[//Ihr* ■ Oj ť /Zi Ľ OS GRÄO-CAPITÄES mesa, e vai pela galéria fora, guardando ainda, en-quanto dá com as pernas passadas largas que pare-cem lentas, o porta-moedas. E tern de desviar-se do criado que se lhe atravessa no caminho. A galéria fica praticamente deserta. A mancha amarela de um eléctrico percorre longamente o corrimäo de crómio. Mas, dali a pouco, o rapaz volta, com o rosto ten so de ŕrustracäo agoniada, mäos nos bolsos das calQas, o peito metido para dentro, as pernas bambas. Hesi-tante, chega a contornar o balcäo, para espreitar a outra entrada. Regressa. Ao pé da mesa onde ele estivera, o criado recolhe as moedas. O rapaz pára ao lado, e diz: — Vi u aqueles gajos que estavam ali sentados? — e, com um aceno de cabeca, indica a mesa onde as moedas brilham ao pé das duas chave-ninhas. O criado fita-o sem responder. O rapaz me-neia, de sobrolho franzido, a cabeca de baixo para cima e de cima para baixo: —Gajos como aqueles paneleiros näo deviam poder entrar nos cafés dos homens —. 0 criado sorri e afasta-se. O rapaz fica imóvel, de olhos caídos. E, distraidamente, as mäos saem-lhe dos bolsos e afagam suavemente as ná-degas. Os S^lte^cloľes Where Lusitania and her Sister meet. Deem ye what bounds the rival realms divide. (Que a Lusitania e Sua Irmd separa como fronteira aqui, nacoes rivals f) BYRON — Childe Harold's Pilgrimage (C. I — XXXI) Assis, 9/6/61. «Trás-os-Montes. 1953» 152 Numa lividez que era névoa rolando pelos pedre-gais e difractando uma lua para além dela, a pai-sagem sumia-se lentamente, ä velocidade cautelosa do carro, cujos faróis iluminavam, amareladas e constantes, as curvas tortuosas da estráda de serra. Vultos negros arfavam nos balangos sacudidos e vacilantes, e eram uma árvore despida que, mais próxima, se esbranquicava, um cabego rochoso emer-gindo da encosta, matagais rasteiros que pareciam ondular a um vento que näo havia. Äs vezes um vulto encinzeirado tinha semelhangas de casa perdida, casebre mal se distinguindo da serrania a que se incrustava, feito da mesma pedra que as montanhas. Na solidäo silenciosa e suspensa, apenas o ronronar do motor, cujas peculiaridades ritmicas assumiam carácter proprio, se dissociavam umas das outras, em sussurros cavos e em sacöes agudos, apenas o ronronar ecoava sonolentamente, äs vezes acentuan-do e outras delindo um chiar corrido e estralejado como que de águas no fundo dos vales. Dentro do carro, agasalhados na tepidez afoguea-da do cansago e do cheiro das roupas húmidas, os dois homens cabeceavam, com os olhos piscos fitos 155 O.S' GIIÄO-CAPITÄES OS SALTEADORES na amarelidáo saltante que os faróis abriam, e em que o vulto do «chauffeur» se inclinavq. a um lado e outro, acompanhando com o volante as deslocagoes dos faróis varrendo as curvas. Nenhum deles ia mergnlhado nos próprios pensamentos, mas suspen-sos no rememorar confuso de frases soltas (sobradas da conversa impessoal com que haviam entretido as horas de viagem), de recordagoes íntimas e intrans-missíveis (subjacentes a e sem qualquer conexao com a troca de impressoes, em que a irritagáo de ambos fizera coro, acerca de intrigas de servico) que a escuridáo, a monotonia, o isolamento, o frio que embaciava internamente os vidros, amplificavam obsessivamente, fechando cada um no vegetar ente-diado e sensual das próprias vidas, na incomodidade cabeceante, mole e contraída, em que um almogo gordurento e provincianamente demorado, comido havia horas, prolongava, na imobilidade forcada e trepidante, flatuléncias ácidas. — Por esta altura foi que, há anos, encontrei dois lobos — disse um deles, cujo volume rotundo refun-dava, á esquerda, o assento, forcando as vezeš o outro a segurar-se á pega do carro, para náo tombar sobre ele. O outro náo respondeu. E a voz, rouf enha e pega-josa, depois de