O Baräo, que Branquinho da Fonseca publicou pela primeira vez em 1952, sob o pseudónimo de Antonio Madeira, é uma das mais significativas, densas e complexas novelas do autor. Um inspector das escolas de instrucäo primaria vé-se, por impo-sicäo das suas funcöes, coagido ao nomadismo. E dispöe-se a escrever para contar uma inesquecível viagem de servico que o levara a um vetusto solar de provincia, onde o Baräo se condenara a um sedentarismo solitário e dramático. Personagem intrigante e contraditória, que oscila entre a tirania e o sentimentalismo, o Baräo apodera-se do inspector e obriga-o a partilhar o seu mundo durante uma noite alucinante marcada por confidéncias delirantes é cenas imprevistas. A intrigante figura do Baräo, com as suas qualidades e defeitos, as suas obsessöes e os seus sonhos, é simultaneamente uma realidade, um mito e um símbolo. Neste volume incluem-se também dois dos mais belos contos do autor: «As Maos Frias» e «O Invo-luntario». 5601072405530 A R G Ó - í R I « -arcoins.pt FILOZOFI. KA F MASARYKOVľ U KATEDRA ROMANISľiŕCY A FC-rT" KN.HOVNA - ODDĚLÍ. f--i P C:'i .í iv I Y Colecgcio «Livros de Bolso Europa-America» —Esteiros, Sociro Pereira Gomes —O Músico Cego, Vladimíro Korolenko —Frei Luis de Sousa, Almeida Garrett —A Ocste Nackt de Novo, Erich Maria Remarque •—A Missäo, Ferreira de Castro —Mar Morto, Jorge Amado —A Um Dens Desconhecido, John Steinheck — O Valen te Soldado Chveih, Jaroslav ilasek —A Cidade. do Sossego, Nicolau Gogol — O Monte dos Ventos Vivantes, Emily Bronte — Gaibéus, Alves Redol — Cartas do Men Moinho, Alphonse Daudet — OMčdicoeoMonstro, Roher t Stevens on — O Hörnern do Rio, William Faulkner — Sementes de Violencia, Evan Hunter — O Retra to de. Ricardina, Camilo Castelo Branco — Seräcs da Provi'ncia, Julio Dinis —As Desencantadas, Pierre Loti —Domingo a Tarda, Fernando Namora — Germinal, Emilio Zola —Manila Submersa, Vergilio Ferreira —Bel-Ami, Guy de Maupassant —Morrcram pel a. Pcitria, Mikail Cholokov — O Principe, Maquiavel —As Maos Sujas, Jean-Paul Sartre — Viagens na Minim Terra, Almeida Garrett — O Eleito, Thomas Mann — O Grande Meaulness, Alain-Fournier — O Pre.gador, Erskine Caldwell —Polihuchha, Leon Tolstoi — Genie, de Hemsö, August Strindberg —Filha de Labäo, Tomas da Fonseca — Um. Dia na Vida de Ivan Denisovich, Alexandre Soljenitsine —A Ciociara, Alberto Moravia —Os Homens e os Outros, Elio Vittorini —OFogoeas Cinzas, Manuel da Fonseca —Albergue Nocturno, Maximo Gorki —Revolta na "Bounty", Sir John Barrow —Reeordaeoes da Casa dos Mortos, Fédor Dostoievski — O Autómato, Alberto Moravia — Vinte Quatro Horas na Vida de Uma Mulher, Stefan Zweig —Morte Dum Caixeiro Viajante, Arthur Miller —A Raa do Galo Que Pesca, Yolanda Földes — Os Fidalgos da Casa Mourisca, Julio Dinis —A Ponte, Manfred Gregor —A Noite Roxa, Urbano Tavares Rodrigues —Melodia Tntcrrompida, Boris Pasternak — Nana, Emilio Zola — Utopia, Thomas More —Engrenagem, Soeiro Pereira Gomes —A Religiosa, Diderot —Nolles Brancas, Fédor Dostoievski — O Bardo, Branquinho da Fonseca —Z, Vassilis Vassilikos — Os Autos das Boreas, Gil Vicente — Os Sequestrados'de Altona, Jean-Paul Sartre —Trace ma, Jose de Alencar —A Morgadinha dos Canaviais, Julio Dinis — Tartarin nos Alpes, Alphonse Daudet —O Balio de Leqa, Arnaldo Gama —Elogio da Loucura, Erasmo — O Chapéu de TrěsBicos, Pedro Antonio de Alarcón — Candida, Voltaire —A Mulher de Trinta Anas, H. de Balzac — Os Cavalos também Sk Aba tcm, Horace McCoy ^ — O Lobo do Mar, Jack London —A Casa de. Bernarda Alba, Federicn Garcia Lorca —Satirieon, Petrónio —A Filha do Regicida, Caniilo Castelo Branco — Guerra e Paz — I, Leon Tolstoi — Gucrra e Paz — II, Leon Tolstoi — O Denunciante, Liam O'Flahorty —A Mae, Maximo Gorki — Uma Vida, Guy do Maupassant —Helena, Machado de Assis —Escola de Mu I he res e Dom Joäo, Mol i ě re —Anátema, Camilo Castelo Branco — O Sol de Cobre, André Kedros — O Pescador de Tslándia, Pierre Loti —2455—Cela da Morte, Caryl Chessman —Memóriasde Um Sargentode Mi líci as, Manuel Antonio de Almeida — Um Herói do Nosso Tempo, Lermontov — Spartacus, Howard Fast —A Arte de Amur, Ovídio —O Sonho, Emilio Zola — Cantos, Hans Christian Andersen —As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift — ODeserto do Amor, Francois Mauriac — OApelo da Sclva: O Grito da Floresta, Jack London —Cartas Portuguesas, Soror Mariana Aicofbrado 91 —Dttelo ao Sol, Niven Busch 32 —Paulo e Virginia; Bernardin Saint-Pierre 93 —AsPupÍ!asdoScnhorReitor,Jú\\oD'mis 94 —Tarass Bulba, Nicolau Gogo! l)5 _0 Contraio Soda!, Jean-Jacques Rosíš eau 96 —OPao da Mentha, Horace McCoy 97 —Lalita, Vladimir Nabokov 98 —Noivas de Ninguém, Henry de Mon- t-he rl and 99 —qu0 Vad is?, Henryk Sienkiewicz 100 —Constantino, GuardadordeVacasede Son hos, Alves Redol 101 —A Lei. Roger Vailland 102 —O Exorcista, William Peter Blatty 103 — Os Con qu ist adores, André Malraux 104 — Tristaoe Isolda 105 —Kama Sutra, Vatsyayana 106 —Sonetos, Luis de Canioes 107 —A Princesa de Cleves, M.T. de la Fayette 108 —Robinson Crusoe, Daniel Defoe 109 —ScUiras Sociais, Gil Vicente HO —O Dramade JoctoBarois.RogevMartin du Gard 111 —O Nö de Viboras, André Mauriac 112 —A Estepe, Tchekov 113 —O Gavido Lnuco, Jean Carriere 114 —A Metamorfose, Franz Kafka 115 —Orgulho e Preconceito, Jane Austen 116 —Picdade para as Mulheres, Henry de Monthei'iant 117 —Guarani, Jose de Alencar 118 —ARcpública, Platäo 119 —OBarbei.ro de Sevilha, Beaumarchais 120 —Grandes Esperancas, Charles Dickens 121 —Amor de Soldado, Jorge Amado 122 —Men in a e Moea, Bernardini Ribeiro 123 — A T.etra Escarlate, N. Hawthorne 124 —A Grande Muralha.da China, Franz Kafka 125 — Uma Noite cm Lisboa, Erich Maria Remarque 126 —A Pequena Fadette, George Sand 127 — O Macaco Louco, A. Szent-Györgyi 128 —As Bodos de Figaro, Beaumarchais 129 — OJardim Perfumado:Manual de Ero- tologia Arabe, Xeque Nefzaui 130 —O Demónio do Bern, Henry de Mon- therland 131 — DezDiasQueAbalaramoMundo, John Recd 132 —Gern Anas de Solidao, Gabriel Garcia Márquez 133 —A Nausea, Jean-Paul Sartre 134 —A Ponte do rio Kwai, Pierre Boule 135 —As Joins Indiscretas, Diderot 136 —Os Deuses Těm Sede, Anatole France 137 —O Processo, Franz Kafka 138 —Este É o Bom Governo de Portugal, Tomas Pinto Brandäo 139 —Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, Vicente Blasco Ibariez 140 — Diseurso sobre "A Origan e Funda- mentos da Desigualdadc entre os Ho-mens», Jean-Jacques Rosseau 141 — Vinho e Pao, Ignazio Silone 142 —OBisturi, Horace McCoy 143 —As Aventuras dc Huckleberry Finn, Mark Twain 144 —AFilha do Arcediago, Camilo Castelo Branco 145 —j\s Leprosas, Henry de Montherland 146 —História de Urna Revolucáo: L"Parte da "Crónica de El-Rei D. Joao I de Boa Memória», Fernäo Lopes 147 —Chamado do Mar, James Amado 148 — OArco de SantAna, Almeida Garrett 149 —Diseurso do Método, Descartes 150 —A Montanha Morta da Vida, Michel Bernanos 151 —Fanny Hill: Memórias Duma Prosli- tuta, John Cleland 152 —A Párola, John Steinbeck 153 —O Anticristo, Nietzsche 154 —Urna Família Inglesa, Júlio Dinis 155 —AmorNutria Rua Escura, Irwin Shaw 156 —ABesta Humana, Emilio Zola 157 — O Obeíisco Negro, Erich Maria Remar- que 158 —Tratado de Politico, Aristoteles 159 —A Cabana, Vicente Blasco Ibáňez 160 —America, Franz Kaíka 161 —Mulherzinhas, Louisa Alcott 162 — Alice no Pais das Maravilhas, Lewis Carroll 163 —ADama das Cornelias, Alexandre Du- mas Filho 164.—A Face da Justica, Caryl Chessman 165 —RomeueJulicta, William Shakespeare 166 —Esplendores e Misériasdas Cortesäs— I, Honore de Balzac 167 —Esplendores e Misériasdas Cortesäs— II, Honore de Balzac 168 —O Banquete, Platäo 169 —TempoparaAmar/TempoparaMorrcr, Erich Maria Remarque 1.70 —A Família Bellamy — I, John Haw-ke s worth 171 —A Família Bellamy — II: Segredos de Família, John Hawkesworth 172 —A Família Bellamy — III: Os Novos Tempos, Molíie Hardwick 173 —A Família Bellamy — IV: A Guerra para Aeabar com as Guerras, Mollie Hardwick 174 —A Família Bellamy — V: A Danca Continue!, Michael Hardwick 175 —A Família Bellamy — VI: Fins e Princípios, Michael Hardwick 176 —Allha dos Pinguins, Anatole France . 177 —A Escrava Isaura, Bernardo Guima-räes 178 —Morte em Veneza, Thomas Mann 179 — Assim Falou Zaratustra, Nietzsche 180 —Pcnsamentos, Blaise Pascal 181 —Alicedo OutroLadodoEspelho, Lewis Carroll 182 —ODia Cinzentoe Outros Cantos, Mario Di oní si o 183 —Moinho ä Beira do Rio. — 1, George Eliot 184 —Moinho ä Beira do Rio — II, George Eliot 185 —Bela de Dia, Joseph Kessel 1S6 —Alcoräo — Parte T 187 —Alcoräo — Parte II 188 — A Vida Amorosa de Moll Flanders, Daniel Def'oe 1.89 —Lord Jim, Joseph Conrad 190 —De Angola ä Contracosta — I, Her- meriegildo Capelo e Roberto Ivens 191 -—DeAngola ä Contracosta — II, Herme- negildo Capelo e Roberto Ivens 192 —O Canto e as Annas, Manuel Alegre 19'4_ —O Castelo, Franz Kafka 194 —As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain 195 —Os In fort úni os da Vi rtu de, Marques de Sade 196 —Madame Bovary, Gustave Flaubert 197 —O Inferno, Dante Alighieri 198 —As Auenturas de Pinóquio, Collodi 199 —West Side Story: «Amor sein Barreiras», Irving Shulman 200 —Praca da Cancäo, Manuel Alegre 201 —A Ingénaa Libertina, Colette 202 —Ana Karenina — I, Leon Tolstoi 203 ■—Ana Karenina — II, Leon Tolstoi 204 —20 000 Léguas Submarinas, Julio Verne 2Ü5 —Os Carms do Inferno, Sven Hasse! 206 —A Vagabunda, Colette 207 —Dois Anos de Férias, Julio Verne 208 —O Zero e o Infinito, Arthur Koestler 209 —Moby Dick: A Balcia Branca — I, Herman Melville 210 —Moby Dick: A Baleia Branca — II, Herman Melville 211 —Dona Barbara, Rómulo Gallegos 212 —O Macaco Nu, Desmond Morris 213 —Catecisino Positivista, August Comte 214 —Avieiros, Alves Redol 215 —Viage in no CentrodaTerra, Jiilio Verne 216 —Co/no EuAtrauessei a Africa — I.Serpa Pinto 217 — Coino Eu Atravessei a Africa — II, Serpa Pinto 218 —A Qaeda Dum Anjo, Camilo Castelo Branco 219 — A Cidadc. e as Serras, Eca de Queirós 220 — O Natal do Sr. Scrooge, Charles Dickens 221 —Lendas e Narrativas — I, Alexandre Herculano 222 —O Mandaríni, Eca de Queirós 223 — Cinco Seinanas ein Baläo, Júlio Vei'ne 224 —Contos, Eca de Queirós 225 —A llustrc Ca'sa de Ramircs, Eca de Queirós 226 —Doze CasamentosFelizcs, Camilo Cas- telo Branco 227 —Os Lusiadas, Luis de CamÖes 228 — Os Canhöes de Nauarone, Alistair MacLean 229 —Os Maias, Eca de Queirós 230 —Histórias Extraordinárias I, Edgar Allan Poe 231 —Novelas do Miniw — 1, Camilo Castein Branco 232 —Lendas e Narrativas — II, Alexandre Herculano 233 —A Ilha Misteriosa — í: Os AFáufragos da Ar, Julio Verne 234 —As Mi n as de Salomäo, Eca de Queirós 235 —Eurico, o Presbite.ro, Alexandre Herculano 236 —O Ultimo Dia Dum Condenado, Vitor Hugo 237 —O Livro de CesärioVcrdc, Cešávio Verde 238 —O Pais das Unas, Fialho de Almeida 239 —Allonra Perdida. de Katharina B!um, Heinrich Boll 240 — Coraqäo, Cabeca. e Estômago, Camilo Castelo Branco 241 —Folhas Cai'das, Almeida Garrett 242 —A IlhaMisteriosa — ll: O Abandonado, Júlio Verne 243 —O Crime do Padre Ainaro, Eca de Queirós 244 —Os Mens Ainores, Trindade Ceelho 245 — Contra Mare Vcnfo, Teixeira de Sousa 246 — Ma.es e Filhas — I, Evan Hunter 247 —A Velhice do Padre Eterno, Guerra Junqueiro 248 —AReli'quia, Eca de Queirós 249 —ABrasileira de Präzins, Camilo Castelo Branco 250 — Meies c Filhas — II, Evan Hunter 251—0 Priino Basttio, Eca de Queirós 252 —Amor de Perdu;äo, Camilo Castelo Branco 253 —Só, Antonio Nobre 254 — A Ilha Misteriosa — III: O Segredo da 'Ilha, Júlio Verne 255 —Diálogos III, Platäo 256 —A Correspondencia de Fradtqtic Mendes, Eca de Queirós 257 —A Harpa do Create, Alexandre Her- culano 258 —Eusébio Macário, Camilo Castelo Branco 259 —Até ä Eternidade — I, James Jones 260 —A Odisseia, Homero 261 —O Conde de Abranjios, Eca de Queirós 262 —A Corja, Camilo Castelo Branco 263 —Até á Eternidade — II, James Jones 264 —O Bobo, Alexandre Herculano 265 —Campo de Flores — I, Joäo de Deus 266 —Novelas do Mi ako—II, Camilo Castelo Branco 267 —O Regimento da Morte, Sven Hassel 268 —O Rah Verde, Júlio Verne 269 —-Os Pescadores, Raul Brandäo 270 —A Cartuxa de Parma — I, Stendhal 271 —Contos Populäres Portugueses, Viale Moutinho 272 —DiciondriodeMilagres, Eca de Queirós 273 —A Cartuxa de Parma — II, Stendhal 274 —O Ultimo Voo da Area de Noc, Chas Camer 275 —História. Trágico-Marítima — I; Bernardo Gomes de Brito 276 —A Tulipa Negra, Alexandre Dumas í 277 —A Fclicidade Nao Se Compra, Hans i Helmut Kirst i 278 —História Trágico-Maritima — II, I Bernardo Gomes de Brito j 279 —HistôriasExtraordinárias — II, Edgar Allan Poe f 280 —Robur, O Conquistador, Júlio Verne \ 281 —Alves & C", Eca de Queirós i 282 —DeusDormeemMasúria, Hans Helmut \ Kirst i 283 —Campo de Flores — II, Joäo de Deus T 284 —Sonetos, Florbela Espanca .i 285 —Uma Vez Nao Basta, Jacqueline Susann ; 286 —Amor de Salva-Cäo, Camilo Castelo t Branco l 287 —In Hlo Tempore, Trindade Coelho I 288 — Os Possessos — I, Dostoievski \ 289 —Os Possessos — II, Dostoievski ,.[ 290 — Os Possessos — III, Dostoievski í j 291 —A Capital, Eca de Queirós ;| 292 —AMulherFatal, CamiloCasteloBranco i 293 —O Se n hor do Mundo, Júlio Verne :í 294 —As Viagens de Marco Pólo i 295 —O Conde de Monte Crista — I, Ale- xandre Dumas 296 —AFreira no Subterráneo, Camilo Cas-1 telo Branco [ 297 —O Conde de Monte Crista — II, Ale- :{ xandre Dumas í 298 — Um Conto de D u as Cidades, Charles Dickens 299 —Sonetos Completos, Antero de Quental 300 —O Monge de Cister — H, Alexandre Herculano ■| 301 —EnsaiosohreoPľinci'pindaFopulacao, } Thomas R. Malthus i 302 —Oliver Twist, Charles Dickens 303 —O Livro (A Biblia) j 304 —Sensibilidade e Bom Scnso, Jane Aus- ten Í 305 —Noifes de Lamego, Camilo Castelo Branco ;| 306 —Alliada, Homero % 307 —A Volta ao Manch ein 80 Dias, Júlio Verne ff 308 —O Monge de Cister — I, Alexandre :;| Herculano :j 309 —Decameron — I, Giovanni Boccaccio ■| 310 — A Eneida, Virgilio i 311 —Verdes Anos, Colette 312 —Hamlet, William Shakespeare 1 313 —Portugal Contcmporänea — l, Oliveira Í Martins i 314 _o Amante de Lady Chatterley, D. H, j Lawrence 315 —História de Portugal — I, Oliveira .i Martins I 316 —O Conde de Monte Cristo — III, ■:[ Alexandre Dumas 317 —Os Upanishades :( 318 —Portugal Con tempomneo—II, Oliveira í j Martins ! 319 —Miguel Strogoffih- parte), Júlio Verne || 320 —Decameron — II, Giovanni Boccaccio I 321 — Os Säos e os Lottcos — I, James Jones 322 — Miguel Strogoff {2.- parte), Júlio Verne 323 —História de Portugal — II, Oliveira Martins 324 —A Tragédia da Rua das Flores, Eca de Queirós 325 — Os Säos e os Loucos — II, James Jones 326 — Mistčľiosde Lisboa — í, Camilo Castelo Branco 327 —Os Analectos, Coníúcio 328 —Sonetos, Bocage 329 —Mistérios de Lisboa — II, Camilo Castelo Branco 330 —Da Guerra, Clausewítz 331 —Vidas Secas, Graciliano Ramos 332 —Mistérios de Lisboa — III, Camilo Castelo Branco 333 —História da Origem e Estabeleciinento da Inquisicäo cm Portugal — I, Alexandre Herculano 334 —Destrocos de Guerra — I, James Jones 335 —História da Origem e Estabeleciinento da Inquisicäo em Portugal — II, Alexandre Herculano 336 —Sc7o Bernardo, Graciliano Ramos 337 — Destrocos de Guerra — II, James Jones 338 — Urna Cidade Flutuante, Júlio Verne 339 —História da Origem e Estabeleciinento da Inquisicäo em Portugal — III, Alexandre Herculano 340 —Ilhéu de Contenda, Teixeira de Sousa 341 —Os Simples (Poesias Liricas), Guerra Junqueiro 342 —Li uro Negro de Padre Dinis—I, Camilo Castelo Branco 343 —Morte aos Franceses, C. S. Forester 344 —Livro Negro de Padre Dinis — II, Camilo Castelo Branco 345 —Memórias do Cárcere — I, Graciliano Ramos 346 —Contos Irónicos,-Heinrich Boli 347 —Contos, Fialho de Almeida 348 —Peregrinac-äo—I,Fernäo Mendes Pinto 349 —Peregrinaqäo — II, Fernäo Mendes Pinto 350 —Memórias do Cárcere — II, Graciliano Kamoš 351 —Barranca de Cegos, Alves Redol 352 —O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha — I, Miguel Cervantes 353 —O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. — II, Miguel Cervantes 354 —Capitôes da Areia, Jorge Amado 355 —Os Miseráveis — I: Fantina, Vietor Hugo 356 —Os Miseráveis — II: Cosctta, Vietor Hugo 357 —O Canto do Carrasco — I, Norman Mailer 358 —Memórias do Cárcere — I, Camilo Castelo Branco 359 —O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha — III, Miguel Cervantes 360 —Memórias do Cárcere — II, Camilo Castelo Branco 361 —Os Miseráveis — III: Mário, Vietor Hugo 362 —Adeus, California, Alistair Maclean 363 —Os Miseráveis — IV: O Idílio da Rua PI u met e a Epopeia. da Rua de Ľ. Din is, Vietor Hugo 364 —Os Miseráveis — V: Jocto Val je p n, Vietor Hugo 365 —Psicologia das Multidôes, Gustave Le Bon 366 —OEngenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha — IV, Miguel Cervantes 367 —A Arte da Gucrra, Sun Tzu 368 —Viagens e Avcnturas do Capitdo HatU'.ras—V.OsInglesesnoPóloNorte, Júlio Verne 369 — O Canto do Carrasco — II, Norman Mailer' 370 —Exilio Perturbatio, UrbanoTavaresRo- drigues 371 —AMantilha deBcatriz, Pinheiro Cha- gas 372 — Viagens e Avcnturas do Capitäo Hatte ras—U: O Dcserto de Geh, Júlio Verne 373 —Querelle: Amar e Ma fa r, Jean Genet 374 —Elói ou Romance Nu ma Cabeea, Joao Caspar SimÖes 375 — Contos ou His tori as dos Tempos Idos, Charles Perrault 376 —Filhos e Amantes — I, D. H. Lawrence 377 — Ultimas Pdginas: Lendas de Santos e Escritos Di versos, Eca de Queirós 378 —Ventos de Guerra — I, Herman Wouk 379 — CäoVel ho entre Flares, BaptistaBastos 380 —Re i Lear, William Shakespeare 381 —Filhos e Amantes — II, D.H. Lawrence 382 —Ventos de Guerra — II, Herman Wouk 383 —As MU e Urna Noites — I 384 —As Mil e Urna Noites — II 385 —O Canhao, C. S. Forester - 3S6 —Técnica do Golpe de Estado, Cuľzio Malaparte 387 —História da Civilizaqäo Ibérica, OHveira Martins 388 —As Mil c Urna Noites — III 389 —Apóhgos, Adiuinhacôes e Epigramas, José Maria Barbosa do Bocage 390 —Caetés, Gracilianu Ramos 391 —Contos, José Regio 392 —As Mi! e Urna Noites — IV 393 —Cancioneiro Alegre de Poetas Portu- gueses e Bra si lei ros—I, Camilo Castelo B ran co 394 —Blotv-Up e Outras Historian, Júlio Cortá'-íar 395 —Fábulas, Curvo Semedo 396 —As Mil e Urna Noites — V 397 —Cancioneiro Alegre de Poetas Por- tugueses e Brasileiros — II, Camilo Castelo Branco 398 — Os 'Pres Mosqueteiros -— I, Alexandre Dumas 399 — Um Perigoso Entardecer, James Jones 400 —As Mil e U ma Noites —VI 401 —Os Trés Mosqueteiros — II, A. Dumas 402 —Kaputt, Curzio Malaparte 403 —Diálogos ľV, Platäo 404 —Patria, Guerra Junqueiro 405 —Rio da Morte, Alistair MacLean 406 —Em Busca do Tempo Perdido — I: Do Lado de Swann, Marcel Proust 407 —OsTrés Mosqueteiros-—III, Alexandre Dumas 408 —ORouxinol e a Rosa, Óscar Wilde 409 —Fábulas 410 —Rainha Afričana, C. S. Forester 411 —Angústia, Graciliano Ramos 412 —A Doenca Infantil do Comunismo, Lenine 413' — OsCavalheirosdo IGdeJulho, RenéL. Maurice e Ken Follet 414 ■—Infäncia, Graciliano Ramos 415 —O Rapto de Um Presidente, Alistair MacLean 416 —Nussa Senhora de Paris — I, Victor Hugo 417 —Naqucle Al c g n- M Os de Maio — I, James Jones 418 —Nossa Senhora de Paris — II, Victor Hugo 419 —Naque.le Alegre Més de Maio — M, James Jones 420 —Obra Poctiva, Mário de Sá-Carneiro . 