! feiizmente Ha Luari Ado I; MORAIS SARMENTO Sente-se que estä preo-cupado. Impaciente. Chamar-nos-äo denunciantes... CORVO Desses diremos que säo traidores ä Pätria. MORAIS SARMENTO Naofalaräo connosco... Fala rapidamente, com visfvel impaciencia. CORVO Antes pelo contrario: nös e que Ihes näo falaremos... MORAIS SARMENTO Os nossos filhos... CORVO Usaräo os nomes de suas mäes e gastaräo o dinheiro de seus pais... Ve como tudo e simples? Meu amigo: voce desconhece o que se compra de respeitabilidade com uma pen-säo anual de800$00... Vamos. Estä a fazer-se tarde. (Ilumina-se o palco. D. Miguel Forjaz, Beresford e o principal Sousa estäo sentados em tres cadeiras pesadas e ricas com aparen-da de tronos.) 46 47 i Felizmente Há Luar! Acto 1 BERESFORD O capitäo Andrade Corvo, de quem Ihes faiéi, Excelěncias. (Os governadores do Reino observam os recém-chegados com atencäo, mas näo esbo-cam um gesto para os cumprimentar.) CORVO Excelěncias: trago comigo um patriota que pode testemunhar o que ontem contei ao Sr. Marechal. D. MIGUEL (Rindo-se) Os "patriotas" raras vezeš andam sozi-nhos... Defendem-se sempře, andando em grupo, tal é o con heci mento que těm de si mesmos... Diga-me, Sr. Capitáo, como se cháma o "patriota" seu amigo? A palavra "patriota" é proferída com ifonia. CORVO Pedro Pinto de Morais Sarmento, capitáo. BERESFORD E quem Ihe disse que eu precisava de tes-temunhas para crer no que ontem me con-tou? CORVO Dois depoimentos valem mais do que um só. D. MIGUEL (Para os governadores) Os "patriotas" acabam sempře por julgar os outros pelo conceito que de si próprios těm... Quando querem crédito para o que dizem, avancam sempře de prova em punho e testemunha ao lado... (Para o capitäo) Dois depoimentos valem entáo mais do que um só? Isso näo será, Senhor Capitäo, a apologia do sistema das cortes? CORVO Exceléncia: referia-me a depoimentos de gente comum. É evidente que um só depoimento de qua-lidade anuía todos os restantes... PRINCIPAL SOUSA E so el-rei tern essa qualidade e so o Salvador a pode conferir... D.MIGUEL 0 seu nome näo me e estranho. Alguem me disse que o Sr. Capitäo exerceu grande WFLUAR-04 49 Felizmente Há Luar! Acto I actividadc numa loja macónica designada peío nome de "Virtude"... ä Rua de Säo Bento. CORVO Nunca ocultei que, na verdade, andei per-dido... D. MiGUEL Tern agora ocasiäo para nos mostrar que já o näo anda. Ei-rei é generoso para com os seus súbditos dedicados, mas é implacável para com quem se perde peios caminhos... Conte-nos o que sabe. CORVO Senhor: há dois dias o meu amigo Morais Sarmento entrou no botequim do Marrare e encontrou um tal Calheiros, que Ihe mostrou urna proclamacäo contra o rei, o Sr. Marechal e os empregados púbiicos... PRINCIPAL SOUSA Essa proclamacäo referia-se ä Igreja, meu filho? MORAIS SARMENTO Näo, Reverenda, näo vi quaiquer... CORVO Mas referia-se a V. Ex.a, como governador que é do Reino... BERESFORD (Para os governadores) Infelizmente näo Ihe foi possível obter a prociamacäo... D. MIGUEL Que é preciso obter a todo o custo. Que mais soube, capitäo? CORVO Que se trama urna conspiracäo, Excelencia. D. MICUEL E quem a dirige? CORVO Näo sei, Excelencia. BERESFORD (Para os governadores) Só o poderemos saber através destes 50 51 j Felízmente Há Luar! Acto 1 dois... "patriotas". Creio que teremos de Ihes pedir que nos obtenham a prodamacäo... D. MIGUEL (Para os capitäes) Näo Ihes quero ocultar o que sei a vosso respeito. Tanto o Sr. Capitäo Corvo como o Sr. CapitäoMoraisSarmentopertencem ä Maco-naria e ambos estäo, portanto, numa situa-cäo delicada. (Levanta-se e passeia de um lado para o outro) Para readquirirem a confianca da Regén-cia, tém de a servir com o mesmo zelo com que serviram as suas lojas. Certamente Ihes näo será difícil faze-lo... principalmente se souberem que os aguarda näo só a confianca d'el-rei como algo mais substancial... (Volta a sentar-se.) O tom é trocista. Beres-ford näo perde ocasiäo de provocar o principal. BERESFORD Tragam-nos a prodamacäo... obtenham--na seja como for... CORVO O Calheiros é de Santarém, Excelencia. Conheco um amigo dele, um tal Joäo de Sá Pereira,que bem manejado, talvezconsiga... PRINCIPAL SOUSA Os pormenores, Sr. Capitäo, säo consigo. Näo me interessa saber como säo castigados os inimigos do Senhor mas, apenas, que o säo. BERESFORD Näo percam tempo, senhores. O momento é grave e a causa justa. Väo. (Corvo e Morals Sarmento saem pela esquerda do palco.) BERESFORD (Para o principal Sousa) Näo se pode dízer, Reverenda, que para esta seara os bracos sejam poucos... PRINCIPAL SOUSA Ainda há Portugueses honrados nos tempos que correm... BERESFORD (Rindo-se) Atrásde nós... PRINCIPAL SOUSA (Que näo compreendeu o marechal) Felizmente Há Luor! Actol Atrás de nós? BERESFORD Limitei-me a completar a sua frase, Reverenda. Espero que näo tenha ilusóes acerca da revolta que se trama! É o tempo, Reverenda, o tempo que corre atrás de nós. O velho está sem pre a ceder perante o novo e o novo sempře a destruiro velho... PRINCIPAL SOUSA Trama-se contra el-rei, e V. Ex.a brinca! BERESFORD (Rindo-se) Näo brinco, Reverenda, näo brinco... Den-tre nós, só V. Reverenda brinca... e com o fog o! PRINCIPAL SOUSA Fala de taj forma que ninguém o entende. BERESFORD Preferia, certamente, que me exprimisse em latim? D. MIGUEL (Com autohdade) Senhores! A paz deste Reino e a missao que el-rei nos confiou nao permitem que per-camos tempo com conversas futeis. Trama-se uma conjura destinada a atacar a propria estrutura da sociedade em que vivemos. Se nao tomarmos as necessarias precaucoes, dentro em breve teremos a desordem nas ruas e a anarquia nas almas! Catalogando-o de humorista, finge näo compreender a irónia dos seus comentários e assim se justifica junto dos outros, por näo Ihe responder. 0 torn do marechal e sempre jocoso. Sente--se que naotoma os Portugueses a serio, embora esteja disposto a coiaborar com eles na medida do necessa-rio para a obtencao dos seus fins. BERESFORD E näo estaremos cá para assistir ao espec-táculo... PRINCIPAL SOUSA Deus Nosso Senhor näo permitirá que se destrua a Sua autoridadel BERESFORD (Rindo-se) Como a vida num pais pequeno acaba por atrofiar as almas!... Diga-me, Reverenda, onde estava Deus Nosso Senhor, em 1793, quando os Franceses cortaram a cabeca ao representante da Sua autoridade? 54 55 '. Felizmente Há Luar! PRINCIPAL SOUSA Excelencia! Vai longe de mais nos seus gracejos! BERESFORD Neste Con5elho só eu me posso dar ao luxo de gracejar! Se a autoridade de Deus Nosso Sen hor for discutida, VV. Ex.as, como repre-sentantes que säo dessa autoridade, seguiräo o destino que ela tiver... mas eu - urn simples técnico estrangeiro - serei devolvido ä proceděncia... voltarei ä minha terra, onde os hereges, Reverenda, reguiamentaram a autoridade do Senhor a tempo de evitar a guilhotina. (Levanta-se e encaminha-se para a esquer-da do palco) Como vé, Reverenda, sou o unito dos pre-sentes que se pode dar ao iuxo de gracejar... (Olhando para a rua, duma janela) Esta um lindo dia! Na minha terra, quando apanhamos urn dia assim, saimos a cavalo. Os prados säo täo verdes, Excelencias, que os olhos acabam por se cansar. E as árvores... quern näo viu as árvores da minha terra, nunca viu árvores... D. MIGUEL Também aqui se pode sair a cavalo. O principal Sousa nunca conseguiu discutir com o marechal. Defen-de-se dele negando-lhe a seriedade necessária a urna discussäo. Através da janela, Beresford contempla uma paisagem portu-guesa e descreve as belezas naturais da sua terra. Esta situacäo é, em si mesma, uma críti-ca a Portugal, que ele, como se depreende, despreza. Actol Fala lentamente. Está a lembrar-se de tudo o que deixou atrás de si. BERESFORD Sim, também aqui se pode sair a cavalo, mas os prados säo secos, Excelencia, e as árvores täo entisicadas que parecem ter sido todas plantadas pelo principál Sousa... PRINCIPAL SOUSA (Com fúria) Entäo porque se näo vai embora? Porque näo regressa aos seus prados e äs suas árvores? BERESFORD Porque näo tenciono regressar sem ter assegurado um futuro que me compense dos sacrifľcios do presente, Excelencia. Sou duma terra onde as leis säo humanas, as pessoas cultas e a vida cheia de sentido... Sou duma terra onde um homem vive como um homem... (Pausa) E estou aqui, entre vós, discutindo filoso-fias mortas e preparando execucôes! (Encolhe os ombros e vira-se para os res-tantes governadores) Que me dais, senhores, para me compen-sar de tudo o que fui forcado a abandonar para os servir? Honras? E quem mas presta? O vosso exército pindérico? Os vossos doutores em Teológia? 57 (Ri-se) Tftulos? Mas quem e o marques do Campo Maior fora do botequim do Marrare? (Ri-se) Nao, Excelencia, nao! Pretendo uma unica coisa de vos: que me pagueis - e bem! Tao bem que, ao voltar a minha terra, possa o!har para tras sem lamentar os anos que por ca perdi. Estou aqui pelos mesmos motivos que vos levam a viver durante anos nas florestas do Brasil e, por isso mesmo, sou o mais fie! e o mais dedicado dos vassalos deste Reino. E preciso acreditar no poder divino d'el-rei? Ca esta o marechal Beresford para acreditar no poder divino d'el-rei. E preciso assistir ao Te Deum do Principal Sousa? Ca esta o marechal Beresford, marques de Campo Maior, para assistir a todos os Te Deums a que seja neces-sario assistir, desde que Ihe paguem, ao fim do ano, a quantia que urn dia Ihe permitira, na sua terra, viver comogentleman] D.MIGUEL Um mercenário! BERESFORD (Rindo-se) Troco os meus servieos por dinheiro, Excelencia. Há quem os troque por uns anos no poder e há quem os troque por outras coisas. Haveis de compreender, senhores, que esta näo é a minha patria e que näo é por patrio- Felizmente Há luar! Sente-se nesta frase do marechal um sarcasmo violento que reduz os preserves, a cidade e o pais a uma insignificán-cia provinciana e total. Actol tismo que vos estou reorganizando o exerci-to. Mas... deixemo-nos de conversas inuteis! Nao interessa agora saber o que leva cada urn de nos a actuar desta ou daquela manei-ra. 0 que interessa e saber qual e a melhor forma de sufocar a revoita que se prepara. (Sorri) Senhores, afirmo-vos em nome dos meus 16 000$00 anuais, que farei tudo o que for necessario para os continuar a receber! D.MIGUEL Contoconsigo, Excelencia! PRINCIPAL SOUSA Encolhe os ombros num gesto de desprezo. Nao Ihe oculto que nao gosto de si, Sr. Marechal, mas sei que no momento presente preciso do seu auxilio. (Para D. Miguel) Quem sera, Sr. Governador, o chefe da con-jura? D. MIGUEL (Rindo-se) Que importa? Essa pergunta, Reverenda, näo é digna dum estadista. Que urn irrespon-sáve! queira saber quem é o chefe duma conspiracäo, entende-se, mas que urn estadista também o queira, já näo. 58 59 Felizmente Há Luar! Acto! Perante uma conjura, o estadista esfrega as mäos, Reverenda, e agradece ao Senhor a oportunidade de aniquilar alguns inimigos de Deus e do Estado. (Leva n tase) A pergunta é: quern deverá, ou convirá, que tenha sido o chefe da revolta? PRINCIPAL SOUSA E condena-se urn inocente? D.MIGUEL Nao ha inocentes, Reverencia. Em politica, quern nao e por nos, e contra nos. (Entra Vicente pela esquerda do palco.) VICENTE Senhores! Senhores! Ontem a noite entra-ram mais de dez pessoas em casa de... D. MIGUEL Cuidado! VICENTE (Atrapalhado. Olhando a sua volta) Entraram mais de dez pessoas na casa que O principal Sousa, que só no segundo acto se revela inteiramente, apenas pretende salvar a sua consciéncia, isto é, apenas deseja ser convencido, pelos outros, da necessidadé de tomar as medidas, que, alias, já está intek ramente decidido a tomar. fui incumbido de vigiar... D. MIGUEL Conhece-lhes os nomes? VICENTE Só de sete, senhor. D. MIGUEL (Para Vicente) Está bem. Continue. (D. Miguel, depois de Vicente ter saido pela esquerda do palco, prossegue para os governadores) A questäo que temos de resolver, Excelencia, é, portanto, bem simples. Consiste apenas em chegarmos a acordo acerca da pessoa que mais nos convém que tenha sido o chefe da conjura. PRINCIPAL SOUSA Näo me agrada a condenacäo dum inocente. BERESFORD Está nas suas mäos, Reverenda, evitar que seja condenado urn inocente.,. 60 61 Felizmente Hú Luar! PRINCIPAL SOUSA Como? BERESFORD (Sorrindo) Nomeando quem tenha na alma a semeňte do jacobinismo... Se peca quem näo acata a palavra de Deus, mais peca, com certeza, quem näo acei-te ou discuta a Sua autoridade... V. Reverenda ainda há pouco disse que a autoridade dos reis provinha de Deus... PRINCIPAL SOUSA Na verdade... BERESFORD (Rindo-se) Até os mercenários sabem teológia... Säo eles, alias, que mais vezeš carecem dela, A consciěncia humana, Reverenda, satisfaz-se com meia dúzia de artífícios mentais. PRINCIPAL SOUSA Lá está V. Ex.a brincando outra vez! (Pausa) Digam-me: já pensaram em alguém? A ingenuidade do principal Sousa näo é ver-dadeira. Este prelado defende-se, sempře, tentando mostrar-se alheio ä política e äs decisöes em que intervene ACtO i Beresford fa la sozinho. Estaca, A ultima frase é proferida no torn de quem já pensou no assunto. D. MIGUEL O problema é delicado. BERESFORD (Levanta-se e passeia dum lado para o outro do paico) A minha missäo consiste em reorganizar o exército e é meu inimigo, portanto, quem me dificulte esta missäo. (A luz que melde sobre D. Miguel e o principál Sousa comeca a diminuir de intensida-de até desaparecer, ficando apenas Beresford iluminado) É, também, meu inimigo quem me possa substituir na organizacao do exército... ou lá se väo os meus 16 000$00. Dizem que eu sou um grande sargento e um mau oficial, que sei organizar um exército, mas que näo o sei comandar em campanha. Bašta que surja um oficial com um passado briihante para me destronar... Näo devo esquecer-me de que estou rodeado de inimigos: o clero odeia-me por-que näo sou da sua seita; a nobreza, porque näo Ihe concedo privilégios; o povo, porque me identifica com a nobreza, e todos, sem excepcao, porque sou estrangeiro... 0 proprio D. Miguel só vé em mim uma limitaeäoaoseu poder... Neste país de intrigas e de traicöes, só se entendem uns com os outros para destruir um inimigo comum e eu posso transformar--me nesse inimigo comum.se näotivercuida-do. 62 63 Feiizmente Há Luor! Actol (Pausa) Näo é prudente ainda dize-lo aos outros, mas näo há dúvida de que existe um portu-gués capaz de me destronar... (Fala agora para D. Miguel e o principál Sousa, que surgem subitamente iluminados) Senhores, temos de encontrar alguém que tertha prestígio no exército. Julgo que nos convém um oficiaí de patente elevada, com um bom passado militar. Concretamente, näo sei de ninguém que Ihes possa indicar. (Senta-se e, pela direita do palco, entra And rade Corvo embucado.) CORVO Excelěncias: Já partiram para a província emissários dos conjurados e sei que é elevado o numero de pessoas envolvidas na conspira-cäo. Cá ando, sempře fiel a el-rei, na missáo de que me incumbiram... (5ai pela esquerda do palco.) PRINCIPAL SOUSA Mas, Srs. Covernadores, sem provas, sem nada com que demonstremos a culpabilidade do réu, onde encontraremos oficiais que o přendám e juízes que o condenem? 64 ÄUAR-05 65 D. MIGUEL Nada há de mais fácii, Reverenda. Para o publico näo compreender o que se passa, o julgamento será secreto, e para evitar o per-däo de el-rei, a execucäo seguir-se-á imedia-tamente ä sentenca. PRINCIPAL SOUSA Equantoajutzes? D.MIGUEL Reverenda: as provas judiciais pertencem ao domínio da razäo e, se näo pudermos con-denar nesse domínio, faremos com que o julgamento decorra no outro, o da emocäo, já que a emocäo, Reverenda, nem carece de provas, nem se apoia na razäo. PRINCIPAL SOUSA E a quem recorreremos? D.MIGUEL A "patríotas", Reverenda. Há-os sempře prontos a condenar o que nao entendem e a classificar de racionais os seus estados emoti-vos. Os estadistas recorrem a ta! gente sempře que a mais nada podem recorrer... PRINCIPAL SOUSA Mas... prestar-se-äo a isso? Felizmente Há Laar! Acta f D.MIGUEL A tudo, Reverenda, a tudo! Aliás, os seus servicos näo seräo gratuitos... Para ojuizda Inconfidénda irao os bens do condenado... Para os restantes, Reverenda, comendas e promocôes,.. El-rei é generoso! BERESFORD Verá, Reverenda, que também näo falta-räo bracospara esta seara... bašta prometer melhoria de rancho a todos os que colabora-rem... Zombeteiro. PRINCIPAL SOUSA Näo séria preferível meter todos os conspi-radores numa fragata, e mandá-los... (Entra pela direita do palco Mom is Sar-mento, que interrompe o principal.) MORAISSARMENTO Exceléncias: a conspiracäo destina-se a implantar neste Reino o sistema de cortes! D. MIGUEL Os denunciadores valo rizam os seus servicos exagerando a gravida-de da conjura. (Depois de um momento de espanto) Aqui tem, Reverenda, a resposta á sua pergunta. Náo! Náo e náo! Meter essa gente numa fragata seria dar a tudo um ar de violéncia e de injustica que só serviria os projectos dos seus aderentes. É preciso acabar de vez com esta gangrena. Já pensou em alguém, Reverenda, que a Deus e ao Estado convenha liquidar? PRINCIPAL SOUSA Sao muitos os inimigos do Senhor, nos dias que vao correndo. Fa!a-se de Deus com ironia e da sua Igreja como se de letra morta se tra-tasse... Os piores, Srs, Covernantes, sao os pedrei-ros-livres... Ninguem mais do que eles contri-bui para o alastramento da gangrena. Quern sera o chefe da Maconaria? (Entra Vicente pela esquerda do palco.) VICENTE Grande numero de conspiradores sáo ofi-ciais, mas há muitos civis que aguardam a revolta com entusiasmo... (Entra Corvo pela direita do palco.) CORVO No estado em que se encontra o Reino, bašta um grito na rua para que as labaredas alastrem de norte a sul... VICENTE E para que o sangue corra nas ruas. 66 67 Felizmente Há Luar! Acto I CORVO De cada árvore farao uma forca, de cada cave uma prisao... PRINCIPAL SOUSA Tenho medo... (Para D. Miguel) Senhor Governador, tenho medo. Há dois dias que quase náo durmo e mesmo, quando passo pelo sono, perseguem-me imagens ter-ríveis: imagino-me réu perante um tribunal que me nao respeita. Dedos imundos tocam-me as vestes. Sonhei já trés vezeš que estava no Campo de SantAna, subindo ao cadafalso, enquanto á minha volta os gritos do povo me náo deixa-vam, sequer, ouvir a sentenca... BERESFORD (Para Vicente e para Cory o) Os chefes?! Quem sáo os chefes? CORVO Fala-se deste e daquele, mas ninguém sabe ao certo. BERESFORD Quero saber quem säo os chefes. Comprem quern for preciso, vendam a alma ao diabo, mas tragam-nos os nomes dos chefes... (Corvo e Vicente saem.) D. MIGUEL Eu também tenho medo, senhores, mas o meu medo näo é semelhante ao vosso. Pouco me importa a fortuna ou a vida, ambas daria de boa vontade, se me fosse necessário fazé--lo, pela minha terra. A Pátria, Exceléncias, náoé, para mim, uma palavra vä... Se algum sonho tenho, se a um estadista é permitido sonhar, o meu sonho é de náo morrer sem exterminar de vez as sementes da anarquia e do jacobinismo... Sonho com um Portugal próspero e feiiz, com um povo simples, bom e confiante, que viva íavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor. Sonho com uma nobreza orgulhosa, que, das suas casas, dirija esta terra privilegiada. Vejo um clero, urna nobreza e um povo cons-cientes da sua missäo, integrados na estrutu-ra tradicionai do Reino... Näo Ihes nego, Exceléncias, que näo sou um homem do meu tempo. Um mundo em que näo se distinga, a olho nu, um prelado dum nobre, ou um nobre dum popular, näo é mundo em que eu deseje viver. Näo concebo a vida, Exceléncias, desde que o taberneiro da esquina possa discutir a opiniäo ďel-rei, nem me séria possível viver desde que a minha opiniäo valesse tanto como a de um arruaceiro. Pergunto-vos, senhores: que crédito, que honras, que posicóes séria m as nossas, se ao povo fosse dado escolher os seus chefes? 