pigarrear, prosseguiu, entrecortada pelas curvas da estráda:—Vínhamos também de Montalegre, o Silva e eu, quando, numa noite assim, um par de lobos saiu diante de nós, e ficou encan-deado com os faróis. Era eu quem conduzia. Parei o carro, puxei da pistola que trazia sempře no carro comigo, abri a porta, o Silva protestava em altos brados, e eu a dizer-lhe que se calasse, e disparei dois tiros. Os lobos empinaram-se, e aos saltos sumiram--se nas estevas. Ainda fui até onde eles tinham parádo, a ver se os ferira, se havia um rasto de sangue, na neve meio derretida. Náo havia. Calou-se, e o outro, sem curiosidade, ficou, numa semi-sonolěncia, procurando com os olhos um par de lobos, que saltasse para a estráda, a frente do carro, e, ao mesmo tempo, perpassavam-lhe na memoria gestos e atitudes do Silva, que era o velho e chatíssimo chefe de ambos, hörnern de outros tempos nas conviccöes absurdas de um empirismo téc-nico e de uma visáo rígida e primaria das coisas da vida, e que tinha da profissäo, exercida com refinada avareza nas despesas de viagem, um conceito de feudal grandeza, em que a chefia permitia uma cama-radagem grosseira, de pilhérias de bordel, mas náo admitia qualquer invocacäo da autoridade livresca das mais recentes investigagöes técnicas. Para ele, tudo se resolvia em decisöes formais, de que era no ultimo extremamente receoso, ou em desaforadas gritarias com que calava toda a gente, impondo uma autoridade que elidia, no momento, a adopcäo de solucöes concretas que ultrapassassem a sua expe-riéncia. Era-se entäo obrigado a ouvir, pela centé-sima vez, o relato de como, numa iluminacäo subita, e contra a petuläncia, alias real, dos homens de labo-ratório, resolvera o grave problema de... A voz roufenha e pegajosa, em que palpitavam tons de risonha bonhomia e tragos reprimidos da amargura de um hörnern para quem a profissäo era tudo, e via ä sua frente passarem os aventureiros e os intriguistas (tragos que prolongavam a conversa que ambos tinham Udo), voltou a falar: — Naquele tempo, e näo foi há muitos anos, era perigoso, depois do anoitecer, atravessar estas serras desertas. Agora, é outra coisa. Já näo se arrisca o couro, como eu arrisquei—. Fez uma pausa. —Depois que deram caga aos salteadores que havia por aqui... O tenente Morais, de Vila Real, um companheiräo... — Debru-gou-se para a frente, bateu no ombro do «chauf- 156 157 oh gräo-capitäes os ŕ* a lte'a do re a feur»: — Voce nao conhece o tenente Morais da Guarda? — Conhego, senhor engenheiro — respondeu o «chauffeur», reprimindo, a pretexto de uma curva atentamente descrita, o ligeiro voltar da cabega para tras, que esbogara. O engenheiro recostou-se, suspirou consolada-mente, ja entregue a uma sequencia de lembrancas mais agradaveis. E, ao colega mais novo, perguntou: — Eu nao apresentei o Morais a voce, uma vez que passamos juntos em Vila Real? O outro recordou vagamente uma figura magra e alta, a paisana, de pe na borda do passeio, a porta do cafe, e interrompendo constantemente a conversa laboriosa para seguir com os olhos uma femea que passava, e dizer: — Aquela ja, eu fodi —. Mas a ima-gem nao se firmava, porque uma antipatia de origem se misturava com a irritagao contida que Ihe causava a referenda ingenua, de repetigao de ideias feitas e oficiais, aos «salteadores» que suspeitava quern fossem. E ouviu o companheiro desfiar no escuro, nem bem para ele, nem bem para o «chauffeur*, as recordagoes que o reconciliavam com as contrarie-dades da vida. . — Quando estive em Vila Real, a dirigir os tra-balhos de reconstrugao da ponte metalica... mas eu ja contei isto a voce... porque eu estive meses a viver ali... o que vale e que eu tinha deixado a Fernanda no Porto, em casa dos meus cunhados... Acs fins de semana, descia ao Porto, e era como uma lua-de-mel. O