421 —Em Busca do Tempo Perdido — If: A Sombra das dnimns em Flor, Marcel Proust 422 —A Ctmfismo de Lť/cio, Mário de Sá- -Cameiro 423 —Da Terra a Lua, Júlio Verne 424 —Ivanhoe, Sir Walter Scott 425 —Ä Volta dn Lua, Júlio Verne 426 —Cčtt em Fogo, Mário de SáCarneiro 427 —As Pomhas Sčo Vermclkas, Urbánci Tavares Kodrigues 428 —Em Busca do Tempo Perdido — III: Ä Sombra das Jovens em Flor, Marcel Proust 429 —Otelo, William Shakespeare 430 —O Feiticeiro de Oz, L, Frank Baum 431 —História da Literatura Portttguesa — 1: Idade Média, Teófilo Braga 432 Santa Cla tm. Joan D. Vinge 433 —Os (loonies, James Kahn 434 —Em Busca do Tempa Perdido — IV: O Lado de Guermantes, Marcel Proust. 435 — Mensagens c Oulros Poamas Afin8, Fernando Pessoa 436 —Poesia — I—■ 1902-1929, Fernando Pessoa 437 —Poesia — 11 — 1930-1933, Fernando Pessoa 438 —Poesia — III - 1934-1935, Fernando Pessoa 439 —Poema s de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa 440 —OdesdeRicardo Reis, Fernando Pessoa 441 —Poe.sias deÁlvarotle Campos, Fernando Pessoa 442.—História da Literatura Portugucsa •-■ II: Renasce.nca, Teofilu Braga 443 — Yentl, Isaac Bashovis Singer 444 —Em Busca do Tempo Perdido — V: Sodoma e Gomorra, Marcel Proust 445 ■ História da Literatura Portugucsa — 111: Os Sciseent i stas, Teófilo Braga 446 —O Corcundu ou o Pequeno Parisicnse, Paul Féval BRANQUINHO OA FONSECA OBARAO e outros contos 4." edigäo PyWicacöes Europa-Aměrica / Capa: estúdios P. E. A © Herdeiľos cle Branquinlio da Fonseca Direilos reservados por Publicacöes Europa-America, Lda. Nenhuma parte desta publicacäo pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrönico, mecänico ou fotografico, incluindo fotocöpia, xerocöpia ou gravacäo, sein autorizacäo previa e escrita do editor. Exceplua-se naturalmente n transcricäo de pequenos textos ou passagens para apresentacäo ou cri'tica do livro. Esta excepcäo näo deve de modo nenhum ser interpretada conio sendo extensivaa transcricäo de textos emrecolhas antolögicas ou similares donde resulte prejui'zo para o interesse pela obra. Os transgressores säo passiveis de procedimento judicial vj As Maos Frias .................................... 81 I O Involuntärio.................................... 107 Editor: Francisco Lyon de Castro PUBLICACÖES EUROPA-AMERICA, LDA Apart ad o 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edicäo n.°: 140553/6837 Agostp de 1997 Execucäo tecnica: Gräfica Europain, Lda., Mira-Sintra— Mein Martins ÍNDICE O Baräo ............................................. 11 Dopiisiui legal n.": I 1.1927/97 o 00 ■ Náo gosto de via jar. Mas sou inspector das escolas de instrucáo primária e tenho obrigagáo de correr constante-mente todo o Pais. Ando no caminho da bela aventura, da sensacao nova e feliz, como um cavaleiro andante. Na verdade lembro-me de alguns momentos agradá-veis, de que tenho saudades, e espero ainda encontrar outros que me deixem novas saudades. É uma instabilidade de eterna juventude, com perspectivas e ho-rizontes sempre novos. Mas náo gosto de viajar. Talvez só por ser uma obrigagáo e as obrigagoes náo darem prazer. Entu-siasmo-me com a beleza das paisagens, que valem como pessoas, e tive já uma grande curiosidade pelos tipos rácicos, pelos costumes, e pela diferenga de men-talidade do povo de regiáo para regiáo. Num pais táo pequeno, é estranhável tal diversidade. Porém náo sou etnógrafo, nem folclorista, nem estudioso de ne- 13 nhum desses aspectos e logo me desinte-resso. Seja pelo que for, náo gosto de via-jar. Já pensei em pedir a demissao. Mas é difícil arranjar outro emprego equiva-lente a este nos vencimentos. Ganho dois mil escudos e tenho passe nos comboios, alem das ajudas de custo. Como vivo so-zinho, é suficiente para as minhas neces-sidades. Posso fazer algumas economias e, durante o més de licenga que o Ministé-rio me dá todos os anos, poderia ir ao es-trangeiro. Mas náo vou. Náo posso. Durante esse més quero estar quieto, parádo, preciso de estar o mais parado pos-sivel. Acordar todas essas trinta mannas no meu quarto! Ver durante trinta dias seguidos a mesma rua! Ir ao mesmo café, encontrar as mesmas pessoas!... Se sou-bessem como é bom! Como dá uma calma interior e como as ideias adquirem con-tinuidade e nitidez! Para pensar bem é preciso estar quieto. Talvez depois tam-bém cansasse, mas a natureza exige certa monotonia. As árvores náo podem me-xer-se. E os animais só por necessidade fisica, de alimento ou de clima, devem sair da sua regiáo. Acerca disto tenho ideias ciaras e uma experiencia defini-tiva. E ate, talvez, a ünica coisa sobre que tenho ideias firmes e uma experiencia suficiente. Mas näo vou filosofar; vou con- I tar a minha viagem ä serra do Barroso. Ia fazer uma sindicäncia ä escola primaria de V... Foi no Inverno, em Novem-bro, e tinha chovido muito, o que dera aos montes o ar desolado e triste dessas ocasiöes. As pedras lavadas e soltas pelos caminhos, as barreiras desmoronadas, algumas arvores com os ramos torcidos e secos. Fui de comboio ate ä cidade mais proxima, onde depois tomei uma camio-neta de carreira que me deixou, ja de noite, numa aldeia cujo nome näo me lembra. Disseram-me que havia uma hos-pedaria ao fundo da rua. Era uma velha casa em ruinas. Entrei e fui ter ä cozinha, uma divisäo comprida e escura, ao fundo da qual estava uma fogueira acesa. Ao pe da fogueira, uma velha sentada. Näo j me senti ä vontade. Estava embaragado, sem saber o que devia fazer, quando che-gou uma senhora a procürar por. mim. Era a professora, que, sabendo da minha chegada, vinha esperar-me. Nova mas 14 15 / / feia. Contudo simpática e com um olhar de inteligéncia que a tornava atraente. Sem a menor hesitagáo resolveu logo o meu problema, como se aquilo fosse habitual. Deu ordem ao criado da taberna para que fosse dizer ao senhor Baráo que estava ali uma pessoa vinda de Lisboa, se ele podia emprestar-lhe arnanha de manhá um cavalo para subir a serra. B declarou-me: — Vai ver cqrno este recado resolve todas as dificuldades, náo so de instala-gáo, como de transporte. Deu-me uma vaga explicagáo acerca do Baráo e comegámos a falar de qual-quer outra coisa. Sentámo-nos junto da chaminé, aquecidos e iluminados pela fo-gueira. Falou-se da sindicáncia e da vida da aldeia. Ela entristeceu. Mas reagiu no mesmo instante. Vi que estava ali uma mulher forte, optimista e infeliz. Com-preendi o drama daquela pobre rapariga. Ela tinha razáo, sob o seu ponto de vista pessoal tinha razáo. Pensei em náo inquirir mais nada e fazer um extenso relatório a justificar e defender a professora que, por manifesta 16 superioridade de interesses intelectuais, era uma pessoa inadaptável äquele meio. Entretanto veio um mau café em gran-des chávenas de chá, que náo consegui beber. Mas ela bebeu-o. E de repente vi que náo era täo verdade como eu supu-nha a inadaptagäo ao meio. O ser humano é o animal mais adaptável, tenho de con-cordar... Fomos falando sobre vários assuntos e teria passado meia hora, ou pouco mais, quando ouvimos um auto-móvel. Ela levantou-se como se ao mesmo tempo aquilo a assustasse e exclamou que era infdlivel. Pouco depois, a pequena porta da cozinha abriu-se e do väo es-curo surgiu um hörnern de enorme esta-tura, que teve de curvar-se para poder passar. De ombros largos, com um grande chapéu na cabega e todo embrulhado, até aos pés, num capote preto, disse de longe, parando, em voz baixa: — Boa noite! Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de quarenta anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse ä sua volta durante o tempo que fosse precise O ar de dono LB 53-2 jy de tudo. Avangando para mim, com pas-sos vagarosos, fitava-me friamente. De repente mudou de expressäo, como quem deixa cair uma mascara, e a rir pergun-tou-me donde eu vinha e quem era. Mas qual seria a mascara ? pensava, enquanto ele, sem ouvir a minha resposta, conti-nuava a rir e a f alar. Comegou a parecer--me que a primeira impressäo näo tinha sido justa e que o Baräo era, afinal, uma pessoa simpätica. Porem, a verdade e que os outros näo se sentiam ä vontade ao pe dele. Fui reparando nisto. Eu achava-o tosco e primitivo, mas comegava a tor-nar-se-me simpätico exactamente por esses aspectos. Disse-me que f icava sendo seu höspede, e pös termo äs minhas eva-sivas declarando, num tom de gracejo seco, que näo admitia resposta: — Quem manda aqui sou eu! Surpreendi-lhe entäo um olhar duro, logo mudado numa expressäo infantil e alegre, que tentei compreender. Devia ter necessidade de convivio e vinha agarrar--me, apanhar-me como quem, enfim, en-contra alguem num deserto. A sua maior alegria era ter höspedes em casa. E afir- mou-me que tinha de lá estar uma se-mana e, se quisesse, que mandasse vir amigos e amigas. Respondi-lhe que näo podia ficar mais de dois dias, mas ele franziu as sobrancelhas e respondeu-me quase de gracejo: — Vai-se ver. Quem manda aqui sou eu! De repente compreendi que tinha caido nas mäos de um despota, de uma pessoa habituada a vergär os outros aos seus caprichos. Insisti: que näo me podia demorar. Respondi-lhe num tom firme. E entäo ele teve um sorriso tímido e quase ingénuo, como uma crianga. Arrependi--me e dei-lhe a explicagäo de que tinha coisas a fazer no dia seguinte de manhä e depois teria de regressar logo para ela-borar um relatório. Atirou-me com des-prezo: — Qual relatório! E a fräse e o tom feriram-me como uma chicotada humilhante. Pós-se em pe, obrigando-me a levantar-me também, e acrescentou: — Deixe lá essas coisas! Desafiarem-me para o que eu gosta- 18 19 ria de fazer mas näo posso, desprezarem os outros as coisas que eu também quero desprezar e desprezo, mas de que sou es-cravo, é a pior humilhagäo que me podem fazer, o maior vexame. O Baräo, porém, emendou como se tivesse lido na minha cara o que eu ia para lhe responder: — Desculpe estes modos, estas manei-ras de falar. É brincadeira... Gosto de brincar com as coisas sérias. Mudámos prudentemente de conversa e resolvemos sair. Comegava a despertar--me čerta curiosidade a vida daquele horném que era rico e estava escondido ali nos confins do mundo, numa aldeia da serra. Despediu-se da professora e, agar-rando-me pelo brago, puxou-me para a rua. Abriu a porta do automóvel, empur-rou-me para dentro, sentou-se ao volante e continuou: — Na segunda-f eira temos aí uns ami-gos de Coimbra e uma sócias, que é o fim do mundo! Conhece Coimbra? Pois claro! Quem é que näo conhece Coimbra ?!!! Até tive um cavalo que andou em Coimbra. Quando cheguei ao terceiro ano da Uni-versidade compreendi que aquilo era para 20 cavalos. Vim a casa, meti o «Melro» no comboio (era um cavalo preto, urna es-tampa!...) e levei-o para Coimbra. Juntei a malta e (interrompia para comentar o mau estado da estráda: «Isto é que säo estradas!... Em os buracos estando mais jeitosos trago cá o Governo e esf rego-lhes aqui as trombas...»), juntei a malta, fo-mos em procissäo até ä Porta Férrea e ali, de cima do leäo, gritei äs massas: — Há aí alguém que tenha dúvidas de que isto (e apontei a Universidade) é para cavalos? Responderam todos como um troväo. «Naaaäo!!!» Pois entäo, eu vos digo: este vai tomar capelo. Depois levámo-lo para o pátio da Universidade e doutorámos o «Melro». Doutorado em Direito. E de capelo e boria, boria de pa-pel vermelho, que era urna auténtica capa rendilhada que o cobria até meio lombo, lá foi passear para a Baixa, entre alas de caloiros, a comer torrôes de agúcar. Nessa noite... (suspendeu de repente, meteu o carro por um grande portál e parou de esticäo). Cá estamos... Se comego a con-tar-lhe coisas de Coimbra nunca mais acabo. Meu amigo, tenho nove anos no 21 J lombo; nove anos de Coimbra no lombo já dáo que falar... Saímos do carro. Olhei em volta, mas a noite estava täo escura que näo vi nada e senti um cáo a cheirar-me as pernas. Vieram logo mais cinco ou seis, de várias ragas e tamanhos, que se atiravam pelo Baräo acima, a ganir de alegria. E ele abragava-os e falava a cäda um com pa-lavras carinhosas.' Nisto apareceu um criado com um lampiäo, ao cimo da esca-daria de pedra. Vi que estávamos num velho solar, de čerta imponéncia. Uma fachada de muitas janelas perdia-se na escuridäo da noite. No alto da escada saía das sombras um alpendre assente em grossas colunas. Estes velhos palácios, quase abando-nados, olhou-os sempře, de longe, como um sonho de conforto, de intimidade e de bem-estar: de estabilidade na vida. Independéncia e sossego, possibilidade de fazer a vida como seja a nosso gosto! Sáo os meus ideais impossíveis. Um velho solar de paredes que tenham vivido muito mais do que eu, dessas paredes que tem fantasmas, e em volta um grande parque de velhas arvores, com recantos onde nunca vai ninguem. Viver o tumulto das grandes cidades e depois o silencio, a soli-däo desses paraisos abandonados ha muitos anos, onde entramos com näo sei que inquietagäo, como quem desembarca numa ilha desconhecida... Ah! isso, sim, e que me dava outras possibilidades de ser, de compreender e de ir pelo meu ca-minho. Mas näo. Porque se luta, entäo, para conquistar um caminho que se sabe que näo e o nosso? Somos nös pröprios que traimos a nossa vida. A vida näo e isto, näo e ganhar dinheiro. Isto e a f ase primaria. As necessidades fisicas pressu-pöem-se. Gastamos as forgas a tentar al-cangar o que nos devia ser dado sem pen-sarmos nisso e que o näo e porque os ho-mens se atraigoaram uns aos outros como inimigos. A vida e outra coisa. Mas tam-bem sou uma especie de mistico sem cora-gem para renunciar. O espirito manda-me quebrar estas algemas que trago nos pul-sos e ir para os montes, vaguear entre as coisas da natureza, a ve-las com o des-lumbramento de quem comegasse a vida em cada dia. As flores, os bichos, o sol, 22 23 a chuva, as fontesj as árvores, as aves, o azul do céu, as nuvens brancas que o vento leva lá ao longe, o mar, ah! tudo isso!... Mas falta-me näo sei que forga, näo sei que convicgäo de conquista ou de renún-cia, pois para conquistar uma coisa é pre-ciso renunciar primeiro a muitas outras. Quantas pessoas, porém, tenho encon-trado que säo como eu, quase como eu: negadas a si próprias, paradas no encon-tro das forgas contrarias, afinal sem a decisäo de quem simplesmente caminha para algum sítio onde pensou chegar. Como depois compreendi, o Baräo também era um hörnern em que lutavam Deus e o Diabo. Mas näo nos podíamos en-tender. As taras e os desequilíbrios inferiores tinham-no vencido, submergindo o hörnern inteiro. Por vezes vinham-lhe momentos, frases, um olhar de serena superioridade e inteligencia. Parecia ou-tra pessoa que estava afundada dentro dele proprio como num abismo de água negra, e vinha ä tona, no redemoinhar da vaša turva. Mas näo se aguentava cá em cima. Era um senhor medieval, sobrevi-vendo ä sua época, completamente ina- daptado, como um animal de outro clima. E isto é que lhe dava a ferocidade. Por-que, muitas vezes, havia nele qualquer coisa de animal feroz, no olhar, nos ges-tos, até na fala. Porém numa fusäo estra-nha, com näo sei que de cändido e de afável. Disse-me que näo tirasse o sobretudo, por causa do frio. O aposento näo estava aquecido e repassava-nos o desconforto e a humidade das casas desabitadas. Ele também continuou com o capote que o cobria até aos pés. Depois fomos para a sala de jantar, um enorme saläo onde näo apetecia estar, e sentámo-nos junto da longa mesa que chegava para mais de trinta pessoas. Eu estava com fome, pois já passava muito da minha habitual hora de jantar. Mas näo se f alava em tal coisa. Veio um criado que pös um copo diante dele, outro diante de mim, e uma garrafa de vinho tinto. Disse-lhe que näo bebia fora das refei-göes. Declarou que eram preconceitos abomináveis, e bebeu um pequeno golo, comegando de súbito a falar com entu-siasmo, como se o álcool lhe acordasse 24 25 näo sei que ocultas forgas adormecidas. E ia beberricando sempre, com pequenos intervalos, como se a garganta lhe secasse e tivesse de a ir molhando. A princípio ainda esperei ver surgir alguma pessoa de família, mas conforme iam passando as horas fui compreendendo que aquele solar era apenas o covil do famigerado Baräo e seus criados. Em nossa volta, em toda aquela casa que eu adivinhava enorme, com largos corredores sem fim, entre šalas mortas, pesava cada vez mais um silencio que eu nunca tinha sentido: inquietante e ressoante como se a casa estivesse metida dentro de uma cisterna. Ele ia contando histórias do seu tempo de Coimbra, que eu ora ouvia com aten-gäo, ora deixava de ouvir, distraido por qualquer outro