Em Semnbro c Outros Coutos Lm"r,a G&ia Gnmes reúne alguns cantos inéditos e outros priblieades ao longo dos Ultimos anos. Ö ii«ro cstá divídido emdoas partes, serido a primeira consrituida por um conjunto de oito contos Biais recentes dc atmosféra e temática semcŕrirmtes, em torno da eserita e da sua possibilidade, da memoria e dos sciis fantasma1;. A segunda parte do Itvro reúne textos mais curtos e de cariz niais humoristico. ■-• °^ ^^ry & ..... Prefácio de Eduardo Louren^o 9 Tublicaffics Dom Quixote ndidcio Ards Rua Ivune Silva, n.a 6 - 2° 1050-124 Lisboa ■ Portugal Rcservados todos us direitos de aeordo cum a legisla^ao em vigur © 2007, Luisa Costa Gomes e Pnblicae5es Dom Quixote Capa: Atelier Henrique Cayatte sobre foto de Luisa Costa Gomes Este Hvro tbi composto em RongeL, fonie tipograiica desenhada por Mario Feliciano Revisao: Eda Lyra 1:' edi^ao: Setcmbro dc 2007 Paginacan: Segundo Capimlo Depositolegaln.1 264956/07 Impressio c acabarncnto: Guide - Artes Gnilfcas ISBN: 978-972-20-3401-2 to w.dq ubiote.pt i Seteiubro Setcmbro 17 A boa mäe 33 Casa assombrada 49 Fantasma 67 O amante natural 75 Doubkface 83 Trés meninas 89 Calccio 95 Solo & The conga line 101 II Outros con tos Por extenso 109 Vítímas de uma História muko longa e imbricada 113 Näo Ir e Outras Formas de chegar ao Porto 121 Felicidade 129 Que. 135 Eca de Queirós: um epísódio menos conhecido da sua intimidade j 43 Memoria de Silvana 149 No barril 155 Came e ossos 1Ó3 Cristo em casa de Manuel Assuncáo & Família 167 Em Telnia, o Infinito 169 _P —ů—— Prefácio IDOS DE SETEMBRO Näo tem muito sentido - ou nenhum - acompanhar textos de uma das mais originais escritoras portuguesas, de uma qualquer glosa com pretensóes a inštancia crítica. Já terá algum fazer-Ihe companhia como seu amigo e velho leitor desde o tempo em que o primeiro livro que li dela - .4 Vida de Ramón - a colocou, para mim, num sítio aparte, insólito, sobretudo pela singular mistura que nele havia de místi ca e logica. Pouca gcnte, entre nós, saberia entäo quern era o famoso Raimundo Lúlio, o homem das artes mnemónico-mágicas que, äforca de silogismos, queria converter infiéis e penctrar nos arcanos do entendimento humano como um Leibniz medieval. Desse romancsco personagem fez Luisa Costa Gomcs uma evocacáo realista e fantástica, a meio caminho entre o romance de cavalaria e a ficyäo científica do nosso pre-sente fascinado por mundos virtuais. A sua obra, já reconhecida, antes deste romance, por um pré-mio prestigiado, confirmaria, com uma diserecáo rara para a sentimental alma lusíada. o seu gosto, a sua paixäo, fria e luminosa, passe o paradoxo, por temas e mistérios, para ela e nós, seus lei-tores, «claros como uma fotografia*. Or Prefácio ťrcfácio Na nossa literatura dos Ultimos vinte anos haverá poucos tex-tos mais vertiginosamente labirínticos, diverridos e irónicos até ä provocacäo, que os da autora de Cnntos outra Vez. Säo textos dig-nos dos Monty Python ou de Woody Allen. Basta lembrarmo-nos de «Uma empresa espiritual», soberba farsa burlesca do nosso mundo ocidental, religiosamente desertificado , aberto ás paródia? mais sacrflegas - rendosas - que lhe possam dar a ilusäo de conhecer vclhos éxtases sem ressurreicäo possível. Ou de ter presente o näo menos antológico conto «A Janela da despensa como argumento moral», história de um menino bulimico, Luisinho, para quem o mundo tem a consisténcia de um bolo que ele devora e por quem é devorado, alegória cruel do nosso mundo de ricos de tudo e de tudo esfomeados. Avocacäo satíriea e paródica de Luisa Costa Gomes, as pará-bolas-contos ou os meros textos de apatencia circunstancial que lhe däo corpo, säo uma auténtica novidade na ficcäo portuguesa. Näo estávamos liabituados a uma imaginaeäo ao mesmo tempo täo desvairada, imprevisivel, no sentido proprio, insólita, c táo controlada, como evocacäo que é de faits divers triviais que num segundo conhccem uma vertigem que em seguida deriva, impá-vida, e nós com ela, para abismos ou conclusöes onde o sentido do mundo naufraga e por assim dizer se anula e resplandece. No seu livro Setembro encontramos a mesma autora, de olhar implacável, incomplacente com a cena do mundo, desmistifica-dora, em cada linha, da visáo canónica do «conto» como virtual-mente transfigurador da vida. As fadas, como a Musa, de Luisa Cost3 Gomes, näo säo, precisamentc, as da Condessa de Ségur, mau grado as correccöes que a leitura psicanalitica lhe acrescen-tou. O seu mundo é o nosso e o ainda em gestacáo, pós-freudiano e pós-modernista, um mundo já fora de si mesmo em que tudo é duplo e ncssa duplicidade os nossos fantasmas conduzcm o baile. Näo vém de vidas extintas mas de um presente em que de repente uma cena do passado, como no conto que dá o título ao livro, destrói ou revela o auténtico sentido de um casal outrora feliz, numa Roma de fantasmas banalizados, onde Maximo escritor em «paane» de criacáo, como num sonho, se revestiu da voz de iMarlon Brandon recitando Shakespeare. Nesses idos de Setembro - mas agora trinta anos depois - Maximo, «atado á canela da mulher (narradora) como uma grilheta», numa cidade do Norte, espaco de predileecáo da autora - que em Contos Outra Vez já evocara magistralmentc a Islándia - náo será assassinado como César. Escreve á mulher cartas que ela deixa de lado. Náo quer viver, mas dormir. Para ele «um bom livro só pode ser aquele que faz dormir*. E por rim: «0 livro perfeito é o livro que ninguém lé.» Este sarcasmo triste é menos o da personagem Maximo, fazendo turismo na Suécia, que o da autora-nairadora e da sua devasta-dora ironia. K fácil entrar no mundo de Luisa CostaGomes. Mas é uma ťaci-lidade enganadora, como a do dorso do tigre. Como em muitos dos seus contos, perdemos de repente pé e nao podemos espe-rar que seja ela a Ariana do seu fantástico e luminoso labirinto. De todos os contos de Setembro talvez o mais classicamente enig-mático e reveiador dos «fantasmas» e obsessóes de Luisa Costa Gomes seja Casa Assombrada. Comcca de uma maneira quase naturalists, na linhagem de Maupassant, invocando uma Lisboa cinzenta, um pouco sórdida, de destinos á deriva on sem destino, mas em breve a casa da narradora se convcrte em casa assombrada pela presenca invisivel maspalpável dos que antes a tinham habitado deixando nela, se nao o cheiro, a sombra dos desascres passados ou recentes. Como todas as casas antigas é um cemité-tio vivo e é a invasáo dessa moite congelada que pouco a pouco assombra os náufragos que um dia a escolheram como morada de passagem. «Mudei-me a meio de Julho, pintei o quarto que fora no tempo deles a sala de jantar e instalei os parcos haveres. Mas 10 i] I Prefácio lev chegado assim a uma casa onde a vida de outros se intcrrom-pera enquanto naminha ressoava ain da o eco de umavida anterior, esquinava as coisas todas nimi desajustamento miiído, como o de duas rodas dentadas feitas dc propósito para náo se entenderem. (...) Era difieil que a casa náo ficasse manchada por urn mal-estar que nela se instilou como um cheiro.» Esta estranha heranca de desastres cria uma espécie de comunidade de gente assombrada. Tudo adquire uma dimensäo, ao mesmo tempo intrigante e banalmente policial quando o pequeno grupo recebe, destinada a um dos hóspedes, a ameaca de um chantagisra, acompanhada dc urn prospecto do ßanco Ambrosiano. O chantagista ignora que a vitima virtual está no hospital, gravemente enfermo. «Pouco há de mais assustador que um criminoso incompetente», comenta a narradora. Com a estranha referéncia ao Banco Ambrosiano se antecipa uma daquclas derrapagens abruptas täo tipicas das ficcöes sempře oniricas no seu realismo, de Luisa Costa Gomes. E na verdade, enquanto a narradora, mais que consciente da rea-lidade já toda ficcional do caso que a assombra, compreende que náo acabará o conto que tem nas mäos no seu proprio cenário, abre-se uma outra ficeáo, na verdade um auténtico flash-back que introduz a história mais do que rocambolesca de um tal capi-tžo Godofreddo Bolloni, que em tempos estivera em Lisboa, ä caca de um activista das Brigadas Vermelhas. Será ele o Columbo desta extravagante aventura onde a autora-narradora, como uma Agatha Christie improvisada, se divertirá menos a elucidar urn mistério que a gozar o prazer de o tornar credível. Mais do que o prazer dos faits divers revisitados que motivam a sua ficcäo, o mais inovador nela é essa dupla viagem do seu imaginário em torno dos fantasmas ou obsessöes que o povoam - sonhos, nitidos como filmes - e a consciéncia ficcional com que säo escritos. Como se fossem copiados e a propria imprcvi-sibilidadc deles anunciada ou colhida no seu voo deslumbrante. Preiacio Talvez porque na sua escrita singular, guiando-a, sobrepondo-se ao delmo quase geometrico do seu imaginario, esteja presente como raramente em prosa portuguesa. a ave de Arena, de que' Lmsa Costa Gomes e tao devota cultora. Na sua companhia qual-quer noite se volve dia. Tao enigmatico como ela. Lisboa, 4 de Setembro de 2007 Eduardo Lourenco -jer&OéMJJ•/7s' eHj_ If- L 5)j MC I I l| t .t •4j A co o SETEMBRO Ndo consigo escrever, comecava alonga e irritada carta de Maximo, sento-me aqui á janela a olhar lápara fora durante o dia e faco oposstvel porvat rodear de tudo o que épreciso, mas nao consigo escrever. Seguiam-^se dez páginas de memórias, ideias para ensaios, recriminacóes, descricóes de sonhos, comecos de histórias, sinopses. Mandara--me essa primeira carta nurn envelope ao quarto, que ficava no andar de baixo. A miúda entregou-ma de fugida, esquivando o olhar, ofendida por aquela extravagáncia. Maximo exigira á che-gada o quarto do sótao, esconso, austero, todo branco, com tuna grande janela sobre uma visao de bétulas prateadas - e anunciara que ia finalmente tentar escrever. Eu preparei-me num instante, pela longa forca do hábito, para mais uma viagem com um peso raorto. Se nos encontrávamos na sala para almocar, abria-se o menos possível, comendo quase sem mexer os maxilares. Era como se estivéssemos ambos a dieta líquida. Mas nas cartas falava pelos cotovelos. Dizia ter nascido de pais analíticos, que se esere-viam dos respectivos eseritórios nas extremidades opostas do eorredor. Nao significa que náo trocassem amenidades na sala P /nn rryrr/ & —j> Jy~vp^ — Luisa Costa Gomes Setembro comum, cujas intencöes e múltiplos subentendidos discuciam depois em cartas que mais pareciam comunicacöes em congres-sos ou mernorandos, cheias de especulacöes que se apoiavam na autoridade de citacöes das areas respectivas: ele, medico, mas de alma, pintor, näo se coibindo de apresentar gráficos e ilustracöes; ela, poecisa, mas com imaginaeäo de matemática. Eu é que näo podia deixar de imaginär o que seria para Maximo, nesse xncs de Agosto, aquele rodear-se de «tudo o que era preciso». Mas o piano estava tracado e segui o piano. A casa ficava longe da cidade, havia autocarro ä porta c ia directo ao centro, onde me largava no meio de um parque sombrio. Nos dois primeiros dias o cíima húmido e abafado, a luz parda, igual e sem profun-didade, a solidäo das mas de Estocolmo ataram-me o Maximo ä canela como uma grilheta. Sentia um vazio pesadíssimo. A carta do terceiro dia, que eu lera já contrafeita e ä pressa, referia-se ao que eu imaginara ser a nossa felicidade com uma tal