pior era ter de pagar, a segunda-feira, logo pela manha, antes de voltar para Vila Real, as contas do que ela comprava e mandava fazer... Era sempre urn vestido, uma cadeira de torcidos e tre-midos, urn armario do tempo dos quintos, que ela encontrara no ferro-velho e tinha mandado restau-rar. Quando a obra acabou, foi preciso um caminhao para levar tudo aquilo para Lisboa, e eu andei, com o caminhäo atrás, a arrebanhar aquilo tudo pelas lojas dos antiquários... —riu-se, e suspirou de novo, na seguranga enfastiada de quem tinha meios, além do ordenado mesquinho a que correspondia com uma dedicagäo de todas as horas, para arcar com aquelas despesas. — Mas foi uma bela temporada!: O Morais, esse, era um tipo tremendo...—Nova-mente se debrugou para as costas do «chauffeur»: — Voce, nesse tempo, näo fazia já servigo para mim? — Näo, senhor engenheiro. Nesse tempo, eu an-dnva com uma camioneta. — Pois é. O Morais comandava o destacamento da Guarda, e fazia batidas pelas serranias do Norte, ä caga dos contrabandistas. Mas o pior eram os salteadores. O colega mais novo näo se conteve: — Näo em m bem salteadores. — Viviam a monte, desciam as aldeias, armados, levavam quanto era comida e os porcos e as galinhas, e até violavam as mogas. O Morais contou-me que, uma vez, eles tinham assaltado, nos caminhos da serra, uma velhota, e todos eles, mais de vinte, se tinham posto nela. Uma velha! Era gente capaz de tudo. E o chefe, que foi apanhado pelo Morais, parece que tinha sido oficial de marinha. O outro interveio:—Essa história da velhota. como é que esse tenente soube? — Ora, como é que ele soube! Era coisa que, em Vila Real, toda a gente sabia. E mesmo coisas piores. A voz do «chauffeur» veio, muito cautelosa, in-terpor-se também: — Eles näo faziam mal a nin-guém. Essas coisas diziam-se por ai, mas eles näo faziam mal a ninguém. Só queriam comida. _Só queriam comida... Mas o tenente Morais contou-me... e até veio nos jornais... Para acabarem 158 159 OS GRAO-CAPITAES de vez com eles, foi preciso um cerco em forma, e veio tropa do Porto. Do Porto e de outros lados. Que esperava voce que viesse nos jornais? — comentou o mais jovem. — Que eles eram foragi-dos da guerra? Que tinham a cabeca. a prémio? Cá e lá? Voce imagina o que foi, durante anos, por essas serras, sem térem para onde fugir, a vida deles ?_.: O outro eonveio em que eram gente desesperada, decidida a defender a pele, mas acrescentou:—Em noites mais escuras, assaltavam os automóveis. Hou-ve um medico de Chaves que foi assaltado. As ser-ranias estavam por conta deles. — Voce já pensou que eles andavam para cima de Montalegre, e que nessa zona nao estava ainda acabada a estráda? — observou o mais novo. — Ora! Se os automóveis esperassem que a gente acabe de fazer as estradas e as pontes previstas, nem daqui a quarenta anos comecavam a andar por ai. Mas o Morais contou-me que o cerco foi uma coisa séria. Eram tipos que percebiam de guerrilhas. De resto, náo faziam mais do que continuar cá o modo de vida que já tinham lá. Quando uma guerra acaba, há sempře desses tipos que náo se acomodam á paz, náo aceitam o novo governo, náo se integram de maneira nenhuma. — Como haviam de integrar-se? Sabe voce que um amigo meu, durante a guerra de Espanha, era oficial mOiciano em Chaves? E sabe voce que os espanhóis do Franco, quando as nossas autoridades entregavam na fronteira algum foragido que se esca-para para o lado de cá, mandavam depois uns cartoes de convite para irem assistir ao fuzilamento? — O seu amigo viu esses cartoes? Ou foi coisa que Ihe contaram? — Ele viu, e ainda hoje tem um dos cartoes. — Em Chaves, uma vez, falaram-me nisso. Mas esses cartoes eram propaganda comunista. OS SALTEADORES 0 outro calou-se. O automóvel continuava inter-minavelmente a descer a serra, e a