pensamento, ou pela ver-dadeira fome que comegava a torturar--me. Disfargadamente já tinha olhado o relógio várias vezes, até que resolvi olhá--lo ostensivamente, porque éram dez horas da noite e eu tinha almogado ao meio--dia. O Baräo continuava a contar aven-turas, pequenos casos que revivia com um prazer doentio. Era-lhe talvez indiferente que eu o ouvisse: contava para si, ouvia as suas próprias palavras e relembrava aqueles dias como um sonho realizado. Eu era só o pretexto, só para náo falar sózinho, como um doido. Senti quanto aquilo era para ele um prazer vivo mas doloroso. A princípío falava com um ar desprendido e irónico, mas, pouco a pouco, foi tornado de uma emogáo profunda, que já náo podia disfargar. Era uma espécie de saudade de si próprio. E vi-lhe os olhos rasos de lágrimas. Entáo levantou-se e comegou a passear no saláo, fazendo co-mentários irónicos a este vício que to-dos temos de falar do passado. «0 pas-sado!... Mas o que somos, senáo o passado ? Fazemos e é passado. O que comega a existir comega a ser passado. Virado para a frente? Vire-se lá para onde qui-ser!...» E, voltando a sentar-se, bebeu mais dois golos. Eu desfalecia de fraque-za, a olhar aquele copo sempre cheio de vinho, que ora ficava esquecido sobre a mesa, ora era agarrado por uns dedos brutais. Náo chegava a embriagar-se, mas tinha necessidade de manter a pressáo, como uma caldeira onde tem de se ir dei- 26 27 tando, de vez em quando, um punhado de carväo. Mais um golo. Poisava o copo e eontinuava. Eu olhei o relógio: dez e meia. Ainda sorria, por delicadeza, mas já näo ouvia o que ele dizia. So pensava no jantar que näo vinha, que já näo vinna, com certeza. Para chamar o assunto ä conversa comentei, quando ele levava mais uma vez o copo ä boca: — Näo lhe faz mal beber sem comer nada? — Nunca como... Fiquei aniquilado. Com esta fome e em casa duma pessoa que näo comia! — Pois eu já era capaz de comer al- guma coisa. Entäo voltou-se para o lado da porta e berrou: — Idalina! — Desculpe esta sem-cerimónia... — Näo me entendo com quem faz ce-rimónia. Diga sempře o que pensa e faga sempře o que lhe apetega. Säo os meus princípios. — Obrigado. Assim farei. Entrou a criada. Uma mulher alta, bem feita, de quarenta anos, com urn vago ar desdenhoso e importante. O Baräo, como se näo a tivesse visto, continiiou a falar näo sei sobre que, mas ela interrompeu-o num tom agressivo: -— O senhor chamou-me ? Julguei que ia fulminá-la com um berro ou com uma cadeira na cabega, mas näo. Sorriu serenamente, com uma expressäo de súbito cansago: — Este meu velho amigo... quer cum-primentar-te... e quer que lhe tragas al-guma coisa que se coma... Näo era feia. Ou antes: devia ter sido bonita. E percebia-se fäcilmente que an-dava ali como dona da casa, oscilando en-tre baronesa e serva. Saiu num passo elás-tico, deixando ficar atrás dela urn rao-mento de siléncio. O Baräo, contra o seu costume, bebeu vários golos, com peque-nos intervalos, sem dizer nada. Näo com-preendi porque é que aquela mulher, uma simples criada, tinha deixado ali aquele siléncio difícil. Ele ficara um pouco alheio e pensava em qualquer coisa a que dava importáncia, talvez alguma história já antiga, de que näo conseguia esquecer-se. Fiz estas suposigöes pessimistas debaixo 28 29 do mais optimista estado de espírito, que me vinha da certeza de que aquela sim-pática mulher tinha ido buscar um sucu-lento jantar, um jantar medieval como o dono da casa. Encheu outra vez o copo e poisou a garrafa mais longe, parecendo que näo queria té-la täo ä mäo. E provou outro pequeno golo, como se fosse um vi-nho desconhecido. Eu acendia mais um cigarro, devagar, para disfargar aquela falta de assunto da minha parte e para me fingir distraído, até ele sair da medi-tagäo em que tinha caído. Queria evitar--lhe a explicagäo a que podia sentir-se obrigado e que, näo me interessando cer-tamente nada, séria penosa para ele. Per-guntou-me: 1 — Porque näo passa aqui uma se-mana? Näo se aborrecia... Pensei: «É uma coisa que gostaria de me contar se tivesse mais intimidade co-migo. É o alívio da confissäo sincera; quase uma necessidade física, neste horném.» E respondi: i — Gostava, mas näo posso. Sou um j escravo... i 30 Sorriu como se dissesse: «Que gente!» Noutra ocasiäo teria teimado, ter-me-ia até obrigado a ficar. Mas naquele mo-mento esmagava-o um desalento repen-tino, näo tinha forga de vontade, ficara abatido e mole como um leäo ferido de morte. Com ar sonämbulo comegou, por fim, a atirar bocados de frases como se falasse sôzinho. — Esta mulher f az-me lembrar certas coisas... Näo por ela... Outras coisas... Esta é uma como há tantas... Eu äs vezes vendia as minhas amantes a meu pai... Ou trocava-as... Quando precisava de di~ nheiro... Outras coisas. Mas vou... vou regenerar-me... (sorriu com uma irónia incrédula. Fez uma pausa e, como se acor-dasse de repente, olhou para mim, endi-reitou-se na cadeira, bebeu um golo de vinho e bateu com o copo com tal forga sobre a mesa que o fez em estilhas. En-täo continuou noutro tom de voz comple-tamente diferente, firme, lúcido): Des-culpe... Já esteve apaixonado? — Näo. E näo acrescentei mais nada para o obrigar a falar. Agora estava a interes- 3i 63 sar-me aquela cohfissäo que ele ja näo queria fazer. Mas era uma obsessäo que o dominava; tinha de falar daquele assunto que a si proprio queria proibir. Entäo fez o seu retrato moral, calcou-se com nojo e como se de si se vingasse nele proprio, chegando a ser uma cena desa-gradävel. Ate que serenou e comegou a falar de outra mulher, uma mulher por quem tinha tido uma paixäo, e a quem se referia chamando-lhe apenas «Ela». Tente i mudar a conversa, pedindo-lhe que me contasse mais coisas de Coimbra. — Isso näo tem interesse... Mas d'Ela tambem näo sou digno de falar... Sabe?... (e, como se se arrependesse, näo conti-nuava). Ah, meu amigo! Ser outro!... Re-generar-me... Mas näo e como mudar de camisa... Quero, mas näo posso. Näo e so querer... Imbecis! Que eu quando quero, quero! e e logo! Mas nisto... So te-nho um retrato d'Ela. Mandei-o roubar... Ela näo sabe. Vou-o buscar... (levantou--se e continuou): Pessimismo näo, näo sou pessimista. Para mim as mulheres säo uns animais como os outros... Mulheres? Sei lä o que säo mulheres ?! Putas e que sei... Mas mulheres, náo... (e voltou a sentar-se. Encheu devagar outro copo). Quando eu precisava de dinheiro trocava as amantes com meu pai. Levava uma fémea de Lisboa: ele ficava doido. Era um javardo, um rei negro... Dava-me logo a massa e eu punha-me a andar, largava a dele no Porto e voltava para Lisboa... Reles... Tudo reles... Entrou a eriada com uma travessa onde fumegava um galo assado, entre batatas loiras. E náo ouvi mais nada do que o Baráo dizia. Até que, já reconfortado, voltei a ouvi-lo com prazer. — ... Só uma vez é que náo. Era a Emilia... Náo sei onde ele tinha ido buscar aquela miúda... Eu cheguei de férias e logo ao jantar: «Náo toques na Emí-lia» — «Esteja descansado.» Foi naquela mesma noite... Picou um momento silencioso e abs- tracto: vi-o afundar-se na memória, re-cuar no tempo, até essa antiga hora da sua vida. Depois, voltando a si, olhou-me quase com espanto, como se nunca me ti-vesse visto: mas teve logo um sorriso calmo e, erguendo o copo de vinho á boča seca, continuou: 32 LB53-.1 7 — Coitadita. Era uma crianga... e es-tava como tinha saido da barriga da mae. Ate custa a acreditar. No fim ajoelhei a pedir-lhe desculpa... E de manha deram com ela na presa do moinho... Mas foi so esta. As outras nao se matavam... So cabras... Eu nao como, mas nao faga ce-rimonia. Coma por mim. A vida e devo-rar... Sim, e beber. 6 divino nectar; os meus labios te beijam! (Bebia.) E o meu coragao entoa em teu louvor o mais sa-grado cantico!... E os meus labios te beijam mais uma vez!... (Mudava de torn e com subita serenidade continuava, fa-lando mais para ele que para mim): Nunca tomei a vida a serio. E la coisa que se tome a serio!... Sou um animal, uma pura besta. Diga! Ou nao diga, nao e pre-ciso, basta pensar. Nao se engasgue, nao diga nada, deixe-me ficar com a impres-sao de que nao e um hipocrita que esta sentado a minha mesa. Sou isto mesmo: sou um javali. Ja tive ilusoes a meu res-peito, agora nao... Se voce soubesse!... Mas ainda bem para si que nao sabe. Res-peitemo-nos. Respeito-me por si: afinal somos da mesma espécie animal... Faga de mim a melhor ideia que puder: se isso o lisonjeia. Ou o contrario, se quiser. E se eu lhe dissesse que no meio da noite passa äs vezeš um raio de luz? Acreditava?... Ao menos acredita em tudo... Disse isto com um desalento que me revelou todo o seu desprezo pela minha falta de sinceridade. Tinha razäo. Mas eu näo estava a pensar no que ele dizia, es-tava só a comer. Respondia-lhe com si-nais de cabega, que sim, com a boca cheia. O Baräo pös-se em pé e deu uns passos ao longo do saläo. Afastou-se, foi desapare-cendo na sombra, de cabega baixa, e de-pois voltou até junto da mesa. Eu disse qualquer coisa para näo estar calado, que ele nem ouviu. Aproximou-se, pegou na campainha de prata que estava na minha frente e tocou. Mudou de repente de con-versa: — Vai ouvir a Tuna. Há-de gostar... (Entrou a criada.) Vai buscar o violino. A criada ia a sair, mas, como quem se lembra de qualquer coisa, voltou aträs: — Senhor Baräo, o violino está par-tido. 34 35 Voltou-se para ela como se fosse di-zer ou fazer uma violéncia, tendo-se-lhe congestionado de repente a face, mas do-minou-se e só disse numa voz fria: — Ha?!... partido?... — Sim, senhor Baráo. Foi ontem... — Vai arranjar outro. A criada mantinha-se firme, com um olhar sereno, quase altivo; o Baráo, pas-sado o primeiro impeto perigoso, sere-nava e parecia até hesitante. Ela já tinha tornado posse do terreno e perguntou com uma secura arrogante: — Aonde ? Berrou-lhe: — Manda chamar a Tuna! E sentou-se na minha frente, de cos-tas para a criada, como se ali se refu-giasse do seu olhar duro. Pegando no copo, ergueu-o num gesto brusco. Receei que agredisse aquela arrogante mulher, que a abatesse com uma cadeira na ca-bega. Mas náo. Dominava-se mais do que parecia por vezes. Contudo, era preciso coragem, ou outra forga qualquer, para afrontar assim as violentas iras do fi-dalgo. Havia um mistério entre ambos, era evidente. Ela saiu depois de vir bus-car o prato que eu tinha deixado cheio de ossos. E o Baráo falava-me de cagadas. A criada voltou com uma travessá de carne de porco e ovos mexidos. Ele conti-nuava sem comer, beberricando e f alando. Devia ter já bebido muito, mas náo es-tava embriagado, mantinha-se apenas sob pressáo, como se diz de um navio de guerra. Pronto para tudo. A mesa com o copo, aquela grande casa deserta e som-bria, eram o cais, o arsenal daquele cou-ragado que sairia para o mar ao primeiro sinal. Olhava-o agora com curiosidade e um vago receio do que poderia acontecer com aquele homem estranho. Entretanto, eu tinha comido bastante e bebido com certo prazer. Reparei que eram já onze horas e meia da noite. O Baráo tinha ido buscar a um armário algu-mas garrafas de diferentes vinhos e lico-res. Vinhos velhos do Porto e algumas marcas francesas. Eu náo queria fazer misturas, mas ele impunha, repetindo aquela frase que parecia a brincar e era a sério: — Quern manda aqui sou eu. 36 37 / E lá íamos proyando de todos os vi-nhos. Éram verdadeiras especialidades. «Agora este porto, que tem 96 anos.» Destapava e chegava-me ao nariz o gar-galo, donde saia um fino aroma. Eu devia estar convencido de que aquelas coisas de täo divino perfume näo faziam mal, que, pelo contrario, era absorver néctares do Paraíso. E o Baräo falava do Brasil, das florestas do Amazonas, das brasilei-ras, «as mulheres mais belas do mundo!» Discordei: «As nórdicas, as inglesas, as alemäs...» Interrompeu com sincero des-dém de conhecedor: — «Isso é como sa- lada de alface. Sabe bem com a carne... Eu sou carnívoro... E ve jo na mulher, alem disso, o meu primeiro inimigo. É a única coisa em que eu e o meu prior somos da mesma opiniäo... Ora o inimigo deve ser sempře digno de nós... Lutar com ga-tas, näo! Quero ver na minha f rente um tigre real! É a vida ou a morte. Atiro-me ao tigre real, rolamos enrolados um no outro, as garras dele a enterrarem-se na minha carne, os meus músculos de ago a vergarem aquele corpo elástico, belo e f e-roz, a minha forga toda a subir-me no sangue!... Ah!...» 38 Mas eu insisti, sereno: — Conhego inglesas, conhego alemäs dessas, desses tigres... — É só a pele, só os olhos e o pélo... Nisto näo há teorias... É preciso ir lá... ir lá com os dentes e com as garras... E enclavinhou as mäos. Já estávamos ambos embriagados. O Baräo ergueu-se, f itou-me e disse, de repente triste: — Vamos beber por uma mulher. Levantei-me também. Foi ao tal ar- mário e trouxe uma garrafa de champa-nhe. Berrou; — Tagas! E tentava tirar o arame da rolha, sem conseguir. Veio a criada e pos quatro tagas sobre a mesa. O arame näo saía. En-täo bateu com o gargalo da garrafa na borda da masa e o champanhe jorrou em espuma branca. Reparando que estavam mais tagas, com as costas da mäo atirou duas da mesa abaixo. Eram de reserva. Porém daquela vez näo queria reservas. E ergueu a tága que transbordava. Eu imitei-o, perguntando nebulosamente: — A que mulher ? — Ä única! E bebemos ao mesmo tempo, despejan-do-as de um trago. Mas com surpresa no-tei que o Baráo tinha ficado súbitamente pensativo. Depois, com um gesto solené, atirou o copo ao cháo e fitou-me, šilen-cioso. Fiz o mesmo, atirei a tága. Já era tempo de eu saber que ali se partia tudo, desde os violinos aos copos. Com o olhar embaciado e sonámbulo, fitava-me sem me ver. Mas, como se acordasse de re-pente, comegou a rir, com um riso dolo-roso e de ironia amarga. Pareceu-me ou-tro homem. Era, na verdade, outro horném., aquele que estava ali agora diante de mim. Náo o tinha compreendido, náo o tinha visto ainda. Olhei-o com simpatia. Disse-me numa voz calma e triste: — Venha cá. E encontrámo-nos ao fundo da mesa. Enfiou a máo no meu brago e caminhá-mos silenciosos na direcgáo da porta da sala de jantar. Saímos para um corredor. Náo sei bem por onde andámos e náo sei mesmo o que fizemos naquela divagagáo melancólica. Mas recordo-me de que per-corremos várias salaš, quartos e depen-déncias do palácio, que me lembram como um sonho fantastice Quanto tempo isto důrou, náo sei. Do que me lembro é que náo encontrámos ninguém, como se toda a gente desaparecesse diante de nós. Por vezeš parecia-me ouvir passos. Deviam ser os eriados que andavam ali perto para ouvirem se o Baráo chamasse. Até que viemos outra vez dar á sala de jantar. Parou encostado á mesa e disse que tinha fome. Encheu um copo de vinho tinto e bebeu dois golos, agarrou na campainha e tocou. Veio a eriada com o seu ar altivo. — Quero comer. E duas garrafas... daquele... Já sabes! Qu'é qu'estás aí paráda?!!! Gritou, mas quando ela saiu comegou a rir, a rir, e contou-me que a tinha conhe-cido há mais de vinte anos, que a roubara na Quinta das Palmas, «tenra como um grelinho de alface». — Roubei-a na Quinta das Palmas... Trouxe-a assim, ao ombro, como um saco. Cheguei aqui e atirei-a para cima da mesa... Meu pai estava a cear. Só lhe disse: «Nisto ninguém toca!» E náo tocou. Mas agora é ela quem manda... Nunca mais me vi livre dela... É um 40 41 tigre! (Entrou a criada.) És urn tigre! Um dia dou-te um tiro, que os tigres é a tiro. (Mas abracou-a pela cintura fina e deu-lhe um beijo no pescogo.) Eras uma mulher!... uma mulher como nunca mais há... (Ela desprendeu-se.) Mas hoje metes no jo... (e virou-se para mim): Dei-a aos criados... Dá cabo deles todos... A criada saiu, indiferente. Náo era verdade. E ela dominava-o ainda, apesar de tudo o que os separasse agora: ou can-saco ou outra mulher. Mas esta náo tinha deixado de existir na vida dele. Lá fora, nas trevas, o relógio da torre de uma igreja bateu as duas horas da noite. E a ceia do Baráo chegou fumegante. Eram alheiras assadas. Antes de se sentar veio ao pé de mim e poisou a máo no meu om-bro, com melancolia, tratando-me por tu: — Nunca deixes de ser meu amigo... Olha que eu sou um pobre homem! (Tre-miam-lhe as máos; o olhar tinha perdido o brilho e ficara vago e bago. Depois de uma pausa concluiu com um sorriso amar-go): Sou um poeta... E, caminhando para mim, agarrou-me por um brago, levantou-me da cadeira onde eu me tinha sentado e levou-me até junto de uma das portas. Náo sei onde queria ir ou o que tencionava fazer, por-que neste momento ouvimos ao fundo do corredor, ainda longe, um barulho como o rol ar de um trováo que se aproxima. Ele estacou com um sorriso satisfeito. Eu fiquei atónito e imóvel. Recuou de repente e, puxando-me, levou-me arrastado até ao outro extremo da sala de jantar. Eu náo sabia que barulho era aquele nem perce-bia estes vaivéns em que o Baráo me tra-zia. O ruído aumentava como uma grande trovoada que desabasse sobre nós. Náo tive medo, mas perguntei-lhe o que era. Como viu que eu estava surpreendido (assustado náo estava), náo me explicou nada. Mas logo percebi que era um matra-quear de tamancos. Tínhamos recuado e estávamos encostados á parede, calados, á espera do que ia entrar por ali den-tro. Até que surgiu, num passo lento, um indivíduo magro, com um pano preto sobre o olho esquerdo, embugado num grande capote negr o, semelhante ao do Baráo. Este fez-lhe um sinal brusco, apontando a těsta, e o homem pós a cara- 42 43 puga que tinha tiifado da cabega. Trazia-a na mao, debaixo do varino. Logo entra-ram mais homens, uns cobertos com aque-les longos capotes, outros embrulhados em mantas. Percebi que o Barao nao que-ria que tirassem os barretes nem os cha-peus. Nao sei porque. Talvez para dar aquilo tudo um aspecto ainda mais estra-nho. Eles ja sabiam deste capricho. lam entrando um a um, em fila, embrulhados, embugados, com um ar friorento e