JoäoTORDO nasceu em Lisboa, em 1975. Em 2007, publicou o seu segun romance, Hotel Memoria (Quidnovi), que se seguiu a 0 livro dos homens sem luz (Rocco), de 2004. Formou-se em Filosofia na Universidade Nova e estud Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e Nova lorque, cidades onde viveu entre 1998 e 2004. Fez legendas para cinema e trabalhou como empregad« de mesa. Escreveu para, entre outros, 0 Independente, Sábado, Notícias Magazine, ELLE, icon e Egoísta. Trabalha como jornalista, tradutor e, maís recentemente, guionista. Venceu o Prémio Jovens Criadores, em 2001. Desde 1999, é o director da Associacäo dos Lobisomens Anónimos. JoäoTORDO Broadmoor St Mary's, 1943 Da minha condicäo social, esperanca ou saúde náo há muito a dizer. Depois ia morte do meu pai, herdei algum dinheiro que gastei ao jogo nos subúrbios ie Londres. O prazer durou urn fim-de-semana inteiro - quando terminou, iquei sem um centavo que me pudesse comprar um pedaco de páo. Nesse dia, :aminhei para o trabalho com o coracáo apertado de culpa e, viria a descobrir mais tarde, de uma artéria que iria deixar de bombear sangue através do meu :orpo cansado. Fui internado no hospital de St Mary's, em Janeiro de 1943, depois de jma paragem cardíaca. Era um hörnern novo, tinha trinta e seis anos, e caíra iesmaiado no meio da rua, agarrado ao peito como se tentasse perfurá-lo com os meus dedos crispados. Náo tenho memoria de quem me ajudou - recordo a comocäo em meu redor, o barulho, nada mais do que flashes de rostos iniden- 71 Joao TORDO tificáveis. Fui visto por um medico que me disse que deveria ficar internado pelo menos um més. Iriam fazer novos exames para eliminar outras possibili-dades mais graves. Falaram-me em insuficiéncia cardíaca e eu imaginei-me a morrer numa marquesa salpicada de sangue, tossindo tudo o que tinha dentro de mim que era podře, vil e inutil. Mas esta história náo é sobre mim. A única razáo porque largo tinta na — ■ página - um dever que sempre me foi penoso — é porque, durante esse periodo de internamento, conheci um homem (se é que assim lhe posso chamar) diferente de qualquer outra criatura que se me tivesse apresentado. Chegou num principio de noite em que eu estava meio adormecido, naquela letargia dos doentes, o jornal repousado na cadeira ao lado da cama. Tinha acabado de ler uma notícia sobre a reconquista de Tripoli pelos Aliados e, na minha imaginacáo febril, comecava a reconstruir momentos de gloria anglo-saxónica, entre nuvens de areia e palmeiras, o Oitavo Exército entrando triunfante na cidade com pesados tanques e exclamacóes de vitória, quando passos pesados i no corredor me despertaram. Trés enfermeiras e um medico entraram no meu quarto carregando-o numa camisa de forcas. Náo era diferente de qualquer um de nos naquele hospital — pálido, cabelo.Tino e despenteado, nariz anguloso, barba por fazer — mas, desde o primeiro segundo, percebi que tinha caracteristicas especiais. De bracos presos, movia-se como um animal, tentando libertar-se do colete, e os olhos possuíam uma estranha luminosidade e reviravam nas órbitas. Era evidente que ele nada conseguiria ver, e que estava a ter um ataque de alguma espécie. Largava grunhidos semelhantes aos de um animal feroz; e dos cantos da boca brotava uma espuma branca que lhe descia pelo queixo. Quando o deitaram na cama ao lado da minha, que tinha estado vaga durante os trés dias em que ali me encontrava, o homem pareceu sossegar. Ainda que o pescoco parecesse estar paralisado, e olhasse numa estranha direccáo (quase para trás de si próprio), o resto do corpo parecia ter perdido o frenesim anterior. Uma das enfermeiras sussurrou-me