68 69 Feliimente Há Luarl Actol BERESFORD Já que temos ocasiäo de crucificar alguém, que escolhamos a quern valha a pena crucificar... Pensou em alguém, Exceléncia? D. MIGUEL (Passeando agitadamente ä frente do palco) Sou um hörnern de gabinete. Näo tenho as qualidades necessärias para falarao povo... (Comeca a apctgar-se a luz que ineide sobre Beresford e o prineipai Sousa) Repugna-me a accäo, estaria politicamen-te liquidado se tivesse de discutir as minhas ordens... Näo sou, e nunca serei, populär. Quem o for, e meu inimigo pessoal. (Pausa) No estado em que se encontra o Reino, basta o apareeimento de aiguem capaz de falar ao povo para inutilizar o trabalho de toda a minha vida... E hä quem seja capaz de ofazer... (Entram Corvo e Vicente, respectivamente pela esquerda e pela direita do palco.) Abre os bra cos no ges-to dramático de quem faz uma revelacäo importante e inespera da. Comecam a ouvir-se tambores ao longe, muito em surdina. VICENTE Exceléncias, todos falam num só hörnern... CORVO Um só nome anda na boca de toda a gente. (Surge Mora is Sa rmen to, que avanca do fundo do palco.) MORAIS SARMENTO Senhores Covernadores: onde quer que se conspire, só um nome vem ä baila. CORVO O nome do general Gomes Freire dAndra-de! (Acende-se a luz que ilumina Beresford e o principal Sousa.) D.MIGUEL Senhores Governadores: aí tendes o chefe da revoita. Notai que Ihe näo falta nada: é lúcido, é inteligente, é idolatrado peio povo, é um soldado briihante, é gräo-mestre da Maconaria e é, senhores, um estrangeira-do... BERESFORD Trata-se dum inimigo natural desta Regén-cia. 70 71 Felizmente Ha Luar! PRINCIPAL SOUSA Foi Deus que nos indicou o seu nome. D.MIGUEL (Sorrindo) Deuse eu, senhores! Deuse eu... CORVO Mas, senhores, nada prova que o general seja o chefe da conjura. Tudo o que se diz pode nao passar de um boato... D.MIGUEL Cale-se! Onde esta a sua dedicacao a el--res, capitao? PRINCIPAL SOUSA Agora me iembro de que ha anos, em Campo d'Ourique, Comes Freire prejudicou muito a meu irmao Rodrigo! D.MIGUEL Seeu fosse a falardoodioque Ihetenho... Actol D. Miguel anda, no pal-co, dum (ado para o outro, com passos deci-didos. BERESFORD 0 marques de Campo Maior tem razoes para odiar a Comes Freire... D.MIGUEL E, agora, meus senhores, ao trabalho! Para que o pais nao se levante em defesa dos con-jurados ha que prepara-lo previamente. Ha gente, senhores, que sente grande ardor patriotico sempre que os seus interesses estao em perigo. Ha que provocar esse ardor. Ha que por osfrades, por esse pais fora, a bra-mar dos pulpites contra os inimigos de Deus. Ha que procurar em cada regimento um ofi-cia! que se preste a dizer aos soldados que a Patria se encontra ameacada pelo inimigos de dentro. Ha que fazer tocar os tambores pelas ruas para se criar um ambiente de receio. Os estados emotivos, Srs. Governadores, dependem da musica que se tem no ouvido. Para que se mantenham, e necessario que as bandas nao parem de tocar. Quero os sinos das aldeias a tocar a rebate, os tambores, em fanfarra, nas paradas dos quarteis, os frades aos gritos nos pulpites, uma bandeira na mao de cada aldeao! (Comeca a entrar povo pela direita e peia esquerda do palco. Os tambores tocam sem cessar). Queroo pais inteiro a cantarem coro. Lem-brai-vos, senhores, de que uma pausa pode causar uma ruina de todos os nossos projec-tos! 72 73 Felizmente Há Luar! (Entra pela direita do paico um púlpito a que o principal Sousa sobe. Comeca a ouvir--se urn sino tocar a rebate.) PRINCIPAL SOUSA (Do púlpito) Meus filhos, meus filhos, a Patria está em perigo! Os inimigos de Deus preparam, na sombra, a ruina dos vossos lares, a violacäo das vossas filhas, a morte d'ei-rei! D. MIGUEL Portugueses: a hora näo é para contem- | Ostambores entram placôes! Sacrifiquemos tudo, mesmo as nos- ! em fanfarra e o palco sas consciéncias, no altar da Patria. \ enche-se de soldados. PRINCIPAL SOUSA Morte aos inimigos de Cristo! D. MIGUEL Morte ao traidor Gomes Freire dAndrade! (Apagam-se todas as luzes. As persona-gens ficam na penumbra agitando os bracos e erguendo bandeiras no ar. Durante urn espaco de tempo muito curto, ouvem-se os sinos e os tambores.) CAI O PANO 74 Acto II ACTO ai Ao abrir o pano a cena está as escuras. Uma única personagem, intensamente ilumi-nada, encontra-se a frente e ao centro do palco. É o popular que deu início ao primeiro acto. 0 segundo acto come-ca precísamente como o primeiro. Os actores devem ocupar no início děste acto as mesmas posicoes que ocupavam no primeiro, a fim de os espectadores compre-enderem náo se tratar esta semelhanca dum acidente ocasional. MANUEL Que posso eu fazer? Sim, que posso eu fazer? (Dá dois passos em direccáo ao fundo do palco. Detém-se) Sempře que há uma esperanca os tambo-res abafam-lhe a voz... Sempře que alguém grita os sinos tocam a rebate... (Pausa) E cai-nos tudo em cima: o rei, a polícia, a fome... (Levanta os bracos ao alto) Até Deus! (Deixa cair os bracos num gesto de desani-mo) 11 Felizmente Hú luarí E ficamos pior do que estávamos... Se tínhamos fome e esperanca, ficamos só com fome... Se, durante uns tempos, acreditámos em nós próprios, voltamos a näo acreditar em nada... (Nam tom de voz humilde e tré/nulo) Uma esmola por alma de quem lá tem, meu senhor... Também sou hörnern, também tenhofome, fílhos que queria ver homens, olhos para ver o luar, voz para dizer o que sinto, costas que morro a vergar... Uma esmola por alma de quem lá tem, senhor.., (Estende a mäo. Num gesto brusco torna a posicäo do indivfduo a quem estava q falar. Assume uma atitude nobre. Torna-se dum e ríspido) Tome lá cinco réis, homenzinho, e cale-se. Näo me toque! Estenda a mäo... vá! Edeixe--se de iamúrias! Näo é preciso que me ensine os meus deveres de cristáo; eu amo o proximo como a mim mesmo. (Faz o gesto de quem deixa cair uma moeda na mäo dum pobre) Afaste-se! Deixe-me passar. (Dum salto volta a sua posicäo iniciál, estende a mäo e adopta, novamente, o tom de voz anterior) Muito obrigado, meu senhor! (Faz uma vénia) Manuel representa agora, e quase simulta-neamente, dois papers. Quando passa dum para o outro, os seus gestos devem ser rapi-dos e energicos para que o publico com-preenda o que se esta" passando. ACtO II Fala com ironia, mas a frase deve ser proferi-da de forma a com-preender-se que ainda a dirige ä personagem que se afasta. Agora, fala sozinho e o seu tom de voz é, por-tanto, o habitual. Muito obrigado, meu senhor, pelo favor de me amardes como a vös mesmo. (Finge examinar a moeda imaginäria que acaba de receber) No Dia do Juizo, Deus Nosso Senhor levar--vos-a em conta estes cinco reis... (Faz uma nova venia e fica todo inclinado para a frente, seguindo com os olhos a personagem imaginäria que se afasta. Por fim, endireita-se e fica parado, no palco, em atitude de meditacäo) Esta madrugada prenderam Comes Frei-re... Levaram-no, escoitado, para S. Juliäo da Barra. Ja de !ä näo sai vivo! (Para o palco) Que mais sabem voces da prisäo do general? Ilumina-se o fundo do palco, quese encon-tra repleto de gente do povo disposta exacta-mente como para a cena de abertura do 1.° acto. I.0 POPULAR Do general? (Rise) Hörnern, vossemecě anda atrasado! 78 79 Felizmente Há Luar! Acto II 2. ° POPULAR Passaram toda a noite a prender gente por essa cidade... 3. ° POPULAR (Falando da outra extremidade do palco) Os quarteis ainda estao de prevencao, e la para os lados do Rato sao mais os soldados do que as pedras... OANTIGO SOLDADO (Visivelmente acabrunhado) Prenderam o general... Para nos, a noite ainda ficou maisescura... 1.° POPULAR E por pouco tempo, amigo. Espera pelo claraodasfogueiras... O ANTiCO SOLDADO E agora? (Ninguem responde. Pela direita do palco entram os dois polfcias.) 1.° POLICIA (Como que espantado por ver tanta gente reunida) O tom é profético e a voz triste. A pergunta deve ficar como que suspensa no espaco durante uns segundos, de forma a que a entrada dos polfcias pareca responder--Ihe. SO Perderam a alma. Dir--se-ia que a prisao de Comes Freire Ihes tirou a vontade de viver. Já a caminho de sair do palco. Olhem para isto! 2° POLICIA Daqui para fora! Vá: todos daqui para fora! Entäo voces näo sabem que estäo proi-bidos os ajuntamentos? (O povo levanta-se e comeca a abandonar o palco sem pressa.) MANUEL Ajuntamentos só nas cadeias, näo é? 1.° POLICIA Toca a andar, e nada de perguntas! 1, ° POPULAR Posso dormir com a minha mulher ou tam-bém formamos urn ajuntamento? 2. ° POLÍCIA (Para o colega) Näo Ihe respondas! (Para o povo) É andar e depressa, ou väo ver o que Ihes acontece! WlFLUAR-06 81 Feüzmente Há Luar! Acto II (Sctem todos, uns pela direita e outros pela j esquerda. I I A iluminacao do fundo desaparece gra- \ ■! duaimente. Manuel e Rita ficam para trás e i i 1 conversam á frente e ao centro do palco.) \ MANUEL E eu na descarga das barcacas, todo o dia sem saber de nada! RITA Eu vi o general sair de casa. Arrombaram--!he as portas e nem Ihe deram tempo de ves-tir-se. Só conseguiu calcar as botas ä saída. (Pausa) A muiherficou a choraraté de manhä. Pas-sei-lhe ä porta e ouvi-a solucar. Deu-me vontade de fugir, de largar a cor-rer por essas ruas fora e de me deitar ao Tejo! (Dum salto agarra-se ao pescoco do mari-do) Nunca te metas nestas coisas, Manuel! Haja o que houver, nunca te metas com eles. Prefiro ver-te com fome, a perder-te. (Pausa) Como e!a chorava, santo Deus! Parecia um animal ferido a ganir ä beira duma estráda... (Entrao 1." polícia.) Relata o facto com čerta emocäo. Há desespero e revolta no tom de voz de Rita. O gesto é espontäneo e ditado por um impulso súbito que Manuel mostra compreender passando a mäo pelos cabelos da mulher. Está a falar sozinha. Já o estava, possivel mentě, antes de surgir no palco. í.° POLÍCIA Entäo? Näo ouviram as minhas ordens? (O polícia sai. Rita e Manuel seguem-no.) RITA Parece que ainda a estou a ouvir... (Rita sai. Surge, a meio do palco, intensa-mente iluminada e sentada numa cadeira tosca, Matilde de Melo - uma mulher de meia-idade, vestida de negro e desgrenhada.) MATILDE Ensina-se-lhes que sejam valentes, para um dia virem a ser julgados por covardes! Ensina-se-lhes que sejam justos, para vive-rem num Mundo em que reina a injustica! Ensina-se-!hes que sejam ieais, para que a lealdade, um dia, os leve ä forca! (Levanta-se) Näo séria mais humano, mais honesto, ensiná-los, de pequeninos, a viverem em paz com a hipocrisia do mundo? (Pausa) Quem é mais feliz: o que iuta por uma vida digna e acaba na forca, ou o que vive em paz com a sua inconsciéncia e acaba respeitado portodos? (Encaminha-se para uma cómoda vel h a 82 83 řelizmente Há Luor! que surge, iluminada, a sua esquerda) Se o meu fiiho fosse vivo, havia de fazer dele um hörnern de bem, desses que väo ao teatro e a tudo assistem, com sorrisos alarves, fingindo nada terem a ver com o que se passa em cena! (Pausa) Havia de the ensinar a mentir, a cuidar mais do fato que da consciencia e da bolsa do que da alma. (Abre uma gaveta da cömoda e tira dela um uniforme velho de Gomes Freire) Se o meu filho fosse vivo... Havia de mor-rer de velhice e de gordura, com a consciencia tranquüa e o peito a abarrotar de meda-Ihas! (Coloca o uniforme de Comes Freire sobre a cadeira) Tudo isso o meu hörnern poderia tertido... (Acaricia o uniforme) Se tivesse sido menos hörnern... (Pausa) Podiamos estar, agora, aqui, ouvindo os pregöes que soam a cantigas, la fora, na rua... (Pausa) Abriamos a janela ao sol da manhä e ActO II Fa la com rancor. Fa la com determina-cäo. Está a tentar con-vencer-se a si mesma. Olha para o uniforme dando a entender que já näo estava a falar do filho, mas do proprio Gomes Freire. aqueciamo-nos os dois... (Pausa) Ele dava-me a mäo, eu dava-lhe a minha, e ficávamos, para aqui, a conversar... Falávamos das batalhas em que ele