frieza vínga-tiva, um taí ressentimento. que me sentou uma bola de ferro no peito e me tirou até, por umas horas, a vontade de ver. No final de onze páginas cerradas de azedas confissóes, Maximo incluía uma lišta de tudo aquilo de que dizia ter desistido por uma espécie de obrigacáo moral que a minha presenca Ihc impusera. Da lista constava o sacrifício de «nunca ver o pör do Sol». Por fim, quei-xava-se da řnsónia que o calor induzia, do cantar de um pássaro madrugador e acusava-me de o ter arrastado sob falsos pretextos para a estufa de um falso Norte, sabendo eu muito bem que ele só conseguia escrever nas temperaturas relativas e amenas de Setembro. Apanhei o barco para o Palácio Real. O Sol descobriu-se, queimava, e saímos para o mar. A paisagem de mato e musgos que enfeitava as costas que navegávamos converteu-se a pouco e pouco em lloresta densa, de uma beleza monótona, que um ou outro passageiro filmava de pé, oscílando na corrente. —p Maximo eserevia, com certeza, lá no sótáo, os scus remoques. Mas foi ficando para trás, e assim me encontrei diante de um palá-cio pesado e rebuscado que olhava, perplexo, um lago sem vida, c atravessei um grupo de alemáes róseos que esperavam o seu guia. Determinei ali mesmo que erapreciso náo lerpor enquanto mais cartas de Maximo, e comecei a subir as escadas de mármore claro que sugeriam o avancar sobre a casca de um caracol, táo largo era o degrau, táo suave a ascensäo, täo deliciosamente curva; nisto fui involuntariamente seguida pelo grupo de alemáes, que deve ter imaginado, ä minha resolueäo e despacho, ser eu a guia enviada pela agéncia de viagens. A cireunstáncia era propícia, o sinal evidente c afiz-me de imediato ao papel. Eram sobretudo casais de velhos sandalizados, desgovernados e sem folhetos. Num relance aos tectos pintados de frescos com cenas a atirar para o mitoló-gico, apresentei-lhes a minha falsa identidade e pus-me a contar histórias num inglcs turístico. Enquanto invento, neste hábito adquirido de ter duas vidas e duas medidas, aparece-me, e sin-gularmente nítido, na memoria, aquele louro guia australiano de óculos escuros na testa, que nos mostrara, liá uns trinta anos, o forum de Roma. Na manhä seguinte faltei ä promessa e li a carta fresca que tínha na mesa do quarto. Esperava que houvesse alguma revisáo, um pensamento mais compassivo, um recuo nas acusacóes desc3-bidas que me fazia, mas nesse dia Maximo desviava-sc para abor-dar a situaeäo dos pais dele, cuja forma peculiar de comunicaeäo responsabilizava pelos fracassos da sua propria vida. Eu tínha difi-euldadc em ajustar a imagem do casal que eu conhecera alegre e videirinho - perenemente petiscando e cozinhando, projectando excursöes em vista do petisco e coleccionando grandes livros de imagens onde ele abundava - á ideia culta c perversa desses dois artistas epistolares que Maximo queria agora recriar. Percebi que ele estava já a caminhar para a fiecäo autobiográfica, mas como 19 Luisa Costa Gomes SeLembro é normalmente urn processo demorado, optei por ler apenas a décima primcira carta que me enviasse. Compreendi, enquanto roubava nurn quiosque, trémula, urn postal com uma reprodueäo do museu nacionál, que teria primeiro de lhe fazer alguns discutsos. E nessa noite, depois de dispensar a rapariga que nos servira muda e fugidia a mesma sopa que andávamos a comer há tres dias, fechei as janelas todas e senrei-me ä mesa dc jogo. Considerci acender a lareira, porque sempre reconheci o poder indutivo de um cenário adequado, mas era tarde já e as cartas estavam lancadas. Quando comecei a falar, Maximo, na surpresa, ia literalmente baqueando abaixo da cadeira. Por dentro só notei que, com a idade, a voz se me ia agravando. Depois aproximou-se c sentou -se a minha frente, com os olhos bcm fixos no pano de feltro verde - o que m c permitiu saltar o exórdio e entrar directamente no assunto. Eu fazia uma paciéncia. O mcu primeiro discurso abordava a questáo do que constitui e näo constitui um terna. Enquanto expunha vistas liberais sobre literatura, e carteava, e olhava de vez em quando para a lareira apagada, a bocarra negra de fuligem e muito uso - um canal aberto para outros mundos superiores e inferiores - tinha ainda preso na memoria o guia australiano de Roma. Via-o distintarnentc contra um lundo de ruínas ferruginosas, de fragmentos, pedacos de tcmplos ao acaso, de colunas, todo ele vermelho do sol, muito louro, o ar másculo imaculado de homosscxual no exílio, como uma divindadc kiLsch, vestido de branco dos pés ä cabeca, e com aquela ideia peregrina dos óculos escuros pregados ao meio da testa. Nessa altura eu andava sempre cansada e tinha convencido Maximo a contratarmos uma rapariga para tomar conta do bebé. Ele resistiu, porque resistia sempre - para depois poder ter a certeza de que fazíamos apenas o que eu queria - mas as cir-eunstáncias enviaram-nos uma estudante de Belas Artes, amiga de amigos, muito recomendada, que pagou a viagem com baby sitting. Nao consigo lembrar-me nem da cara, nem do nomc dela. A ideia que agora tenho é a de uma jovem mořena, pequena, clástica, mas que, por alguma razáo que nao esclareco, tinha o hábito de arrastar os pés, o que lhe gastava enormemente as solas dos sapatos no calcanhar. Paráda, parecia um arbusto preso por um fio que o vento inclinava para tras. Dcve ter havido nela uma aureola de desprendimento que me soltou a desconfianca. O certo é que me convenci, logo á chegada a Roma, de que ela me perderia a erianca na primeira oportunidade, largada nal-gum café ou a porta de um museu, e passei a interpor-me sempre, cada vez mais engenhosamente, entre ela e o bebé, assim que lhe supunha intencáo de se aproximar. A cidade, mesmo em Junho, pareceu-me suspeita. Os homens olhavam todos para nós, pen-savam coisas. Hana a excitacáo de um calor precoce, uma poalha de polen, ventos repentinos e alteracóes na temperatura que me traziam espirrativa e quase atbnica. Maximo andava que nem um cuco. Cantava na rua. Levava o filho ás costas, mas náo me parecia que pensasse muito nisso. Nada lhe pesava. Acabara um livro e estava pronto para outro. Para mim, a realidade tomara a forma da ameaca constantc, em virtude da inocčncia, da desprotcecáo da erianca. Da poluicáo da cidade á corrente de ar no quarto, tudo eram perigos e venenos. A alegria de Maximo soava-mc a irresponsabilidade e náo me far-tava de lho dizer: ele atravessava mas caótieas fora das passadei-ras, bebia vinho de mais, deixava-se ir no rio de todos os prazeres. Eu dizia-lhe, por outras palavras, que isso ofendia o sacramento da erianca. Depois convenci-me de que ele se exibia diante da rapariga como o patriarca de uma tribo de macacos, mas nunca fiii capaz de lho dizer, Decidimos visitar os fora romanos - Maximo, pedante, era assim que dizia - numa čerta manhá em que Roma já fervia. 21 Luisa Costa Gomes Sctembro Ao contrario de cidades que amolecem ao calor os seus patrf-cios, e Ihes propiciam sestas e descanso, Roma Antiga da sede e angüstia. O menino fixava-mc afogueado dos bracos do pai, com aqueles olhos grandes e cheios de paixäo; eu levava um bibcräo de agua fresca e puxava cada dez metros Maximo para uma som-bra, dava de beber ao filho, procurava localizar a baby sitter, que nos seguia ä distäncia, escavacada de calor e a arrastar os pes, e procurava a melhor estrategia para mc mantcr no meio deles. Estävamos a certa altura sentados num. murinho baLxo, que assistia serenamente a tudo desde o tempo dos imperadores, quando se materializou ä nossa frente, como surgida do nada, uma multidäo excursionista que vinha anexa ao tal guia aus-traliano. Pareceu-me logo um tanto excessivo o brio que ele punha na apresentaeäo do lugar, como qualquer outro vende-dor ambulante, e näo lhe prestei atencäo. Mas Maximo levan-tou-se folclorico para o seguir e eu segui Maximo. A rapariga alheava-se de tudo, bebia agua numa fonte. O guia desceu por ali abaixo despachando templos e areos e eolunas. Era um guia pos-moderno, que reduzia a expressao mais modesta os fac-tos, as datas, os nomes, os eontextos, e usava apenas a sümula do eseändalo e da violencia para manter interessado o audito-rio. Num templo urn imperador violava virgens, mais ä freiue corria um rio dc sangue que brotava de uma cena de chime; noutra porta, padeciam mais virgens e logo abaixo, uma conhe-cida meretriz batia recordes com soldados que regressavam das campanhas da Däcia.Toda a gente gostava destas coisas. O guia contava-as com meneios e olhava ao mesmo tempo significati-vamente para uma raparigona que, louca de calor, lhe devolvia o sorriso e levava ä boca a garrafa de agua gelada. Um hörnern magro, em calcöes de banho, suando profusamente, comentou para os lados da esposa que esperara melhor. Constantinopla, disse, faz mais vista. Diante da Cúria, pousámos. O guia deixou-se ficar urn momento de costas para o grupo, silencioso, de cabeca baixa. Olhávamos o ediflcio austero - uma espécic de aka capela de tijolo vermelho escuro e em volta o vale semeado de ruina e olivciras - quando nos surpreendeu o volte-face repenrino do australiano que, rodando sobre os calcanhares, ajustando ao ombro uma toga que náo cxis-tia, ergueu urn braco e gritou sem pejo: Friends! Romans! Lovers! Atirou-se ao discurso. Já näo tinha os óculos na testa. Houve na assembleia uma primeira paralisia, depois um entreolhar-se de espanto e desconforto. Nos casais, o que tinha ficado com o papel de estúpido, informava-se junto do cönjuge. O guia despejou a primeira parte do discurso de Bruto como quem se lanca á água fria, com voluntarismo, em rápidas braca-das de aquecimento, e sentíamo-lo intimidado e temerário, afinal näo era um actor, apenas guia ao servico de um hotel, e houve simpatia e condescendéncia para com ele. Na avaliacäo conta-va-se-lhe sobretudo o proiissionalismo enquanto guia. Assim foi que, na corrente das frases que citava, e em meio daquelas meias eolunas e restos de pracas cm que secavam ervas daninhas, ele se foi tomando de verdadeiro entusiasmo pelo que dizia e após breve pausa em que se ouviram alguns aplausos, avancou para o discurso de Marco Antonio diante do cadaver de César e de Roma dividida. Agora imitava Marlon Brando. Eu desconliava de tudo. Näo havia uma palavra que näo me soasse a falso. A pose dele, o tom, a trivialidade a que via rebai-xada a peca e a nobreza do teatro, a falta ä verdade histórica, o contexto grotesco, a atitude complacente dos espectadores, esse grupo de turistas que nos incluía á forca, a propria água das fon-tes que a meu ver caía artificiosa e sem gosto. Tudo era cenário insensível posto ao servico de um mero espectáculo de sangue e circo. A baby sitter sentara-se entrecanto numa pedra antiga e abanava-se, ausente, com a mäo. An/£9 / Luisa Costa Gomes Sciembľo Olhei entäo para Maximo, queren do partilhar com ele o que sempře nos fora possível partilhar, o patético da situacäo, o cari-cato deste hörnern que tirou os óculos da testa para declarmir Shakespeare e imitar grosseiramente Marlon Brando, ao sol do meio dia na excursäo ao forum de Júlio César. Mas o guia avancava cada vez mais devagar e sonhador no restolhar das frases, sabo-reando a frescura e a docura a que se ia acolhendo. E quando me volto, vejo Máximo comovido como nunca antes e