ao ouvido que ele sofria de raiva, mas que a injeccáo que tomara comecava a fazer efeito. .Reparei que a enfer-meira tinha um olhar intenso e bonito; e senti b seu perfume afastar-se quando 72 sairam do quarto. Alguns dias mais tarde, viria a saber o seu nome. Nessa noite, dormi aos sobressaltos. Tinha apenas um lencol e uma manta para me cobrir - a guerra tratara de assegurar que tudo escasseava em Ingla-terra, sobretudo as necessidades mais elementares, que diziam respeito a fome e ao frio — mas essa nao foi a principal razao. Deitado na semi-escuridao, com os barulhos distantes de outras partes do hospital e o vento que, sem cessar, fazia agitar as arvores do lado de fora da janela, permanecia alerta para os tnovimentos do outro. O meu novo companheiro de quarto parecia repousar - na hora da refeicao, uma das enfermeiras tinha-o injectado outra vez com um sedativo - mas, de quando em quando, um barulho de lencois fazia-me desviar o olhar amedrontado para a cama, que, ainda que distando dois passos da minha, parecia cada vez mais proxima a cada minuto que passava, como se ele ocupasse um espaco maior do que eu. Como se a sua presenca fosse, com o avancar da noite, preenchendo todos os vazios. Eventualmente, adormeci, mas acordei no dia seguinte com a sensacao de nao ter dormido de todo. Vi, durante a noite, os seus olhos abertos, luminosos como duas luas cheias, sem a certeza de ter sido ou nao um sonho. O homem manteve-se assim durante dois dias. Um medico do hospital de Broadmoor veio observa-lo e concluiu que sofria da psicose aguda inerente a raiva. Um dos sintomas era a paralisia do pescoco, e o espumar da boca, que parecia constante. Perguntei-lhe que animal o tinha mordido, e o medico respondeu que tinha sido um cao ou um lobo. Na segunda tarde, ouvi duas enfermeiras discutir a situacao no corredor, e percebi que o meu novo companheiro eraum soldado repatriado do norte de Africa, onde tinha sido ferido em combate no Egipto, na ofensiva Inglesa contra os Afrika Korps Alemaes. Uma delas regressou nessa mesma noite - era a mesma enfermeira que fa-lara comigo dias atras - e mudou os lencois da cama do soldado, que estavam cobertos de urina e suor. De uma maleta tirou uma seringa e um pequeno fras-co de morfina e injectou-lhe o braco. Ele pareceu despertar do seu torpor por um instante, para logo se entregar a outro, mais suave e mais doce. Perguntei a. enfermeira se podia dispensar alguma morfma, num atrevimento siibito, mas ela sabia que eu nao tinha dores que o justificassem. 73 Joäo TO R DO "O médico vem vé-lo amanhá," disse-me. "Se os exames correrem bem,. tern alta daqui a dois dias. Náo predsa de morfina." ;| "E ele predsa? Parece mais morto do que vivo." »| "Ele está no período de ressaca da doenca. Deve ter pesadelos horríveis eí alucinacóes. Só está imóvel porque o sedativo náo o deixa reagir. Quando ficarj melhor, vai estar irreconhecível." á "Como é que sabe isso?" '.j A enfermeira fechou a maleta e ergueu-se, alisando a bata com urna máo ,| "Quando foi encontrado, uivava como um lobo em agónia. Tinha atacaďní um rapaz novo em Moorgate, que, felizmente, conseguiu fugir. O pobre ra-| pazinho foi internado em estado de choque. A raiva, no período mais ľurioso, transfbrma homens em animais." j "Como os lobisomens." | "Como os lobisomens," concordou ela. "Se estivéssemos na Idade Média .