estre-munhado. Que vinha fazer ali aquela gente toda, aquela hora, sei la que horas da noite? Eu estava um pouco embria-gado e fazia um esforgo inutil para com-preender o que via. E entravam, um a um, lentos, sonolentos, de todos os tamanhos, uns magros, outros gordos, uns de gran-des bigodes tartaros, outros de barba a passa-piolho, dois ou tres de grandes bar-bas, como profetas, envolvidos nas mais variadas mantas e capotes. Parecia-me um pesadelo aquele desfile de figuras tao estranhas, que formavam um friso diante de mim e continuavam a passar intermi-navelmente, fazendo uma venia ate ao chao. 44 Os tamancos soltos nos pés faziam--nos caminhar balangando como ursos. Al-guns tinham, na verdade, a cara coberta de pélos hirsutos. Éram ursos. Olhei para o Baräo como quem implora uma palavra tranquilizadora. Estava com o olhar dis-tante e a expressäo paráda. O barulho dos socos ensurdecia-me. Já näo sabia o que devia pensar daquilo. O saläo estava cheio de homens, que se iam arrumando em filas, diante de nós. A alguns mal se lhes via a cara, porque tinham a cabega me-tida dentro de enormes capuzes, como frades. Procurei ler qualquer coisa na fisionomia do Baräo. Por fim olhou-me e sorriu, com um sorriso de prazer. Éram mais de cinquenta, formando um semi-círculo diante de nós. E, de repente, fez-se um grande siléncio. Eu sentia a cabega cada vez mais pesada do álcool e tentava, num esforgo inútil, compreender. Pare-ceu-me que aqueles homens nos olhavam com medo. Depois vi que era também com desprezo e ódio. Como se um duplo tivesse saído de mim e estivesse a obser-var-me de fora, eu via-me melhor a mim proprio do que via os outros. A criada ti- 45 nha posto sobre a mesa trés grandes co-pos, de litro cada um, e umas trés ou qua-tro broas. Pôs também duas facas. De-pois encheu os trés copos com vinho tinto, de um garrafäo que estava debaixo da mesa, e saiu. Tudo isto fora feito num si-léncio absoluto, como um rituál respei-tado. Até que, por f im, ouvi a voz do Baräo, de quem já me tinha esquecido, quebrar o siléncio e com o brago estendido, num gesto pesado e largo, fazer a apresen-tagäo: — A Tuna. Julguei que estava a trogar de mim e daqueles pobres campónios de aspecto täo estranho e selvático. Mas näo. Come-cei a reparar num homenzinho que, na minha frente, me espreitava com um sor-riso de escárnio. O Baräo apresentava-me o tal homem que trazia um pano preto sobre o olho esquerdo: — Aqui tem o senhor Algada, mestre da Tuna. O senhor Algada dobrou-se numa vé-nia exagerada e, pondo-se outra vez di-reito, perguntou com entoagäo ridicula- mente solené, orgulhoso da sua arte, de-senrolando a lingua travada pel a gaguez ou pelo medo: — Senhor Baräo, äs suas ordens. — O Verde-Gaio! — gritou o Baräo numa voz fora de tom, como se estivesse a pensar noutra coisa e de repente ouvisse aquela pergunta do mestre da Tuna. A um aceno do mestre, como num es-pectáculo de mágica, debaixó de todos aqueles capotes saíram os mais variados instrumentos: violinos, flautas, violöes, guitarras, ferrinhos, tambores, bandolins, harmónios, gaitas de beigo e bezimbaus. Eu näo contava com aquilo. Saiu-me uma gargalhada que näo consegui dominar. O Baräo deitou-me um olhar de censura, sorrindo com uma frieza cortante. Vol-tando-se para o tal senhor Algada repetiu, agora numa voz Serena: — O Verde-Gaio. O outro virou-se para a multidäo dos seus músicos dispostos em meia-lua, e, quando eu esperava um estrondo, uma dessas barulheiras infernais, rompe dali uma marcha vibrantě e alegre, cheia de 46 47 vivacidade e emogao lirica, num con junto de quase perfeita af inagäo. O Baräo, ines-peradamente, deu urn salto para o meio da sala e, plantado com as pernas aber-tas, curvado para a frente, com os punhos cerrados, os bragos flectindo em movi-mentos räpidos e firmes como se batesse no peito, entoava urn regougar rouco como urros de guerra africana. Senti-me tambem arrebatado. Era admiravel como tudo se tinha transformado sübitamente ao som daquela fanfarra imensa. Ergueu--se, näo sei donde, uma voz de fino timbre a cantar num ritmo longinquo e sau-doso e os instrumentos foram-se calando ate que ficaram so os tambores e os vio-löes batendo de um modo abafado, lento e estranho. Veio outra voz atras daquela, em contracanto. E um coro de baixos, numa toada profunda e distante, insistia em näo sei que estribilho, como urn eco. Ate que o Baräo fez um gesto e tudo parou repentinamente. Um dos tocadores aproximou-se da mesa, como se fosse agora aquilo a continuagäo do programa, e agarrou numa broa. Cortou uma fatia e passou ao vizinho. Depois, com ambas as mäos, pegou num dos grandes copos de vinho, donde bebeu uns golos, e passou. E assim fizeram todos. As broas foram correndo de mäo em mäo: cada um cor-tava uma fatia e passava o copo. O Baräo quis saber as minhas impressöes. Näo sei o que disse, mas elogiei, decerto, com sin-ceridade. Ate que ele, vendo que todos os homens tinham comido a fatia e bebido o vinho, gritou: — O Tum-Tum! E seguiu-se outra toada regional. Eu estava maravilhado. Ainda hoje conservo nitida essa sensagäo de estranheza que me deu a sessäo da Tuna. De subito, eu, o Baräo e a criada comegämos a dangar no meio da sala. A Tuna sempre tocando e nös a andar de roda, com a cabega a andar de roda, do vinho e da müsica. Mas, por fim, ele caiu a arfar, para urn canto, como urn monstro ferido. A melodia näo se interrompeu nem nös, que continuä-vamos a dangar um bailado de ursos em pe. A criada caiu tambem no meio da casa e ficou com as saias para cima, mostrando as pernas ate äs coxas. Naquela posigäo comegou a cantar ao som da müsica, que 48 LB 53-4 49 continuava inalterável, já insensível a estas coisas, pela forga do hábito. Encos-tei-me a um lado a olhar e a rir: escorre-guei contra a parede, devagar, e fiquei também sentado no cháo. Via andar tudo á roda, como se estivesse a adormecer num desses baloigos em que as criangas brincam. O Baráo, sentado no cháo atrás de mim, cantava em espanhol... Mas le-vantou-se e voltou para o meio da sala. Chamou um criado, que lhe trouxe um grande garrafáo, e, levantando-o ao alto, comegou lentamente a despejar sobre a cabega uma cascata de vinho branco que me fazia inveja. Porém já nada me admi-rava. Podiam fazer o que quisessem que tudo acharia natural. E comecei a rir as gargalhadas, com o exagero dum com-pleto desmoronar de todas as minhas li-mitagóes e preconceitos. O Baráo, a pingar e a patinhar, com os pés a colarem-se ao sobrado inundado de vinho, avangou para mim, frangalho bébedo sentado no cháo'a rir, a rir, a rir dele e de mim e de tudo; eu ria sem saber já de que, caído ali para um canto como um boneco a que tivesse desandado de 50 repente a corda toda até ao fim. Mas vi-o crescer como um gigante e reparei que ele tinha na cara e no fato uns estranhos reflexos metálicos. Já náo era o Baráo, era o seu fantasma, um autómato de ferro e lata que me fazia calafrios de terror. Baixou-se sobre mim, pegou-me por um brago e levantou-me do cháo táo fácil-mente como se eu fosse um boneco de pa-pel. E colado ao fato dele, lustroso e mo-lhado, que exalava um cheiro forte a vinho, fiquei em pé, a ouvi-lo dizer: — Estou purificado!... — Pois estás... — O baptismo purifica!... — Pois purifica... — Vem!... Vou ao castelo da Bela--Adormecida... Enfiou o brago no meu e desaparece-mos no corredor escuro. Eu ia arrastado náo sabia para onde, ele ia levado lá para onde o chamava a obsessáo. Ouvi ainda, atrás de nós, o barulho dos tamancos dos homens da Tuna, que saíam por outra porta. Mas já estávamos no meio da quinta e os cáes vinham todos atrás de nós. 51 Bruscamente, estacou, segurando-me por um brago: — Ah!... Ja venho. Espera aqui. E voltou para träs, apressado. Vi-o en-caminhar-se para os lados -da porta por onde tinhamos saido e desaparecer na escuridäo da noite. No meu estado de meia inconsciencia pareceu-me ter com-preendido o que ele dissera, ou antes, pareceu-me compreender o que ia fazer, como se, na verdade, me tivesse dito na-quelas poucas palavras mais alguma coisa do que apenas aquilo que elas disseram. Mas, de repente, como se abrisse os olhos, vi que näo me tinha dito o que ia fazer, e isso pareceu-me injustificävel. Agora reconhego que o näo era. Porem, naquelas circunstäncias, achei que era uma des-consideragäo deixar-me ali sözinho sem me dar explicagöes. Demais a mais num sitio que eu näo sabia onde estava, pois näo via nada ä minha volta, a näo ser umas sombras que pareciam ärvores, mas que afinal nem me lembro se cheguei a saber o que eram. Revoltei-me contra o seu despotismo e näo esperei por ele. Com uma energia subita, comecei a caminhar no sentido oposto ao que o Baräo tinha seguido. Do meu subconsciente comegava a comandar-me uma voz de libertagäo e em passo de marcha cantei a Marselhesa. Os cäes tinham desaparecido, a sombra da casa também desaparecera, e agora já tinha os olhos habituados ä escuridäo, ou a noite estava mais luminosa. A verdade é que comegava a distinguir as coisas por onde ia passando e lembro-me de que ten-tei, inútilmente, escalar um alto portäo de ferro, através de cujas grades se via a estráda branca. Como näo conseguia e caí duas vezes, resolvi ir procurar outra saída, pois estava naquela fase em que näo se desiste de nada e em que os obstá-culos säo um desafio que nos redobra as forgas. Lá para os confins da noite caíam do céu badaladas de um sino a dar horas e ouvia-se o resfolegar das corujas numa torre que eu näo via, por mais que olhasse para o céu, tentando penetrar as trevas. Perdi-me do caminho e entrei por um po-mar de laranjeiras, cujo aróma entonte-cia, enterrando os pés na terra mole e en-charcada que me prendia os passos. Isto cansou-me, e quando encontrei outra vez 52 53 um dos caminhos da' quinta já näo me ape-tecia cantar, mas gritar insultos e obsce-nidades. E estava com sede. Neste momente ouvi passos ao pé de mim e apa-receu na minha frente a criada do Baräo, que reconheci pela voz: — Vossa Excelencia quer que lhe vá dizer onde é o seu quarto ? — Näo. Que andas aqui a fazer? — perguntei-lhe, aproximando-me da cara dela. Recuou um passo. Senti-lhe o bafo a vinho do Porto e segurei-a por um pulso: — Vem comigo. — Para onde?... — perguntou num tom quase de desdém, que me pareceu complacente. Respondi com alvorogo: — Para o meu quarto, que tu sabes onde é, e näo digas nada. Libertou o brago brandamente e eu larguei-a; mas aquele contacto da carne tinha-me perturbado ao mesmo tempo que parecia ter acalmado os vapores do álcool que me embaciavam a compreen-säo. Falei-lhe como se estivesse apaixo-nado por ela, com as suas mäos outra vez agarradas nas minhas, ajoelhado na terra, implorando o seu amor. Ela apenas se defendia por palavras. Ficara comple-tamente imövel. Näo tirava as mäos. So repetia, com uma voz muito calma e mo-i nötona, nos intervalos das minhas frases ardentes: — Estä doido... O Baräo matava-o. Cale-se com isso! Venha. Vä... Estä doido... O Baräo matava-o... Vä... Quando fui para a abragar e beijar, ! empurrou-me para träs com uma sacudi-I dela energica. ! —Sou, entäo, dos criados ?!... Näo acredite em tudo que o Baräo lhe disser. i E, voltando-me as costas, vi-a af as- i tar-se na sombra. Fui aträs dela, a expli-car-lhe näo sei que teorias a respeito do j amor, da dignidade, da espiritualidade e I da nobreza da mulher. Näo compreendeu I e respondeu-me que eu estava bebedo e I que era melhor ir-me deitar, a curtir a I grossura. Fui-a seguindo ate ä porta, que I era ali mesmo ao pe. Depois de muito an-i dar, eu voltara para junto da casa. Disse-I -me que o Baräo andava ä minha procura 54 55 pela quinta. Tínhamos entrado para uma sala de tecto baixo, em abóbada, e cháo de pedra. Sobre uma grande area de pau--preto estava poisado um candeeiro de pe-tróleo, negro do fumo, cuja luz tremia muito e incomodava a vista. Fez-me ton-turas. A eriada pegou-lhe e comegou, na minha f rentě, a subir uma larga escadaria de pedra. Vi dois cáes a dormir ao pé de um cadeiráo de couro: olhei-os com certo receio, mas nem levantaram o focinho para ver quem passava. Ao cimo da es-cada comegava um largo corredor onde a eriada, com o candeeiro numa das máos e já também com um castigal aceso na outra, me indicava uma porta aberta: — É aqui. Deu-me a vela e, quando entrei, fechou a porta atrás de mim. Náo me importei. Talvez já náo estivesse a pensar nela. Desejar seja o que for é uma forga que as vezeš desaparece inesperadamente. Acendi um cigarro e atirei-me para cima da cama. Adormeci. Passado algum tempo, acordei sobres-saltado por um grande barulho. Eram uns berros que atroavam o velho palácio, era a voz do Barao e ele aos encontroes e as patadas a porta do meu quarto, ten-tando arromba-la. Quando compreendi, levantei-me, mas comecei a tossir, a tos-sir, e ardiam-me tanto os olhos que nao podia abri-los. Vi a chama da vela esba-tida numa densa nuvem de fumo. Ergui--me com dif iculdade e atravessei o quarto a cambalear como se estivesse para per-der os sentidos, sem poder responder ao Barao, que continuava aos murros e aos pontapes a porta, com ameagas e insultos que eu ouvia como se fosse muito longe, ou como se estivesse ainda a dormir. Mas, de repente, compreendi o que se passava. Era fogo! Gritei. O fumo asfixiava-me. Lancei-me contra a porta, mas nao con-segui abri-la. Queria gritar, mas ja nao podia. Devia ter sido eu quem a tinha fe-chado por dentro, mas, f orgada pelos pontapes, agora nao desandava. Do lado de fora, o Barao continuava aos urros. Tive medo. Corri para a janela, para fugir como pudesse. Mas, de repente, f ez-se um silencio e ouvi a voz da criada, numa en-toagao violenta: — Saia dai! Deixe o homem dormir! 56 57 Cörri outra vez1 para a porta e gritei que era fogo e näo podia abrir. Entäo, com um grande estrondo, a porta veio dentro e vi o Baräo na minha frente. Ati-rei-me para o corredor e a criada entrou logo sem f azer perguntas inúteis, com de-cisäo, procurando a origem da fumarada que enchia o quarto. Trazia o mesmo can-deeiro na mäo e abriu a janela, antes de mais nada. Vi-a ir ao lavatório e pegar no jarro da água, avangar para a minha cama e despejá-lo sobre a colcha. E o Baräo sacudia-me por um brago, a pergun-tar-me o que é que eu estava a f azer, e a empurrar-me na sua frente, pelo corredor adiante. Entrámos na sala de jantar. Ele insistia e eu respondia que näo tinha f eito nada, que näo sabia nada. A criada passou apressada e fez de conta que näo ouvira o Baräo perguntar--lhe o que tinha sido. Entäo voltämos ao quarto para vermos. Já näo havia fumo. No meio do chäo estavam a colcha da cama e os restos do travesseiro de palha. Tinha sido com o cigarro. — las morrendo assado — comentou o Baräo, e comegou a rir, a rir, com um grande exagero. Pegou-me no brago. Eu também ria. Ele parecia doido, ás gargalhadas; queria falar, comegava a frase, mas tinha outro ataque de riso: — Quando saíste... ; E o riso sacudia-o numa explosáo irre- , sistível. Daí a momentos podia dizer mais umas palavras: — ... parecia que vinhas do Inferno!... | Fomos dar outra vez á sala de jantar ! e o Baráo quis festejar o meu regresso do Inferno com mais champanhe. Aquele susto despertou-me uma alegria muito | expansiva. Na verdade tinha escapado de morrer queimado, gragas ao barulho que ele fizera a bater na porta. Devia-lhe tal- j vez a vida. .i —Deves-me a vida! 1 E o champanhe continuava a trans- bordar das tagas e a erguer-se em brindes a tudo o que nos lembrou, a todos os nos-sos desejos, sonhos, ambigoes, a todas as nossas saudades, desilusoes, a todos os nossos amigos, a tudo quanto nos ocorreu | naquele momento de sinceridade. Esses brindes foram verdadeiras confissóes, 58 59 como o abrir das nossas almas. E, na ver-dade, a quern podemos falar com mais franqueza do que a um desconhecido que nunca mais veremos? Alem de que estes momentos de espontänea revelagäo em que abrimos quanto podemos todas as portas e algapöes de nös pröprios, estes momentos säo täo dificeis de atingir, por cobardia e por orgulho e pela incompreen-säo que nos rodeia, que, quando se con-segue assim uma hora dessas, näo deve-mos perde-la, embora se fique, no fim, arrependido e triste como quern fez uma traigäo a si proprio. Mas, ao mesmo tempo, da o alivio de quem abre uma val-vula de escape quando a pressäo por den-tro e ja de mais. Entre outras coisas, con-tei-lhe uma melancolica historia de amor, que era a minha. Foi a primeira pessoa a quern a confessei, dez anos depois de ela ter passado e aniquilado a minha vida. E nunca mais, a ninguem. Creio que, na-quele momento, principalmente, a recor-dava a mim proprio. Revivi essa histöria triste como se f ossem os melhores dias da minha vida, que eu näo quisesse deixar esquecer, recordando-a em voz alta, ou- 60 vindo-me a mim proprio, como se outro ma contasse. O Baräo, imóvel, olhava-me com o olhar muito fixo. No fim vi-lhe os olhos cheios de lágrimas. Também os meus estavam rasos de água. E afinal um caso täo simples e täo vulgär. Calei-me e ficou um grande siléncio na sala. Depois ele quis pör-se de pé. Mas tornou a deixar-se cair na cadeira. Levou mais uma taga ä boca e despejou-a de um trago. Isto deu-lhe novas forgas. Levan-tou-se lentamente, vi-o subir, pareceu-me que crescia, que aumentava de altura e largura, tornando-se espantoso como um gigante. A cadeira caiu para trás. Ficara com o olhar distante e fixo. Deu uns pas-sos para mim, enfiou o brago no meu e disse, como quem obedece a um pensa-mento a que sempre tivesse conseguido furtar-se, mas que tinha agora de cum-prir: — Vamos. Já estávamos calmos ou cansados. Pi-sámos um cäo que fugiu num ganir lanci-nante, pela casa silenciosa, com uns gri-tos que arrepiavam. Sairnos da sala de jantar, mas depois 61 voltámos ao mesmo sítio, entrando por outra porta, sem sabermos por onde an-dávamos, de braco dado, calados e inse-paráveis. Por fim deseemos uma escada e abrimos uma porta que estava fechada com uma grande tranca de ferro. Veio de f ora o ar f rio da noite. Os outros cáes pas-saram á nossa frente. Fomos caminhando entre árvores baixas, talvez macieiras, pelo meio das quais havia umas plantas rastejantes. Andávamos em volta da casa, sempře silenciosos, como se houvesse um entendimento entre nós. Eu náo sentia necessidade de lhe perguntar nada. Ele, curvado, procurava qualquer coisa. Re-parei que pisávamos os canteiros de um jardim. Eram flores, rosas, grandes jar-ros brancos e macigos de sardinheiras. O Baráo, por fim, ajoelhou-se e comegou a apanhar violetas. Os cáes lambiam-lhe a cara e ele cuspia, sem nojo, e empurra-va-os, meigamente. Eram, na verdade, violetas. Perguntei-lhe: — Sáo para a - «Madona do Campo Santo» ? Náo respondeu e continuou, na escuri- däo, a procurar as pequenas flores perdi-das entre a folhagem rasteira. Mas de subito levantou-se e exclamou: — Tens razäo. Violetas e piegas... Uma rosa. — Para quem? — Para Ela... — Ah! Tu tambem... — Näo. Tu näo... Respondi, em voz baixa, como se fa-lasse para mim proprio, com melancolia: — Desculpa. E para a Outra. — Quem e a Outra ? — perguntou, pa-rando e olhando-me no escuro, num torn de intimidade triste, como quern se lem-bra de uma esperanca ou de uma sau-dade. — E essa? a tua... — Minna?... Ficamos parados e calados. Depois deu uns passos na sombra. Näo o via, mas ouvia-lhe a voz ali ao pe de mim, como se ele tivesse, de repente, deixado de existir e so a voz continuasse no ar da noite: — Näo a conheces... Para que hei-de dizer-te o nome ?... 