andou... Ftelembrávamos o nosso hotel de Paris... os passeiosque dávamosao longo do Sena... os dias felizes que passámos juntos... o tempo em que sonhávamos voltar a esta mai-fadada terra,.. (Passa a mäo pelo uniforme com ternura) Podiamos viver aqui esquecidos dessa gente que o odeia. (Encaminha-se para a esquerda do palco) Era täo fáči I... Täo mais fáči I que tudo isto. (Faz o gesto que fecha uma janela) Fechávamos as janelas, Trancávamos a porta. Era como se estivéssemos outra vez lá fóra, longe das intrigas mesquinhas em que esta gente se perde e perde a vida... (Pausa) Mas näo pode ser e, agora, estou sozinha. Sozinha e rodeada de inimigos numa terra hostil a tudo o que é grande, numa terra onde só cortam as árvores para que näo facam sombra aosarbustos... (Comeca a chorar) 84 85 Tenho o corpo no Rato e a alma em S. Juliäo da Barra, mas enquanto houver vida nestas pernas cansadas... e forca nestas mäosque Deus me deu... (Endireita-se. Parece crescer no palco) Enquanto tiver voz para gritar...Baterei a todas as portas, clamarei por toda a parte, mendigarei, se for preciso, a vida daquele a quem devo a minha! (Cai de Joel hos, com os bracos em torno da cadeira e, solucando, enterra a cabeca no uniforme de Comes Freire Pela esquerda do palco surge Antonio de Sousa Falcöo.) SOUSA FALCÁO Matilde: náo sei o que Ihe diga, nem sei o que pense. Só sei que tenho o coracáo dilace-rado, apesar de saber, há anos, que tudo isto tinha de acontecer. (Pausa) O Reino caiu nas maos duma gente mes-quinha que cháma alma ao estómago e que eleva regulamentos policiais á categoria de princípios sagrados... Eu bem Ihes dizia que náo voltassem!.,. Matilde: sempře que chega alguém de fora, abalam os alicerces do Reino! Os reis do Rossio vivem no pavor de toda e qualquer pessoa capaz de gritar que eles váo nus. Felizmente Há Luar! A partir desta frase a entoacäo torna-se vigorosa e, até, violen-ta. Acto II Antonio de Sousa Fal-cäo foi o amigo insepa-rável de Matilde e de Comes Freire. Com desänimo. i O desánimo de Antonio é evidente. Pode exte-riorizar-se pelos ombros ; descaídos e pelos bra-fos pendentes. MATILDE (Erguendo o rosto) Antonio: voce, que foi sempře o seu maior amigo e que o conhece há anos, sabe que ele náo gritava. Olhe que nem saía de casa, com medo que o povo o aclamasse. Juro-lhe que nunca conspirou! SOUSA FALCÄO A sua vida inteira foi uma conspiracäo permanente contra o que esta gente represen-ta! MATILDE Deus näo permitirá que ihe facam mal! SOUSA FALCÄO Deus!? Esta gente concebeu um Deus ä sua imagem e semeihanca!... O Deus deste Reino é um fidalgo respeitá-vel que trata como amigo a Pôncio Pilatos. (Caminha em direccäo a Matilde) Vive num solar brasonado e dá esmolas, ao domingo, por amor de Deus. (Estava junto de Matilde) Anda täo habituado a pisár tapetes, que Ihe inchariam os pés se tivesse de voltar äs estradas da Calileia! O Deus deste Reino, 86 87 Felizmente Hó Luar! Acto II Matilde, näo quer ouvir falar de Deus, e quan-do alguém Ihe pergunta como se perdeu pelo cammho, entra em explicates täo profundas e täo complicadas, que só ele as entende. MATILDE (Levantando-se) Entäo, Antonio, terei de recorrer aos homens. SOUSA FALCÄO Neste Reino, os homens fizeram Deus ä sua imagem e semelhanca e, depois, fizeram--se ä imagem e semelhanca desse Deus. MATILDE Hao-de ouvir-me! SOUSA FALCÁO Eles só tern ouvidos para a sua propria voz! (Matilde dirige-se a cómoda e, enquanto fala, tira duma gaveta urn xaile que poe a volta dos ombros.) MATILDE Serei, entäo, a voz da sua consciěncia. Nin-guem consegue viver sem ouvir a voz da consciěncia, Antonio Com tristeza. •88 SOUSA FALCAO E eu vou saber dele. Ainda que sem espe-ranca, vou fingir que a tenho. Isso devo-lhe a ele e devo-me a mim. Vamos. MATILDE (Apoiando-se no braco de Sousa Falcáo) Que estará ele fazendo a esta hora, fecha-do numa cela em S. Juliao da Barra? Adivi-nho-lhe os gestos e os pensamentos. Está preocupado por minha causa. Sabe que nunca o deixei sozinho e a maior das suas dores é o conhecimento que tem da minha dor. SOUSA FALCAO (Com ternura) Todos somos chamados, pelo menos uma vez, a desempenhar um papel que nos súpera. É nesse momento que justificamos o resto da vida, perdida no desempenho de peque-nos papéis indignos do que somos. Chegou a nossa hora, Matilde. Vamos. (Avancam para a frente do palco enquanto desaparece gradualmente a luz que ilumi-nava a cómoda e a cadeira. A melo caminho, Antonio de Sousa Falcäo afasta-se e sai pela esquerda. Matilde fica isolada ao centro, e á frente do palco.) 89; Felizmente Há Luar! Acto H MATILDE Na esteira do meu homem percorri, sozi-nha, metade das estradas da Europa, e nunca me senti tao so como hoje.,, Quero defender tudo o que tenho e nao sei poronde hei-de comecar... E o destino de todas as mulheres. Temos urn filho, queremos superar-nos atraves dele, fazer que ele seja alguem e nao sabemos por onde comecar... (Pausa) Chega-nos o homem a casa, farto das batalhas do dia-a-dia, cansado de morrer aos poucos - queremos faze-lo renascer, chegar com a nossa ternura ao fundodo seu coracao, e nao sabemos por onde comecar... (Pausa) Despertamos a meio da noite, damos com o nosso homem, acordado, com os olhos pos-tos sabe-se la em que, queremos dar-lhe a mao, ver o que ele ve, e nao sabemos por onde comecar... (Pausa) Urn dia, encontramos o nosso homem a sonhar urn outro mundo - sabemos que esse sonho poe termo a paz que tanto desejamos, e, mesmo assim, queremos dizer-lhe que siga o seu caminho, que iremos com ele ate ao fim, mas nao sabemos por onde comecar... Mas e preciso comecar! Estivesse eu em S. Juliao da Barra, e ja ele teria dado a sua vida pormim. Näo há nada de herói-co neste monólogo de Matilde. Todo ele é triste, dolorosamente triste. ■90 Faia com simplicidade. O nome é proferido em torn de quern chama pelo marechal. Apresenta-se com simplicidade, mas com : orgulho. Sabe que Bcresford odeia Comes : Freire e, embora isso a nao impeca de o procu-rar, nao deseja que Comes Freire saia humilhado desta con-versa. (Pausa) Vou enfrentá-los. É o que ele faria se aqui estivesse e - quem sabe? - talvez Deus me oica. Ele há-de ouvir alguém. (Sente-se que toma urna decisäo. Lentamen- te, num gesto ponderado, vira-se para o palco) William Beresford! (Beresford surge, de bracos cruzados, ao fundo e á direíta do patco) Sou Matiide de Melo, nátura! de Seia, urna terra täo pobre e täo pequena que o senhor, decerto, nunca ouviu falar dela. Fui criada entre árvores e penhascos, naquela pobreza que os ricos designam por šanta e que os pobres amaidicoam. Ensina-ram-me, de pequena, a amar a Deus sobre todas as coisas. (Pausa) Foi-me fácil fazé-lo, näo porter aprendido a grandeza de Deus, mas por me ter aperce-bido da pequenez das coisas. (Pausa) Fui crescendo. Tornei-me mulher, casei e quase morri aperreada entre paredes sem janelas donde se visse o mundo. (Pausa) Cheguei a crer que o mundo era a minha aideia, que Deus era irmäo ďekei e que as más colheitas éram consequéncia dos peca-dos humanos... 91 Felizmente Há Lum! Acto II (Pausa) Um dia entrou um hörnern na minha vida. Entrou de tal forma, senhor, que tomou posse dela. Ä minha volta comecaram a ruir paredes. As coisas, tal como ele as via e mas mostrava, comecaram, de repente, a perder a sua peque-nez e cheguei a Deus, senhor, cheguei a Deus, porcompreendera grandeza da sua obra! (Pausa) Dei-Ihe tudo o que tinha: o corpo, que ape-sar de esposado estava mais seco do que um poco no fim do Veräo, a alma, que, de täo aperreada, nunca chegara a desabrochar. Vivi com ele os anos mais felizes da minha vida. Olhando para träs, parece-me que nunca conheci outro viver. Se alguem teve tudo, esse alguem fui eu. (Pausa) Sou a mulher do general Gomes Freire d'Andrade. BERESFORD E que pretende de mim? MATILDE 0 que a sua mulher pretenderia, se o amasse, e se o senhor fosse preso na sua terra por urn portugues promovido a comandante supremo do exercito britanico. Com esta pausa, Matil-de separa nitidamente os dois periodos da sua vida. Fala rapidamente com entusiasmo. Beresford nem torna o pais nem as suas insti-tuicöes a sério e o seu tom é permanentemen-te zombeteiro. ;92 O facto de ser procura-:■■ do por Matilde diverte o marechal. BERESFORD (Francamente irónico) Parece-lhe verosímil tal hipótese? MATILDE Mentiria se Ihe respondesse afirmativa-mente. Os homens, porém, náo se podem medir pela forca dos exércitos que servem, mas pelos motivos que os levam a servi-los. O meu homem nunca quis saber quantos solda-dos tinha atrás de si e, se aíguma vez olhou para trás, foi apenas para me ver. BERESFORD (Trocista) Vem, entáo, pedir-me clemencia? MATILDE Venho pedir-lhe que o liberte. É-me indife-rente que o faca por fa vor, por clemencia ou por qualquer outro motivo. Ásmulheres, senhor, pouco interessa a jus-tica das causas que levam os seus homens a afastar-se delas. A injustica e a tirania, só as sente quem anda na rua, quem é homem ou querser homem. (Pausa) Que me importa, a mim, que o rei seja tira-no e o país miserável e mal governado? 93: Felízmente Hů Liiar! Acto li Que me importa que as cadeias estejam cheias, o exército por pagar e o povo a morrer de fome? (Pausa) Quero o meu hörnern! Quero o meu hörnern aqui, ao meu lado! Quero acabar os meus dias em paz! (Pausa: domina-se) As mulheres, Sr. Marechal, estäo sempře dispostas a colaborar com a tirania para con-servarem os maridos em casa. (Pausa) Se näo fosse o que Ihe digo, já näo havería reis poressa Europa fora... BERESFORD (Rindose) O que diria o general Comes Freire se a ouvisse falar? MAT1LDE (Envergonhada) Prefiro näo saber. BERESFORD Vende-lhe, assim, a honra para o salvar? Estas afirmaqiöes säo proferidas em torn de desafio, até porque näo correspondem a verda-de. Matilde, ao fazě-las, está a desafiar a sua propria consciěncia. MATILDE É a minha que vendo e näo a dele. BERESFORD E porque pensa que devo fazer o que pede? MATILDE Porque é o comandante do exército, gover-nador do Reino e... porque sabe que ele näo cometeu qualquer crime, BERESFORD A simples existéncia de certos homens é já um crime. (Comecam a ouvir-se sinos ao longe.) O inimigo de Beresford é sempře, e só, Comes Freire. Se o conseguir humilhar através da mulher, tanto melhor. 94 MATILDE (Exaltada) Porque dizem a verdade? Porque véem para alem da cottina de hipocrisia com que os pode-ro50s escondem a defesa dos seus interesses? (0 rufdo dos sinos aumenta de intensidade) BERESFORD (Sorrindo) Porque... säo incómodos, minha senhora! 