deslumbrado, com o filho bem assente nos ombros, e ambos sem peso e sem medida, quasc voando sobre os templos e as basilicas, unidos como um animal mitológico, na mesma esperanca destemida e simiesca dos anöcs aos ombros dos gigantes - e isso provoca-me directamente, a beleza irrompe no mundo e apresenta-se pereně e verdadcira, muito para lá das meias colunas e da erva seca, do guia, e do medo da viagem e do fřacasso. Era esta a imagem de Maximo no seu esplendor que me assom-brava sem eu tomar dela consciéncia no Palácio Real e o meu segundo discurso na sala da lareira já compreendia um intuito transportador. Máximo teria de voltar, a cavalo nos meus discur-sos, ao Iugar onde pudera ouvir maravilhado as razöes de Bruro e Marco Antonio. E isto deu-me afinal o alento que mc tinha faltado para näo 1er as cartas - que se iam espalhando no meu quarto por cima dos móveis, marcando raivosas os dias todos. Nessa manhä eu visitara um museu extravagante, construído em volta de um imponente galeáo que naufragara, desequili-brado, vergado ao proprio peso, no cais de onde partia. A tripu-lacäo do Vasa levava as mulheres, era a viagem inaugural, pelas ilhas diante da cidade. Diz a noticia que morreram trinta pes-soas c o gato de bordo. Trés séculos depois puxava-se do mar a mína intacta. Subi a espiral do corredor que circunda o salvado c acheguei-me ao muro de onde se vé, numa primeira etapa, a proa imensa trabalhada de baixos-relevos, mais acima o casco escavado de portas da bateria por onde espreitam canhöes, e por fim o convés lavado e esfregado como no dia da partida. Pcnsava no que diria a Máximo mais tarde, hesitando entre a forma da palestra e a do sermáo. Queria falar-lhe sobrc o que constitui e näo constitui uma situacäo. Mas na realidade, no ultimo, eu já deseria dos tópicos. Estava de tal modo absorta na minhahesitaeäo, que me deupara ir atirando da carteira, para o convés do Vasa, de uma altura de uns cinquenta metros, os itens que lá se encontravam pessoais. Come-cci por 1 he lan car um bilhete de teatro, há muito fora de prazo, ras-gado em pedacinhos, que pousou disperso sem acertar uma únjca vez no casco. Na minha imaginacáo, eu estava debrucada como que sobrc o poco dos leóes, a ver um grande navio infeeundo e morto, icado das profundezas, incapaz de sobreviver á humilha-cáo daqucle naufřagar diante de todos, afundado ao peso do cno na proporcäo, depois da expectativa do império e do triunfo na longa guerra, agonizante para sempře, condenado ä limpeza e á relucéncia. Atirei-lhe um maco vazio de tabaco, atirei-lhe um baton do cieiro, atirei-lhe as chaves de uma casa a que náo queria voltar. Juntava-se gente para mc ver sujar. Mas os segurancas näo sabiam como agir, náo lhes ocorrera nunca que alguém pudesse querer conspurcar uma rclíquia. E eu percebi, pelo exercício, pela ejeceáo, e pela saudade que me causava cada item descartado, que talvez náo bastassem os discursos. Lembrava-me de Máximo sentado na sala da lareira, rodando o tronco devagar até ficar virado a trés quartos para mim, e puxando disereto de um caderninho onde anotava frases. Depois, quando eu me aproximava em decrescendo do final da palestra sobre a siluaeäo, que nos deixava a ambos numa penumbra de paradoxos, ele levantou-se em silěticio e deslizou para fora da sala como uma sombra. Nessa mesma tarde em que voltei do museu do Vasa, comecei por lhe mudar a disposic/äo dos móveis no sótao, náo animada 25 í *p°$ k/j Luisa Costa Gomes Setembro de qualquer crenca na circulacäo favorável e sobrenatural das energias, mas por eti propria sempre ter pensado melbor com a cabeca posta no enquadramcnto de uma janela aberta. Encostei, por isso, a cama de Maximo ä janela das bétulas e a secretária á parede branca, trocando a posicäo rcspectiva das actividades: antes Máximo sonhava ä parede c trabalhava i janela e agora havia de escrever virado para a parede. B da cama a mesa a dištancia séria, conhecendo euMáximo, perenemente variável e pouco harmoniosa. O meu entusiasmo transformador era tal que nem reparei que ele continuava no sótáo, agachado ao fundo, as costas arquea-das contra o tecto esconso, a fumar. Disse-lhe que estava farta da miúda e qvie estava farta de sopa e que já näo tinha no quarto mais espaco para cartas que näo abria. E que se ele tivesse algum pedido, que mo fizesse de viva voz. O discurso da noite seria subordinado ao tema da construcdo da personagem. Chcgada a noite, no entanto, o sentimento da futilidade da tarefa parccia ter-se tornado intransponivel. Eu olhava as cartas dispersas e lembrava-me da apatia de Máximo, pensava que era caminho demasiado íngreme, e ansiava apenas, e admito que mediocremcnte, passar do discurso por tópicos ä conversa do casal de velhos, sem obrigacóes para lá das da vida comum. Que matérias, que beberagem, que mixórdia de oligoelemcntos poderiam alguma vez fazer Máximo recuperar aquela expressäo que eu lhe vira uma vez, a sua melhor cara? Quanto mais olhava em volta o quarto semeado de envelopes brancos, mcnos vontade tinha de enfrentar a muda furia dele. Resolvi, em vez disso, arrumar as gavetas que, alias, nem me per-tenciam. E quando me aproximci da cómoda reparei numa carta que näo era da letra de Máximo. Os suecos donos da casa, que se tinham submetido ao Veräo da Grécia para assistir as Olim-piadas, voltavam precipitadamentc com urn par de escaldôes, mais de uma semana antes do prazo combinado - e nós teríamos de arranjar outro sítio para acabar as férias. Esta contrariedade, embora menor, juntou-se as que já moíam, c decidi dcitar-me c esquecer. Mesmo antes de dormir, lembrei-me de outro incidente, na sequéneia do episódio do forum romano. Depots dos aplausos que o guia aceitarabastantebem, Máximo saltara da contempla-cáo instantancamente, sem remorso, e dissera que tinha fome. Afastámo-nos do local, Máximo rápido á frente com o bebé as cavalitas, e cu segui na peugada, e esquecemo-nos da baby sitter. Procurámos um sítio sossegado para nos sentarmos a almocar, e em tudo eu punha defeito, ou porque estava quente dc mais, ou porque havia ar condicionado, ou porque estava muita gentc, ou suspeitando da salubridade de esplanadas ás moscas. Máximo já levava a erianca nos bracos, adormecida, e dc cada vez que se vislumbrava um local possível, estacava a apreciar as fachadas ou as árvores antigas que viviam nas pracas c esperava que eu decidisse. Isto ele fazia por julgar que era o constitutive dc um ser paciente, c eu desesperava de alguma vez conseguir almocar. E i medida que me enervava andava mais depressa e Máximo seguia como Mercúrio, eu sentia-o voar desinteressadamente atrás de mim, e náo tinha paz. Assim correndo entrci numa betesga ocre e vermelha, em cuja parede do fundo, por baixo dc uma janela estreita, alguém eserevera em grandes letras incertas: Bastards! Assassins! Vi depois muitas vezeš c em muitas cidades esse eserito, que me agredia sempře como uma acusacao directa. Dediquei, no dia seguinte, alguma atencao á carta dos donos da casa e á melhor maneira de preparar Máximo para uma nova partida. Ele havia de ficar muko decepcionado. Com a idadc demora cada vez mais tempo a habituar-se aos lugares, cada vez tem mais dificuldade em libertar-se das coisas pequenas para se dedicar ás grandes, e para ele o tempo já náo corre da mesma 27 -j^ymjjn^ >MJa£_Ji— -——— Luisa Costa Gomes Setembro maneira, nem tem o mesmo significado. Vive sempře agora, já nem tenta lembrar sequer o que fez ontem, o que será amanhä. Foi esta conviccäo que me deciditi a mentir-lhe. Pcrgunto-me agora de onde viria esta quase delinqucncia que me fazia roubar e sujar e mentir. Näo sei explicar. Talvez tenha uma certa facili-dade em aborrecer-me sozinha. Convidei Maximo para urn passeio no bosque, ali nas imedia-cöes da casa, antes do jantar. Estranhamente, ele accdeu. O Sol rompera forte ao fim da tarde e inclinado tornava cada erva, cada baga, cada tufo de musgo, volumoso e nítido. O verde daquelas paragens é aberto como o dos choupos, dos salgueiros, e dá a sen-saeäo, se formos pelo meio dele, de caminharmos debaixo de água. Talvez porquc a ideia lhe agradasse, ou talvez por medo, o facto é que Maximo me pegou na mäo a ceita altura e seguimos calados, ele displicente no pisar do mato, eu como sempre alerta para as suas várias dimensöes, espiando a vizinhanca, batendo o pé para afastar as víboras, distraída com alguma süspeita de mosquito, ou a colher um ourico de castanheiro. Em simultáneo magicava no incipit da palestra seguinte, que resolvera antecipar para aqucle momento mesmo. Näo haveria afmal propriamente urn tema, seria um género de conversa, para a qual Maximo contribuiria mera-mente com a presenca e o assentimento. Chamo-lhe primeiro a atencäo para a inclinaeäo do Sol, já reveladora do fim do Veräo, e para o verde amarelado de folhas que murcham e de caminhos que se torn am de novo selvagens; indico-lhe as primeiras névoas no ar, a dificuldade de ver ao longe; urn certo calafrio acolhedor; tudo anuncia a renovaeäo do Outono, prenuncia o Inverno, e sinto nele o medo de se perdcr. Näo que se aproxime mais de mim, con-tentar-se-ia, julgo eu, com o ealor de urn bieho. Mesmo ali, dentro da minha mäo, a ouvir-me, ele consegue estar ausente. Senta-se por fim sobre urn tronco decepado, atenta no cháo que näo seca nunca, molhado pela cacimba que cai todas as manhäs. - Passa depressa o tempo aqui na Suécia. O que me dá a ideia de que ele está mais que pronto. Que se rendeu ao inevitável. Faco-lhe o jantar, e cle remexc-o no prato, franzido, fechado, num halo de pena e desperdicio, o grosso lábio inferior descaído no seu amuo de décadas. a cabeea inclinada para o peito, o cabelo grisalho ralo com uma risca ao lado, uma risca que se alarga com o hábito de um mesmo apartar-se. - A necessidade rnantém-se - digo-Ihc eu - e a vontade foi-se. A vontade é pouco popular. Mas repara que comer sem apetite é coisa bastante filosófica. Porque poděs näo ter vontade de comer, mas tens de comer, se náo morres. Comes porque cu preciso de ti vivo. E ele deve ter sentido estas palavras de uma mancira qualquer tremenda, como se eu falasse de um pedaco de boi de que me vou alimentando, porque se levantou de repentc, me olhou com nojo e saiu da sala. Eu achei que náo havia lugar para explicacöes e recolhi-me de seguida. Náo me privei foi da sobremesa, essa é a única licäo de vida que vos posso deixar. Pelas minhas contas, Maximo eserevera nessa tarde a décima primeira carta e näo o digo com a antecipacáo e o entusiasmo de coisa aguardada como a revelacäo de algum segredo que me resolvesse tudo. Era a décima primeira carta, a que eu supusera, assaz especulativamente, ser o termo de um processo. Mas náo é, naverdade, pergunto eu agora, o termo de um processo o meio de outro processo, o princípio de ainda outro processo? Assim, sem indevida esperanca, sentei-mc confortável na cama para ler. Somos grandes amigos, o sono e eu. Vemo-nos épouco. Oico dizerpor ai que eontempla gente pelo mundo fora, visitando-a, demorando-se, eu proprio vejo mukös dormirem, oko horas seguidas. e mais. Parece que é um dorn, como o dorn das lágrimas. Umagraca concedida. 