-| ele séria julgado e queimado na fogueira." "E o rapaz vai ficar bem?" "Foi mordido. Está de quarentena, para evitar urna epidémia. Quando che-gou ao hospital, tinha uma ferida na perná do tamanho de um bife. O pedaco que Ihe falta foi mastigado e engolido por este homem." Engoli em seco. A enfermeira voltou a tapar o soldado com o lencol e pas-; sou-lhe uma máo pelo cabelo. "Como é que se chama?", perguntei. * "Renée," disse ela, antes de sair. "Se precisar, pergunte por mim." A alta náo chegou. O médico informou-me de que os primeiros exames tinham sido inconclusivos, e de que precisava de efectuar novas observacóes. Liguei para o trabalho e dei as notícias ao meu patráo, que reagiu com a in-diferenca habitual. Mais cedo ou mais tarde, a minha demissáo era inevitável. Isso, os meus constantes problemas de saúde e o meu vício no jogo viriam a ser, a minha ruina; mas isso faz parte de outra história, que irei contar um dia. Quando regressei ao quarto, depois dos exames da manhá, encontrei o soldado desperto. Estava penteado e barbeado - rruto da dedicacáo da enfermeiu 74 t 1 Broadmoor Renee, contou-me mais tarde - e lia o jornal deitado na cama. A camisa de for-cas desaparecera, e os olhos tinham perdido a estranha luminosidade. Detive--me a porta e olhei-o como se olhasse alguem pela primeira vez. Ele sorriu, um sorriso manchado por dentes que faltavam e por uma placa amarela, insidiosa, ganha porventura durante os anos em Africa. Perguntou-me o meu nome e disse-lho; respondeu que se chamava Ed e estendeu-me a mao em cumprimen-to. Enquanto lha apertava, reparei que o seu braco, descoberto pelo pijama demasiado curto, era completamente coberto de pelos grossos e emaranhados, que trepavam ate a fronteira entre as costas da mao e as falanges. "Estive inconsciente," disse ele, quando me sentei na cama. "O que e que eu perdi?" "Bom, deixa ver. Os alemaes voltaram a bombardear Inglaterra. Parece que atingiram uma escola e que morreram criancas. Por outro lado, os Aliados conquistaram Tripoli, e a rendicao em Estalinegrado pode estar eminente. E a enfermeira tern estado a racionar a morfina. Sao os destaques da semana." "So me recordo de Africa, amigo. Nao tenho memoria de aqui chegar. A enfermeira disse quatro dias, mas pareceu-me muito mais tempo. E como se tivesse morrido e tornado a nascer." "Nao sabes como voltaste a Inglaterra?" "Fui ferido. em combate," respondeu, erguendo a bata e mostrando os es-tilhacos na zona do abdomen. "Passei dias no hospital, no Egipto, e apanhei uma febre alta. Lembro-me de que nao havia medicos que chegassem para to-dos os feridos, e que fiquei dias deitado numa marquesa, coberto de poeira." "Parece que ha um surto de raiva, e tu foste mordido por um cao. Ou um lobo. Ninguem sabe ao certo. Devem ter-te posto no primeiro navio de regresso." Ed abandonou o sorriso. "E depois?" "Talvez tivesses fugido quando chegaste a Londres. Talvez a doenca te tivesse atacado durante a viagem." Ed ficou em silencio um momento. Depois perguntou: "E tu?" 75 —JoäO'TORDO "Sofro do coracáo," disse-lhe. "Insuficiéncia cardíaca. Os médicos adi nu que pode ser grave." "Por isso é que náo te incorporaram no exército?" "Sim," menti. "Foi por isso." "Náo perdeste nada. Mortos, deserto e pó, amigo. Foi tudo o que vi e tudi o que trouxe comigo. Mortos, deserto e pó. Só isso." Nessa noite, quando Ed já dormia, recriminei-me por o ter julgado mal/' Náo falámos muito o resto do dia — ao passo que ele recuperava, eu párech estar a piorar, e os sintomas alastravam, causando-me dores de cabeca violen-tas que me arremessavam ao sono - mas percebi que tinha uma personalida-de docil. Estava marcado pela guerra, e o seu corpo debilitado mostrava-o. mas, ao contrario da estranha criatura que tinha chegado há poucos dias, o hörnern que surgira após a doenca era um companheiro de quarto agradável e delicado. Nos dias que se seguiram, falámos a espacos, entre os exames de