95 i Felhmente Há Luar! Acto II MATILDE (Com amargura) E incomodotodo aqueie que nao confunde a vontade de Deus com a vontade do rei... (Pausa) Ou que ve para alem das medalhas que usais no peito... (Pausa) Ou que olha para vos de frente, e sorri... BERESFORJD (Com ironia) Ou que, devendo, por nascimento e posi-cao, defender certos interesses, defende outros... E o caso do general, minha senhora. (Ouve-se, fora do palco, o murmurio de vozes humanas.) MATILDE Que vao fazer dele, Sr. Marechal? BERESFORD (Abrindo os bracos para exprimir a sua impossibilidade de responder a pergunta) Julga-lo e... fazer justica! MATILDE (Com desespero e como quem pensa pela primeira vez na hipótese) Querem matá-lo! diga-me, Sr. Marechal, por amor de Deus diga-me: querem matá-lo? (As vozes aproximam-se do palco. Ouve-se, nitidamente, falar latím.) BERESFORD Ninguem Ihe pode responder a essa pergunta. Sao os acontecimentos que geram os acontecimentos e... (Entra no palco urn padre seguido dum sacristao tocando uma campainha e de alguns populares. Comeca a juntar-se gente a sua volta.) MATILDE (Exaltadíssima) Náo o matem, Sr. Marechal! Mandem-no para a guerra, deixem-no morrer como um homem, batendo-se com os inímigos que possa reconhecer! (Levanta os bracos ao céu) Senhor, se te lembras da cruz, permite que o meu homem morra de cabeca levantada! Náo vos peco nada para mim. Mais: troco a minha vida pela dele! Fazei-me sofrer, matai-me torcida de dores 96 WlUAR-07 97 Feüzmente Hä Luar! Acta H e abandonada de todos, mas, a ele, dai-lhe uma morte que o näo mate de vergonha! PADRE (Lendo um papel) Ordern dos principals da Patriarcal de Lis-boa para accöes de gracas pela descoberta da conjuracäo Nos Primarii Presbiteri, Et Dia-coniSanctae Lisbonensis Ecclesiae Principales Sede Patriarchali Vacante. Tendo chegado ao nosso conhecimento, com indubitävef certeza, que houve insensa-tos täo temerärios e atrevidos que ousaram formar o louco e detestävel projecto de esta-belecer um governo revolucionärio e conhe-cendo que todo o bem nos vem de Deus, sejam quais forem os meios de que para isso se sirva, claro fica que a Ele devemos dirigir as nossas accöes de gracas. E por isso have-mos por bem ordenar: (Entram mais populäres que se colocam entre Matilde de Meto e Beresford, esconden-do este ultimo) Que no dia domingo, em todas as parö-quias deste Patriarcado e igrejas dos Conven-tos Reguläres, se cante, ou reze donde se näo pode cantar, depois da hora de Noa, a missa votiva de Nossa Sen hora, pro Gratiorum Actione, ajuntando-lhe, no fim, o hino Te Deum Laudamus com o Santissimo Sacramento exposto; dizendo-se, igualmente, neste dia, em todas as missas, a oracäo pro Gratiorum Actione. MATILDE Mas eles ainda näo foram julgados! Que especie de Deus e o vosso que condena antes de ouvir? Que gente sois, senhores, que Reino e este em que tive a triste sorte de nascer? Sr. Marechal: quanto vaie, para vös, a vida dum hörnern? (0 padre, sempre seguido do sacristäo tocando uma campainha, afasta-se e saipela esquerda, enquanto os populäres se sentam em cfrculo no chäo e comecam a comer. Beresford responds, ja de fora do palco.) BERESFORD De que hörnern, minha senhora? MATILDE De quaiquer hörnern. BERESFORD Depende do seu peso, da sua influ£ncia, das vantagens ou dos inconvenientes que, para mim, resultem da sua morte. MATILDE E nada mais? 98 99 Fetizmente Há Luar! BERESFORD Näo há mais nada a considerar, minha senhora. (Matilde cobre a cara com as moos.) l.° POPULAR (Comendo) Em dias de missa solene, as igrejas enchem-se de gente rica, 2. ° POPULAR (Relembrando-se) Na Pascoa, a porta da Se, fiz o bastante para comer durante tres dias. 3. ° POPULAR Na Pascoa, estive em S. Domingos... (Matilde descobre o rosto, observa os populares e, num gesto resoluto, aproxima--se deles) MATILDE Alguem aqui me conhece? (Aponta para urn) Voce, ai, .sabe quern eu sou. Tenho-ihe Neste diálogo, os populares parecem exprimir urna indiferenca total perante os aconteci-mentos. Embora mais ; tarde esta impressäo seja corrigida, aqui deve ser realcada pela lentldäo com que as frases säo proferidas é pelos intervalos que as; separam. Sente-se, mesmo, que as frases säo deliberadamentc proferidas para que .J}: Matilde as oica. i 100 Acío II Matilde tenta levar o ipovo a reagir. dado esmola vezeš sem conta. (0 popular a que Matilde se refere levanta- -se) Nunca me bateu a porta que nao levasse do que eu tinha em casa. (Aponta-1 he para as pernas) Essas calcas que traz vestidas, reconheco--as, fui eu que lhas dei. Eram do general Comes Freire dAndrade. (De pe, em silencio e com as maos estendi-das, o popular observa as suas calcas) Usava-as por casa, em Paris. Ainda ha pouco tempo me perguntou por elas... (Durante uns instantes ninguem fala) Sabem o que Ihe aconteceu? Sabem que esta em S. Juliao da Barra, metido numa ceia... Nao sabem? Pois deviam sabe-lo! Eram voces que o aplaudiam, na rua, quando ele passava... Eram voces que Ihe pergunta-vam... "Entao, meu general, quando e que isto vira?" Agora pergunto-lhes eu: "quando e que isto vira?" Por quanto tempo e que o vaodeixar metido numa masmorra, perdendo aos poucos a fe que tinha na gente desta terra? (Ninguem responde durante uns segun-dos.) Centra de Lingua fwtM^tts,:. Institute 101 Felizmente Há Luar! Ado II 1. ° POPULAR Joäo: passa aí essa faca. 2. ° POPULAR (řassando-ihe a faca com que o outro carta uma fatia de päo) Esta cheia de ferrugem. Näo a limpo há mais dum més. I.0 POPULAR Para o päo, serve. O ANTIGO SOLDADO (Espreguicando-se) Säo horas de me ir indo. Por onde andam as patrulhas? Alguém sabe? Os populäres recome-cam a conversar comó se näo tivessem ouvido Matilde. A trivialidade do diálogo é nitida- : mentě constatada até peia lentidäo com que säo proferidas as pala- ; Mais uma vez se revela ifa intencäo que tern de i ignorar a presenca do ; Matilde. 2.° POPULAR Para os Jados do Rato. Vai pelas quintas, que ninguém dá contigo. MATILDE Ninguem me ouve? Estaräo cegos e surdos j 0 desespero de Matilde para näo compreenderem o que se passa ä perante a atitude dos vossa volta? j populäres tem de ser ;\ evidente. 102 103 1.° POPULAR (Dando uma notícia importante de que se esquecera) Só agora me lembro duma notícia que os vai espantar. (Ri-se) E em que náo váo acreditar! (Ri-se) O Vicente, lembram-se do Vicente? Foi feito chefe de polícia. Vi-q, hoje, fardado, seguido por dots esbirros! É verdade! Juro--Ihes que é verdade! Olhou para mim como se nunca me tivesse visto. Estendi-lhe a máo e deu-me uma cacetada na cabeca! 2.° POPULAR Era mesmo ele? I.0 POPULAR Era ele, digo-lhes eu. Nunca me esqueco duma cara. (Matilde, profundamente desanimada, comeca a afastar-se do grupo e aproxima-se da esquerda do palco.) MANUEL Näo é de espantar. Deus escreve torto por Felizmente Há Luar! Actoil linhas direitas. Náo é assim que se devia dizer? (Matilde, chorando, vai a sair pela esquer-da do palco qua ndo Manuel a cháma, sem voltar a cabeca e sem fazer um gesto) Senhora! (Matilde estaca e volta-se para o grupo sem saber, ao certo, se a chamaram) É consigo, senhora. (Sempře sem voltar a cabeca e limpando a faca enquanto fala) Náo se vá, assim, embora, sem levar res-posta. (Matilde volta a aproximar-se do grupo, que finge nao dar por eia. Os seus passos sao curtos e tfmidos. Nao sabe porque a chamaram, Manuel prossegue, agora para Rita) Arranja ai urn caixote para ela, Rita. (Rita levanta-se dum salto, vai buscar urn caixote que coloca junto de Matilde e ajuda-a a sentar-se, falando ao mesmo tempo.) RITA Desde aquela noite que so penso em si. Estava la na rua quando prenderam o general. Vi-o sair de casa... Depois passei la a porta e ouvi-a chorar... Ate contei ao meu homem... + Antes de se sentar, Rita hesita e olha para Manuel como que a pedir-lhc desculpa de terfalado a Matilde. Manuel, agora, mostra que tinha consciencia j da presenca de Matilde ; e que o seu siiencio fol'-^it'S..-premeditado, como premeditada foi a sua ;\f'MW:.. quebra neste mom onto. E portanto, essen-cial que nao esboce, sequer, o gesto de se virar para ela. (Matilde, sentada, esconde o rosto nas mäos. Rita volta a sentar-se.) MANUEL (Levanta-se e fala com ternura) Todos, aqui, sabemos quern a senhora é, e nenhum de nos é cego ou surdo... (Observa-a com atencäo) Há quanto tempo näo come, minha senhora? (Matilde encolhe os ombros. Manuel mete a mäo num saco, procura quaiquer coisa que näo encontra e olha para os outros. Urn deles levanta-se e, com uma macä na mäo, aproxi-ma-se de Matilde) Coma essa macä, Sr.a D. Matilde. Vera que Ihe faz bem. (Matilde recusa a macä) Perguntou-nos, há pouco, o que íamos fazer para libertär o general... Insinuou mesmo que éramos responsáveis pela sua prisäo, já quetínhamosfé nele... Olhe para nós, Sr.a D. Matilde. Abra bem os olhos e veja quem somos e ao que estamos reduzidos. (Chega ao pé dum velho e pöe-lhe as mäos sobre os ombros) Este é täo doente que näo pode pedir na rua... Para se aguentar de pé, tem de se 104 105 Felizmente Há Luar! Acto II encostar a uma parede... (Chega junto de outro) Este tern dois cepos em vez de bracos... (Rise com amargura) Sao a sua fortuna... Canha o pao exibin-do-se, em chaga, pela feiras... (Pausa) Ha aqui quern faca de parvo para fazer rir os outros... (Imita urn atrasado mental) Sabemos, desde miudos, que a doenca, a miseria e a dor fazem rir os mais afortuna-dos... (Olha fixamente para Matilde) A senhora, hoje, veio ter connosco porque nao sabia para onde se havia de voltar... (Pausa) Mas nos passamos a vida inteira a ir ter convosco porque tambem nao temos a quern recorrer! E que nos dao, senhores, que nos dao quando Ihe batemos as portas no inver-no, com os filhos embrulhados em trapos, tao cheios duma fome que o pao, so por si, nao satisfaz? (Pausa) Cinco reis, senhores! Dao-nos cinco rets ou Manuel revela uma grande ternura pelas pessoas que vai rndi-cando. A frase tern o torn duma acusacáo. Gesticula a falar. Fica de bracos cruza-dos e de costas volta-das para Matilde. 106 dizem-nos que tenhamos paciencia! (mete a mao no bolso e tira uma moeda) Rita! (Rita levantase e aproximase. Manuel entrega-lhe uma moeda) Da isto a Sr.a D. Matilde e manda-a embo-ra. Se ela voitar, diz-lhe que tenha paciencia. Nao queremos pobres a nossa porta! (Para o povo) Quando precisamos deles, dao-nos cinco reis! Quando precisam de nos, pedem-nos a vida! (Cada vez mais excitado) Se ha guerra, se temos o inimigo a porta -"Aqui d'e! rei" que a terra e de todos e todos a temos que defender, mas, batido o inimigo, chegada a epoca das colheitas, quando se trata de comer os frutos da tal terra que e de todos, entao nao! Entao a terra ja e so deles! (Calase, visivelmente cansado, e deixa cair a cabeca sobre o peito. Durante uns segundos ninguem faia) Rita! (Rita, quese conserva acabrunhada com a moeda na mao, faz urn gesto indicativo de que o estd a ouvir) Nao Ihedesa moeda. 