2S 1 -^yn/i Luisa Costa Gomes Setembro Perguntas-me, na entrelinha, como passo os meus dias. Pois bem, pas-so-os a preparar-me para dormir. Tudo se dispoe na minka vida emfun-eäo das poucas horas de sono que me säo dadas, ou que eu consigo arrancar a um cérebro preocupado e malsäo. Näo fumo, näo bebo café, näo como carne vermelha, näo iomo drogas e näo parúápo em actividades irritantes - incluindo obviamente a televisäo e a conversa de chacha. Aqui chove sempře, o que iorna o didlogo sobre o tempo ainda mais insuportável Podes, por isso, compreenäer que para mim o bom livro só possa ser aquele que faz dormir. E näo é líquido qual seja ele, näo por ser assunto sujeito a muita variacäo - de humor excitável, de conjuntura barométrica, e outras - mas, ao contrário, porque a leitura é, na esséncia, activante, ou transportadora, como dizes, ou motora, ao contrário da televisäo que é, e numa mistura que sempre me deixa perplexo, sobretudo no que diz respeito ao zapping, a um tempo passivante e enervante. Para cumprir a sua missäo, o livro näo pode ser muito pesado, porque se passar do quila e meiojá magoa o esterno. Näo pode ter capa dura,por maio-ria de razäo, nem ängu/os agucados. A capa lem de seralraente, equílibrada, adequada ao conteúdo. O mais importante é que näofira a vista e näoponha problemas ao intelccto. A letra, no corpo do livro, tem de ser cómoda, amis-tosa,generosa. A entrelinha confortável. A mancha idem. (Apropóúto, o teu Vcrdana é bem esquisito! Eu estou no Bookman Old Style, mas näo diseuto preferéncias, aliáspenso que seräopassageiras). As margcns da página devem ser bem medidas, avenidas espacosas como na antiga Sampetersburgo, com muita lata versta, (a versta tem ar de ser mais comprida que o quilómetro, aqueles mujiques fartavam-se de andar nos livros russos) mas ao mesmo tempo sóbrias, com um desperdíáo bem calculado, que näo seja o do constru-tor civil bem sucedido e sôfrego que apalaca espacos, mas o do mestre calmo que devagar lá vai ao longe. Esses livros que amontoam letras e letras numa página, numa ánsia deserem lidos pelo que dizem, säo cáde urna arrogäncial A ideia a dar, em todo o lado gráfico, será a de que se trata de um livro, sim, e por isso é preciso ler a textů que as letras formám, mas que cada página é urna página. Porque isso é que é bom, isso é que faz dormir. Näo se chega a criar aquilo a que alguns teóricos chamam a vertigempara ofim. Porque comecas a lei; no livro, a história - e pronto, näo consegues adormecer. Dá-te espertina. Näo, o livro perfeito é o livro que ninguém le. Suponho que brincas com a minha situacäo quando dizes que a «figura da ilha deserta caducou». Vé-se bem que näo conheces Santa Maria dos Acores no Inverno. A escola é limpa e asseada, como se dizia dantes, os alunos andam mcios perdidos, meios passados, mas igualmente limpos e asseaios, t com o pequeno-almoco tornado, o que näo é dizerpouco com essa desgraca que por ai vai. A casajá está mais ou menos arranjada, ainda correm correntes de ar, clam, mas o vidro está posto na bandeira da porta e conforta-mc saber que nestas duas ultimas semanasfui visitado respecti-vamentepor um pedreiro, que arranjouprimorosamenle o lava-loicas, um vidraceiro, que apenas numa tarde das duas as seis colocou, retinu, voltou a colnear, e voltou a retirar e assim por diante, o vidrinho da bandeira da porta, e um homem indescritívelque me queria venderparamentos e ben-zeduras com a respeetiva bolsa de milagres. Veio agora ler comigo urna vata. Näo sei muito bem eonversar com animals. Provavelmente comentaria a ruminante que hoje choveu mais (ou menos) que ontem. Urna notťcia importante: chegou hoje, no ferry de S. Miguel, o mcu segundo psicoterapeuta. Ele ainda näo sabe que o é, c eu só sei da existencia dele pela enciutnada referencia do meu primei.ro psicoterapeuta, que disse: - Esta ilha se naofica curada, näo será por falta de médicos. De facto, chegam e sobram para os quinhentos habitantes que sofrem, sobretudo, de falta de televisäo por eabo. E eu, insone, numa ilha deserta. Se näo é isto fantasia de bibliómano, näo sei o que seja. Li, urna atrás da outra, na ordem inversa pcla que tinliam sido escritas, as cartas de Máximo, que me fizeram muita companliia. Depois, apaguei a luz. A noite estava serena. E mesmo sem Lua, por um fenórneno qualquer exeěntrico e semi-polar, tudo bri-lhava numa luz quase fluorescente. lá fora e dentro do meu 3° _P cs?KiP(/ Luisa Costa Gomes quarto. Ouvi Maximo, no sótáo, tossícar umas duas ou trés vezes. Queria dizer que dormia. So no sono c que ele se permkia tossir. De manha. levei-lhe o cate, ele ressonava de boca aberta, rendido, um pé branco tbra do lencol. Na bandeja do pequeno almoco, incluí um quarto de folha dobrado ao meio. Eu sempre escrevi cm mamsculas, porque escrevi sempre pouco. Dizia: «CHEGOU SETEMBRO.» ABOAMÄE 32 Aboa máe náo larga o íilho dos olhos. Para onde quer que ele vá, acompanha-o o sorriso imutável, como um desenho fixo de nuvens no céu. Também nisto afronta a sua propria mäe, que a largava na vastidäo da areia, adormecendo ao sol aindade cigarro descaido ao canto da boca, os óculos eseuros de banda, virada de costas para o mar. Deixava-a ir, pcrdida, buscando reconhece-la em cada novo estranho. Chegou a confrontá-la com essa imagem cruel um dia, mas a máe mo se reviu em tal papel. Encolheu os ombros, puxou uma ŕuma^a e chamou-lhe coitadinha na sua voz troante.1 1 Aboa mäe oinite o seguinte episódío: «Num més dc ínvemo, teria uns seis ou sete anos, anunciou á mäe dela que lhe ia pintar o retralo. A mäe apagou o cigarro, acendeu a luz do candeciro de pé e fez pose. Ela demorou um bom quarto de hora a reunir o material de desenbo, os lápis de cor que só usava em momentos especiais, o bloco novo, e andou ali de volta ä proeura do melhoľ ángulo. Depois obrigou a mäe a estar quieta - e Deus sabe como llic custava, que queria comecar o jantar e fazer uma máquina de roupa - e trabalhou no desenho com aquela concentracäo maníaca que punha em todas as actividades. A čerta altura a mäe eomecou a dar mostras de ímpaciéncia, cnquanto cla desenhava e apagava; e desenhava c apagava e ä medida que se lhe revelava a imperleicäo da sua técnica e se apereebia da dištancia entre o original c a repeesentacäo, impaciemava-se, angusriava-sc e chegava a tremer de raiva. Finalmente, acabou. Ou desistiu. Näo queria mostrar o resukado. A mäe, com artes de seducäo, conseguiu U'anquilizá-la suŕlcientemente para que a deixasse ver o retrato. tlfTl; ^^-^i_____________— u*-*-c^/^ T y -/"tyj-/ Luisa Costa Gomes A boa mae Uns passos mais ä fxente, brinca outra jovem mäe com o fílho de oito anos. A boa máe, se apanha o filho um segundo distraído, deita-Ihes o rabo do olho. Lanca sobre cles a rede dos juízos e a grelha das comparaoóes. Achá o filho da outra magro de mais e a outra um pouco rristonha e até ausentc. Constrói umafortaleza dc porte médio - mas como é mecánico o gesto dela, pensa - e o miúdo providencia os baldes de areia. O filho da tristonha chama-se Jerónimo c está plenám ente convencido de que estäo ambos a esculpir uma sereia. Preferia fazc-la sozinho, ou pelo menos ser ele a construí-la, em vez de andar acima e abaixo a encher baldes c a despejar baldes. Parece que a máe precisa dc sempře mais, sempře de mais. Ela olha para trás de vez em quando, vigiando o marido quc, de perná tracada, vigia o horizonte limpo. Desde que lhe morrera a mäc, á pressa, trés anos antes, ele sentia uma propensáo cada vez maior para a vigiláncia dos horizontes. Desintercssava-se até, por vezeš, de ŕumarum cigarro até ao iim. A mulher atribui esta falta de interesse pelas coisas próximas a uma paixäo ŕunesta dele por uma colega do emprego (mais nova). Jerónimo escava um tunel, c olha a mäe de viés, vigiando arigiláncia dela, desejando que por um instante ela adormeca ou desapareca no mar. A mäe, batendo na areia para acamar o contrafoite, lembra-se da mäe dela, reinando sobre a praia da sua alta cadeira de plástico, abandonando-se ä observacäo volumémea do nu masculino; mesmo motta, sorriria com desprezo, em comentário, ä brincadeira ridícula daqueles doís.1 "Está lindo". di.sse 3 mäe, "está uma maravřlba. Acho quc captasLe muito bem aqui a zona dos olhos." Mas ela correu a fechar-se 110 quarco, desesperada. Sabia que a mäe lbe mentia. Mentia-lhe sempře. Só a sentia verdadeira na indiferenca ounu castigo.» 1 O que é manifestamente impossívcl. Alias, o forte de Adclina Morcira, avó de ]cró-nimo, máe de Ariana - uma alusáo que náo existiu, dada a sua absoluta ignorancia da História e da Mitologia - náo era o sorriso. Era untamulher de trabalho, como ela própria dizia, e päo päo queijo queijo. Enervava-a aquele lado piegas e medroso da filha. A vida era diíícil para todos. E o miúdo ia pelo mesmo caminho, sempre agan'ado äs saias da mäe, sempre com medo de magoar a mäe. Era no que dáva ler filhos quando a gente näo nos queria. Nisto tŕnha Adelina urna čerta razäo, que o pai do Jerónimo concebera o filbo a mais do Um pouco mais acima, á sombra de ttm guarda-sol dc colmo, máe e filha tentam mais uma conversa circular. A máe, embora conheca o regime dc ventos daquela praia, ficou por acaso na desvantagem de falar virada a nořte. Sente que as palavras lhe sacm da boča e sáo arrastadas ao longo da costa, para o lado contrário ao de Catarin a. Ve--se, por isso, forcada afalar mais alto, o que lhe dá um arerispado, que muito erispa sua filha. Esta, virada ao favorável do vento, acerta-liie em cheio na cara com fřases que, em virtude das condicóes atmos-féricas, lhe doem como vergastadas. Costuma dizer que se encon-tra numa fase da sua vida em que tudo lhe parece virado do avesso. Os canais proflindos cmergiram, ou rebentaram, alagaram, mis-turaram-se, c ela debate-se num movedico de águas tun'as. Nunca consegue chegar á certeza. Perde-se muito antes. Mas as coisas tre-raendas de que náo se fala, tem-nas ela imediataniente debaixo da lingua. Deve controlar-se para náo esbofétcar a miúda. Nao consegue já olhar a direito para ela: falam as duas voltadas para a frente e quando uma vira a cara a outra roda na mesma direccao, para que náo se encontrem. Quando pede, parece implorar; quando conversa, parece exigir, e Catarina enířenta-a. E a mae desvia os olhos, para baixo, para o lado, para o ar, e é esse o ángulo da sua decepcao. A sua própriamáe, serena e espeita, regular das novelas de amor e de aven-turas que lia de pé, á luz da grande janela da marquise, num sorriso de mansa ineredulidade, fora e era ainda para ela console infalível. Náo conseguia era ligar aquela imensidáo sagrada que se unira sempre áluz da tarde, c a mirrada velhinha muda que hoje se senta na sala e estremece á passagem do eléctrico. Na praia ao lado de Catarina, Elisa ainda olha a máe da mesa da sala cm que fázia os trabalhos de casa. Sempre pensou que ela fosse imortal. De cada vez que a tomava. que um título: desejara-o, imaginara-o, e revia-se nele. Ariana resisrira. depois úzera-íhc a vontade para náo perder o amor do marido. Morrera Adelina Moreira recentemente ~ seis meses depois da comadre que detestava - dc um tumor imenso, nunca tratado, no intestřno. 