63 Senti-lhe uma grande comogäo na voz. Estävamos ambos bastante embria-gados e com a comogäo fäcil, propria desse estado. Ficämos outra vez calados, num longo silencio de profunda comu-nhäo. Mas o que restava de individual em cada um reagiu. O Baräo recomegou a procurar, agora, uma rosa. Eu fui tam-bem cortando rosas e ensanguentando as mäos nos espinhos, sem intengäo ne-nhuma, pois näo tinha ninguem a quern oferecer aquelas flores. Comecei uma longa divagagäo sobre as mulheres e o amor, uma especie de monölogo trägico e delirante. Ele continuava a procurar, si-lencioso e indiferente äs minhas divaga-göes. De subito, interrompeu-me, como quern continua urn pensamento: — Ja quis fugir com Ela... Mas agora ja näo quero... (Fez uma pausa e conti-nuou, com a voz mais triste): Tern medo... tern medo de mim... A voz molhara-se-lhe de lägrimas. Reagi: — Pois as mulheres devem ter sempre medo de nos. — Es um simples... As mulheres de 64 1 / I ! quem a gente näo tenha medo nao pres-|j } tarn para nada. (E acrescentou com me-lancolia): Faz de conta que estamos de , acordo,.. I Continuämos a caminhar entre as sombras da noite. lamos calados, mar-chando ao lado um do ouitro, agora apres-sando o passo, sem eu estranhar, como se soubesse o que iamos fazer. Um profundo silencio pesava em volta de nös, sobre o mundo todo; so um leve rumor da ara-gem nas folhas das ärvores, os nossos passos e os dos cäes. Mas o Baräo, esta-cando e voltando-se para tras, deu um berro terrivel. — Quem vem ai?! ! \ Os cäes fugiram assustados. Vi que näo vinha ninguem e atrevi-me a dizer que tinha sido engano. Mas ele insistia em altos gritos apoplecticos: — Quem estä ai?... Quem estä ai?!... E correu na direcgäo de uma moita de ! \ ärvores. Segui-o e verificämos que näo estava ninguem. O Baräo, porem, tinha a certeza e eu comegava a duvidar. — Varo-os como a cäes!... Cana-lhas!!!... Hei-de-lhes acabar com a ma- 1 ! LB 53-5 65 nha de andaremf atrás de mim!... Náo sou menino de mama!... Carneirada!!!... De repente, fez-me um misterioso sinal de siléncio. Escutei. Nada. Mas ele ti-rou a pistola do bolso e deu seis tiros na direcgáo donde julgara que vinha o sorn. Seguiu-se um grande siléncio. Nem os cáes já ali estavam. Só eu. Pegou-me no brago e explicou que eram os criados. Ati-rou a pistola fora, como uma coisa inútil, e recomegámos a caminhar na direcgáo de que nos tínhamos desviado. Marchámos calados durante algum tempo. Já tinha os olhos habituados ao escuro e comegava a ver através da noite. Ele levava uma rosa erguida na máo; eu caminhava a seu lado como se soubesse para onde, mas afi-nal ia apenas atraído por um mistério que nem tentava imaginar. O ar fresco da noite dava-me prazer e leveza. Os cáes tinham voltado para ao pé de nós e mantinham-se a nosso lado, como sombras rastejantes. Ouvi estalar um ramo de árvore e só nesse momento percebi que, na verdade, vinham pessoas atrás de nós. Naquele estado de espírito, julguei outra coisa. E calei-me, pois até para a minha seguranga pessoal me pare-cia mais conveniente. Verifiquei que levava o meu revolver no bolso e fui an-dando ao lado do Baráo, que estugava o passo cada vez mais, como um fugitive Apurei o ouvido e, com o olhar agugado, tentei penetrar a escuridáo da noite. Os cáes, por vezeš, desapareciam e depois voltavam em corridas súbitas que me sobressaltavam. Até que chegámos a uma estráda. Ali pareceu-me que a noite es-tava menos escura. Ou entáo era já o clarear da madrugada. Náo sei bem. Fosse pelo que fosse, náo estava completamente escuro. Pareceu-me que pela estráda náo vinha ninguém atrás de nós. O Baráo que-brou o mutismo em que íamos e inclinou--se para o meu ouvido, como se até naquele sítio fosse necessário falar em se-gredo: — É ali. — O qué? — perguntei, também em voz baixa. — Sch... Náo tenhas medo... — De qué?... — Vai... Náo, fica antes aqui... Só se eu chamar!... 66 67 — Está descánsado... Pareceu-me que as suas ideias näo ti- nham continuidade. Talvez as minhas também näo. A ver-dade é que continuávamos a caminhar pela estráda como quem vai para um sítio combinado. lamos ao longo do alto muro de uma quinta e um pouco adiante, sob as árvores, via-se a sombra duma casa. O Baräo parou e com voz lenta da embriaguez disse-me num tom amargo: — Tu näo sabes... O amor é que salva... Já amaste?... Mas de perder ou de salvar?... (Eu ia para responder, porém só encolhi os ombros, com desprezo. Afi-nal näo tinha ouvido nada do que eu lhe contara.) E näo sentes a tua vida vazia? Nem ódio?... Näo és nada, na vida näo és nada... Se eu te contasse tudo!... Mas näo sei falar d'Ela, nem de mim... Fui outro... nesse tempo... E esse é que foi eu. Na-quele baile, quando acabou de dangar, o pai chamou-a e disse-lhe: «Poi o teu ultimo baile.» Foi a ultima vez... Fazia longas pausas e quando se ca-lava apressava o passo. Eu seguia-o, apro-ximava-me, e, outra vez ao seu lado, con- tinuava a ouvi-lo como se ele f alasse mais para si proprio do que para mim. — Tens ódio a alguém? (Com desá-nimo): Nem amor nem ódio... Julgas que é viver, sem ter amor nem ódio?! — Nem amor!... — exclamei por f im, olhando com desdém aquela sombra des-conhecida que ia ali ao meu lado. — Mas que te interessa a minha vida?... — Está bem, está bem... Näo te zan-gues. Já gosto mais de ti... Mas eu näo posso ficar com tudo cá dentro. Gostava de ser como tu: calar-me. Mas näo posso. É pior. E assim vivo outra vez... O ódio... (Riu com sarcasmo.) Meu pai... Näo poděs compreender... (Parou e poisou a máo sobre o meu ombro.) Meu pai tinha-lhes ódio, a Ela näo, ao pai, só a ele. E näo o matou, foi a mim e a Ela, foi a mim que ele matou. Um dia hei-de contar-te tüdo... Parámos em frente de um grande por-täo de ferro. O Baräo ficou calado, como esquecido e alheio. Depois, olhando-me e reparando em mim, continuou: — O amor é que perde... Tu também sabes... Fez de mim um escravo com esta alma de rei... Um escravo e um rei na 68 69 mesma carcaga podře. Sou uma flor e um escarro... Um dia hei-de contar-te tudo. Mas hoje estou bébedo; hoje näo. E foi por pouco... por täo pouco!... Mas diante ďEla eu era uma crianga, eu que sou capaz de tudo... E tinha sido táo fácil!... Mas depois já näo... E espojei-me no lodo. Fazia-me bem. Quanto mais lodo melhor... Dava-me dištancia... adormecia o leáo na jaula... Julgas que eu era assim como sou hoje? Fiz-me assim para Ela näo se arrepender, para Ela näo ser mais infeliz... O amor é que nos salva... ou que nos perde... Eu sei... Näo sei amar, mas sei o que é... Quando digo esta palavra dói-me aqui dentro. Mas digo. Dói, mas digo. É uma facada... Nunca reparaste que tem assim uma luz como um sol?... Gostas mais do Sol ou das estrelas? Eu näo, eu gosto mais das estrelas... Comegaram a ladrar, furiosamente, vários cäes por trás do muro de uma quinta. Os do Baráo, ao pé de nós, respon-diam. Mandou-os calar e atirou um pon-tapé ao que estava mais perto. O cáo fu» giu a ganir, um ganir metálico que cor-tava a noite e me arrepiou. Tínhamos an- dado mais uns passos quando percebi que, por algum motivo, ele estava hesitante. Parava, olhava em volta, sem um sentido definido. Comegou a assobiar, a chamar os cäes. Os outros, de dentro da quinta, ladravam cada vez mais. Deviam ser trés ou quatro. Foi até ao fim do muro e parou, como se só precisasse de ir até ali. A tal casa já tinha ficado para trás. En-täo disse-me para eu segurar os cäes. Mas como podia eu segurar ao mesmo tempo quatro cäes grandes? Concordou com um «é verdade» contrafeito e, saindo de ao pé de mim, desapareceu. Tentei segui-lo, mas já o näo vi. Chamei. Respondeu-me ao longe, perdido na noite, com uma voz que nem me pareceu a dele. Caminhei naquela direcgäo, mas näo o encontrei. Sentei-me na borda da estráda e acendi um cigarro. Ali fiquei a fu-mar, tranquilo e esquecido, numa feliz e completa indiferenga. Tinha passado näo sei quanto tempo, quando ouvi passos. Os cäes da quinta recomegaram a ladrar. Era o Baráo. Explicou-me que tinha ido a uma vinha arrancar um arame, e esta explica-gäo deu-me vontade de rir. Olhou-me com 70 71 surpresa, sem compreender. Eu também näo saberia explicar aquele exagerado bom humor. Estava com uma täo boa dis-posigäo que me admirava de mim próprio. Ele, com a sua voz lenta e pesada de ébrio, comentou, afastando-še: — Estás bébedo... Estás mas é muito bebedo... Melindrei-me com isto, prova de que na verdade o estava. E respondi-lhe no mesmo tom de desprezo: — Mas é de hoje... e a tua é de há näo sei quantos anos... Como se näo tivesse ouvido, parou ao pé de uma oliveira e comegou a enrolar o arame em volta do tronco da pequena árvore e a chamar carinhosamente os cäes que nos acompanhavam. — Mondego... Aqui... Mondego... Pegou na coleira do cäo e enfiou-lhe o arame. Depois o outro. — Tejo... Cá... Tejo... Até que os prendeu todos ao arame. Entäo disse-me: — Ficas aqui. Näo saias daqui. — Porqué ? — Pois porqué ?... Entäo! ?... E mostrou-me a rosa que continuava intacta na mäo. Eu estava já suficiente-mente lúcido para aquilo comegar a pare-cer-me ridículo. E atirei-lhe uma garga-lhada na cara. Deu-me um empurräo e caí de costas no meio dos cäes. Enquanto procura va levantar-me, eles lambiam-me pie-dosamente a cara e eu atirava violentos insultos ao Baräo, que já näo estava ali. Levantei-me e corri atrás dele. Entäo pa-receu-me ouvir, do lado de trás do muro da quinta, vozes misturadas com o ladrar dos cäes. Eu andava já fora da estráda a procurar o Baräo como quem caga uma fera, correndo, tropegando nos torröes da terra lavrada, nas valas, caindo, levan-tando-me, numa espécie de furiosa sede de vinganga. Mas em väo: tudo eram sombras fugidias, ramos de árvores que me fustigavam a cara onde o suor corria em grandes bagas, ou folhas que me aca-riciavam irônicamente a face. Bufava como um toiro. De repente lembrei-me do revolver e tirei-o do bolso: estaquei a me-ditar, a estabelecer um piano, ofegante, sem poder andar mais. Nem sei já se era de fúria contra o Baräo ou se estaria ape- 72 73 nas com medo. Reparei que esitava outra vez ao pé da estráda. Dei mais uns passos, sentei-me na valeta e resolvi esperar. Poisei a arma na relva, a meu lado, e com o lengo fui limpando o suor que me ala-gava a testa. Estava cansado. Tirei outro cigarro do bolso e comecei a fumar. Sou-be-me mal; atirei-o fora e fiquei com o olhar fixo na brasa vermelha que parecia um olho na escuridäo a fitar-me. E afun-dava-me num adormecimento dos senti-dos. Olhava sem ver, ouvia sem ouvir, as ideias tumultuavam-me na cabega sem as compreender nem as poder dominar. Era uma cavalgada de claröes e sombras, en-tre visöes nebulosas ou de uma nitidez que feria, mas num outro eu libertado deste que ali tinha caído, sonämbulo e atónito. E ouvia ao longe um confuso la-drar de muitos cáes ao mesmo tempo. Isto, pouco a pouco, foi-me chamando ä realidade. Senti que comegava a pensar com clareza. Fiz uma revisäo mental do que se tinha passado até ali e compreendi que estava a exagerar e a deturpar os factos, que era tudo uma brincadeira. E onde estaria o Baräo? Andava tal- vez a procurar-me, já aflito. Lembrei-me daquela rosa branca, erguida na sua máo como um símbolo de pureza, e vi a beleza de tal gesto, cujo destino eu ignorava, mas para o qual ele me tinha pedido auxí-lio. E eu tinha-o atraigoado e andava a persegui-lo com um revolver na máo. Tive remorsos. Levantei-me e comecei a cami-nhar, num passo apressado, pela estráda adiante. Naquele momento eram para mim muito confusas as intengoes do meu companheiro com uma rosa na máo, mas aquele gesto, agora, parecia-me admirá-vel. Náo me tinha dito para quern era... Ah! chamou-lhe a Bela-Adormecida!... Como esta frase teve a beleza de um so-nho! Por fim esqueci-me do Baräo e, a can-tar, no profundo siléncio da noite, continue i a caminhar pela estráda. O céu estava cheio de estrelas e a minha voz subia até elas. Äquela hora o Baräo saltava o grande muro, aproximava-se do castelo e esca-lava as paredes, até ä janela da Bela--Adormecida... Eu lá ia pelos caminhos desconheci- 74 75 dos e sem fim, eifguendo os meus cänticos ä noite e äs estrelas. Só o romper da manhä me chamou ä realidade. Senti arrepios de frio e doíam--me as pernas. Na meia-luz do alvorecer, procurei em volta, com a vista, o solar do Baräo. Só vi uns vales profundos, envol-vidos em sombra e neblina. Onde estaria eu? Quanto teria andado? Calculei que näo podia ter percorrido grande dištancia. Voltei para trás, num passo apres-sado. E caminhei, caminhei, já exausto e desanimado, sem encontrar o palácio, nem outra casa qualquer, nem uma aldeia, nem ninguém. Era como.se tivesse caído na Lua. Só montes desertos, numa luz cinzenta, e a estráda branca sem fim, fa-zendo curvas na minha frente. Caminhei durante algumas horas. Até que näo pude mais. Doíam-me os pés, doía-me o corpo todo, tinha tonturas e a cabega parecia apertada num capacete que abrasava. E queimava-me uma sede torturante, que aumentava a cada passo. Sentei-me, ou caí, na borda da estráda que descia da montanha coberta pela névoa matutina. Depois, ao longe, o céu tomou uns tons cor-de-rosa, com laivos violetas. Era urn espectáculo belo e novo. Um pequeno pás-saro escuro surgiu ao pé de mim, sobre o ramo seco dum to jo, deu um «piu» triste e voou, desaparecendo. Levantei-me para continuar a marcha; porém, custou-me a endireitar as pernas e as costas. Era como se tivesse os ossos partidos. Mas a Providentia existe. Apareceu na curva da estráda um moleiro com o burro carregado de sacos de f arinha. Fui ao seu encontro e pedi-lhe que me alugasse o jumento. Näo queria. Foi dificil convence-lo. Tei-mava que o animal näo aguentava co-migo, que näo podia deixar ali os taleigos da farinha, que o deixasse «pelo Santis-simo Sacramento». Perguntei-lhe quanto valiam a farinha e os taleigos. — «Mais de cinquenta mil-reis.» Tirei da carteira uma nota de cem escudos e meti-lha na mäo. Contente, mas sem o querer mostrar, tirou os sacos ainda com uma lamú-ria, «seja em desconto dos meus pecados», mas que era só até näo sei onde e depois lase arranjava uma carroga, pois näo queria rebentar o burro. Foi esconder os taleigos atrás de uma silveira e voltou. 76 77 Como o burro näo tinha estribos e o al-bardäo era muito largo, o moleiro aju-dou-me a subir. Logo que me instalei, deu urn estalido com a lingua e o simpá-tico animal comecou a bater a estráda no seu chouto miudo. Eu, escarranchado em cima da enorme albarda de palha, olhava o pobre hörnern como quern con-templa o seu verdadeiro anjo da guarda. Estava o Sol já alto quando chegámos ao solar. O criado que veio abrir o portäo, ao ver-me, exclamou com surpresa: — Ah!... V. Ex.1!... Ainda bem... — Ainda bem, o que?... — Quero dizer... Peco desculpa... Es-távamos com medo de que também... como o senhor Baräo... — Já veio ? — Está livre de perigo. — De perigo?!... Que perigo? — Entäo V. Ex.1 näo sabe ?... Teve um desastre... — Urn desastre?!... — Sim, senhor. V. Ex.a näo andava com o senhor Baräo?... — Andava... Mas... Sim... E como foi? — Eu náo sei mais nada. Quern pode explicar é a senhora Idalina... Fui ao quarto do Baráo. Estava esten-dido na cama, com um tiro num ombro e fractura do cranio. Percebi que queria di-zer-me qualquer coisa e aproximei-me do leito. Ciciou com dificuldade, entre den-tes: :—Mas ficou... na janela... E cerrou os olhos, como se tivesse f eito um grande esforgo. O medico puxou-me pelo brago, pedindo que saisse do quarto, para que ficasse em completo repouso. Mais tarde tive noticias dele. Manda-va-me dizer que lá me esperava. Sim, Baráo!... Hei-de voltar, um dia. E havemos de tornar a perder-nos pelos caminhos sombrios do nosso sonho e da nossa loucura; e mais uma vez havemos de cantar as estrelas, e dar a vida para ires depor outro bótáo de rosa lá na alta janela da tua Bela-Adormecida!... 