107 ! řelizmente Há Luaií Acto El (Para Ma tilde, depois du ma pausa) Desculpe o modo como a tratei. A senhora näo merece as palavras que proferi, mas eu tambem näo mereco te-las proferido... Veja como andamos ambos perdidos e afastados do que somos e do que deverfamos ser! (01 ha paraoceu) Vem ai a madrugada... (Respira fundo, enchendo os pulmöes de ar) 0 ceu estä carregado de estrelas e o artäo puro, que so de cheirä-lo nos sentimos outros! (Pausa) Ah! Senhora, se o general estivesse esta noite aqui, ievava-nos com ele ate ao fim do mundo! (Pausa) Que estranho exercito näo formariamos! Rotos, coxos, sem arm as e sem tarn bo res, a abarrotar de fe, deixarfamos aträs de nos urn rasto de sangue que nem as chuvas do inver-no lavariam das estradas: urn rasto do nosso proprio sangue, senhora, do sangue das nos-sas feridas, dos nossos pes cansados, das nos-sas almas vazias... (Pausa) Vira-se lentamente e en cara Ma Li Id e. Adivinha-se em Manuel o sonhador que se domina e que raras vezeš se dá ao luxo de sonhar. A frase é proferida com entusiasmo. Descreve urna visäo que o fascina. Será a primeira vez que a tern? Volta repentinamente ä realidade. A quebra é subita, inesperada. O tom é profético e triste. Manuel como que pede desculpa do que diz. 108 Mas o general está preso em S. Juliäo da Barra e nós... estamos presos ä nossa misé-ria, ao nosso medo, ä nossa ignorancia... (Pausa) Näo a podemos ajudar, senhora. Deus näo nos deu nozes e os homens tiraram-nos os dentes... (Sorri) Näo temos dentes nem nozes. (Matilde, que já chegou a frente do palco, detém-se e volta-se para Rita) Amanhä, quando comecarem a agradecer a Deus a prisäo do general, estaremos ä porta das igrejas pedindoesmola... (Pausa) Depois de amanhä, senhora, estaremos arrefecendo as almas ao cafor das foguei-ras... Até havemos de apiaudir... (Pausa) Näo nos leve a mal, senhora, a culpa näo é nossa... (Matilde, que já chegou á frente do palco, detém-se e volta-se para Rita) MATILDE A minha moeda, Rita! 109; Felizrnente Há Luar! Acto II (Rita hesita e olha para Manuel) MANUEL (Para Rita) Dá-lha, muther. (Para Matilde) Nao é uma esmola. Dou-lha para que a use ao peito, como uma medalha. Tivesse eu mais, e dava-lhe trinta - as trinta moedas por que se vende a alma. Quern as pague ou as receba, perde o direito á esperanca, senhora. (Rita entrega a moeda a Matilde. Nam gesto impulsivo, beija-a e corre a juntar-se aos seus. A luz que ilu mi nava o povo apaga-~se gradualmente e apenas Matilde permane-ce iluminada. Antonio de Sousa Falcao surge pela direita do palco.) SOUSA FALCAO (En tra no palco já a f alar) Matilde: em pouca conta a teria se !he oculta5se a verdade. Quern acompanhou a Gomes Freire em todas as lutas da sua vida tem direito a estar presente até ao fim e a assistir, de pé, ä sua derradeira batalha. Depois duma breve hesita cäo. O relato é feito em tom monótono. MATILDE Que novas traz, Antonio? SOUSA FALCÄO Tantas e täo más, que se me aperta o cora-cäo só de pensar nelas. MATILDE (Com grande ansiedade) Deixam-me vé-lo? Diga que me deixam vě--lo! SOUSA FALCÄO Näo Ihe posso ocuitar nada, Matilde. Näo autorizam que ninguém o veja. MATILDE Como é possível que os outros todos pos-sam falar com quem querem e só ele seja pri-vado de ver os seus parentes e os seus melho-res amigos? SOUSA FALCÄO Ao chegar a S. Juliäo da Barra, meteram--no logo numa masmorra e aí ficou todo o dia, äs escuras, até que, ao cair da nořte, uns oficiais Ihe mandaram uma enxerga e duas mantaspor piedade... Só ao fim de seis dias Ihe abonaram dinhei-ro para comer, (Matilde, de mäos postas, angustiada, cai de joelhos) Felizmente Hä Luar! Acte El Adoeceu, chamaram um médico que entendeu provir a doenca de o náo deixarem barbear-se. 0 comandante do forte pediu autorizacao para comprar navalhas de seguranca. Náo lha concederam... MATILDE (Grita) Mas que gente é esta?! SOUSA FALCÄO O comandante do forte prontificou-se a estar presente quando o barbeassenn, Náo o autorizaram. Pediu a demissäo. Recusaram--Iha. Comunicou com Beresford e logo D. Miguel Pereira Forjaz escreveu ao mare-chal estranhando que ele comunicasse com um preso de estado. (Sousa Falcöo aproxima-se de Matilde e ajuda-a a levantar-se) Nao Ihe permitiram que escoihesse um advogado e nomearam-lhe um que já tem a seu cargo a defesa de 12 presos. (Matilde vagueia no palco ao acaso) MATILDE (A voz é angustiada) O meu hörnern! O meu hörnern, que nunca Fala mais baixo. A evo-cacäo do passado aumenta-lhe a tristeza. A íra supera o espanto. Quase a chorar. Sousa Falcäo continua no tom anterior. Dir-se--ia que näo ouviu Matilde. lutou com gente desta... metido numa mas-morra, ele, que se bateu sempře em campo aberto... Preso como um cao... (Comeca a chorar) Ninguém trata dele... para ali, sozinho, abandonado... Era eu que Ihe cuidava da roupa, sabia, Antonio? E que Ihe preparava os pratos de que mais gostava... SOUSA FALCÁO Matilde... MATILDE Era capaz de comer galinha todos os dias, mas náo gostava de canja. Gostava dela assa-da, noforno... SOUSA FALCÁO (Em voz muito baixa) Matilde... MATILDE Mas era raro comé-la. Äs vezeš nem dinheirotínhamos para o páo... (Levantando o rosto e olhando para Sousa Falcäo) 112 ARFLUAR-OS Felizmente Há Luarf - i- Acto II A nossa vida näo foi fäcü... Um dia - lem-bro-me täo bem" - vendeu duas medalhas, em Paris, porque näo tinhamos um vintem emcasa... (Sorri) Sabe o que ele fez com o dinheiro? Com-prou-me uma saia verde. Disse-me que era para quando voltässemos a Portugal... (Pausa) Foi no Inverno. Cafa neve. (Pausa) Nunca a vesti... (Encolhe os ombros) Nunca calhou, näo sei porque... SOUSA FALCÄO Oica, minha amiga... MATILDE Talvez a vista no dia em que ele sair do forte, para o receber, quando chegar a casa -a minha saia verde... Que acha, Antonio? Acha que a vista nesse dia? Há nesta5 frases de Matilde uma alegria especial, a ategria que provém de estar revi- ', vertdo tempos felizes | que já passaram. ; \ I j 1 Regressa ä realidade. O i seu tom tem a tristeza ,| de quern sabe que näo 1 há esperanca possível. É quase infantil ao ten-tar convencer-se de que voltará a ver o general. SOUSA FALCÁO (Com voz třemen te) É uma boa ideia, Matilde. Julgo que Ihe dará uma grande alegria... MATILDE E asso-lhe uma galinha, no forno, como ele gosta... SOUSA FALCÁO Sim, Matilde. MATILDE (Depots duns instantes de silencio) Näo sei como agradecer-ihe tudo o que foi para nös, Antonio: o amigo das coisas impor-tantes e das pequenas coisas - essas peque-nas coisas que so os verdadeiros amigos com-preendem. Assistiu ä morte do nosso filho e... agora, finge acreditar que vou ter oca-siäo de vestir a saia verde! Ainda que o näo creia, fico-lhe igualmente grata por ambas as coisas. (Afasta-se. Pica de costas para Sousa Fal-cäo) Ambos sabemos que eie näo sairä vivo de S. Juliäo da Barra. Näo o podem deixar sair, Antonio. Onde quer que o encontrassem lem-brar-se-iam do que säo, e nenhum deles pode Felizmente Ha Luar! Acto II correr o risco de encontrar a sua propria cons-ciencia ao dobrar uma esquina. SOUSA FALCAO Talvezainda haja esperanca... MATILDE Obrigado, meu amigo. Obrigado por ma querer dar, mas nao: nesta terra, a esperanca e uma palavra va. (Pausa) Eu e que tenho de continuar como se a tivesse.Sou a muiherdeie, Antonio... eele... e o meu homem. Enquanto nos nao matarem, aquele de nos que estiver livre tern de Iutar. SOUSA FALCAO Mas como, Matilde? Como e que se pode Iutar contra a noite? MATILDE Vamos faiar com o D. Miguel Forjaz. SOUSA FALCAO Nem nos recebera! Conheco-o ha muitos anos. E frio, desumano e calculista. Odeia Comes Freire com urn odio que vem de longe, Diz por dizer. Sabe que nao ha nada a fazer, mas nao deseja reco-nhece-lo em frente de Matilde. Com a energia possivel a quern chegou ao fim das suas forcas. 116 urn odio total, que nao perdoa nada! Lembre-se de que sao primos, e antigos camaradas de armas... Urn e franco, aberto, lea!. 0 outro e a personificacao de mediocrida-de consciente e rancorosa, Comes Freire perdoaria a D. Miguel Forjaz, mas D. Miguel Forjazvai enforcarComes Freire. E inutil bater-lhe a porta. MATILDE Urn cristao nao fecha assim a porta a uma desgracada que Ihe vem pedir pela vida do seu homem... tern de me ouvir. SOUSA FALCAO (Com azedume) D. Miguel e urn cristao de domingo, Matilde. Pode estar certa de que todos os dias da, a urn pobre, pao que Ihe baste para se con-servar vivo ate morrer de fome... MATILDE Mas temos de ir, Antonio. SOUSA FALCAO Nao nos recebera. 117; Felizmente Há Luari Acto II MATILDE Nesse caso iremos para que näo nos rece-ba. (Como quern faz uma descoberta) É isso mesmo, Antonio! Iremos para que näo nos receba, (Pega no braco de Sousa Falcäo e dirigem-•se umbos para o centra do palco, Detem-se a meto caminho. Vindo do fundo, surge um criado, de libre, que se coloca a f rente deles) Diga ao Sr. Covemador que Ihe pedem audiencia Matilde de Meio e Antonio de Sousa Falcäo. (Matilde continua para Sousa Falcäo, enquanto o criado se afasta, e como que aiu-ctnada) E preciso que os homens se definam para que possam ser julgados. E preciso que ele näo nos receba - é a nossa oportunidade de o obrigar a definir-se, de o colocar no banco dos reus, para que o juizo possa julgar... SOUSA FALCÄO (Com desanimo) Que juiz? Faz um gesto largo: todo o hörnern está permanentemente a ser julgado. Todo o desespero repri-mido desde a prisäo de Comes Frei re vem ä superfície. Corre para o fundo do palco como se tivesse endoidecido. MATILDE Eu, o Gomes Freire, o criado, ele proprio, a vida... CRIADO (Reaparecendo) Sua Ex.a näo recebe amantes de traidores e amigos dos inimigos d'eS-rei. SOUSA FALCÄO (Desvairado, corre para o fundo do palco) Cäo! Covarde! Assassino! Pega na espada e vem bater-te como um hörnern! Näo te escondas atrás do cargo que ocu-pas! Eu sei quem tu és! (O criado desaparece e Sousa Falcäo segue-o, gritando, até desaparecer também) Cäo! Assassino! (Matilde de Melo regressa a frente do palco. Vem nitidamente humilhada pela res-posta do governador e marcada peio sofri-mento dos Ultimos dias.) MATILDE (Fala muito lentamente, com a voz embar-gada pela comocäo) 118 Felizmente Hú Luar! Acto II Amante dum traidor... e assim acabamos a vida... Tu, que děste aos homens tudo o que tinhas e viveste de máos abertas, acabas ertforcado com o rótulo de traidor. Eeu... que nasci tua mulher, morro tua (Comeca a chorár) amante! Nem me recebem, meu amor. (Pausa) Náo querem nada connosco... (Pausa) Chegamos ao fim da vida - matam-nos e nem nos consideram dignos duma explicacao... Tratam-nos assim, como se nunca tivésse-mos existido... (Abre amaoe olha para a moeda que lbe deu Manuel) Vivemos sempře sem nada; démos tudo o que tfnhamos - tu e eu -, tudo o que tínha-mos, e acabamos sem nada... Até esmola me dao! (Pega na moeda com dois dedos e observa-a) Vés? Deram-me esta moeda. É uma das trinta moedas com que se compram e ven-dem as almas... Neste reino as almas náo sáo caras, meu amor! (Volta a observar a moeda) Uma das trinta moedas! 