34 . ~- -~ >-5 >->5 S, Luisa Costa Gomes A boa mäe a possibilidade de um dia ela lhe vir a falrar, as lágrimas saltavam como ftirias. Tentara com a filha o mesmo amor sem condi^ôes que a ligava a sua mäe. O resultado, inexplicável, era csta agressäo, que a desencorajava a ponto de perder o pé dentro de si própria. Catarina em tudo considera criticável sua mäe, que em tudo implícita e explicitamcnte se sente criticada e pensa (embora saiba que esta filha tem o poder especial de lbe ler o pensa-mento) náo se coíbe de pensar em criticar ä filha a sua crítica. ľor isso, nem se defende já, náo julga poder mais que sedu-zir brandamente a menina para lhe aplacar a ŕuria judicativa. A amiga da mäe, deitada na areia de barriga para baixo, cri-tica em pensamento mäe e filha. Quando fiea a sós com a mäe, diz-lhe näo comprcender como é que ela, mulher táo inteligente e independente em certas coisas, se deixa assim mortifi-car por um miúda de treze anos.1 E quando, a molhar as pernas para mitigar as varizes desfeantes, recebe as invectivas da filha contra a mác que näo se atreve a sair da sombra, náo resiste no entanto a sentir um prazer dc confidente, e a concordar eom a mocinha em quase tudo. Pensa na sua própria mäe, fria como a água, que amea<;ava deixar de lhe falar de cada vez que ela ameacava sair de casa da família. 1 Catarina näo deixa dc frisar que falta apenas um més para os catorze. E a mäe sorri e faz-lhe uma festa nu cabelo. Ao que ela riposta; «Nem penses que vai haver festazinha de familia.» Qucr ir para a discoteca com os amigos. E isto, pensa a mäe, em retaliacáo do seguinte episódio que lhe eontara: <*Euia ali a criegar ä 5 de Outubro. Uma mulher parou ao meu lado no semáforo, baixou o vidro do carro c perguntou se eusabia onde ŕicarao Hospítal Partičular. Aías é exactamente onde trabalho, disse-lhe eu, venha atrás de mim. Assim que arranquei, dei com um sentido proibído novo que me obngou a virar onde eu n.lo queria, cnrrar por uma ruela, voltar de novo a direila e encontrar um troco em abras, e tudo isto cum a mulher no outro carro atrás dc mim. Dctcsto que me vejam íaľhar. A mulher devia pensar que eu esrava louca. Digo-lhc que sei onde é o hospilal, sugira-lhe que me siga e dcpois desato as voltas... Comeco a ter mcdo de a perder. E olho, ansiosa, pelo retrovisor, num semáforo improvisado noutro sítio em obras, a confirmar se ainda me segue. Conŕimdo o carro dela com outros, da mesma cor, do mesmo tamanho. E claro, lá chega uma esquiua em que eu a pereo, ou ela desiste, ou é convocada por outro condutor.» Numa grande toalha azul,' já a subir a duna, deita a máe o seu bebé todo besuntado de crčme branco. Debaixo do guarda-sol fiea o estendal dc saeos térmicos - um deles só para a garrafa de água pura, destilada e duas vezeš fervida, com que se lavará a chupeta, em calhando cair na areia repleta de vida vil. Saeos de algodáo, fraldas de pano, brinquedos de barulho, coisas de roer e outros itens que apenas servirao no náturo, como a pá e o anci-nho e o baldinho, atestam que Wťéum conceito dinámico, em que tudo pode acontecer a qualquer memento, quer por parte de uma realidade exterior imaginativa e o mais das vezeš adversa, quer vindo de uma realidade ebuliente que pode decidir lcvantar--se e andar, ou falar filosoficamente, ou pór um problema técnico qualquer para o qual náo se está preparado. Fica-se interdito ao pensar como foi possível áquela mulher caminhar pelas dunas ajoujada de tanto peso. Mas apesar de estar assim rodeada de utensílios e acessórios, que pareeeriam ao olho nu manifestar^áo dc inseguranja, Berta sentc-se, á partida, imortal. Aceita, mera-mente para despistar a contínua avaliacao da máe, rodear-se des-tes sinais de que está ciente dos pei"igos, se informou das precau-coes, e nao lhe importa ter de provař as competéncias. Sabe-se no fntimo e táo certeiramente como estar ali naquela praia naquele momento, invencível. Sozinha com o filho, abandona-se á mais selvática, animalesca adoracáo. A uns passos, espalhada na areia caótica, uma família de qua-tro - pai, máe, dois filhos machos - diseutem o jogo de domingo. li quase em cima destes, numa triangulacáo por certo involun- 1 Přendá da madrinha do menino, em bom rurco do El Curte híglěs, o coalháo servirá até aos cinco anos, passandn os Invernos na area para onde o pai alíra tudo o que lhe lembra o Veráu. No piimeiro dia de praia é relirado e posto ao sul para arejar os Lluigos. «Para qué lavá-lo? - pergunta o pai. - Foi lavado antes de ir para a arca.» Apanha-o do estendal e «arruma-o» hem uo lundo da gaveta. E assim que eria as condiecjcs para uma eonspiracáo com a empregada, que acabará por esquaitejar o toalháo numa čerta manhá ern que apanha Berta Manfrcdi desprevenida, >tEra só uma toalha velha», diri a sonsa, brasilcira. E Berta tem vontade de a estrangular. 36 37 Luisa Costa Gomes A boa r tária com a mäe do bebé, beija-se demoradamente um casal de muito jovens namorados. A mäe de Mara tinha-a preparado desde rmrito cedo para os sustos da puberdade. Entretivera a filha com bibliografia varia, comecando pcla filogénese, para chegar á fámea conrcmporánea; incluíra uns manuais ilustrados sobre o sexo dos 10 aos 13 e dos 13 aos 15. E poemas de amor, também lhos dera, do Camôes e do Neruda, para cobrir a parte emocional. Conver-sava «abcrtamente», como ela propria dizia, sobre sexo e comen-tava com picante quase todas as situacôes da vida comum. A Mara ficava capaz de se enfiar pelo cháo adentro quando a mäe lhe dizia pénis. E o desembaraco com que ela se referia as coisas privadas das mullieres dava-llie uma náusea de dcspeito. O que Mara sentia pelo Carlos näo vinha dcscrito em lado nenhum. Queria litera 1-mente comé-lo aos boeados - comecando pelo lobo da orelha per-feiu. Pensava que primeiro teria de lhe rapar o cabelo e os pelos que nos rapazes crescem por todo o lado, e depois comé-lo, como um cacho de uvas, sem descascar, cuspindo as grainhas no final. Näo percebia como é que ele näo dava por isso, embora por vezes, se ela se entusiasmava como agora, e se colava a ele macerando-lhe o pescoco - ele se afastasse um pouco, a rir, e a olhasse nos olhos como quem quer adivinhar. Mara ficava a ponto de o admitir, mais cedo ou mais tarde teria de lhe confessar o intento incontrolável. A mäe deita a cabeca no côncavo do ombro do bebé. Vai ser alto e forte. É o bebé mais bonito que já alguma vez foi fcito. Tem a cabeca redonda como urna ľaranja. E uma grande proeza ter um bebé assim täo bonito. Até a mäe dela parece invejar-lho. E todas as outras rnnlheres, quando passam, rapidamente ä bei-ra-mar, e mesmo se näo passam, lhe espreitam o bebé de longe, lhe invejam aqueles olhos azuis. Descrever o seu amor pelo meníno? Näo é possível. Näo há medida. O tempo que demorou eseolher o nome. Näo era um Vítor. Näo era um Lourenco. O que era, entäo? O bebé esperneia de contentamento, agita as mäos no ar, e arrulha. Vira-se de repente e abocanha o nariz da mäe. Ja tem dois dentes. A mäe ri-se alto, o bebé continua a morder-lhe a cara, sério, grave, com os olhos muito azuis postos no céu. A mäe de Mara refcre-se-lhe semprc como «a minha filha» ou, em momentos de maior ternura, sobretudo quando fala com a mäe dela, «a minha Mara». Nunca diz, como Mara acha que ela devia dizer, simplesmente, «a Mara». Porqué «a minha Mara»?, pergunta ela, quezilenta, insaciada, a Carlos naquele momento. Carlos nuncasabe o que lhe há-de dizer. Näo tomou propri amente a decisäo de se calar, näo teve fot alternativa. Mara puxava-o para 0 meio de conŕlitos de que ele nada conhecia. Sua propria mäe era mulher plácida, queparecia terentrado em hibernacäo a par-tir do momento em que cle deixara de maniar. Agora sente uma contraccäo de nojo na boca do estômago quando faz essas contas - mamou até aos trés anos de idade, há doze anos ainda mamava. E afasta-se dc Mara, propôe um mergulho. Ela levanta-se de um salto, calcula que a aetividade e a água fria lhe háo-de espantar os desejos.1 Elas estäo agora sentadas lado a lado na arcia, muito juntas na mesma toalha, enquanto a amiga, denero de água, cumpre a sua obrigacäo para com as varizes. Odeiam em conjunto a interferencia dela, tém ambas ciúmes da amiga da sua sohdao. A mäe näo se atrevc quase a respirar, porque sabc que a trégua passa depressa. Pelo canto do olho observa a sua pequena Catarina, täo pcrfeita, o longo cabelo liso, a pele morená e unida, os dentinhos que felizmente näo precisam de aparelho, e enoja-a o velho que passa pancudo e deita o olho á menina. O nojo pelo velho comu-nica-se a Catarina que faz um esgar e se abraca a rir a sua mäe. 1 Para Carlos mdo isto é novidadc. Mara é a sua primeira namorada a sério. «A sério» é expressšo dela, apanhada rias eonversas que ouve a mäe ter ao rcíefone tom as ami-gas. Ele deixa-a conduzir as acrividades amorosas e mantém um perní bastarjtediscreio. esperando, como ele próprio diz, «näo meter rrmita argolada». A Mara, sempre que ele diz coisas que lhe ferem a se nsibilidade, bcija-o para o calar. 3S É 39 "j^j^'j^ __________—- Luisa Costa Gomes A boa máe E surpreendé-1a-ia, de certeza, ä máe temente e só, ouvir o que lhe diz Catarina em pensamento. A mäe de Berta Manfredi, rebelando-se contra o marido que assim obrigava a filha de am bos a carregar pcla vida fora um nome de trapezista, chamoti-]he desde sempre Beiita, em memoria de uma prima de infäncia que se metéra a religiosa num convento. E verdadc que essa prima a irritara em menina, com a sua santi-dade, e porque ciciava a rezar o terco, mas csquecera-o, para se lembrar apenas daliberdade de que a outra gozaria entre as freiras. O Dr. Manfredi tinha pela mulher uma paixäo que ele classificava de carnal e, por isso, involuntária e absoluta. Era urn amor baseado na posse, respeetivo chime e no conflito de intcresses. Mila Manfredi dizia desprezar esta espécie de amor, que llie parecia humi-lhagäo. Berta alheou-se das querelas entre os pais - dois titás envolvidos numa aura de tensäo sexual - cumpriu os protocolos da piedadc filial, tirou o curso, arranjou o emprego numa secretaria do Estado, casou-se, e tudo isto num halo sonämbulo, povoado dc paixöes por gente inventada a parlir de desconhecidos que encon-trava nos trajectos de autocarro. A gravidez fora normal. O parto, normal. Depois, isto.1 1 O dtimc du Dr. Manfredi näo tra, alias, totalmente infundado. Mila Manfredi. conhecida por Vmm dc Mila Manfredi no servico d3 Polícia Judiciária que secret aria va, apaixonou-se a partir dc iinais dos anos setema por uma cadeia de oficiais icalianos. de que foi primeiro elu fundador o Capitáo Bolloni. Esce oficiai esteve envolvido na busca internaci onal de um perigoso brigadista que se acoitou em casa de M. M, ä Castelo Bianco Saraiva. cm Lisboa, onde passou umas duas semanas a comer e a bebcr. Estou mcsmo na disposicäo de especular que terá sido estc Capitäo Bolloni, se näo o incitador, pelo mcnos o involuntário causadov de uma desagradável operaeäo de cbantageni de que fui vitima, uns anos depois, vivendo naquela mesma casa. Mas voltando ä Mila: os seus tresvarios amorosos näo a impediram dc ser mäe presente c razoavelmcnte severa, cstiptilando ä tüba dias de Saida e boras de enrrada em casa, notas minfmas a obter em diseiplinas e objectivos doméslicos a cumprir. Para todo o resto da vida familiar ampa-rava-se numa ciiada herdada da mäe. A tulia desta criada que, nessas pitorescas ramiiiea-cöcs familiäres ainda täo comuns em Portugal, era afilbada da mäe de Mila, fora educada