78 79 AS MÄOS F RIAS i t i i LB 53 —ŕ Ao entrar a porta da rua olhou para cima e viu que estavam trés pessoas na escada, a conversar em voz baixa. Eram sombras: tinha comegado a anoitecer. Mas no patamar havia uma claridade vaga que vinha dali, de uma das portas do pri-meiro andar. E de repente pareceu-lhe que devia ter acontecido qualquer coisa. Subiu. — Boa noite. Afastaram-se para ela passar. — Boa noite. Foi a voz da senhora Clara que res-pondeu e ao mesmo tempo, com a mäo papuda, segurou-a pelo brago e segredou--lhe ao ouvido: — Morreu o senhor Pedro. Virginia disse com indiferenga: — Coitado! De repente ? E, com um vago cansago, ficou ali um momento paráda a olhar a porta do pri- 83 meiro andar, dónde vinha uma luz ama-relada. A senhora Clara, na mesma voz de segredo, disse-lhe que pódia entrar. — Eu?!... — Sim. — Para qué? Reparou entäo nas outras duas pes-soas: um homem novo, bem vestido, e a costureira que morava no rés-do-chäo, a D. Augusta, que lhe sorriu com o seu arzi-nho hipócrita, esclarecendo amävelmente, também em voz baixa: — Qualquer pessoa pode entrar. -—Mas näo me interessa. Nem o conhecia. — Ah!... Näo conhecia ? A senhora Clara avangou, afirmativa: — Näo conhecia ? Ora essa!... Entäo näo conhecia! ? Está aqui há cinco anos... — De vista, sim. E do baile de Carna-val, tem razäo, mas nunca lhe tinha falado. — Ah! Isso é outra coisa... Era um bonito homem. E assim de repente!... Isto matou-se, eu digo que se mätou; alguma droga o estoirou. Näo viu os olhos dele? Saidos, brancos como um ovo! Aquilo foi da änsia, do arrebentamento. Isto digo eu, mas eu näo sei nada... — Pode ser — comentaram do lado. — Lá natural näo foi. Mas, psiu!... Nada de sarilhos... Virginia perguntou: — Porque é que julgam isso ? Cochicharam aos ouvidos umas das outras, para que nem as paredes ouvis-sem, embora andassem a procurar toda a gente para espalhar a notícia aos quatro ventos. Mas sibilavam sempre em segredo, pois assim tinha mais sabor: — Entäo, ora diga-me, um homem na flor da vida e rico, a quem näo faltava nada... que as mulheres er am ä bicha, cada princesa que metia medo por esta escada acima! As cabras!... Entäo um homem destes... — So se fosse por isso... — interrom-peu o indivíduo que ali estava a fazer roda. — O qué? — Para se ver livre dessas princesas. Ou entäo estafaram-lhe o capital. — É lá desses! Por isso já se sabe que 84 85 näo foi. Esteve cá um amigo dele, que saiu näo há dez minutos, e disse que näo. Mas ele desconf ia de alguma coisa! Olá!.,. Entáo, entre. E empurrou Virginia. Ela segurou-se ä ombreira da porta e teimou: — Näo, agora näo. Mas já estava lá dentro. Os outros vi-nham atrás, como urn cilindro que levasse tudo na frente. Era um vestibulo com urn cabide, cadeiras e uma area antiga, de pau-preto, com pregos amarelos. Näo estava ninguém. Pela porta em frente via--se uma sala grande com maples e sofas. Ä esquerda, estava escancarada uma outra porta: era urn quarto com o morto dei- j tado sobre a cama e velas em volta. A criada surgiu do corredor para ver quern é que vinha a entrar. Como eram pessoas conhecidas, voltou para trás, sem dizer nada, e desapareceu. O defunto ti-nha as solas dos sapatos novas, por es-trear, a casaca de bom talhe, o peitilho e a gravata branca impecáveis. Aos pes, um ramo de rosas vermelhas. A D. Augusta, que já tinha visto, ficou na sala de entrada, aproveitando para falar em par- 86 ticular com o tal hörnern que a acom-panhava. Entretanto, Virginia e a senhora Clara tinham-se aproximado do leito. Virginia parecia agora um poueo impressio-nada, empalidecera levemente e olhava o defunto e as coisas que o rodeavam, com um olhar inquieto. Ao contrario da senhora Clara, que passeava por eima de tudo, mais uma vez, um mirar triste e deleitoso. Ja ali fora, desde manhä, deze-nas de vezes. Era um dever cristäo. Com voz plangente choramingou: — Coitadinho, esta täo bonito!... Virginia saiu. A senhora Clara veio aträs dela perguntar: — Fez-lhe impressäo? — Näo. — Pois... Um morto e um morto... — Bern, boa noite. — Ate ja. Venha fazer-me um boca-dinho de companhia, para eu näo estar aqui toda a noite sözinha. — Tenho as meias molhadas e estou constipada, com arrepios. — Mas müde, e venha. — Vou ver. Näo prometo. Boa noite. — Ate ja. 87 / A D. Augusta repetiu «Boa noite» e o hörnern que estava a conversar com ela, num exagero de solenidade, fez uma pe-quena venia silenciosa. Virginia saiu para o patamar e subiu a escada. Ao chegar ao quarto atirou o chapéu para cima da cama. Depois foi diante do espelho e pas-sou as mäos pela cara. Pôs pó-de-arroz. E sorriu para a imagem do espelho como quem se alegra de ver uma coisa agradá-vel depois de uma coisa triste. Tinha pena, sim, coitado. Reparou agora que come-gava a sentir uma certa curiosidade por aquele caso. Porque teria sido? Elas sa-biam qualquer coisa... Deitou-se sobre a cama e desembrulhou um rebugado. Come-gou a chupar e a revolver o caso na ima-ginagäo. Matou-se. E parecia feliz... Dei-xou-se levar por aquela vaga curiosidade de ouvir a senhora Clara. Saltou da cama e foi espreitar ä porta. Ouviu a voz da velhota ao fundo da escada. Desceu ao encontro dela. Estava mais gente. O tal amigo tinha voltado. Mas ainda ninguem da família. Eram do Algarve, de Vila Real de Santo Antonio. O amigo do def unto disse ä criada: — Feche a porta. Talvez essa senhora lä de cima possa vir para aqui um bocado. Estavam na escada a ouvir. A senhora Clara pös o dedo no nariz, para escutar ate ao fim. Mas näo disse mais nada e z criada respondeu que ja lhe ia pedir. Ele saiu para a escada. Ja elas tinham fugido um pouco mais para baixo. Virginia näo estava a compreender bem aquela mano-bra, mas lä devia ter qualquer razäo. Dei-xou-se levar. Ele disse mais qualquer coisa ä criada: — ... jantar. Devo voltar so de manhä. Näo deixe entrar mais ninguem. Boa noite. — Boa noite, senhor doutor. Virou a gola do sobretudo e desceu. A criada ja tinha visto a senhora Clara lä em baixo e ficou ä espera que o doutor saisse para a chamar. — Senhora Clara... Suba, subam am- bas. Quando elas entraram para a saleta, fechou a porta apressadamente e apertou as mäos sobre o peito, exclamando melo-dramäticamente, com os olhos em alvo: — Foi estrangulado!... 88 89 — O que ? Ó meu Santíssimo nome de Jesus!... Que está voce a dizer?! — Que foi estrangulado! Disse-mo ele agora. Jä näo é segredo. Veja lá! Quera havia de dizer!... A senhora Clara dominou logo o pri-meiro espanto e, voltando-se de repente para Virginia, que tinha parado atrás dela, exclamou quase triunfante: —: Eu näo dizia?! Aqui havia coisa!... Era de ver! E desconfiaram de alguém? — Häo-de desconfiar... Eu é que näo sei... Mal paro aqui. Que ontem esteve cá urna mulher, isso já eu vi, mas saiu cedo; o Marques viu-os na escada. Mas näo sabe quern era. — Logo o Marques, o bostelo... — Mas a polícia dá com ela, olá! Näo escapa. Aqui ao pé de tanta gente e nin-guém sentir!... Até me tremem as per-n. r s ... — Vocé cá dentro e näo ouviu, que fará!... — Ó mulher, eu durmo aqui ?! Só ve-nho cá fazer o servigo. Foi quando entrei de manhä que dei com esta desgraga. Estava tudo num terramoto. A polícia é que ja deu ordem para arrumar as coisas. Tiraram fotografias. Uma das cadeiras... Venham ca... E encaminharam-se para o quarto do morto. A criada descreveu com muitos gestos: — Uma cadeira ali, de pernas pro ar. A garrafa da agua partida; a roupa da cama aqui no chao, toda deste lado. Ve-se que bulharam muito. Ve a gaveta arrom-bada? Era onde estava o dinheiro, nao que eu soubesse, apesar de que ele dizia: «Ponho-te oiro em po na mao.» Coitadi-nho! Um santo... E enxugou uma lagrima hipotetica. Ficaram um momento caladas a olhar para o morto, que, na sua casaca elegante, estava sociavel. Ate, se reparassem bem, reconheciam que se estavam a falar em voz baixa era porque nos subconscientes havia a duvida se ele nao estaria a ouvir e nao poderia levantar-se. A criada, de-pois de um pequeno soluco, chamou a atengao das outras para as maos do pa-trao. — Tinha umas lindas maos. E, aproximando-se do leito, disse: 90 91 — Cheguem aqui. E pegou numa das máos do morto para a levantar. Mal a mexeu. Sentiu um calafrio e afastou-se da cama a olhar fixa-mente do defunto. Tinha-lhe pare- cido que ele fizera forga. Mas a senhora Clara, compreendendo, acrescentou: — Está rijo. — Pois está, é isso... Houve um certo alívio nesťa frase da velha criada. E, com vergonha da sensa-gáo sentida, desmentiu para si propria: — Mas náo faz impressáo nenhuma. É como se fosse um boneco. — Viu que pela primeira vez tinha chamado boneco ao patráo, e gostou desta liberdade. — Experimentem. Experimente vocé, náo tenha medo. — Medo? Um morto é um morto... Mas nunca lhe toquei em vivo, também náo vale a pena tocar-lhe agora. — É certo. Coitado... Sentem-se. Olhem, eu vou comer qualquer coisita, que mal almocei. Venham também. O dou-tor trouxe uns páezinhos com fiambre, para eu náo ter de sair daqui. Mas é mais de uma dúzia. Venham cá... — Obrigada — disse a Virginia, que näo queria. Mas a senhora Clara deu um balango na cadeira, «pois eu aceito», e levantou-se. Sairam ambas. Virginia ficou sentada onde estava. Arrependeu-se logo de näo ter ido também, mas näo quis dar a impressäo de que tinha medo. Porque na verdade näo tinha. E, para se convencer bem disto, olhou a cara do morto pormenorizadamente, com um ä-vontade um pouco forgado. Depois voltou-lhe as costas e viu-se ao espelho. Pensou: «Vou até mexer nestas escovas e abrir aquela caixa.» E pegou nas escovas. Já tinha visto muitos mortos, dizia mentalmente: o avô, o pai, otio Francisco, a Emília, o Bernardo, o senhor Santos... E foi recordando. Sabia bem que um morto era uma pedra que ali estava. Lem-brou-se da história que o irmäo lhe con-tara: estava a velar o cadaver de um amigo e deu-lhe sono. Ficara sôzinho. Os outros dois companheiros tinham ido dor-mir para a sala do lado, nas duas únicas cadeiras que ali havia. Näo tinha outro 92 93 sítio para se deitar; empurrou o morto para lá e deitou-se ao lado dele. Olhou aquele que ali estava, com pena. O senhor Pedro... É uma pedra... Era simpático, alegre. Mas agora já náo é nada. Pensou: «Também sou capaz de lhe tocar nas máos.» Aproximou-se e olhou-o perto da cara. Mas teve um calafrio. Afas-tou-se e deu a volta á cama. «Nem de f an-tasmas nem de mortos, náo tenho medo.» E do outro lado f icou paráda a olhar para as máos dele, brancas, finas, de dedos lon-gos. «Também sou capaz.» Pegou no ramo de rosas, virou-o de um lado e do outro, mecánicamente, sem dar atengáo ao que estava a f azer, e tornou a pó-lo no mesmo sítio. Estava a pensar nas máos do morto. Olhou-as outra vez. Pareciam de cera. Es-tendeu o brago e, como uma sonámbula, quase sem querer, poisou a ponta dos dedos sobre a máo do defunto. Sentiu uma frieza de gelo e um arrepio percorreu-lhe o corpo todo. Recuou e sentou-se, atónita, na mesma cadeira onde há pouco tinha es-tado. Olhou a ponta dos dedos onde a sen-sagáo de frio tinha ficado pegada, e pas-sou a máo sobre a saia como quem a limpa de alguma coisa. Mas comegava a sentir--se recuperar a serenidade. Tinha sido uma brincadeira de mau gosto. E resolveu ir la acima ao quarto, lavar as maos. Pas-sou pela saleta de entrada, ouviu vozes na cozinha, onde as outras estavam a comer, e, com cuidado, abriu a porta que dava para a escada. Vinha vento frio da rua. Deixou-a so encostada e subiu a correr. Encheu a bacia, ensaboou bem os dedos, depois abriu a torneira e ficou a olhar as maos por onde a agua limpida corria. Es-fregou com a toalha. Para nao ficar sozi-nha, saiu do quarto e desceu de novo a escada, devagar. Estava a porta tal qual a tinha deixado: nao deviam ter dado pela sua saida. Escusava de estar com explica-goes. Fechou a porta e dirigiu-se a cozinha. Conversavam animadamente. Inter-romperam quando ela entrou. — Ate me tinha esquecido que estava la dentro... — Tambem eu — acrescentou a outra. E retomaram o fio da conversa. Virginia teve a impressao de que estavam ja embriagadas. Cheiravam a aguardente, falando devagar, com a voz pesada. 34 95 — É da Marcelona... — disse a criada para Virgínia. — O qué? — Estamos a f alar da Marcelona, esta cróia aqui da f rente... — Ah! Näo conhego. — A do canário. — Sabe, como näo estou cá de dia... — É isso, é isso... Pois é dela. Faz-se lá ideia!... Tem barbas e bašta. A senhora Clara acrescentou: — Diz-se até...—e cochichou-lhe o resto ao ouvido, em segredo. A outra, en-quanto a companheira se babava pendu-rada ao ouvido de Virgínia a mascar uma história ohscena, foi comentando para o lado, a f alar sôzinha: — Diz-se?! Olha pra esta... Diz-se!... Diz-se e é!... Diz-se o qué?... Diz-se e é!... Olha lá pra esta!... E deu uma palmada na mäo áberta, como se tivesse ali a prova. E as duas velhas deixaram cair a cara sobre a mesa e riram, riram em grandes gargalhadas que enchiam a casa. Esta-vam completamente bébedas. Sufocadas pelo riso, comegaram a pronunciar umas 96 palavras de que só saíam as primeiras sílabas, logo abafadas. E guinchavam umas vozes aflautadas que Virgínia näo dMinguia bem de qual éram. Olhava para elas já com nojo e com medo. A baba es-corria-lhes pelos queixos: de repente, uma passou-lhe a mäo suja pela cara: — Ó filha!... E a outra repetiu com esforco: — Ó filhinha!... Virgínia ainda se esf orgava por sorrir. A Hipólita puxou-a e perguntou-lhe ao ouvido, em voz alta, rebentando logo a rir: — Quem é o teu, agora?... — Näo tenho... — Era a vergonha dos homens se esti-vesses ainda desconsoladinha... Mas, do lado, a senhora Clara inter-rompeu: — Entäo e isso da Marcelona ?! —Ah! Da Marcelona... A Marcelona... Estava a contar... quando ela... na-quela noite, quando ela me mandou cha-mar. Mandou-me chamar; se eu conhecia um tal Januário dos eléctricos... Conhego lá essa gente! Que pr'aqui, que pr'acolá... c'um latim de bispo!... E eu farta de sa- LB53 - 7 9 7 ber... Até que mej mete vinte mil réis nas unhas... Eu cá por dinheiro vendo Cristo!... Vou agarrar o homem á taberna do «Engelha» e lá vem ele ao en-gano, um enginho... daqueles de comer com ossos e tudo... Virgínia fingia ouvir, mas estava nervosa com aquela impressáo que lhe tinha ficado nos dedos. Parecia-lhe que tinha as duas máos geladas, que o frio subia das pontas dos dedos pelo brago acima e lhe invadia o corpo todo. Cravava as máos uma na outra e estremecia com uma espé-cie de arrepio nervoso que náo sabia bem se era de náusea por aquelas bébedas repugnantes, se era da impressáo que lhe tinha ficado. De repente notava que náo estava a ouvir nada do que elas diziam. Era como se estivesse com os ouvidos tapados e de súbito lhos destapassem. — ...e vai, zás! Na bochecha com o ďrapugo do sacristáo... Acordava de um sonho e ouvia e via de repente aquelas mulheres disformes ali ao pé dela. Náo podia suportá-las mais. Levantou-se e elas calaram-se, olharam- -na com surpresa mas logo compreende-ram: — Estas raparigas ďagora, raios me partám, tudo as enjoa... — Náo, náo é isso. Até acho graga... — Achavas graga mas era a uma coisa que eu cá sei... — Desculpem. Estou doente. Tenho de me ir deitar. — Vai, vai... Co'a Marcelona... Olha! Olha!... E atirou-lhe um gesto obsceno. Virgínia saía já a porta da cozinha. A Hipólita tentou pôr-se em pé, mas desequilibrou-se e caiu contra a mesa, tombando uma gar-rafa, que se estilhagou nos mosaicos do cháo. Virgínia foi atravessando ouvir atrás dela os insultos que ela lan-gava numa voz rouca e empapada, esten-dida no pavimento, sem poder levantar-se para ir agarrá-la. Ao atravessar a saleta, a claridade que vinha do quarto do morto obrigou-a a olhar: lá estava, deitado, elegante, as máos sobre o peito, as velas altas ä cabeceira. Num gesto brusco abriu a porta que dava para o patamar e desapa-receu no escuro da escada. Veio-lhe de re- 98 99 pente vontade de chorar, sem saber por-qué. Uma ánsia como uma falta de ar, de gritar, de solugar, de descarregar os nervos de qualquer maneira. E náo era por nada daquilo que se passava ali. Náo ti-nha dado importáncia a nenhuma daque-las coisas. Antes disso já trazia os nervos carregados, que náo podia mais. Era a sua vida abaf ada, subterrada debaixo de tanta mesquinhez, děste aperto das necessida-des do dia a dia, do emprego onde náo ganhava que chegasse, do vestido cogado, das outras que vivem, que respiram ao sol, que tem sol! E ela a ver a vida passar. Viver tinha de ser hoje. E hoje náo a dei-xavam. Subiu para o seu quarto, atirou-se sobre a cama, a solugar baixinho. Aquele morreu, mas viveu... E sentiu outra vez, mais nítida na ponta dos dedos, a sensa-gáo do frio. Era como se estivesse agora de novo a tocar-lhe. Porém, esta lem-branga deu-lhe serenidade, uma sereni-dade aparente. Sentou-se na borda da cama, a limpar os olhos com um pequeno lengo. Pareceu-lhe que tinham batido ali á porta do quarto. Mas náo era. Reparou se estava fechada: tinha a lingueta da fechadura corrida. As bebedas... Mas ba-teram, na verdade, ä porta. — Quem e ? — Eu. Era o Henrique, o seu noivo. Costu-mava vir. — Que queres ? — Näo sais? — Näo, hoje näo. — A voz saiu-lhe longinqua, como alheia a tudo, e dolorida. — Abre — ordenou ele. Entäo Virginia acordou do seu aniquilamento. — Desculpa. Estou ja a deitar-me. — Mas abre: preciso de te falar. Foi abrir e ficou entre a porta, com a cara na sombra, para que ele näo lhe visse as lägrimas. Ele fitou-a com um espanto interrogativo e pegou-lhe numa das mäos. Sem poder evitar a comparagäo, ela pen-sou: «Estas estäo quentes.» — Estas doente? — Näo... Ou talvez. Se queres que te diga, nem sei bem, mas creio que näo... So dos nervös... — De que? — De nada. — De nada? 100 101 Fez-se um silencio dificil. Parecia que se tinha erguido näo sabia que irremediä-vel barreira entre ambos. Ele pressentiu alguma coisa que queria explicado; ela compreendeu que tinha de dar uma razäo, de desfazer aquele mal-entendido. Mas estava sem forgas para lutar, para expli-car. Fez urn esforgo. — Nunca estiveste triste, aborrecido, sem saber porque? — Näo. Ele quis marcar a sua posigäo de segu-ranga e autodominio, inacessivel a sensi-bilidades doentias. Ela respondeu-lhe com calma e quase com desprezo: — Es feliz: saudävel de corpo e alma. — Tudo tern