0 amor intenso que unia Matilde a Gomes Freire explica todas as suas reaccoes. Para Matilde o mundo nao passava dum inimigo que os perseguia a ambos. So adiante, no decorrer da conversa que tern com o principal Sousa, comeca a tomar consciencia da posicao do general em relacao ao que se pas-sa no pais. Tudo isto se deve depreender dos seus gestos e do seu torn de voz. O principal Sousa fala no torn de voz de quern está habituado as fra-quezas humanas e sabe - pela graca de Deus -dar-lhes o necessário desconto. (Endireita-se Recupera parte da sua antiga energia. Como que se adivinha nela a mulher que acompanhou Comes Freire pelos campos de batalha da Europa. Fala para o palco) Sr. Principal", a quanto montam os seus bens? (Estende o braco com a moeda na mdo) Quantas moedas destas tern nos cofres da sua igreja? 30, 60, 90? (Surge, a meio do palco, intensamente ilu-minado, o principal Sousa. Estd vestido de gala e sentado na cadeira em que apareceu no l.°Acto) PRINCIPAL SOUSA (Em torn paternal) Atendendo ao estado de espírito em que se encontra, perdoo-lhe as palavras que acaba de proferir. Entre, minha filha, entre nesta casa, (Faz um gesto convidativo. Depreende-se, desse gesto, que o principal está convidando Matilde a entrar num local sagrado) onde encontrará a resignacáo de que tanto necessita... MATILDE Sou amante dum traidor e mesmo os trai-dores tern honra, senhor! 120 121 Felkmente Hó Luai! Acta II Sáo tantas-as portas que se nos fecham, que acabamos por ter medo das que se abrem á nossa frente... PRINCIPAL SOUSA Deus abre todas as portas... MATILDE (Exaltada) Pois que vá abrir as do forte de S. Juliäo da Barra,5e é capaz! Que as abra de par em par, para que todos vejam quem lá está! (Domina-se) O senhor, como governador do Reino, mandou prender e condenar um inocente... PRINCIPAL SOUSA As razöes do Estado... MATILDE Conheco esse argumente. Foi com ele que justificaram a condenacäo de Cristo! PRINCIPAL SOUSA (Exaltado) Aponta para fora do palco, para o forte, que nunca Ihe sai do pensa-mento. Em tom moderador. Cale-se! Há lábios que náo tem o direito de pronunciar esse nome! MATILDE (Com escárnio crescente) Os meus, bem o sei! Sou amante dum hörnern, e näo tenho o direito de pronunciar o nome de Cristo, mas o senhor, que condena inocentes a quem aconselha resignacäo, (Pausa) que dá esmola aos pobres e condena ä forca os que pretendem acabar com a pobre-za, (Pausa) o senhor, que condena a mentira em nome de Cristo e mentě em nome do Estado, (Pausa) que vende Cristo todos os dias, a todas as horas, para o conservar num poder que Ele nunca quis, (Pausa) o senhor, tem o direito a pronunciar o seu nome! (Ri com escárnio) Diga-me: também Ihe aconselha, a Ele, que se resigne? 122 123 Felizmente Há Luarí Actolt "Perdoai-nos, Sen hor, as nossas dívidas. Como nós perdoamos aos nossos devedores." A quantos devedores perdoou o senhor, durante a vida? (Rise) Como governador, já perdoou a Cristo o que Ele foi e o que Ele ensinou? (Com amargura) Quanto lne deve Cristo, senhor? Já fez as contas? (Pausa) Pois venho aqui pedir-lhas em nome dum credor - em nome do credor Comes Freire d'Andrade, que está lá em baixo, preso em S. Juliáo da Barra, aguardando que o senhor pague o que Ihe deve. PRINCIPAL SOUSA O que Ihe devo?! MATILDE (Com autoridade) Cale-se! Agora sou eu que lho ordeno! De tanto abrir a boča, taparam-se-lhe os ouvidos e de tantas vezeš repetir a mesma coisa, esqueceu-se de que as palavras těm sentido e obrigam a quern as profere! A todos chega a hora de prestar contas. O principal Sousa está acabrunhado. Fala, mais para interromper Matilde do que por espanto. (Pausa) Ainda se lembra das palavras de seu Amo? "Ninguem pode servir a dois senhores; por-que ou ha-de odiar a urn e amar o outro, ou ha-de afeicoar-se a um e desprezar o outro." 0 vosso credor Gomes Freire dAndrade deseja saber a quern servis! (Pausa) "Bem-aventurados os que sofrem perse-guicao por amor da justica porque deles e o reino de Deus." 0 vosso credor Gomes Freire dAndrade esta numa masmorra por amor da justica e quer saber o que fizestes, senhor, para reco-nhecer o seu direito a esse amor! (Pausa) "Porque eu vos digo que se a vossa justica nao exceder a dos escribas e a dos fariseus, nao entrareis no reino de Deus." Senhor: ainda os presos nao tinham sido condenados e ja nas igrejas se rezavam Te Deum! 0 vosso credor Gomes Freire dAndrade exige que a vossa justica exceda a dos escribas e dos fariseus! "Ouviste o que foi dito aos antigos: nao mataras e quern matar sera condenado em juizo." 0 vosso credor Gomes Freire dAndrade vai ser morto por ordem da regencia de que fazeis parte - ou sera que a vossa mao direi-ta nao sabe o que faz a esquerda? (Avanca para ele) 124 125 Felizmente Há Luar! Acto i! Estou aqui a pedir-vos contas! Fica paráda no palco, | numa atitude que qua- í (0 principál permanece em silencio, com se se poderia classifi- O tom é de espanto. os olhos postos no chäo. En tra pela direita o \ car de herdica. frade Jerónímo Frei Diogo de Melo e Mene- \ ses.) I FREI DIOGO Venho de confessar o general, em S. Juliäo da Barra. MAT1LDE (Cone para o frade) Como está ele? Frei Diogo, como está ele? Falou-lhe de mim? Que [he disse? Por amor de Deus, conte-me tudo... tudo... (Ca i de joeihos em f rente do frade) FREI DIOGO Se há santos, Gomes Freire é um deles... PRINCIPAL SOUSA (Paternalmente) Tudo o que disser a essa mulher só Ihe poderá aumentar o sofrimento. Tenho estado a ouvi-la, pedindo a Deus que me de paciěncia para [he náo responded.. Esta afirmacäo tanto é Frej Diogo COntinua a dirigida a Matilde fa|ar no mesmo toffl de como ao principal voz como se näo tjves. S°usa- se ouvido o principal ; Sousa. FREI DIOGO Deus veio ä Terra responder a todas as per-guntas, Reverenda. PRINCIPAL SOUSA (Com autoridade) Há quem näo esteja preparado para ouvir a palavra do Senhor. FREI DIOGO Talvez tenha razäo, Reverenda, mas näo sou hörnern para grandes subtilezas. Se me permite, retiro-me. (Faz uma venia e encaminha-se para a direita do palco. Antes de sah volta-se para Matilde, que permanece de joelhos, e fala.) FREI DIOGO Ao despedir-se, o general pediu-me para a procurar, minha senhora, e para Ihe dizer que tern pensado em si constantemente. Foi um grande privilégio que Deus Ihe con-cedeu - o de viver ao lado dum homem como o general Gomes Freire. PRINCIPAL SOUSA Frei Diogo! 126 127 Fetizmente Hó Luart If Acto II FREI DIOGO A misericórdia de Deus é infinita. Täo grande que os homens näo a podem conce-ber. Haja o que houver, näo julgue a Deus pefos homens que falam em Seu nome. PRINCIPAL SOUSA (Levantando-se exaltadíssimo) Saia! FREI DIOGO (Para Matilde) Nao faca a Deus o que os homens fizeram ao genera! Gomes Freire: nao 0 julgue sem 0 ouvir. Deus carece cada vez mais desse direi-to. (Sai pela esquerda do palco, O Principal Sousa fica de pé, com as pernas abertas, em atitude de ira. Matilde levanta-se lentamen-te.) MATILDE É täo grande o desprezo que tenho por si, täo infinito o meu nojo, que só por caridade näo traduzo em palavras o que sinto no cora-cäo. Judas, que traiu Cristo uma vez, acabou enforcado numa figueira, mas Vossa Reverenda, que 0 trai todos os dias, vai acabar entre os seus com todas as honras que neste De entrada, Matilde fala com íentidäo, pesando bem as palavras. Estas palavras säo pro-feridas com arrogáncia Reino se concedem aos hipócritas e se negam a os justos. O meu hörnern vai morrer lá em baixo, junto ao mar, com o som do vento nos ouvi-dos, mas Vossa Reverenda há-de morrer, um dia, ouvindo, por entre o iatim, as suas pra-gas. Alguma vez ouviu praguejar um hörnern, Reverenda? Um hörnern a sério, capaz de palmilhar as estradas da Calileia? Capaz de passar 40 dias no deserto, ou 150 dias meti-do numa masmorra? Entäo oica! (Durante uns instantes fica paráda em atitude de quem ouve um ruído longfnquo) Näo sabe donde vém as pragas, pois näo? Tanto podem vir do Céu como de S. Juliäo da Barra... Pois há-de víver até ao fim dos seus dias sem o saber... e ä medida que for envelhe-cendo, ä medida que a sua hipocrisia se for afinando até morrer convencido de que foi cristäo, o som destas pragas há-de ir aumen-tando de volume até Ihe encher os ouvidos, até que näo possa ouvir mais nada. Há-de-o ouvir no som do vento que Ihe entra pelas janelas... no bater das portas da sua igreja... navoz das criancas que Ihe pedi-rem esmoia... Esta praga Ihe rogo eu, Matilde de Melo, mulher de Comes Freire d'Andrade, hoje 18 deOutubro de 1817. (0 principal Sousa senta-se na cadeira. Ao longe, muito ao longe, comeca a ouvir-se o murmúrio da multidôo, entrecortado, de quando em quando, por latím) 128 iíRFLLIAR-09 129 feliimente Hó Luar! Todos somos Cristo, Reverenda, e todos comecamos pela esperanca de que se realize o que há de Cristo em cada um de nós. A uns mata-lhes a vida a esperanca, a outros matam-n-a os que em seu nome falam, tendo-a já perdido... Mas há quem escape, Reverenda, quem chegue ao fim da vida com o seu Cristo táo intacto como no dia em que nasceu. Esses morrem na forca ou apodrecem nas prisôes, näo vá a sua presenca incomodar a burocracia de Deus! (Matilde está cansada. A sua voz é trému-la. Dir-se-ia que já näo sabe o que diz. Por vezeš tem dificuldade na escoiha das pala-vras) Há quatro dias que näo me deito e que näo sinto, na minha, qualquer rnao amiga... Oíco-me falar mas já näo sei o que digo. Quero calar-me e näo posso. Se me ca!o, vejo-o ä minha frente, sozinho, ä espera de que o väo buscar... Näo reza porque viveu täo perto de Deus que nem predsa de se ihe dirigir... Pensa em mim com lágrimas nos oihos e gostaria de que eu estivesse ao seu