quasc como meia-irmä desta. e fazia também porvezes de coneubina do dono Ja casa. quandoMila se eneontrava einfases de trabalbo intenso. Aseveridade de Müa era coin- O Jerónimo, entretanto, desafiou o pai c correu á frente dele para dentro de água. Mas ele fica a beira-mar cheio de trio, cur-vado, encolhido, o vento náo o dcixa ser aquela pessoa fiável que joga á bola e aguenta um bom quarto de hora de raquetcs com a mulher, enquanto o miúdo arbitra. O vento é mais uma das hos-tilidades com que tem de arrostar. Tudo se tornou difíeil na vida dele, sobretudo o siléncio aflito da mulher. Lembra-se do razoado constante de sua máe minima, vestida do que cla dizia ser preto e já náo era, porque náo viabem, sempre preocupada com vizinhas e senhorios, quando ele a visitava uma vez por semana e ela lhe mantinha quente o jantar á antiga, prato sobre a boča do tacho no lume do fogáo, e o alimento vtnha momo c ressequido, e ele acabava por beber bastante mais. Náo conseguira protegé-la, dei-xara-a morrer ás maos das outras velhas. A boa máe cumpriu - c com que magm'fico escrúpulo! - todos os deveres que havia. Seguiu o programa das eeografias, reflec-tiu longamentc na escolha do médico e do hospital. O quarto do Pedro esteve a ponto de nunca ser inaugurado, tal era a preo-cupacáo no pormenor. A cor era determinante, há amarelos que excitam e verdes que deprimem. Há elefantes que assustam, há ursos que dáo pesadelos. Cortinas? Criam pó e dependéncia. Ou, pelo contrário, seráo tao nccessárias como o leite materno? O espaco devia ser todo preenchido, para haver uma sensacáo ute-rina de enfaLxamento, de acompanbamento? Ou deixado vazio, e livremcnte colorido só com a imaginafáo da erianca? Realizado na ceiteza de todas as consequencias, e mostrado á família e amigos, o quarto foi depois fechado e abandonado. O Pedro dormiu sempre no quarto dos pais, na sua aleofinha, a meio da cama de casal, e mais tarde, quando já andava, enrolado aos pes da mác. Ela sabe que pletamente desperdicada cm Berta, a quem um axnigo uma vez fez esta bem achada proposta de análise: <£e te dáo um jardim inteiro para brtneares, tu deixas-te licar a um canto, c Uizes: Obrigada. náo se pteocu)X;m comigo, já me chega este bocadinho.» 40 41 Luisa Costa Gomes A boa mac cstá a fazer tudo eomo deve ser, embora sinta que lhe escapa sempře qualquer coisa. A sua fantasia é preventiva, fundada no imenso crime dasuaprópriamáe. Lembra-se apenas de aver exclusivamente ocupada com o pai, para quem cozinhava, para quern se vestia, para quem se pintava, por quem chorava, por quem fazia o csforco de näo chorar. Olhando o Pedro bem protegido do sol, feliz, a correr na praia, a brincar na água, sem medo, sem resseiitimeiito, a boa mäe pensa para si que viveu de restos até lhe nascer aquele filho. E olha para a sua vida toda como uma coisa secundaria passada numa franja distante, subitamente caida em si e revelada, triunfal. 0 vento amainou entretanto c o céu toldou-se de repente. O ar fica pardo e a luz caprichosa, furando aqui e ali a abóbada cinzenta que póe a água prateada, inccrta, com manclias de verde muito claro, de verde chumbo, de mereúrio, e oleosa como o dorso de uma baleia. E num instante cstá tudo coberto de gaivo-tas que aos gritos se despenham na maré baixa. Muitas pousam na água, no meio dos banhistas, e disparam outra vez nervosas para o céu. A boa mae sobressalta-se no devaneio e distrai um segundo os olhos do filho para observar os feios pássaros fero-zes. Dai parte sobre as ondas, para os efeitos da luz, c estende as pcrnas, e suspira. E já näo volta. O Pedro baixa-se, arrebanha uma mäo-cheia de areia e atira-a á cara da mäc. Ela leva as máos aos olhos, corre para dentro de água. O Pedro ouve-a, aflita, a molhar a cara, enrola-sc na toalha dela, depois atira-a para longe e deita--se na areia a olhar para o céu. Entretanto, desanuviou.1 1 Cotno estava, alias, previsLO. A boa mäe reage mal ao tempo instável. Parece que näo consegue formar certezas. Nascida de cesariana em pleno e escuro Jnvemo, preferc um solido dia de chůva a estes ventos revoltos. Cbegou a arranjar alergias graves, que a mantinham de cama a injeccöes de cortisona, no princípio da Primavera e do Outono. A meteorologia fora uma das suas imimeras paixöcs, mas aos rreze anos aspirava já ser asnonauta, dq^ois de ver o lünie Os Elätos, apaixonada por Ed Harris (e näo Sam She-pard que, no entanto, era mais diiigido ao publico feminino). Logo depois, descobrindo profunda incompatibilidade com a Matcmácica (apodava o seu amor pela abstraccäo de «platonico»), decidiu-se com a mesma violěncia pela Teologia, de que näo tinha uma ľelas cinco da tarde a praia é inundada de bebés. Chegam de todos os lados, descent as dunas ao colo das mäes, äs costas dos pais, espreiram das cadeirinhas; os que sabem andar, con-em para a água, amparados na propria velocidade que väo ganhando na des-cida. Espalham-se pela areia rija da maré baixa, protegidos pelos panamás, equilibrando-se nas traldas, pesos injustos para quem já tem tanto que pensar. O vento pára de repente e o ar torna-se doee. As mäes seguem-nos, lirmando bem os pes na areia, algumas já de esperancas de outros fillios e, gravitando á volta deles, väo sendo atraídas também para as órbitas das outras maes, de modo que a praia a essa hora é um sistema planetário em que tudo gira em torno dos bebés. Um deles, de passo ainda muito vago, vat pela mäo da mäe molhar os pés e caminha de cabeca baixa, interessado no que vai pisando, uma ou outra concha que lhe faz cócegas, coisas escuras, sombras de salvados, e ao levantar a cabeca fica pasmado com tanta água, aponta o dedo, olha para a mäe, pede explicates. E outro faz com o mar uma danca amorosa, com as mäos chama a onda até si, e enquanto ela sobe, ele recua no seu passinho, como se ideia muito exacta. pelo Oireilo e pela Filosofia. Tem de se admitir que teve paixóes absoluramente elássicas. Nunca sc lernbrou do Design de Moda nem de Engenharias esquisitas. Chegando o momemo de decidir, usou o prático sistema da rkdusäo de Partes, afastando os amores näo correspondidos por disciplinas avulsas e toda a area das Ciéncias e das Aires e envercdando pelas Línguas; oprou pelo Alemäo, única alternatíva que lhe ofereda algum cachet e parecia a Matemádca das terras. Assim chegou a ser excelenie ŕntérprctc, até ao nascimento do Pedro. Recusou depois o convite para traba-lhar no Parlamentu Europcu. A mäe, Georgína Pires, uma mulher fotte e extrcmamente pacientc, que se lhe dedicou de eorpo e alma scm, no entanto, morrer de amores por ela, fez o que pôde para aturar a inlinita variacáo de humor da tilha que cla considerava em publico, com verdadeiro amor de mac, como firme e determinada. Sonoma dizia <-cas-mun-a». Contava Georgína a propria mäe: «Veja lá que hojc quis que eu a fosse inscrevcr em Belas Artcs, virou-separa rnim, com aquele ar dela, absolutamente decidido, que nao admite contradicáo, cram umas scte da manhä, e disse:'INasci para a pinrura É o que eu sou, é o que serci. Reconhcco que sera uma carreira difícil e cheia de obstáculos, mas ó mäe, tenho a certeza absoluta de que é isto que eu quero!" E a cara dela, mäe, os olhos dela! Ncgros como ticôes a arder! Uma intensidade! Onrcm era Enfermagcm, queria ser a Florence Nigluingale! So tenho medo é destas scitas, se a apanham, chamam-lhe urn figo.» A mäe ria-se: «E m, foste?» E ela: «As Belas Artes? Eu? Ľara qué?» 42 43 Luisa Costa Gomes A boa mác ele mesmo a deitasse e acomodasse na areia, quase se imagina que lhe pudesse dobrar o lencol debaixo do queixo, depois baixa-se e passa-lhe a máo no dorso e manda-a outra vez embora e recomeca. Já sabe, täo pequeno, que o mundo é feito de ferida e separacäo. Äbeira-marprossegue aeorreriados bebés, libcrtando-se primciro das mäes em direccäo ás ondas que chapinham, e ao encontro de cäes e de meninos, de pessoas, de roehcdos, de túneis escavados e de castelos constraídos, e de volta äs mäes a quem se agarram ou a quem arrastam, conformc o que viram e o que por lá viveram, no volteio que anuncia o lim da tarde. Mara c Carlos abracam-se dentro de água. Ele leva-a ao colo até quase perderem o pé, depois deixa-a a flutuar, afasta-se e mergulha. O nadador-salvador, quando ele emerge, segue-o com os olhos, puxa uma fumaca. Comecam a chegar os roncos dos tractores que vém receber os barcos da pesca. As mäes pegam ao colo nas criangas pequenas e avisam as outras. Mostram-lhes os barcos ao longe, de popa e proa alcadas, um deles branco e vermelho, outro azul e amarelo, pintados como brinquedos. Os dois tractores parám á beira-mar, afastados uns quinhentos metros, e os homens, bem-dispostos, saltam para a areia e deitam o vinho em copos de plástico. Comem päo. Os habituais desta praia sabem que o arrasto é uma operaeäo demorada c que é preciso ter paciéncia. Os dois pescadores mais próximos de nós sentam-se no tractor, a conversar cm gestos largos, e um deles experimenta o alador, e ambos tém nisto algo de cow-boy, um ar de vida dificil, de humanidade em condicöes extremas, mas também de profissionais de um espectáculo como o circo, que todos imaginam, e mesmo desejam, em breve irá desaparecer. O barco amarelo e azul, chamado Robalo quigá na esperanca de que o semelhante atraia o semelhante, vom ainda longe e a gente na praia distrai-se, as criangas retomam as actividades marinhas, säo novamente artilhadas com as bóias, as pranclias e as bracadeiras e soltas na água. A maré c mansa e baixa junto ao pontäo, o solo faz uma grande piscina natural, ao lim da tarde aqueceu, anda gente a mais de cem metros da praia com água pelo meio da barriga da perná. Esquece-se a olhar o Bugio ou a conversar e olhando em volta, pasma ao ver-se täo defraudada na profundidade. Mas já saltaram do Robalo os pescadores e trazem-no de ceme-lha, conduzindo o barco para a praia, debaixo da nuvem de gaivo-tas, e de longe insultam de sacana os do tractor, e todos ricra; näo se sabe donde chegou este grupo de mulhercs que os interpela familiar, enxota as gaivotas que já cheiraram o saco do peixe, estende na areia uma grande folha de plástico forte, e se pöe a descarregar caixotes vazios de plástico vermelho do tractor; animam-se os pescadores, os do tractor e as mulheres no reencontro, näo vcm de muito longe, nem partiram há muito, é a reuniäo que provoca este alarido. O pescador adiantado do barco aeeita do tractor o cabo que enrola em oitos ao cunho, e isto sem nunca deixar de parti-eipar na conversa, nem de atender a mäe ao telemóvel. Juntam-se curiosos para ver o esforgo. O tractor puxa o barco para terra num arranque, enquanto os pescadores dentro de água o empurram de popa, sem conviccäo, falando e parando se for preciso para expli-car com as mäos algum ponto mais abstracto do diálogo. O barco sobe na areia, o mesmo pescador desata o cabo e o hörnern do tractor, sempře desenvolto, manobra e interpóe-se entre o barco e o mar, para alar o cabo das redes e puxar o saco do peixe. Säo mais de vinte pessoas a ajudar. Póem-se os caixotes a cercar o plástico estendido no cháo, em cima do qual será aberto o saco e largado o peixe. O alador vai agora recolhendo o cabo das redes, dá-lhe duas, trés voltas e assim ptrxando o saco, enquanto um hörnern e uma mulher o recebem do alador