névoa tornava-se mais fechada, como se fossem deslizando, aos sola-vancos lentos, por entre algodäo esbranquicado que tornava distantes e abafados os próprios rangidos do saibro que, äs vezes, embatia contra o fundo do carro, em estalos de arma cacadeira. — Foi um cerco em forma — repetiu o engenheiro mais velho. — Resistiram até ao fim. Os Ultimos, encurralados no alto de um cerro, vieram por ele abaixo de mäos no ar, quando os bombardearam a tiros de morteiro. Os mortos que iam sendo reco-lhidos, ä medida que a tropa avancava, foram leva-dos para Chaves e enterrados lá. No alto do cerro, também havia dois ou trés, ainda vivos, o Morais foi um dos primeiros a chegar ao cimo. E tiveram de matá-los porque eles, que mal se podiam mexer, dispararam ainda contra os soldados. O Morais teve de os salvar de serem mortos ä coronhada. — Se o Morais os salvou de serem mortos ä coronhada, como é que afinal tiveram de matá-los? — perguntou o outro, cuja voz tremia. — É que... É verdade! Como é que tiveram de matá-los?... — É isso que eu pergunto. — Näo... näo sei... O Morais trouxe os prisio-neiros para Vila Real; eram cinco, e um deles era o chefe, o que tinha sido oficial da marinha. Estavam feridos, esfomeados, cobertos de farrapos. O chefe perguntou ao Morais para onde os levavam, e por que os näo fuzilavam ali mesmo. Imaginem. 0 hörnern julgava que, no nosso pais, se fuzila! A polícia, e Vila Real estava cheia de polícia, o Morais contou-me que tinha vindo de Lisboa e do Porto uma data de «secretas», a polícia tinha ordern de os entregar äs autoridades espanholas. Logo que chegaram a Vila Real, foram levados para o quartel. Ai, deixaram-nos 160 161 OS GKAO-CAPITAKF lavarem-se e fazerem a barba, sob vigiläneia, näo fosse algum suicidar-se com a lämina. Há quern faca isso. E trataram-nos na enfermaria. E deram-lhes ------ v_w • • ii-.iii ^uuiaiii vn.;. itaiJ- guém podia falar com eles, os «secretas» näo deixa-vam ninguém chegar-se. Mas o Morais, que os tinha trazido, era amigo de um dos inspectores, por sinal um fulano muito simpático, homem educado, que conheci uma vez que ele veio a Vila Real, quando eu lá vivi, e o Morais entäo me apresentou. Boas pándegas fizemos juntos! Homem culto, viajado. Porque eles estudam muito, é uma polícia científica. Este até fizera um estágio na Alemanha, para se especializar. Lembro-me que me emprestou um livro, um daqueles manuais que eles usam, que explicava o comunismo todo. O Morais pôde, assim, assistir ao interrogatório que o inspector fez ao chefe dos salteadores... ao chefe deles... para saber das aju-das que ele recebia, quern era que os abastecía. A polícia parece que estava certa de que os contraban-distas, bem pagos, lhes levavam aos covoes da serra, onde eles se escondiam, as munigôes trazidas por um submarino russo. E até, no Porto, tinham prendido gente suspeita. — Voce acredita no submarino? — E que tem isso? Um submarino näo pode vir, de noite, perto da praia... — Parece-Lhe que os submarinos russos näo tém mais que f azer do que vir até ä costa do Minho trazer municôes a um bando de sujeitos, esquecido e aban-donado do mundo inteiro? — Oh, nessas politicas nunca a gente se pode fiar. Sabe-se lá I... O chefe do grupo disse que era o chefe do grupo, e que sabia que iam fuzilá-lo, e pediu ao inspector que desse notícias dele ä mäe. Era galego de Pontevedra, a mäe morava perto da cidade. Näo OS SALTEADORES tinha noticias da mäe, desde que fugira. E a mäe näo sabia que ele estava vivo. Que raio de ideia!..