rotina, as horas de sono e as visitas constantes das enfermeiras. A enfermeira Reneé parecia ter ganho um afecto especial por ele, e visitava-o sempře que podia, sentando-se ä. beira da sua cama e fazendo-lhe todo o género de perguntas sobre o seu estado. Cedqpercebi que os dois se sentiam enamorados. Ed devia ser um pouco mais novo do que eu, e Renée náo teria mais do que vinte e poucos anos; e é por demais conhecida a influéncia romántica que tém, em certas mulheres, os homens desprotegidos. Ed contou-me histórias da guerra que eu conseguira a todo o custo evitar. Uma noite ficámos a conversar até tarde e na escuridáo do quarto - era uma noite mais silenciosa do que as outras — consegui imaginär perante mim os cenários aterrorizantes que me descrevia, de tanques avancando pelas dunas, avióes com bocas flamejantes descendo a pique e largando bombas assassinas, as tropas de Rommel, de olhos possuidos por um demónio na forma de um virus, avancando sem piedade, destrocando, amputando, ceifando tudo á sua passagem. Foi nessa noite que Ed falou sobre o Cairo. "Náo te contei no outro dia," comecou baixinho, "porque näo te que-ria assustar." Senti o medo na sua voz e abri os olhos. Estava muito escuro. 76 TORDO" "Isto aconteceu ha algum tempo. Talvez meses. Foi quando o batalhao esfjj ve de licenca durante uns dias. A major parte dos homens ficou no deserw mas, como estavamos perto do Cairo, decidi apanhar boleia num jipe que ffl a cidade. Nunca tinha estado no Cairo. Digo-te, amigo, e um lugar de geiui louca. Passei a tarde toda a entrar e sair de lojas e nas ruas imundas, olhandi para os homens magros e escuros que pedinchavam, que me empurravanrj: que corriam em todas as direccoes. Depots de meses no deserto, pareciam-mi alienigenas. So tinha de me apresentar no quartel dos Aliados a noite, e achel que poderia parar num bar para beber alguma coisa. La, conheci um homenij que me ofereceu opio. Fumamos numa sala das traseiras, sentados no channel perdi a nocao do tempo. Quando sai do bar ja estava escuro, e os homens que enchiam as ruas tinham desaparecido. Caminhei sem direccio durante algum tempo. Estava perdido, mas nao me importava; sabes como e... Devo ter en-trado por ruas secundarias, nao me lembro bem, porque quando dei por mim j estava numa especie de Jabirinto de corredores apertados. Mai conseguia ver as = estrelas no ceu. Foi quando percebi que estava a ser seguido. Os meus passos \ eram imitados por outros passos, cada vez mais proximos. So que nao eram os .■ passos de um homem, mas de uma criatura em quatro patas. Pensei que fosse um cao vadio e derive-me a. espera numa rua sem saida. Quando vi o animal, julguei que tinha enlouquecido. So lhe distinguia a sombra, iluminado pela lua, mas se era um cao, era o maior cao que eu alguma vez tinha visto. Era do ; tamanho de um homem, e os olhos...os olhos brilhavam na noite. Bfilhavam como se tivessem luz propria. Aquilo aproximou-se, passo a passo, de mim, a rosnar baixinho, e nessa altura devo ter desmaiado, porque despertei algum tempo depois no mesmo lugar, sozinho e coberto de sangue. Parte do sangue era meu, porque o cao tinha-me mordido no ombro, mas julgo que a maioria era dele. Talvez estivesse ferido. Arrastei-me pelas ruas durante muito tempo, ate encontrar um homem que me ajudou e me levou ao quartel dosAliados. Disse-lhes que tinha sido atacado por um cao raivoso, mas naquele lugar nao existiam tratamentos nem vacinas. No dia seguinte, fui levado outra vez para o deserto." Ed calou-se por um momento. Depois, sentf a sua hesitacao antes de fazer 78 . - yjŕ - Broadmoor i pergunta. '4 "Estive com raiva, náo foi, amigo? Apanhei