e väo arrumando a rede, que é lancada em véu e pousa dobrada no fando do barco. Ä medida que fica cada vez mais pesado, acorre gente a puxar ä mäo o cabo da rede. Mas é o tractor que arrasta o saco na ultima arrancada c 44 Luisa Costa Gomes A boa mäe o revela bem bojudo ä praia intcira. E quando sc abre, já os bebcs estäo a postos para ver: o palpitar prateado, o esparrinhar de água salgada que chega a molhar a cara, a entrar no olho, c tantas formas de vida. Uns primeiro deslumbram-se, outros primeiro assustam--se; das mäes, umas deslumbram-se primeiro, outras as.sustam-se primeiro. Uma é natural que se impressione imediatamente com o peixe-aranha quc urn peseador, ajoelhado no meio do pcixe nmido, atira para a areia, e que avise contra ele o filho. Outra prefere náo dizcrnada. Há tantos outros peixes. Prefere licarpeiplexa diante de um estranho peixe armádo de uma espécie de trombeta, um gumc pratcado, espalmado no fundo do mar ao peso da água. Outra nem pensa nisso. Está a fazer as contas, a calcular quantos quilos de sar-dinha ali estaráo. É o seu orgulho, saber calcular quantidades por alto. O Pedro sente vontade de enfiar o dedo no olho de um robalo, mas amäe sorri e ele mete para dentro. Aboa mäe informa-o entäo da beleza do espectáculo onde ele só vé uma agitaeäo imunda. Berta Manfredi, achegando mais a si o bebé, pensa que uma coisa täo bela é afinal o espectáculo de muitas mortes. Uma mäe omitirá um tal detalhe, enquanto outra dará ao filho, logo ali, essa licáo. O Jerónimo recolhc para dentro do seu baldě os peixinhos minúsculos que os Pescadores descartam. e há-de levá-lo, poderoso, á família. Os pescadores escolhem e separam o peixe por afinidades: sar-dinha com sardinha, lula e carapau nos caixotes respectivos. O robalo é apanhado i mäo com gravidade. Os que näo pertencem a categorias palatáveis sáo atirados as alforrecas. O paido Jerónimo comove-se diante do trabalho deles. Se tudo fosse täo simples na vida como trabalhar. Mas há estes intervalos, em que prevalece a saudade. Intimidados pelo publico, os pescadores reagem como actores e falam alto, mostram mais hábito do que realmente tém. As mulheres, namoradeiras, atiram de vez cm quando uma alfor-reca ao camarada do lado oposto. E as gaivotas, percebendo que näo há esperanca, desapareceram no ar. Quem conheca a indeseritível suavidade de certos finais de tarde nas praias daquele lado, sabe o que se passa a seguir. Os pescadores e as mulheres ťazem logo ali algum negócio, depois alcarn os caixotes e desaparecem empoleirados em cachos nos tractores, numa saída um tanto ä maneira da opera de Pequim, que lembra os velhos tempos cooperativos. A praia é entäo devol-vida a sua verdadeira natureza e há uma calma colectiva que res-ponde a temperatura cerra do ar. Um cansaco do descanso. Uma sombrazinha de tédio, que näo chega a envenenar o momento. Elisa, de quem a filha, Catarina, se afastou com o pretexto de já ter apanhado muito sol, adormece na desordem de toalhas salga-das e garrafas de água moma, com a cabeca na areia. Sonha que passeia sozinha numa praia imensa, numa tarde literalmente dou-rada de Outono, e que nesta praia ela quer eserevev um poema. E caminha á beira-mar, concentrada no seu poema, que ela sabe que mais cedo ou mais tarde lhe há-de darprazer e satisfaeäo, e interpreta com amizade o olhar unívoco de uma gaivota de que segue as pegadas, como runas. Quando Elisa acorda, adormeceu Catarina com uma revista sobre a cara. Despcrtando há-de quei-xar-se, como Elisa sabe, e qucixar-se como se fosse culpa da mäe, da tinta que sc despegou da página e Uie ficou cstampada por causa da transpiracáo1. Mara e Carlos recomecam as acdvidades amorosas. Quando sai-ram do banho, correram na praia e acabaram a rebolar-se na encosta da duna maior, onde dois ou trés miúdos experimentam urn des-porto novo e seco com uma prancha de skimboard. Mara picou-se 1 Elisa näo gostará lá muito de se lembrar děste sonho, e prererc manter apenas a boa imagem de uma mulher na sua idade madura, solitária, pachurrenca, prazenteira, que passeia numa praia a corapor um poema. A verdade é mais complcxa. Acontece que Elisa quer-no sonlio! - e ä viva forca. que o poema rime; e otalpasseio. que podia ser, na realidadc, uma deanihulaeäo no minimo despreocupada. toma-sc num verda-deiro tormento. No sonho, e por derivaeäo de sentido, na realidadc, nunca lhc ocorre que o poema näo precisa, řorcosamente, de rimar. 46 fv. —P /V : "IP0,? Luisa Costa Gomes num espinho - que parecia rer vindo a correr o caminho rodo, com medo de chegar ati-asado. Carlos ajoelha-se, interessa-se. Para Mara, vé-lo ocupado a cuidar de coisa táo pequcna enche-a de respeito. Depois levanta-se, amparada nele, quer experimentar o pé. Sobre o mar, o Sol tem agora a realidade de um membra fantasma. CASA ASSOMBRADA Personagem A boa mäe e seu filho, Pedro A mäe da boa mác e a mäe dela Ariana e marido Jerónimo, filho deles A mäe do marido Adelina Moreira, mäe dc Ariana Elisa e Catarirta, sua filha. A amiga dc Elisa A mäe de Elisa A mäe da amiga de Elisa Berta (dita Belita) Manfredi O bebé de Berta Dr. Manfredi, pai de Berta e Mila Manfredi, mäe de Berta O Capitäo Bolloni O marido de Berta A empregada de Berta: uma brasileira As criadas de Mila: uma hcrdada da mäe A lilha desta, afilhada da mäe de Mila Uma família de quatro (i pai; i mäe; 2 filhos rapazes) Mara e Carlos, dois adolescentes A mäe de Mara e a mäe dela Os bebés das cinco da tarde, suas mäes e pais Os pescadores de S. Joäo da Capariea e suas mulhercs Vivi em Lisboa mais de dois anos num quarto andar sem eleva-dor, com um palhaco vindo dos extremos da Bolívia, um violončelista da Orquestra da Gulbenkian e um rapaz que ia ser pintor c que trabalhava, entretamo, nos correios da Graca. As cireunstán-cias que me levaram a esse sórdido apartamento näo me permiti-ram ser csquisita na escolha - acabava dc me separar c precisava urgentementc de uma casa - e um amigo disse-me que ali anda-vam ä procura de alguém para repartir as despesas. Lembro-me do pressentimento que me tornou logo ä porta da ma, no pé das escadas que recolhiam os cheiros dos cozinhados c dos lrxos dos vários andares. E a palavra que me ocorreu ä janela do meu futuro quarto que dava para as traseiras era täo pobre, täo desoladora, que näo me atrevi a dizé-la. Se alguma vez tivesse ouvido os meus pressenrimentos, teria abandonado logo a casa. Assim, fiquei. Por baixo, havia uma garagem que estava aberta vinte c quatro horas. Atendia sobretudo taxis, e se havia que bater chapa ás trés da manhä, era o que se fazia. Tenho a sensacáo de nunca ter visto o sol enquanto ali vivi. Do ar cinzento, íuliginoso, de traseiras encardidas, fechadas cm quadrado sobre pátios sujos - juncados das marcas 4S 49 Luisa Costa Gomes Casa assomhrada circulares de vaxos de plantas dcslocados -, lembro-me apenas do eco dos trabalhos da oficina c de um insólito pintor dc paredes fadista, contratado pelo administradordo prédio para realizaro impossível, e que usava cssa caixa de ressonáncia para se ouvir mclhor. Eu ten-tava escrever á tarde, acompanhada pelos choradinhos do pintor e o martelar constante do bate-chapas. E noite adiantada, ouvia muitas vezes arrastar movers no andar de cima, que näo cxistia. A Cláudia saíra de casa para um fim-de-semana em Espanha e morrera num acidcnte de automóvel. O marido e o filho aban-donaram a casa pouco depois e quiseram alugá-la. Quando foi a minha vez de entrar, ainda havia livros dela nas estantes. foto-grafias com o marido e com o filho e champôs na casa de banho. Cláudiatambém eserevia epenso que chegou apublicarumlivro de poesia. Na mesa-de-eabeccira estava só um caderno pequeno, manuserito, que náo tive euriosidade de ler. E a um canto urna area de couro que náo tive euriosidade de abrir. O telefóne tocava muito äproeuradela. Ecu tinha de dizer que elamorrera,e ouvir a estupefaccáo ou o choro repentino de quem ligava. rVIudei-me a meio de Julho, pintei o quarto que fora no tempo deles a sala de jantár e instalei os parcos haveres. Mas ter chegado assim a urna casa onde a vida de outros se interrompera enquanto na minha ressoava ainda o eco de urna vida anterior, esquinava as coisas todas num desajustamento miúdo, como o de duas rodas dentadas fcitas de propósito para näo se entenderem. Estava na Figueira da Foz a ver filmes quando soube que o filho de Cláudia tí vera um acidenle de automóvel em Espanha, partira as pernas e a bacia, escapando á justa da morte. Pouco depois, nem sei se na mesma semana, o Vítor dava um mergulho em Porto Covo, batía numa roeha e partia a coluna. A tragédia deles, quase desconhe-cidos, atingia-nos numa zona cinzenta, que nos implicava mais do que a meros espectadores. A Morte, na sua representacäo antiga de capa e capuz, rondava-nos a porta. Agora, viňte anos passados, aceito que seria náo a Mořte, mas talvez a Coincidén-cta, com o seulado rocambolesco de monstruosa curiosidade, que aparecia ali espinoteando como uma erianca impertinente num funeral. Havia um elemento já circense na aeumulaeäo dos desastres, como se a repcticäo na contiguidade quisesse arvo-rar-se em sentido, e nessa espécie particular de senlido que é o da narrativa ficcional. Naquele caso, uns Lantos factos díspersos transformavam-sc numa constelacáo fantástica de cuja ineredibi-lidadc decorria a propria cfieácia. Era difícil que a casa näo ficasse manchada por um mal-estar que nela se instilou como um cheiro. Estou convencída de que ajudou a cimentar o nosso sentido de comunidade, porque nós éramos as pessoas a quem acontecera herdar uma casa assombrada pelas vidas que outros deixaram a meio de repente. Näo digo que houvesse ali fenómenos estranhos e assustadores. Nós é que par-timos do princípio de que o mal podia acontecer. Havia as dificul-dades normais da vida em comum - a sempře injusta divisáo da conta do telefone, a limpeza das salaš que eram usadas por todos, o arranjo e desarranjo períódico dos eleett odomésticos e um pro-blema que se arrastou de tal modo que a água esteve cortada mais de um més - mas estas dificuldades eram enfrentadas com uma desproporcionada fortaleza de ánimo, uma quase abnegacáo, como se todos esperássemos uma catástrofe por osmose, por mera pressáo do lugar. Por isso, quando recebemos a primeira carta do chantagista, o meu impulso näo foi encolber os ombros, dcitá-la no lixo e csquecer o assunto, mas tomá-la täo a sério que acabou por nos ocupar a todos nas semanas seguintes. Jantávamos, Márcio e eu, em frente da televisáo, na diminuta sala esconsa, quando o chantagista telefonou a anunciar que devíamos descer a recolher uma carta á caixa de correio. Márcio, caracteristicamente, pousou o auscultador c contintiou a comer. Quando digo que todos esperávamos sofrer, estou a exceptuar 5° l : (jyr>*s-> Y Luisa Costa Gomes Casa assombrada tar a trés possibilidades crcdiveis: um alfaiate, rcservado c soli-tário. Tiziano Lamenti, que uma noite a convidara para jantar, a levara de carro e a trouxera de volta pelas onze da noite; este suicidara-se em cinquenta e quatro, suspeito de homossexuali-dade. O segundo, conhecido apenaspor Zitto, eraummeio deficiente, mudo, que carregava hortalica no mercado da cidade com resultados próximos do péssimo, um miserável a quem a mäe de