^ Veja voce, se a pobre senhora já tinha o filho por morto, visto que desaparecido naquela confusäo da guerra era a mesma coisa, e se ele estava convencido de que iam fuzilá-lo, para que a afligia, tantos anos depois? No siléncio que se prolongou, a névoa dissipava--se, e entreviam-se, por rasgôes dela, negrumes de céu em que cintilavam estrelas. — Que frio danado! Quando é que voce instala aquecimento no carro? Com o se pode andar de noite, por estas estradas, no Inverno, sem aquecimento? O « chauffeur* näo lhe respondeu, e a voz retomou o fio da conversa. —Estiveram dois dias em Vila Real, guardados ä vista, que era gente perigosa, capaz de tudo. Depois, de Espanha, vieram buscá--los, e o Morais näo soube mais deles. O carro deu uma guinada brusca que atirou com o mais novo dos engenheiros sobre o mais velho que gritou: — Que é isso? Voce quer deitar a gente por essas ribanceiras? — Näo, senhor engenheiro. É que, se o tenente Morais näo soube mais deles, eu soube. E näo vieram buscá-los da Espanha, porque fui eu quem os levou lá. — a voz do «chauffeur» parecia trémula e frágil, hesitante e, no fim da fala, já arrependida. Os dois engenheiros, ao mesmo tempo, e passada a surpresa, perguntaram: —Voce?— e o mais novo acrescentou:—Foi voce quem os levou? — Sim, senhor engenheiro, fui eu —. Houve um siléncio, e ele, pigarreando, narrou: —É que eu guiava uma camioneta, nesse tempo, uma camioneta de aluguer, que f azia praga na Avenida. Uma noite, esse tal inspector veio bater ä minha porta, fez-me sair da cama, e disse que tinha um servico para mim. 162 163 OS GBÄO-CAPITÄES OS tiALTKADORKK Sentou-se ao meu lado na cabina, e mandou-me parar a porta do quartel. Depois, abriram de dentro o portáo, e saíram de lá os cinco homens, com as maos amarradas atrás das costas, no meio dos policias á paisana. Fizeram-nos subir para a camioneta, com as pistolas em punho, e mandaram que eles se sen-tassem no cháo, e os policias sentaram-se também no chao, á volta deles. E o inspector mandou-me seguir pela estráda de Chaves. Ainda nao era dia, quando passámos por Chaves; e entao ouvimos uma grande vozearia atrás de nós. O inspector mandou--me parar e, de pistola em punho, apeou-se a ver o que era. — Fez uma pausa, e riu-se secamente, num riso sem vontade. — A discussáo era porque um dos homens, na camioneta, dizia que queria mijar. E náo podia, com as máos amarradas atrás das costas. Ficámos um tempo infinite parados no meio da estráda, e o dia a despontar. Os policias, alguns deles, aproveitaram para mijar, mesmo de cima da camioneta, e um berrou aos espanhóis que fizessem pelas pernas abaixo, enquanto outro, diseutindo com o inspector, propunha que, para todos mijarem, desa-marrassem as máos deles, um de cada vez. Que náo desamarrava coisa nenhuma, disse o inspector, e per-guntou se ele queria que o homem aproveitasse para fugir e se ele queria tiroteios, ali, no meio da estráda, á beira de Chaves. Eu tinha saído da camioneta, fora mijar na berma, contra umas moitas, e vim encostar-me ao motor a ver no que aquilo dava. Os espanhóis faziam uma gritaria medonha, e o inspector, ameacando-os com a pistola, mandou-os calar. E, depois, virou-se para o polícia que tinha dito que podiam desamarrar as máos a um espanhol de cada vez e mandou: — Ponha esses homens a mijar. O engenheiro mais velho deu uma gargalhada estrondosa que o langou recostadamente no assento e se contagiou ao mais novo e mesmo ao «ehauffeur». E, engasgando-se no riso, perguntou: — E o polícia pôs ? — O polícia protestou, os outros policias desata-ram todos a rir, e entäo o inspector disse: «Se calhar minca pegou nisso a ninguém!?,> E os outros ainda riram mais. O inspector mandou-os ficarem sérios, e disse «Lá na cadeia, quando torec essas partes aos presos, para obrigá-los a falar, näo pega nelas? E vocés», disse para os outros, «tambem nunca fizeram esse trabalho?» Com a voz inquieta e perplexa de horror, o engenheiro mais velho perguntou, näo em especial a ninguém:—Eles fazem isso? 0 mais novo respondeu-lhe:—Fazem. — Näo é possível. Estabeleceu-se novamente