íado. Esti-ve sempře ao seu tado e, agora, quando mais precisávamos de estar de mäos dadas, estou aqui, longe dele, só, com a saudade imensa que já sinto da sua voz... (Cobre o msto com as mäos) Do seu corpo... (Cai de joeihos. O murmúrio da multidäo, que se aproxima, é cadenciado e regular. Adi-vinha-se que entoam can0es. Pela esquerda do palco surge Antonio de Sousa Falcäo.) Acto II Esta frase contém uma crítica ao principal. É proferida em tom de desafio. A tristeza de Sousa Falcäo sente-se em todas as suas palavras e em todos os seus gestos. E a ultima vez que Matilde pede pela vida do general, mas este pedido representa uma quebra em relacäo äs suas palavras anteriores. Esta atitude de Matilde, portanto, tem a natureza dum acto de desespero. SOUSA FALCAO Os presos já väo a caminho do Campo de SanťAna, Matilde. Temos de partir. Do alto da serra poderemos ver a fogueira em S. Juliäo da Barra. É como se estivéssemos com ele até ao fim... MATILDE (Ajoelhada, para o principal Sousa) Salve-o... salve-o... Ainda está a tempo... um correio, a cavalo, chega lá em meia hora... Salve o meu amor, senhor, o meu amor... que é tudo o que tenho... (Entra D, Miguel Pereira Forjaz, que fica ao lado do principal Sousa.) D.MiGUEL Lisboa há-de cheirar toda a noite a carne assada, Exceiéncia, e o cheiro há-de-lhes ficar na memória durante muitos anos... Sempře que pensarem em discutir as nossas ordens, lembrar-se-áo do cheiro... (Com raiva) É verdade que a execucáo se prolongará pela noite, mas felizmente há luar... 131 MATILDE Os homens fizeram Deus ä sua imagem e semelhanca e depois fizeram-se ä imagem e semelhanca de Deus... Quem foi que me disse isto? Já näosei... Só sei que tenho de ir para o aíto da serra com o António. Que Deus me dé forcas, já que as minhas acabaram - e que Deus o salve, já queeu näo posso. (A luz que incide sobre o principál Sousa apaga-se gradualmente. Surge urna cruz ilu-minada a meia altura do palco. Matilde fala para a cruz) Senhor: deste-me a melhor das vidas que eu poderia ter desejado. Deste-me um homem que amei e que me amou, um homem que encheu todos os meus dias de felicidade e a quem fiz feliz. Näo Vos pedi mais nadá e, por isso, as nossas contas estäosaldadas. Mas as contas do meu homem estäo por fechar. Deste-lhe cinco talentos e ele transfor-mou-os em dez. Em troca, Senhor, aguardas que o matem sem dó nem piedade, depois dum tormento em que nem quero pensar. Näo, Senhor, näo o podes abandonar agora! Näo se entrega, assim, um homem aos cäes, depois duma vida de trabalhos e de can-seiras, só porque a idade Ihe aumentou a fome e a sede de justica! (Comecam a entrar no palco vários popu-lares que sesentam de costas para o público) A partir desta frase, Matilde fala com inten-sidade dramática. i Náo! Disseste um dia que quem desse de beber a um pobreTe estava dando de beber a Ti... Pois o meu homem quis saciar a fome e a sede de todos os pobres e está preso ä ordern dos donos das fontes! (Entram mais populäres que se juntám aos primeiros) Preso, Senhor, ä espera de que os vendi-Ihöes do templo o levem ä forca! Por quem és Tu, Senhor, por Ti ou contra Ti? (Levanta-se) Quando vieste ä Terra, com a Tua mensagem de salvacäo, quem encontraste a Teu lado? (Faz um gesto que abränge o povo) Estes? (Faz um gesto que abränge o cardeal, D. Miguel Forjaz e os espectadores) Ou estes? E quem deu vida äs Tuas palavras, espa-lhando-as pelos quatro cantos da Terra? (Repete o primeiro gesto) Estes? (Repete o segundo gesto) Ou estes? E por quem estás agora, Senhor? Pelo meu homem, que deu a vida por estes... 132 133 Felizmente Há Luarl Ado II (Repete o primeiro gesto) Ou peios Teus inimigos de sempře? (Matilde cai no cháo inanimada, Acende--se a luz que incide sobre o principál Sousa, que se kvanta.) PRINCIPAL SOUSA Paciéncia, minha filha. resignou ao Seit destino! Até Deus se (Apaga-se a luz que incide sobre Matilde de Melo e reacende-se a cruz) Senhor: que hei-de eu responder? Ensina-ram-me a argumentar com doutores, mas fai-tam-me as palavras para faiar a quem näo conhece os argumentos! Sinto-me como um doutor do tempio no dia em que lá entraste... (O murmúrio do povo e o ruído de padres rezando em latím aumenta de intensidade. O principal Sousa fica de pé com a cabeca des-cafda, enquanto Antonio de Sousa Falcäo cor re para junto de Matilde, a quern ajuda a levantar-se. Matilde e Sousa Falcäo saem pela esquerda do palco. Antes, porém, de sair, Matilde tira do bolso a moeda que Ihe deu Manuel e lanca-a aos pés do principál Sousa.) MATILDE Tome-a. É sua! (Para o céu) Trata-se duma confis-säo de impotencia e, simultaneamente, duma crise de honesti-dade. Dir-se-á que profere uma sentenca. Senhor: näo p ret en dp ensinar-Te a ser Deus, mas, quando chegar a hora da sentenca, näo Te esquecas de que estes sabiam o quefaziam! Matilde e Sousa Falcäo saem pela esquerda. A cena deka de se ver e, muito gradual-mente, apaga-se a luz que incidia sobre o principát Sousa. Durante uns instantes ouve--se o latím dos padres que acompanham os presos ao Campo de SanťAna e veem-se os populäres, sentados, a meia luz. Depois, subi-tamente, o palco fica äs escuras e em siléncio. Nesse mesmo momento, muito gradualmen-te, a luz volta ao palco de forma a que os pre-sentes fiquem na penumbra. O povo contlnua sentado de costas para o publico. Ä esquerda e a meio do palco adivinham-se os vultos de Matilde de Melo e de Sousa Falcäo, de pé, com os olhos postos no horizonte. MANUEL (Sentado de costas para o publico e quase em surdina) Pediu que o fuzüassem, como um soldado, mas recusaram-lho. 1.° POPULAR Cäes! MANUEL Quem sai aos seus, degenera! Todos os que saem aos seus, degeneram... Eles, nós, todos... 134 135 Feliimente Ha Luar! Ado II 2.° POPULAR Depois de o queimarem, vao-lhe atirar as cinzas ao mar... (Acende-se urn foco pouco intenso que ilu-mina Matilde e Sousa Falcao. Matilde veste uma saia verde e Sousa Falcao esta inteira-mente vestido de negro.) MATILDE (Com amizade) Ele ainda estä vivo, Antonio. Näo devia ter vindo de luto. Olhe: vesti a minha saia verde. Ve? SOUSA FALCAO Näo estou de !uto por ele, Matilde, mas a noite passada näo pude dormir. Passei a noite a pensar, e, de madrugada, percebi que näo sou quern julgava ser... MATILDE E o melhor dos amigos, Antonio. SOUSA FALCÄO Nem isso sou! So e digno de ser amigo de alguem quem de si proprio e amigo, Matilde, e eu odeio-me com toda a forca que me resta. Fosse eu digno da ideia que de mim mesmo tinha, e estava lä em baixo, em Os Ultimos dias destrui-ram Sousa Falcäo. Adquiriu, todavia, uma -'.v;:?' Aceitou o inevitävel. calma e uma paz inte- rior que nunca tivera, :--Mr talvez por ter revisto a sua concepcäo da posi- -:\\C'- cäo do hörnern no mun- ;:,<£- do. S. Juliao da Barra, ao lado de Gomes Freire, esperandoa morte... Quando os justos estao presos, so os injustos podem ficar fora das cadeias e eu, Matilde, vendi-me para estar, agora, aqui, a ve-lo morrer. As ideias de Gomes Freire sao tambem as minhas, mas ele vai ser enforcado - e eu nao. Os motivos que os governadores tiveram para prende-lo, tambem os tiveram para me prenderem a mim, mas a ele prenderam-no -e a mim nao. Faltou-me sempre coragem para estar na primeira linha... Durante estes meses, duas vezes dei comi-go a berma de Ihe chamar louco, para descul-par a minha propria cobardia. Ha homens que obrigam todos os outros homens a reverem-se por dentro... E por mim que estou de luto, Matilde! Por mim... MATILDE ... Isto e ofim, Antonio... SOUSA FALCÄO E o fim... Quando virmos, lä em baixo, o claräo da fogueira, ja ele morreu... MATILDE 0 claräo da fogueira! Quando o virmos, ja ele estä aqui ao pe de nös! Foi para o receber que eu vesti a minha saia verde! (Pausa) 136 137 Felizmente Hä Luar! Acto II Vem dizer-nos adeus, Antonio, vem abra-car-nos pela ultima vez. Nunca partiu para uma batalha sem se despedir de mim e, agora, que se acabaram as batalhas, vem apertar-me contra o peito! Quer que o veja pela ultima vez de unifor-me, o uniforme que eu o ajudava a vestir antes das batalhas... (Pausa) Antonio: Sinto-o! Vem af! (Avanca ao encontro de alguem que julga estar a chegar) Vem a rir, Antonio, vem a rir como se ria antigamente! (Pausa) Oico-lhe os passes... os passos do meu homem! Antonio: Olhe! (Matilde avanca e abraca urn ser imaginary. Ao fundo surge o ciardo duma fogueira distante) Juntos, meu amor,juntos poruns instantes, os ultimos instantes em que estaremos juntos na Terra! Olha, meu amor, vesti a saia verde que me compraste em Paris! 0 Antonio chora. (Para o Antonio) Nao chore, Antonio. Veja como ele ri! A partir deste momen-to os gestos e as pafa-vras de Matilde säo quase infantis. Estä a despedir-se do homem que amou e fa-lo com uma ternura mfinita e uma dignidade que a ninguem passa desper-cebida. Parece observar o Horizonte. Com crescente intensi-dade dramätica. (Faz o gesto de quem abotoa o casaco de Comes Freire. Fala com ternura) Esqueces-te sempre deste botäo. (Aponta para a fogueira) Olha, meu amor, a tua glöria! Ve-a bem, minha vida, porque, quando a fogueira se apagar, tens de te ir embora... Eu näo vou contigo, mas veräs que e por poueo tempo... Isso, pelo menos, me darä Deus.,. (Ao longe o ciaräo da fogueira comeca a apagar-se) Mais uns instantes, meu amor, e voltaräs a ouvirtambores! Desta vez, porem, as fanfarras seräo em tua honra... Estäo todos ä tua espera, meu homem. (Pausa) Oico-os, ao ionge, a falar de ti... (Pausa) Olha: ja estäo formados! (Pausa) Dä-me um beijo - o ultimo na Terra - e vas! Saberei que lä chegaste quando ouvir os tambores! (Estende o pescoco e levanta a cabeca para receber um beijo) Vai, amor da minha vida.,. 138 139 Felizmente Ha Laar! (Por um instante segue-o com os olhos. Depots com dignidade volta para ao pe de Sousa Falcäo) Julguei que isto era o fim e afinal e o principle Aqueia fogueira, Antonio, hä-de incen-diaresta terra! (0 claräo da fogueira diminui visiveimen- te) Adeus, meu amor, adeus. Adeus! Adeus! Adeus! (Para o povo) Olhem bem! Limpem os olhos no ciaräo daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensina! Ate a noite foi feita para que a visseis ate aofim... (Pausa) Felizmente - felizmente hä iuar! (Desaparece o ciaräo da fogueira. Ouve-se ao lange uma fanfarra que vai num crescendo de intensidade ate cair o pano.) FIM E quase um grito. 140 FELIZMENTE HALUAR! 2010 EXECUCÄO GRÄFICA BLQCO GRÄRCO, LDA. UNIDADE INDUSTRIAL DA MAIA SISTEMA DE GE5TÄ0 AMBIENTAL CFRTIFICADO PEI.AAPCER, COM 0 N." 2006/AMB.258 DEP. LEGAL 226667/05