a doenca daquele animal." "Acho que sim," disse-lhe. A voz saiu-me súbita e aguda. A conversa termi-í-jjQU ai, mas só adormeci muito mais tarde. As dores náo pararam de aumentar, e transfbrmaram-se num mal-estar •permanente, que me provocava nauseas no corpo inteiro. As enfermeiras co-mecaram a injectar-me doses substanciais de morfina, e a minha memória das semanas que se seguiram é difusa, marcada por períodos esporádicos de luci-?dez. Ed teve alta pouco depois, e eu fiquei até ao principio de Maio, quando os medicos disseram nao haver solucáo para o meu problema e me deixaram ir, recomendando-me repouso. Poderia náo sobreviver até ao final do Veráo; mas, se evitasse os choques violentos da vida, náo haveria razáo para que o meu coracáo desistisse táo cedo de bombear sangue. Náo voltei a pensar no meu antigo companheiro de quarto durante quase um ano, até uma tarde em que, folheando o The Times, ii uma noticia sobre um suposto ataque de um lobó a uma família em Chalk Farm. As autorida-des diziam tratar-se de uma ocorréncia extraordinária, um animal foragido do zoológico, que teria sido alvejado antes de fugir e morrido nos bosques; e eu quis acreditar que assim era, embora a sombra daquele tempo em St Mary's pairasse sobre mim. Estava a viver do subsídio de desemprego, e a minha rotina consistia em passar pela farmácia todas as semanas e recolher a minha dose de opiáceos. Náo necessitava deles — tinha-me acostumado as dores — mas adquirira um hábito ä morfina. De regresso da farmácia, nesse mesmo dia, ao aproximar-me de casa, vi um corpo grande caído ä porta do meu prédio, as roupas em farrapos. Era Ed, e encontrava-se inconsciente. Com esforco, carreguei-o para o meu apartamen-to no terceiro andar e deitei-o na cama. Tinha arranhóes e feridas por todo o corpo, e trés buracos de bala, dois na perná e um no peito. No bolso das calcas, descobri a minha morada, arrancada de uma lista telefónica. "Calma, companheiro," disse-lhe, enquanto lhe despia a camisa ensan-guentada, "vamos já tratar dessas dores." - . 79 Joao TORDO Dei-lhe uma injeccäo de morfina e olhei para as suas feridas: estavam infec-tadas e cheias de pus. Quando o voltei sobre si proprio para lhe ver as costas, reparei que, tal como os bracos, estavam cobertas de pelos negros. Sentei-me numa cadeira ao lado da cama e ponderei o que fazer. Se näo trouxesse ajuda, Ed morreria em pouco tempo; se a trouxesse, poderia estar a prolongar a vida de um assassino demente. Nessa noite, fui ate St Mary's e esperei que a enfermeira Renee terminasse o turno. No principio, assustou-se com a minha presenca, mas quando lhe falei de Ed acalmou-se e acompanhou-me. Na viagem de täxi ate minha casa, relembrei como era bonita e pensei que, numa outra vida, poderia ter ama-do uma mulher assim. Quando chegämos, ao ver o soldado na minha cama naquele estado moribundo, ela pareceu esquecer-se de tudo e, durante horas, tratou dele com penicilina, gazes e unguentos. Insistiu para o levarmos ao hospital, mas eu recusei. Näo sei porque o fiz; mas a ideia de libertär outra vez aquele homem para o mundo enchia-me de terror. Renee chorou e suplicou, mas eu mantive-me firme. Ja muito tarde, ergueu-se e disse que ele iria sobre-viver aquela noite. Ao sair, olhou para a morfina sobre a mesa da sala. "Isto e o pior que pode acontecer a urn homem," disse, segurando um dos frascos. "Prometa-me que näo fala disto a ninguem." Ela passou por mim, em direccäo ä porta. "Regresso amanhä para ver como ele estä." ä Renee voltou, dia apos dia, mas Ed näo ficou melhor. Parecia morto sem o estar - o seu coracäo batia, mas o resto do corpo era uma carne podre e imövel, a