explicagäo, desde que sai-bamos e queiramos dä-la. E tu sabes bem porque estäs nesse estado de nervös. Näo julgues que te conhego so desde ontem. Ou e algum segredo?... Olhou-o com surpresa e ainda com maior desalento: — Algum segredo...? — Entäo? — Volta amanhä. Hoje näo, näo posso. Näo posso estar agora a explicar-me... 102 Näo me perguntes ma is nada. Amanhä te conto tudo. Tudo que e nada. Mas agora näo posso, näo posso mais! Desculpa... Vai... E fez um gesto para fechar a porta. Ele segurou-a. Virginia tinha os olhos cheios de lägrimas. Estava na sombra e ele näo via. Ela e que estava a ver os dele: ansiosos, desorientados, violentos. Mas que lhe havia de dizer? Se, afinal, era so a melancolia da sua vida, a sua sede de libertagäo que tinha vindo, de subito, toda ä tona da ägua, numa änsia que ele näo podia remediar e, talvez, nem soubesse compreender. E para que? Antes näo lhe dissesse nada. Amarfanharia dentro de si aquelas grandes asas da sua alma, E ama-va-o muito, apesar daquela incompreen-säo, apesar de embater contra ele como uma onda contra um rochedo. Mas afinal era tudo täo simples!... Täo f äcil de expli-car. Mas hoje näo. Hoje era impossivel. Bastava estar doente, ou outra razäo tam-bem simples. Ia comegar a solugar ou a falar e tapou a cara com as mäos: — Morreu o senhor Pedro... Mas näo soube como tinha pronun- 103 / ciado estas palavr;as, porque nao era nisto que estava a pensar. E nao pode conti-nuar. Ele f icou impassivel, a espera. Como demorava, interrogou, calmo: — Que Pedro ? — O que morava aqui por baixo... E eu fui la e fez-me impressao. A criada estava bebeda, insultou-me... Mas amanha te conto, amanha!... — Amanha, para que ? A tua cara ex-plica tudo, as tuas lagrimas... Sao tao sentidas que qualquer te perdoa. Tirou as maos da cara, como se ainda duvidasse daquela insinuagao; mas de repente teve a certeza do que ele queria dizer e foi como se as lagrimas tivessem secado subitamente. Ficou a olha-lo com um grande espanto. Mas ele virou-lhe as costas e desceu a escada rapidamente. Virginia ficou atonita a olhar para o bu-raco escuro da porta, para aquele pogo da escada, por onde se afundava e desapa-recia o homem que ela amava. Dobra-ram-se-lhe as pernas e sentou-se na beira da cama. Ficou imovel, sem conseguir pensar, sentindo um turbilhao na cabega vazia. O vento vinha da escada, frio, e a 104 [ porta la em baixo ficou a bater. Entao viu sair do vao negro uma mulher — a se-nhora Clara — que veio ate ao pe dela e lhe pos a mao na testa. Mas tudo longin-quo e nebuloso. Nitidamente so ouvia que no andar de baixo, a outra, bebeda, an-; dava a cantar ao pe do morto. O INVOLUNTÁRIO No Outono caem as folhas das árvo-res, o céu é cinzento e toda a natureza vai adormecer, como dizem os poetas... Filipe da Maia náo era poeta e sentia en-táo uma melancolia e um cansago inte-riores, que lne davam aquela inquietagáo dolorosa. As tardes eram de luz suave e triste, caía uma chuva leve sobre a fofa poeira da rua, chuva que fazia um sus-surro abafado nas folhas amarelas, e tudo se repassava duma tristeza irremediável. Filipe da Maia encostava-se aos vidros da janela e via morrer as árvores. Mas sen-tia-se sem raizes e parecia-lhe que poderia salvar-se se viajasse. Percorria-o um ar-repio e ia á pressa arranjar a mala, descia a escada, chamava um taxi e corria á estagáo onde comprava bilhete para o pri-meiro comboio. E partia sem destino, como quem foge, sem se despedir de nin-guém. Viajava, viajava, fugindo das cida-des, vagabundeando por aldeias e monta- 109 nhas. E só regressäva na Primavera. Por fim, os amigos j á lhe chamavam «Filipe de Maio». Pobre rapaz!... Se näo fosse rico, teria sido um homem banal: teria ido para urna companhia de saltimbancos, dessas que däo voltas ao mundo e nunca se sabe onde estäo, ou teria comprado um urso e iria pelas aldeias. Falo dele com melancolia porque näo sou rico e também näo comprei um urso. Tenho pena. Ah! Eu bem digo que, se o mundo é redondo, com certeza que é para se andar ä volta dele. Enfim, lá vai... Hei-de contar toda a sua vida, mas hoje ainda näo. Fica para mais tarde. Contudo, as páginas que se seguem säo já um dos capítulos dessa biografia a que tenciono chamar: E PUR SI MUOVE (Galileu). 0 Veräo tinha sido alegre e saudável. Andava toda a gente pelas ruas a rir e a cantar, mas caíram as primeiras gotas de chůva e foi como se diluíssem e apagas-sem as cores do mundo. As ruas ficaram desertas e as janelas das casas sempře fechadas. Toda a gente vestiu uns sobre-tudos pretos e compridos, pôs gravatas escuras, e quern passava ia curvado para o chao, com o passo apressado e o olhar triste. Mas nao tinha acontecido nada. Os teatros e os cinemas iluminavam as fachadas e anunciavam as suas superma-ravilhas, nos clubes comegavam os gran-des bailes, ja todos os saloes elegantes se abriam as deslumbrantes festas de In-verno. Porem, a cidade e as gentes tinham tornado o habitual ar triste e resignado. Passavam vestidos de escuro, porque os trajes claros sao so para o Verao, e fu-giam para dentro de casa, fugiam... Caiam de repente bategas de agua sobre a cidade. Depois, durante horas, nao cho-via mais. As ruas de pedras negras fica-vam lavadas como esqueletos. No vao de uma porta esquecia-se um homem encos-tado, a julgar que ainda estava a chover. Ouvia-se ao longe o sino de uma igreja que batia as horas, seca e nitidamente. A noite nao havia estrelas, o ceu estava baixo, preto, e as luzes das avenidas alon-gavam as sombras. Filipe da Maia ja nao saia de casa, levantava-se tarde, nao ia ao cafe onde se reuniam os amigos, e se chegava a ir era so a noite, mas sen- uo in tava-se a um canto e falava pouco. Dizia que andava adoentado, para se desculpar. Dai a uns dias desaparecia sem ninguém estranhar. Depois vinha um postal do Algarve ou da Polonia, com abragos sin-ceros para trés amigos e desculpas para todos, «mas voces já me conhecem». Desta vez partiu no comboio da noite e escolheu o destino ao acaso num mapa que estava ao lado da bilheteira. O comboio chegou atrasado, o que enerva sempře os passageiros de primeira classe. Filipe procurou um compartimento sem ninguém e sentou-se a um canto. A via-gem decorreu incómoda e sem incidentes. O comboio rolou debaixo da noite durante muitas horas. Chovia contra a janela e as carruagens batiam, gemiam, despedaga-vam-se. Até que de manhä chegou ao destino. Ao destino näo, porque Filipe näo tinha destino: ao lugar que o bilhete indi-cava. Ä saída da estagäo viu um carro de cavalos e um solícito cocheiro que veio tirar-lhe a mala da mäo. Filipe seguiu-o, sentou-se no carro, ao lado de uma velha que estava a ler as Novidades e que o f i-tou com autoridade. Mas logo o carro desandou aos solavancos pela estráda adiante e a velha dobrou o jornal, meteu-o na bolsa de mäo e comegou a vomitar com tranquilidade. Filipe mandou parar o carro, mas a velha gritou-lhe, indignada: — Incomodo-o?! E berrou ao cocheiro: — Andel!! Filipe levou a mäo ao chapéu:, — Queira desculpar. O carro seguiu, enquanto a velha, acomodando-se melhor, recomegou a vomitar como se fosse para isso que ia ali. Quando chegaram ä vila, pararam no meio da rua, em frente de uma pequena casa que tinha escrito por cima da porta a pala vra «Hotel». Filipe entrou, pediu um quarto e entretanto foi de jantar para comer qualquer coisa. A um canto estava um sujeito com ar de fidalgo de provincia, já de cabelos brancos e que näo se sabe se tinha uma cara simpática ou näo. Pouco depois, näo sei como, comega-ram a conversar, e afinal aquele fidalgo de provincia tinha sido condiscípulo e amigo, em Coimbra, do pai de Filipe e chamava-se Pessanha. Falou, com sau- 112 LB 5.1-K 113 dade, desses tempos e convidou-o a ir pas-sar alguns dias em sua casa, já que tinha vindo ali só para passear. Filipe aceitou o convite, como aceitava tudo que Ihe vinha ao encontro, sem preferéncia por coisa alguma. Saíram do hotel e come-garam a caminhar pela estráda adiante. — Näo trouxe o carro porque gosto de fazer este passeio a pé. Faz-me bem. Em volta estendia-se uma planície sem fim, que se perdia de vista para todos os lados. Pessanha era um hörnern forte e sau-dável, que teria sessenta anos, mas pare-cia ter muito menos. Ao primeiro olhar dava a impressáo de um velho, mas de» pois, observando-se com mais atengáo, já näo o parecia. Pelo contrario, irradiava forga e no olhar relampejava-lhe, por vezeš, o fogo de uma juventude escondida. Falava com facilidade e com uma notável propriedade de expressäo. Mas por vezeš calava-se como se hesitasse a volta de qualquer outra ideia que lhe viesse. E a pouco e pouco a conversa foi morrendo. Caminhavam calados pela estráda, que era uma linha recta naquela planície ein- zenta e täo igual que ao longe parecia água. Ä f rentě i a um hörnern com a mala ä cabega. Mas de súbito o céu comegou a escurecer com nuvens de chůva. Apres-saram o passo. O fidalgo murmurou: — As chuvas aqui säo terríveis. — Porque ? — Dilúvios... Se voltássemos para trás? — Pois sim... Caíram as primeiras pingas, enormes e raras. Abrigaram-se debaixo de uma oliveira. — Estamos mais perto da vila que de minha casa. — Pois sim. De repente desabou uma bátega de água que dobrava a rama da oliveira e escavava a terra. Ficaram molhados até aos ossos. E a chůva parou, repentina como viera. Porém, o céu continuava es-curo. Pessanha, mal disposto, insistiu: — Bem, vamos embora. E iniciou o regresso. Filipe seguiu-o sem contrariedade. Mas tinha dado pou-cos passos quando se lembrou da mala. Olharam para trás. Já näo viram o ho- 114 115 mem que a levava. Chamaram, berraram, e os gritos na planicie, debaixo do céu fechado, soavam pouco, parecia que näo tinham voz. E era estranho que o homem tivesse desaparecido naquela planicie rasa. Filipe comentou com indiferenga e irónia: — Afundou-se... — A mala faz-lhe falta? — Talvez. Era já uma situagäo confusa e hesi-tante. Mas Filipe era insensivel a estas coisas desagradáveis. Tanto lhe fazia. Porém, retrocederam. Caia agora uma chůva fina, quase nada. Foram andando e teriam caminhado durante vinte minu-tos quando o caminho desceu levemente e viram o homem já muito ao longe, esfu-mado pela chůva. O velho chamou com grandes berros, pondo as mäos em pprta--voz, mas o outro näo ouviu. Distinguia-se a dištancia, na direcgäo da estráda, uma pequena sombra escura na planicie: era a casa de Pessanha. Continuaram a cami-nhar. A chůva caia como nevoeiro e am-bos marchavam, indiferentes, sem apres- sarem o passo. Filipe já sentia čerta vo-lúpia naquela chůva que caia sem poder molhá-lo mais. O outro perguntou-lhe: — O senhor que faz ? — Volto com o homem para a vila. — Náo... A sua profissáo? — Ah!... Náo tenho profissáo. Vivo como os ricos... E calaram-se outra vez. Que homem estranho, aquele Pessanha! Mas Filipe continuava na sua indiferenga mecánica por tudo. Que homem morto, aquele Filipe ! Andasse, desandasse o mundo, o céu, a humanidade — que podia fazer, senáo abandonar-se, senáo procurar o mais pos-sível o ponto motto, o abandono, para náo intervir em nada? O velho tinha-o con-vidado: ia. Agora dizia-lhe que voltasse para a vila: voltaria. Escutava as vozes exteriores e as vozes interiores. Das ints-riores mal ouvia a única que lhe dizia: «Tanto faz.» Das exteriores só ouvia a de Pessanha: «Regressa.» Há muito que a vida lhe decorria quase sem vontade propria, como um pau pelo rio abaixo. A lei era: náo agir por forga da sua vontade. Pelo contrário: esf orgar-se por se manter 116 117 no ponto de abandono äs acgöes exterio-res. Qualquer impulso da vontade propria, qualquer caminho para que näo fosse cha-mado por uma voz exterior, o fazia sof rer. Sentia que se tinha desviado da senda verdadeira. E contudo movia-se, ora suave, ora violentamente, como as vidas fortes. A unica coisa que fazia por si era andar pelos caminhos do mundo, para que os outros, e a chůva e o sol e o vento, lhe dessem encontröes. Agora ali ia... Foram andando, andando, até que che-garam ao pé de uma casa rodeada por urn muro. Em volta, a planicie de terra ama-rela e pedras brancas. Era um velho palá-cio como há tantos, misto de grande solar e de con vento. Dentro daquele muro enorme que o rodeava, parecia metido numa caixa. Passava-se um portäo rasgado na muralha e lá dentro era um largo calce-tado, cheio de erva entre as pedras, com um ar de abandono que dava uma amarga sensagäo de paz e de desgraga. Pela frente da casa subia a escadaria de pedra, coberta por grossa camada de pó da estráda, misturado com bocados de telhas. Parecia tudo abandonado e deserto. As janelas da casa estavam f echadas, tinham muitos vidros quebrados e a madeira podře, a cair. Subiram e Pessanha ia a puchar uma campainha, mas o cordáo estava apodrecido no cháo. Bateu na porta, com a máo aberta. E, voltando-se para Filipe, disse: — Náo se admire desta grande casa arruinada. É como o dono... Considero-a qualquer coisa de mim que náo vale a pena consertar... Maia sorriu com benevoléncia e o outro continuou: — Estas coisas quando se consertam ficam falsas e mal disfargadas. Veio um criado espreitar á esquina do palácio e foi a correr, de volta, abrir a porta. Filipe disse que náo valia a pena entrar. Bastava dizer ao homem que tor-nasse a levar a mala para a vila. Pessanha interrompeu-o: — Náo. Já agora, está aqui... Mas vai aborrecer-se neste casaráo deserto. Filipe tornou a sorrir molemente. Sen-tia-se constrangido. Via-se bem que o velho estava arrependido de té-lo convi-dado. Porém, acabou por ficar, visto que 118 119 Pessanha insistia, outra vez. Seguiu atrás do criado, que abriu a porta de um quarto e desapareceu. Mudou a roupa que o en-charcava até aos ossos e voltou ao cor-redor só iluminado por uma janela ao fundo. O dono da casa devia estar ä espera. Parecia-lhe que tinha vindo da esquerda, e, como para esse lado via uma porta aberta, dirigiu-se para ai. Era urn saläo luxuoso. Náo estava ninguém. Re-posteiros de damasco vermelho e pelas paredes grandes retratos antigos, que deviam ser dos ascendentes daquele ultimo Pessanha. Uns tinham armaduras de guerreiros, outros já estavam vestidos com sedas de gala, e por fim via-se um galgo com um mogo fidalgo ao lado. Era uma evolugäo... Foi andando em volta, vagarosamente, e estava a uma janela a olhar o belo parque abandonado que ha-via nas traseiras da casa, quando sentiu que estava alguém atrás dele. Voltou-se e viu Pessanha sorrindo com uma expres-säo agressiva: — Como veio aqui ter ? — Ao acaso... Tern urn belo parque. — Ě o meu jardim zoológico. Sabe o que lá tenho?... — Náo... Raposas? — Lobos. Alguns exemplares admirá-veis. Antes de anoitecer iremos ve-los, quando o criado lhes for deitar de comer. — Mas assim náo pode passear pelo parque. Eu também gostava de ter lobos, mas náo lhes sacrificava um condado destes... — Coitados!... O senhor acha de mais e eles acham pouco. As feras devem estar presas, mas sentindo uma relativa sen-sagáo de liberdade... Senáo estraga-se--lhes o pélo... Filipe sentiu que estas ultimas frases tinham sido carregadas de um segundo sentido, mas náo compreendeu qual era. As feras... E o velho, com um sorriso irónico, agarrando-lhe no brago, já f amiliarmente, acrescentou: — Mas deixe lá os lobos e vamos vsr umas pequenas maravilhas desses artis-tas das idades de oiro, desses tempos em que valia a pena ter vivido. 