um siléneio. Haviam saído do nevoeiro e, apenas difusas pelo embaciado dos vidros (e o «Chauffeur», nesse momento, limpou o pára-brisas com um pano), as árvores surgiam bruscamente nas curvas, diante do carro, e logo desapareciam num adejar de ramos que era o balan-cear das molas nas covas da estráda. — Em que estado está isto, santo Deus! Um homem chega derreado, com as vertebras todas fora da ordern! —exclamou o engenheiro mais velho. A seguir, riu consigo mesmo, e perguntou: •— Mas, afi-nal, os homens mijaram ou näo? — Mijaram. O inspector mandou que cada urn dos policias pusesse a mijar um deles, para näo se rirem uns dos outros. E quem ria, sem conseguir mijar, eram os espanhóis. Um deles resistiu, näo queria deixar que Ihe tocassem na braguilha. E o chefe, enquanto mijava, disse-lhe, lembro-me muito bem, «Dejalo, van a decir que te has meado de miedo». 164 165 OS OIIÄO-CAPITÄES OS SALTEADORES — Era um tipo teso, como me contou o Morais — comentou o engenheiro mais velho. A interrupgáo calou o «chauffeur» que ficou guiando atentamente, ate que o mais novo dos enge-nheiros insistiu com ele: — E depois? — Depois... passámos por Vila Verde da Raia sem parar, e chegámos a fronteira. Na fronteira, náo havia guarda nenhum dos nossos, ninguém, mas ao pé das balizas havia uma data de «guardias civi-les» ou lá que eram. As cancelas, a nossa e a deles, estavam abertas, e entrámos por ali dentro e paramos, o inspector mandou-me parar ao pé do posto. — Um posto miserável que nem para chiqueiro de porcos serviria. Umas das eoisas boas do nosso governo sao os postos fronteirigos. Haverá eoisas más, eoisas que náo estáo certas, mas os postos fronteirigos sáo uma boa obra. Bonitos, grandes, bem acabados, causám a melhor das impressoes aos es-trangeiros que chegam por estráda. E é cada vez maior o numero de turistas que... — Deixe os turistas em paz — cortou o mais novo com uma violéncia raivosa. — E depois? — O comandante espanhol, ou lá que era, apa-receu á porta do posto, e o inspector apeou-se e foi falar com ele. Nesta altura, a camioneta estava toda rodeada de «guardias», e os polícias saltaram para o cháo. E, atrás deles, sacudidos pelos «guardias», saltaram também os cinco presos. O inspector deu-me ordem que avangasse com a camioneta e fizesse a manobra para regressarmos. Eu tinha-me apeado, e, quando ia a subir para o volante, vi os presos todos encostados a parede do posto, com os «guar-dias» na frente deles. E nem sei se cheguei a ouvřr os tiros, porque, caíam eles, e caía eu, redondo, no cháo, com uma eoisa que me deu. —Fez uma pausa, durante a qual o engenheiro mais novo olhou para fora, viu com nitidez o arvoredo esparso ro-dando na noite escura, notou que os vidros näo estavam ja embaciados, e sentiu o frio penetrante que lhe enregelava os pes. Desta vez, sem ser necessario insistir com ele, o «Chauffeur» continuou. A voz ecoava como exausta, desfeita, mas no entanto com urn timbre claro, lim-pido. — Quando voltei a mim, estava sentado na caixa da camioneta, no meio dos policias, sem ser capaz de pensar em nada, so a tremer e a repetir comigo, «fui eu quern os trouxe, fui eu quern os trouxe». Os policias conversavam uns com os outros, e falavam--me, mas eu nem os ouvia. Ä entrada de Vila Real, a camioneta parou, os policias saltaram para o chäo, a cabega do inspector espreitou por cima da caixa, disse-me näo sei o que, e dois dos policias tornaram a subir para me ajudarem a descer. Sentaram-me ao lado do inspector que, sem falar comigo, guiou a camioneta ate ä minha porta. Ai, apeou-se e disse--me, «Fica sabendo que näo viste nada. Ve la se queres que te ponham a mijar». E foi-se embora. Eu fiquei doente de cama, muitos dias, e, logo que estava capaz de me levantar e sair, vendi ao desbarato a camioneta. Dias