pele cinzenta e o pescoco paralisado. Eu vivi esse tempo em panico constante. No dia seguinte a te-lo encontrado, o The Times publicara fotogra-fias da familia que fora atacada. As criancas tinham sobrevivido sem grandes mazelas, mas a mäe tinha perdido metade do rosto, arrancado ä dentada por urn animal. Um homem näo seria capaz daquilo. Durante as semanas que Ed esteve em minha casa, esperei que a qualquer momento se erguesse para aca-bar com a minha vida; o unico consolo que tinha'era a droga que o mantinha 80 adormecido. Quase um més depois, a lua cheia regressou. Durante esse dia, o corpo de Ed pareceu inchar, e as pilosidades tinham-se alastrado; as veias tornaram-se mais grossas e protuberantes. Eu náo era urn homem supersticioso, mas disse a Renée que, nessa ňoite, deveríamos trancá-lo no quarto e manter-nos alerta. Assim o fizemos, selando a porta com uma grossa trave de madeira, e sentá-mo-nos na mesa da sala ä espera que as horas passassem. Eu sentia o coracäo acelerado, apesar da morfina, e a antiga nausea tinha regressado. A enfermeira permanecia expectante, muito quieta e silenciosa. Pouco após a meia-noite, alguma coisa despertou lá dentro. Primeiro ouvi-ram-se barulhos dispersos, mas depois passos pesados comecaram a ecoar pela casa. Näo eram passos humanos, nem o era a voz — o rugido — que se ouvia através da porta. Erguemo-nos das cadeiras, assustados, e avancámos devagar até ä porta, quando um estrondo enorme quase nos mätou de sústo. O que quer que estivesse do outro lado fazia investidas desesperadas contra a madeira, rugindo, uivando e mordendo, desvairado por se libertär daquela prisäo. Um homem teria desfalecido, após algumas tentativas; mas, pelo peso que se adivinhava, aquilo era um monstro enorme e ensandecido. Em pánico, pensei em fugir e chamar a polícia, mas Renée pediu-me que aguardasse, segurando-me o braco. No instante em que ela me tocou - e que a porta congou a ceder, a madeira despedacada pela forca dos golpes — tive a mesma sensacäo de descida em espiral que tivera naquele Inverno de 1943. Agarrei-me ao peito e caí de joelhos, em busca de ar, sentindo que o coracäo iria saltar cá para fora a qualquer segundo. Antes de perder a consciéncia, vi Renée avatar para a porta e erguer a trave de madeira, mas, antes que aquela coisa pudesse sair, éu já tombara desmaiado no cháo. Anos passados, a minha condicáo social é pior, tenho menos saúde (tive trés ataques cardiacos em cinco anos) e nenhuma esperanca. Passei algum tempo encarcerado, até que um advogado me conseguiu iiibar de um crime que náo cometi. Quando a polícia entrou no meu apartamento naquela noite, encontrou uma mulher morta e desfigurada no chäo, e um homem ao seu 81 o TORDO Broadmoor lado desesperado por uma golfada de ar, o peito prestes a explodir, coberto de j sangue que náo era seu. Fui preso por falta de outro suspeito que justificasse aquele crime. Ainda hoje penso nele, quando o relógio bate as doze. Todas as noites, nos ? meus sonhos, os livros voam através da sala, as luzes apagam-se e uma mulher de branco visita-me, culpando-me da sua morte. Atrás dela, vejo um homem de olhos luminosos, que sei andar ä solta pela cidade. Náo abro a porta de j casa a ninguém. Evito sair, a menos que seja imperioso, e nunca — mas nunca - compro o jornal. Tenho-me tornado mais fechado; acho que é a morte a ľ' chamar por mim. Vejo o meu corpo, um dia, a flutuar como folhas ao vento, querendo respirar e náo conseguindo. A minha máo transŕbrma-se numa gar-ra que me rasga o peito e me arranca o coracáo, exibindo-o perante os meus olhos, e depois o atira fora como uma relíquia que já ninguém quer. 82 83