120 121 — Preferia tér vivido nesse tempo? — Duvida ? —■ Eu náo preferia. Náo se pode fazer ideia... Talvez fosse a mesma coisa ou ainda pior do que hoje. Pessanha parou, olhou-o com surpresa e disse secamente: — Náo sabe o que diz. Filipe moveu os lábios num vago sor-riso de indiferenga, e continuaram a ca-minhar vagarosamente pelo corredor, ca-lados, na sombra, um atrás do outro. Ao fundo fazia um ángulo recto e continuava para outro lado como um subterráneo. Até que Pessanha parou, abriu uma porta e mandou-o entrar. Era um saláo atra-vancado de mesas, em cima das quais se amontoavam as mais diversas coisas: por-celanas da China, bronzes, arcabuzes, pratas, santos de pedra ou madeira, li-vros, instrumentos de musica, tapega-rias, roupagens, etc... Pelasparedes, gran-des tábuas pintadas. Pelo cháo, deixando carreiros estreitos para se passar, tudo quanto náo cabia sobre as mesas. O velho comegou por um lado a mos-trar pega por pega, e passaram todo o resto do dia naquele saláo. Ao anoitecer, o criado trouxe-lhes o jantar em grander bandejas, como se já fosse habitual. Sen-tados nas velhas cadeiras de coiro preto, á luz amarela de um candeeiro de petró-leo, ficaram depois calados, a fumar. Por fim Pessanha levantou-se, pegou no candeeiro e quebrou o siléncio: — Sáo horas. Filipe seguiu-o maquinalmente pelo corredor abaixo. O outro parou diante de uma porta que tinha luz e indicou-lha: — É aqui o seu quarto. Boa noite. E desapareceu. O hóspede entrou e viu o quarto bem arrumado, limpo, com uma vela acesa sobre a mesa-de-cabeceira. Abriu a janela. Depois, foi fechar a porta. Mas a chave náo deu volta. Tentou, esfor-gou-se inutilmente. Tinha o hábito de se fechar á chave, porque era sonámbulo e, quase sempře, quando de noite se levan-tava, o acto de desandar a lingueta acor-dava-o. Mas ali náo podia ser, porque aquela náo corria. Encostou uma cadeira á porta, deitou-se e adormeceu. De noite os lobos comegaram a uivar debaixo da janela. Acordou sobressaltado, acendeu a 122 123 vela e saltou forá da cama. Foi fechar a vidraga. Estava uma noite preta. Olhou em volta, o quarto que a luz da vela enchia de sombras inquietas. Foi pór mais uma cadeira atrás da porta e tornou a deitar--se. Pouco tempo depois levantou-se da cama, caminhou para a porta vagarosa-mente, tirou as cadeiras com todo o cui-dado e saiu. Naquela escuridáo fechada só se via uma frincha de luz ao fundo do corredor. Filipe caminhou para esse lado, e ia direito, hirto, sem tocar nas paredes. Mas quando chegou ao fim havia um de-grau e caiu pesadamente. Acordou e le-vantava-se do cháo quando viu abrir-se a porta da fresta de luz e aparecer uma ve-lha, que, ao encará-lo, tornou a fechá-la bruscamente. Filipe ia voltar para trás, quando alguém a reabriu e da claridade destacou-se uma silhueta de mulher. Náo lhe via a cara. Só ouviu a sua voz doce e triste: — Náo devia ter vindo. Agradego-lhe muito, mas receio que tenha feito um gesto inútil e perigoso. Filipe ouvia, atónito, aquela voz de um timbre quente e penetrante, sem com-preender. Balbuciou: — Pego-lhe que me perdoe. Sou um desastrado sonámbulo... Mas foi interrompido por um vulto que surgiu da sombra do corredor. Era o velho. Ela recuou para dentro do quarto e a bruxa f echou a porta apressadamente. Mas Pessanha bateu com a máo e disse numa voz gelada: — Dá-me a luz. A criada reabriu e Filipe, enquanto se explicava, viu-a ir buscar um candelabro de prata, com trés velas, que estava sobre um fogáo. — Desculpe, sou sonámbulo... Náo pude fechar á chave a porta do quarto. A única coisa que me f az acordar a tempo é ter de dar a volta á f echadura. Desculpe té-lo acordado. O velho respondeu-lhe num tom cor-tante: — Náo faz mal. Filipe suportava-lhe o olhar duro, com a sua habitual fleuma e indiferenga. Achava tudo aquilo muito estranho, mas nunca se interessava por mistérios. E no 124 125 / tom mais natural do mundo pediu que lhe ensinasse onde era o quarto. O velho, sem transigáo, mudou de atitude, sorrindo: — Assustou-me. Um estrondo destes, a esta hora, digo-lhe que é de pór os cabe-los em pé... — Assustei toda a gente. — E magoou-se ? — Náo. — Vá-se deitar e veja se dorme mais sossegado. E voltando-se comegou a caminhar pelo corredor fora, seguido por Filipe. Diante de uma porta aberta, parou. — Vá buscar a sua vela. Filipe entrou e trouxe o castigal, que acendeu numa das velas do candelabro. — Obrigado. — Bem, boa noite. Procurou qualquer coisa com que tran-car a porta. O melhor era encostar-lhe a cama. Poisou a vela e comegou a arrastar o pesado leito de pau-preto. Puxou-o até junto da porta, pondo-o de maneira que náo poderia ser aberta sem nova mano-bra a que náo resistiria o seu sonambu-lismo. Deitou-se tranquilo. Em toda a casa havia um grande siléncio. Tinha regressado a calma. Esteve muito tempo acordado até que o sono o levou. Mas a altas horas acordou com um barulho qualquer. Estava luz no corredor e alguém batia na porta. Ficou um instante imóvel e calado, ä espera. Bateram novamente com os nós dos dedos. — Quem é ? Uma voz de mulher, serena, que pare-cia estar ali por trás da porta e ao mesmo tempo longínqua, respondia: — Eu... Pode abrir?... — Vou já. Está aqui uma trapalha-da... A cama encostada a porta... E comegou a arrastá-la na escuridáo do quarto. De súbito abriu-se uma estreita fita de luz e aquela mulher entrou com o candelabro na mäo e as mesmas trés velas acesas. — Dá licenga ? Náo é a hora mais propria para visitar um hóspede, mas nem sempře se pode escolher... — Com certeza — respondeu Filipe cortěsmente, mas com uma vaga ironia, olhando aquela linda mulher que, envol-vida num roupäo de veludo verde, os 126 127 cabelos loiros em Jdesalinho, lne entrava pelo quarto com um á-vontade desconcer-tante. Contudo, nos gestos tinha qualquer coisa de brusco. Poisou a luz sobre uma mesa e sentou-se na borda da cama. Filipe, que já tinha pressentido o mis-tério daquela casa, queria dizer outra coisa que náo fosse a frase queúnicamente lhe ocorria e era convencional e estúpida — «Em que posso ser-lhe útil?» Mas náo pode evitá-la. — Em que posso ser-lhe přestavěl ? — Mais? — O mais que possa. — Já me foi o mais útil que podia ser. Depois da cena desta noite meu pai teve um ataque e morreu. — O senhor Pessanha ?! — Náo tenha receio. Nem tenha pena dele nem de mim. Ou ignora... ? E ficou suspensa, procurando adivi-nhar qualquer coisa na expressáo de Filipe. — Náo fago a menor ideia... — É curioso. Entáo já nem vale a pena fazé-la... O que supus de si!... Deve entáo parecer-lhe estranho que eu viesse aqui procurá-lo. Desculpe. Mas hoje náo posso estar sózinha, tenho medo desta casa, de tudo que se liga a ela e á minha vida pas-sada... O senhor foi um pouco de ar que entrou aqui... sem saber. Morria asfi-xiada há náo sei quantos anos. Por vezeš náo podia mais, mas náo tinha forgas — ou antes, os outros tinham mais... Esteve em si o anjo da libertagáo... — Mas está a dar-me um papel que náo ti ve, que náo sei como possa ter tido... — Que importa isso, agora?... Fez-se um siléncio pesado, em que ambos pareceram escutar a noite, en-quanto a luz hesitante das velas lhes vin-cava mais os tragos do rosto. Era dia claro quando ela se levantou e disse: —Adeus. Ainda náo lhe disse o meu nome: Teresa. O seu, já o ouvi. A luz das velas esvaía-se branca na claridade da antemanhá. — Até isto me dá a sensagáo de estar longe do mundo. Parece que os outros viveram e eu fiquei lá para trás... feita em pedra. — Vai-lhe saber bem, a vida. 128 LB53-9 129 — Julga possiyel, depois do que lhe contei ? Uma mulher, sem amor, nao vive. Ou supoe que algum homem pode amar--me? — Quer ouvir-me dizer o que bem sabe? — Obrigada. Na verdade este mo-mento e proprio para consolagoes... Mas olhe que tenho a alma e o corpo muito arranhados e na carne viva as caricias ainda sangram mais... Mas agradego-lhe. Ate logo. Estavam ja perto da porta e saiu sem pressa. Filipe acendeu mais um cigarro e estendeu-se em cima da cama. Procurava relacionar os factos e as ideias das ultimas horas ali passadas. Tinha sido um pesadelo. Se insistia em compreender, che-gava sempre a mesma conclusao: ir-se embora. Teresa vivia desde hoje sozinha com os criados. Nao era proprio ter um hospede em casa. Apesar de tudo. E foi dar inicio aos seus habitos matutinos: f azer a barba e lavar-se. Vestiu-se e come-gou a passear no quarto para f azer tempo. Mas era preferivel ir ate ao salao das colecgoes. Saiu e foi pelo corredor alem. Estava a porta aberta. Ia a entrar quando de subito reparou que era um quarto de dormir. Recuou. Porem, deu com os olhos no velho Pessanha, deitado numa cama de dossei de damasco amarelo, com as mäos postas sobre o peito e um ramo de flores aos pes. Ficou imövel a olha-lo, ate que resol-veu entrar e ir ve-lo mais de perto. Näo estava ninguem a velar o cadaver. Con-tudo, no chäo, aos pes da cama, via-se um xaile velho que era o sinal de que estivera ali alguem durante a noite. Com curiosi-dade, observou o morto. So agora repa-rava que ainda näo o tinha podido ver bem. So depois de morto. Estava ali sem defesa, ä merce de quem quisesse af irmar--se bem, sem ter de desviar os olhos do seu olhar insustentävel. E agora, que Filipe sabia tudo! Mas em väo sondava; sentia so diante dos olhos um tragico vazio: ja näo era um homem que ali estava. Na pele da face havia qualquer coisa de azulado. E näo tinha as pälpebras bem fechadas. Estavam entreabertas como se ainda es-preitasse. Sentiu um calafrio. Cheirava a naftalina da casaca. As velas estavam 130 131 quase no fini. Olhou o quarto, em volta, mais uma vez: näo, näo estava ninguém. Foi encostar-se ä janela, a examinar de longe: nada de anormal, um quarto como outro qualquer, um morto como outro qualquer. Neste momento ouviu passos. Entrou um velhote seguido por uma criada que trazia duas velas na mäo. O respeitável intruso fez uma venia a Filipe e caminhou para o cadaver, come-gando a examiná-lo. Era o médico. A criada mudava as velas. Filipe, discreta-mente, retirou-se. Seguia pelo corredor quando o criado lhe veio ao encontro, di-zendo que o «Senhor D. Jose» desejava falar-lhe. Acompanhou-o e foi ter a uma sala onde o dito senhor, um cavalheiro de voz e modos afectados, estendendo-lhe a mäo, o veio esperar ä porta: — Minha sobrinha já me disse... Mas que desagradável para si, vir assistir a um aborrecimento destes! Meu Deus! Meu pobre irmáo! Ve ja lá, cheio de saúde! Ninguém podia supor! (Falava com um ar efeminado e falso.) Foi para lá agora o Carlos, o nosso Joäo Semana, verificar o obito. I' . — Eu saía quando ele entrou no quarto. — Ah! Vossa Excelencia vinha de lá... Muito obrigado, muito obrigado... Mas sentemo-nos. Vossa Excelencia f urna? — Obrigado. — Entäo, se tolera este tabaco, f aga-j -me companhia. Sentou-se. E Filipe foi ouvindo o senhor D. José Pessanha, que, numa voz feminina, se espraiava num monólogo sem fim, a propósito do defunto, de si proprio, a propósito de tudo e a propósito de nada. Teria passado meia hora quando entrou o médico, com seu ar de velhinho tímido e honesto. D. José, quase num passo de baile, correu-lhe ao encon-I tro. — Entäo, doutor? Congestäo, näo é verdade? ou coragäo? Ai, somos urna pobre família de cardíacos!... O clínico falava em voz baixa, como se meditasse ainda: — Por um exame exterior nem sempre é fácil chegar a urna conclusäo. O feri-mento da cabega foi o que provocou a morte. Disso näo há dúvida... 132 133 — Mas foi posterior, doutor! Näo ve que foi posterior! Ou quer pör hipotese de crime? Näo, näo brinquemos, meu que-rido amigo. — Senhor D. Jose, eu näo pus essa hipötese. Ja me disseram que a filha e a criada estavam presentes. Mostraram-me o ferro da guarda do fogäo da sala, onde bateu com a cabega... Faz-se bem a re-constituigäo... A minha düvida estä no diagnostico... — Ora, que importäncia tern isso ? E uma simples formalidade legal... — Suponhamos que e so isso, senhor D. Jose!... E sentou-se na cadeira, junto da mesa, tirando do bolso um papel impresso, que desdobrou enquanto o outro ia dizendo com requintes de polidez: — Ah!, mas uma formalidade impor-tante, meu querido amigo, mas importan-tissima! Näo quis diminuir... O medico interrompeu com indife-renga: — Como se chamava seu irmäo ? — Joäo Carlos Alberto Pessanha de Albuquerque de Lemos e Cas... — Perdáo. Joáo Carlos... ( —...Alberto Pessanha de Albuquer- que... de Lemos e Castro... da Silva Pe- I reira... Coelho de Medonga... Espreitava por cima do ombro do velhote, náo fosse haver algum engano, e ia repetindo, agora mais devagar: Pe-reira... Coelho... de Mendonga. j —O nome dos pais? A mesma cena. O medico tinha tre-mores nas máos. n — A idade? — Ora vejamos... O tempo, que car-rasco!... Sessenta e... Sessenta e seis. — E dizem que faleceu pouco depois das trés horas, náo é verdade? — Sim, por volta das trés e meia. Claro que ninguém viu as horas... j D. José continuava a vigiar a escrita. Filipe tinha ido encostar-se á janela, a fumar. Olhava para o pátio e náo ouvia nada. Quase ao fundo do impresso o medico parou e disse-lhe, como se esperasse ajuda: — Deve ter sido síncope e trauma- 1 tismo... 134 135 — Sim. Estou Icerto disso... E o velho escreveu, pós a data e as-sinou. Levantando-se, entregou a certidáo a D. José. Este chamou Filipe. — Dé-me licenga que vá acompanhar o doutor. E saíram para o corredor. Pouco de-pois voltou. — Sáo horas de comer qualquer coisa. Venha. Almogaram sózinhos. No fim, Filipe pediu licenga para se retirar durante um momento, a fim de ir arranjar a mala, pois tinha necessidade de partir ainda nesse dia. E foi ao quarto. Eram duas horas da tarde. Sentou-se ao pé da janela a olhar o parque, aquele matagal selva-gem, as árvores velhas, as clareiras cheias de erva, troncos caídos e montes de fo-lhas, tudo de um bucolismo doce e aco-lhedor. Contudo, uma jaula de feras... — Dá licenga? Era D. José que entrava e punha as máos na cabega: — Ai, os pésames; as visitas! Náo posso!... Náo posso mais! Deixe-me es-conder ao pé de si. Lembrei-me há pouco de lhe contar uma história passada comigo no Siáo. Mas sente-se... Ou pre-fere estar de pé por desportismo? — E olhou Filipe com um olhar em que inter-rogava: «Será um atleta ?» Filipe sentou-se e o fidalgo continuou, mas agora num tom mais baixo, com a voz a apagar-se numa evocagáo saudosa... — Quando andei pelo Oriente, náo quis deixar de visitar Banguecoque. Todos os Portugueses que viajam, por lá devem passar. A epopeia portuguesa é ali viva, patente! Ora uma noite... E comegou, com larga cópia de porme-nores, uma banal aventura de amor. De-pois falou da India, falou do mundo todo. Até que um criado bateu na porta do quarto. — Entre. — Perguntam a Vossa Exceléncia se podem fechar o caixáo. — Podem. Eu vou lá. E voltou-se para Filipe: — Venha. Ouvia-se bater. Era na camara-ar-dente. D. José apressou o passo. Náo que- 136 137 ria perder nenhum pormenor. Da porta viu-se o quarto cheio de gente que com expressoes adaptadas e compungidas re-parava em tudo, buscando os misteriosos indicios... No ar pairava uma poeira fina que secava as narinas. Era da cal que tinham deitado dentro do caixáo. D. José murmurou ao ouvido de Filipe: — Eu é que tratei disto tudo. A pe-quena, coitadita, está sózinha! E a-ni-qui--la-da, como é natural... Filipe abanou a cabega que sim, «eu sei tudo»... De cada lado do caixáo saíam duas folhas de chumbo que o soldador estava a cortar ao talhe conveniente. De-pois era só ajustar e soldar. Dobrou a meia folha esquerda e tapou metade do velho fidalgo. Puxou a metade do outro lado e escondeu para sempre aquele fa-moso Pessanha. Nunca mais ninguém o veria. Tirou do bolso uma ferrugenta lamina de navalha de barba e comegou a raspar as juntas. Em seguida esfregou bem nas partes raspadas e brilhantes uma espécie de vela de estearina, para a solda pegar. Ao lado, sobre uma cadeira, o ma-garico aquecia á chama azul do álcool. Com o ar solené que a circunstáncia exi-gia, pegou-lhe e deu á bomba. Incendiou--se um fino jacto de gasolina, mas logo comegou a funcionar bem. E o ferro tor-nou-se em brasa. Parecia um pistoláo antigo, de carregar pela boca. Com aquela arma na máo direita, comegou a der-reter a vareta de solda que a máo esquerda aproximava da ponta do magarico. D. José, puxando Filipe para fora do quarto, disse-lhe: — O enterro ficou para esta hora, a fim de dar tempo a que viesse toda a gente. Alguns morám longe... Fez-lhe transtorno? — Náo, a mim náo. — Minha sobrinha quer falar-lhe. — Gostaria de apresentar-lhe as mi-nhas despedidas. Deram a volta á casa e foram ter a uma salinha do outro lado, onde Teresa se tinha refugiado. Estava sentada diante de uma velha papeleira e escrevia. Tinha a porta entreaberta, e quando ouviu pas-sos voltou-se. D. José empurrou Filipe para a frente. 138 139 — Vem despedir-se. Com licenga. Eu volto já. Filipe caminhou até junto dela, que o olhava fixamente. Tinha qualquer coisa de ansiedade e, ao mesmo tempo, de orgu-lho a sua expressäo inteligente e de apa-réncia calma. Ele sentiu uma vaga timi-dez, mas venceu-a para passar ao extremo oposto: — Despego-me de si com saudade. Parece-me que a conhego há muitos anos... — Conhece a minha vida toda... — Quero que conte comigo quando precisar de um amigo. — Porque se vai já hoje embora? Sob qualquer pretexto, fique para amanhá. — Näo seria natural. Näo mo pega. — Pelo contrario. Seria muito natural... E os olhares de ambos, fugindo, en-contraram-se de uma maneira que mos-trou térem compreendido o sentidó destas palavras. — Julgo que o nosso primeiro encon-tro näo será o ultimo. i. — Irei a Lisboa tratar dos vestidos de luto e espero vé-lo entäo. Qual é a sua morada? Ou o seu telefone? Filipe procurou um cartäo. — Contudo, näo posso af irmar-lhe que esteja em Lisboa, agora por estas sema-nas próximas. — Näo?... — Näo sei. — Se se lembrar de mim, mande-me dois ou trés livros que me interessem. E outra pergunta: näo acha que sou de um temperamento... pouco vulgar? De-pois do que aconteceu, escrevo a uma amiga, converso calmamente consigo... Queria dizer-lhe ainda... näo sei o que... Soaram os passinhos do velho no cor-redor. — O imbecil do tio José... — Adeus. — Espere, näo tenha pressa. Se nunca mais nos virmos... — Nunca mais, porque? — Por irmos cada um para seu lado. Sabemos lá para onde... — Gostava de me esquecer de si... Näo sei... 140 141 E olhou-a com surpresa como quem de repente visse urna coisa importante em que ainda näo tinha reparado. Ela pegou--lhe na mäo e ficou calada, a fitá-lo nos olhos, com um sorriso sereno. D. José chegava ä porta: — Só esperamos por si. Largou-lhe a mäo, sem dizer mais nada. Filipe regressou ao quarto, onde es-tava um criado ä espera. Pegou no sobre-tudo ainda éncharcado da chuvada da véspera, no chapéu, e saiu, seguindo o criado. Ao chegar ä porta da rua viu que o enterro já ia a sair o portäo e ficou admirado de ver tanta gente no acompa-nhamento. A urna ia na f rente, sobre uma carreta puxada ä mäo. A pegar nas borlas, seis venerandos senhores. Talvez pa-rentes. Filipe juntou-se ao fim do cortejo. Os acompanhantes comegaram a olhá-lo com curiosidade malcontida. E pouco adiante o séquito parou. Um hörnern lia um papel e dizia nomes em voz alta: Dr. Florindo de Almeida... Dr. Eusébio da Cunha... Todos iam vestidos de preto, com o chapéu numa das mäos e o guarda- -chuva na outra. Só ele ia de f ato cinzento e gravata äs riscas azuis. O cortejo parou outra vez. O mesmo homem lia o papel. Filipe näo dava atengäo. Éram nomes des-conhecidos. Mas vinham de boca em boca, pelo acompanhamento abaixo, surda-mente: Visconde da Poga... Visconde da Poga... Filipe olhava o céu: näo devia chover... Filipe da Maia... Filipe da Maia! — Que é ? — É o senhor. — Eu?... — Para ir äs borlas... Ficou hesitante. «Pegar äs borlas!» Caminhou maquinalmente. Houve um agi-tar de curiosidade. Já o vinham chamar. O gato-pingado meteu-lhe na mäo a boria macia e preta, que um cordäo de veludo ligava ao ataúde, e o séquito retomou a marcha arrastada, lenta, solené. Ao longe, na planície, viam-se aparecer as casitas brancas da vila. Lá estavam os altos ci-prestes do cemitério, ä espera. E Filipe marchava ao som rangido das rodas da carreta, com a boria de veludo apertada na mäo. Caminhava vago 142 143 e obcecado por uma ideia, pisando a mesma estráda por onde na véspera tinha vindo, sem saber para onde...