passados, o hörnern a quern a vendi, um negociante de batata, de Vila Pouca, veio pro-curar-me. E entregou-me urn sobrescrito que, disse ele, tinha encontrado entalado no assento. Eu abri o sobrescrito, com o coragäo a bater, e com vägados na cabega, depois de ele se despedir. Era um oficio com a lista dos nomes dos espanhois, os enderegos que eles tinham dado, värias coisas que eles tinham declarado para se identificarem. ■— E que fez voce desses papeis ? — perguntou o engenheiro mais novo. — Queimei tudo. Ficaram calados os tres, e o automovel atra- 166 167 os gräo-capitäes vessou uma aldeia que crescera ä beira da estráda, porque as casas, os palheiros, os currais se sucediam a um lado e outro, iluminados pelos faróis. Longo tempo depois, chegaram finalmente ao cruzamento, e o automóvel comegou a deslizar suavemente na estráda do vale, larga e pavimentada de novo. O mais jovem dos engenheiros fitou o colega. Com a cabeca pendida para o peito, ressonava num eicio brando. Assis, Säo Paulo, Brasil, 4/5/61. O! ihr stillen Spiegel der WahrPieit! An des Einsamen elfenbeinerner Schlaf erscheint der Abglanz gefallener Engel (Ö vös, quietos espelhos da verdade! Do solitärio nas ebürneas temporas aparece o claror de anjos caidos.) Trakl «Lisboa, 1958» Boa Noite 168 OS GRAO-CAPITAES mesa, e vai pela galéria fora, guardando ainda, en-quanto dá com as pernas passadas largas que pare-cem lentas, o porta-moedas. E tem de desviar-se do criado que se lhe atravessa no caminho. A galéria fica praticamente deserta. A mancha amarela de um eléctrico percorre longamente o corrimäo de crómio. Mas, dali a pouco, o rapaz volta, com o rosto tenso de frustragäo agoniada, mäos nos bolsos das calgas, o peito metido para dentro, as pernas bambas. Hesi-tante, chega a contornar o balcäo, para espreitar a outra entrada. Regressa. Ao pé da mesa onde ele estivera, o criado recolhe as moedas. O rapaz pára ao lado, e diz: — Viu aqueles gajos que estavam ali sentados? — e, com um aceno de cabeca, indica a mesa onde as moedas brilham ao pé das duas chave-ninhas. O criado fita-o sem responder. O rapaz me-neia, de sobrolho franzido, a cabeca de baixo para cima e de cima para baixo: —Gajos como aqueles paneleiros näo deviam poder entrar nos cafés dos homens —. 0 criado sorri e afasta-se. O rapaz fica imóvel, de olhos caídos. E, distraidamente, as mäos saem-lhe dos bolsos e afagam suavemente as ná-degas. Os Salte^ciores Where Lusitania and her Sister meet. Deem ye what bounds the rival realms divide. (Que d Lusitania e Sun Irmd seyara como jronteira aqui, nacoes rivals f) BYRON_Childe Harold's Pilgrimage (C. I —XXXI) Assis, 9/6/61. «Trás-os-Montes. 1953» 152 Numa lividez que era névoa rolando pelos pedre-gais e difractando uma lua para alem dela, a pai-sagem sumia-se lentamente, ä velocidade cautelosa do carro, cujos faróis iluminavam, amareladas e constantes, as curvas tortuosas da estráda de serra. Vultos negros arfavam nos balangos sacudidos e vacilantes, e eram uma árvore despida que, mais próxima, se esbranquicava, um eabego rochoso emer-gindo da encosta, matagais rasteiros que pareciam ondular a um vento que näo havia. Äs vezes um vulto eneinzeirado tinha semelhangas de casa perdida, casebre mal se distinguindo da serrania a que se incrustava, feito da mesma pedra que as montanhas. Na solidäo silenciosa e suspensa, apenas o ronronar do motor, cujas peculiaridades ritmicas assumiam carácter proprio, se dissociavam umas das outras, em sussurros cavos e em sacöes agudos, apenas o ronronar ecoava sonolentamente, äs vezes acentuan-do e outras delindo um chiar corrido e estralejado como que de águas no fundo dos vales. Dentro do carro, agasalhados na tepidez afoguea-da do cansago e do cheiro das roupas húmidas, os dois homens cabeceavam, com os olhos piscos fitos 155