Bolloni sempře protegeu, mesmo quando o Zitto foi preso e espancado na esquadra dos Carabinieri, acusado de sc exibir para uma senhora. (Ao investigar este Zitto, no entanto, Bolloni tro-pecara no nome de Freddo Ridde, que passara essa mesma noite na cadcia e aquele primeiro nome, täo proximo, na grafia do diminutivo, do seu, ficou algures reservado na memoria). O tcr-ceiro, já mais especulativo, scria um engenheiro que terá alugado durante uns meses um quarto no andar de cima, um Montegni ou Montagna ou Montevecchio - uma das tias dizia Pontolio - e que uns consideravam simpático e bem-parecido, respeitador c incapaz de engravidar uma rapariga, cnquanto outros reviravam os olhos e lhe chamavam sonso, sem aduzirem no entanto qual-quer prova. A demanda do pai verdadeiro transportou-o dos vinte e dois aos trinta e dois anos e revelou-se infrutífera. Palmilhou a Itália esquadrinhando registos c incomodando velhas em paróquias remotas. Elas davam-lhe informacóes, o mais das vezeš irrelevantes, lisonjeadas pelo intcresse dele. O dealbar da década de oitenta fé-lo desistir da busca. A conclusäo dela, no entanto, levou-o a um envolvimento cada vez maior na política do pais e a uma convcrsáo religiosa. Aos trinta e cinco anos, portanto, já ele era monárquico e católico arcaizante, defcndendo aos gri-tos na reuniäo semanal do seu grupo de activistas o regtesso da missa cm Latim, a deportacáo das abortadeiras para a Abissínia e a castracáo dos desviantes sexuais. Bolloni, que näo conseguia interessar-se pelas mulheres cnquanto viventes e falantes, apai-xonara-se entretanto poruma senhora de que nada se sabe, a näo ser que era lindíssima e com a qual nunca chegou a casar, nem provavelmente a falar. A teoria mais recente aponta para a hipó-tese de ela já ser casada e Bolloni defender a indissolubilidade do casamento, sendo o divórcio especialmente proibidíssimo no caso da existéncia de filhos. Daí, e por uma forca argumentativa de que se conhece o poder de arrasto, concluir-se que a senhora teria filhos, ou pelo menos um filho. As investigatjöes de Bolloni, se foram infrutíferas no facto conclusivo, näo o foramna imagina-jáo. Data dessa altura o seu interesse pela genealogia fantasiosa, convencendo-se ao longo de pcsquisas emotivas que iam fbndo e largo, de que scria filho do famigerado Preddo Ridde, o furtivo alma negra da extrema-direita, o arcanjo dessas ratlines por onde sc escoaram para o resto do mundo os nazis depois da gucrra, e cujo nome ele encontrara na mesma cadeia do inťorttinio do idiota Zitto. E bem possível que para conhecer o putativo pai se tenha aproximado de um dos grupos que operava na sombra do Banco Ambrosiano, cujo escándalo e denúncia veio por etapas a publico em 1983. Náo se sabe se algumavez terá conhccido Ridde em pessoa. Olhando para as datas e para os locais em que ope-raram, parece pelo menos provável que Bolloni tenha estado em contacto com ele ou mesmo participado em alguma «missäo» de caca ou de limpeza. Nunca se provou o envolvimento de Ridde no assassinato ritual maeónico de Roberto Calvi, enforcado em Junho de 1982 na Blackfriars Bridge, em Londres, com as mäos atadas atrás das costas e um tijolo no bolso do casaco. Näo tinha verdadeiras qualidades viris, este Freddo Bolloni. Era indisereto, palavroso. e näo raro exibia incompatibilidade com o espírito de corporacáo. Por vezeš, amuava com as hierar-quias, era desleal, c muito madraco. Encontramos-lhe na folha de servico uma repreensäo agravada por se ter gabado em publico ' ' /^-/~ o If Luisa Costa Gomes Casa assombrada dc torturav os presos políticos, isto ainda nos attos setenta, pouco depois de se juntar ä brigáda de combate ao terrorismo venne-]ho dos Carab'mkri. Qtiando chegou a Lisboa, portanto, atingia o maximo que lhe foi possível atingir de matnridadc comohörnern e como profissional. Apaixonou-se por cle o mulherio em peso da Judiciária. Os camaradas homens davam-llie, por isso, um grande desconto nas faltas. Em Lisboa, Bolloni apreciou sobretudo os restaurantes e as discotecas estilizadas, e ligou-se näo propria-mente de amizade, que reservava apenas a compatriotas e cor-religionáríos, mas de uma simpatia reforcada, a um informador da polícia, um curioso, cuja maior qualidade era uma memoria visual incorruptível. Recorde-se que computadores, em 1984, se encontrava um por outro em universidades, em grandes empre-sas, em instituicöes do Estado e muito mais esparsos ainda em casas privadas. Vivia-se entäo os primórdios desta nossa era e duplicava-se a papel químico tudo o que se mandava fazer ao computador. O informador amigo de Bolloni floriu na transicao em que a suspeita em relacáo ao computador náo se dissipara ainda e foi, estou čerta, um dos Ultimos arquivos biológicos do funcionalismo públieo. Era homem capaz de declamar nome, morada, filiacäo e numero do bilhete de identidade de todos os membros efectivos e de alguns simpatizantes dos partidos de esquerda para lá do Comunista, e tinha em mentě registo de casamentos, ajuntamentos, eruzamentos e encontros amo-rosos interpartidários por onde se podia escoar intimamente a subversáo. É claro que grande parte destas informacôes era difieilmente verificável. No princípio dos anos oitenta rudo comecou a mudar a uma velocidadc tal, que o mais bem informado dos denunciantes teria dificuldade em manter-se actualizado. A extrema-esquerda atingiu a idade adtdta e desandou, de modo que se adormecia maoísta e se acordava, na manhä seguintc, äs portas do PPD. E tudo o que se passara antes tingiu-se de uma čerta irrealidade. Mas enquanto o comum dos mortais se apabconava, casava e reco-lliia a penates e ao ramc-rame de uma sociedade normál, a guerra prosseguia nas mas de Roma tombando. de um lado e do outro, muitos mártires; em Lisboa, terroristas assaltavam um carro de seguranca e roubavam cem mil contos por ideais. E em Junho a Judiciária fazia uma busca á sede da FUP e iam presos mais de quarenta activistas. E o tal curioso informador e arquivo vivo encontrou-se, dc um momento para o outro, com uma valiosa oportunidade de negócio nos brai;os. Mais ou menos por essa altura, vi-me assombrada por um sonho de que nada posso relatar, excepto que era imensamente niti do e vinha acompanhado de uma conviccao profunda. Lern-brava, por isto, aqueles sonhos arcaicos que visitavam os heróis dormindo, e desejei muito a orientacáo de algum adivinho ou sacerdote antigos, cujas versoes modernas de videntes e astró-logos continue a desprezar. O sonho, no entanto, impos-se com tal intensidade, que me mantevc uns dias na vida acordada como sonámbula, fřxa nas imagens dele e no sentido que teriam. Pro-curei nas minhas relacoes imediatas algo que se parecesse com um interprete e lembrci-me de que deixara na Alemanha um amigo que, sendo absolutamente inculto e tendo ao todo na vida lido dois livros - um deles era AMetamurfose -, mc maravilhara na altura com esse dom para ver nos sonhos algo mais que va agita-cao neuronal. Escrevi-lhe a desericáo do meu sonho, tao porme-norizada quanto podia sé-lo, considerando que se tratava de uma natureza-morta com poucos elementos que - ate aí conseguia eu percebé-lo - faziam as vezcs de outros, ausentes. Escrever-lhe o sonho libertou-me da obsessáo e permitiu-me voltar ao conto 59 Luisa Costa Gomes Casa assornbrada que tentava tcrminar há meses. Como ele demorassc a respon-der, telefonei-lhe e conversámos sobre o sonho que, para ele, náo punha quaisquer problemas de interpretacáo. As referéncias que me deu tinham todas a ver com quadros conhecidos - um deles A Lkao de Anatomia do Dr. blicolaes Tulp, de Rembrandt - náo pelo tema, mas pclos ambientes, cores e posicáo relativa dos objectos. A explicacao que me deu do sonho, ainda que bem arquitectada e plausível, náo provocou no entanto em mim aquele choque que é o impacto íntimo total de uma certeza. Era uma interpretacáo que se ficava pelo indiferente verosímil e que, por isso mesmo, me deixou razoavelmente desolada. É que diante de mim se estendia já o rol dos intcrpretes e das interpretacocs, cada um mais desconchavado que o anterior. Bastante fora do que seria de esperar, convoquci uma assem-bleia de casa e dispus-me a receber de espirito aberto as opinióes obviamente contraditórias dos meus companheiros dc habitacáo. Talvez tenha julgado que, sendo dada como adquirida a impos-sibilidade de chegar á verdade do sentido do que me acontecia, contá-lo a Márcio, Paulo e Jonas seria uma forma náo de cami-nhar para a explicacao, mas de reforcar os aspectos fantásticos da situacáo em si mesma. Eles, no entanto, surpreenderam-me ao ouvirem a descricáo do sonho e o problem a que eu lhes punha num siléncio embaracado. Márcio bocejou um par de vezeš c Jonas, muito corado, torcia efcctivamente as máos de vergonha e considerava os calos nas pontas dos dedos, que massajava. Só o Paulo mc acolheu com alguma simpatia mas, pelo que ele disse, percebi que apenas ecoava o embaraco dos outros, obrigados a presenciar o despudor com que cu contava o meu sonho a pes-soas com quern vivia meramente no mesmo espaco, e com quern náo havia outra intimidade para alem da do co-inquilinato. Foi a minha vez de reconhecer o crro cometido, de íugir para o quarto numa aflicáo e de me fechar á chave por dentro. Procurava, entre a cama e a estante, um ponto de apoio. Incapaz de me acalmar, corro a escrever a cena no diário. Na minha confusäo precipi-to-me para a cadeira que desliza, bato com o cotovelo na esquina da secretária, enfio a caneta no olho esquerdo, saio de repeläo, desco as escadas a correr com a mäo sobre o olho ferido e apa-nho um taxi para o hospital. E é chorando sem emoeäo que sou introduzida no cubiculo do oftalmologista por duas enfermciras neutras, treinadas pela experiéncia para näo provocar a ira do utente. Era táo pequenina a médica que näo entrou logo no meu raio de visäo. Mas pondo a cabeca a trés quartos na dircc-cäo do gigantesco engenho oftalmológico, vislumbrei a mancha branca de uma bata que me acenava da banqueta. Deixou por dizer as frases protocolares, näo se trocaram nomcs em fichas, nem se quis ambientar a doente. Näo era meiga, ela, nem diplomata. Pediu que me sentasse na cadeira ä sua frente, e de longe ainda, como se fizesse questäo em näo me tocar, esguichou-me para o olho uma gota anestcsica e ordenou, feme, que cstivesse quieta. - Este olho - disse ela - viu recentemcnte algo muito forte. E eu, que detesto a palavra «algo» - causa-me um aperto reflexo no diafragma -, sai momentaneamente da confusäo mental para anotar que ela devia ter dito, em vez de «algo» a expressäo que lhe é superior, «alguma coisa». Presa na questäo de forma, näo percebi que a oftalmologista me perguntava, logo a seguir, em voz mais baixa, se eu tivera há pouco algum sonho de imagens fixas e intensas que me deixassc preocupada. Eu queria compaixáo, naturalmcnte, mas näo ouvi senäo diagnóstico. Era uma lesäo na córnea, tinha pela fi-ente uma semana deitada de costas, com o olho tapado por uma compressa de pressáo e pomáda de cloran-fenicol trés vezeš ao dia. Uma semana no escuro algo nos ensinará. A primeira coisa é que os dois olhos se movem solidários e quando um decide ("'/í.'^XjXé/,- ___p r-^ťv^-jL č~~ ' 4- Í/V1£S ' A/1 m 7y c- ■-f~vrv±J Luisa Costa Gomes Casa assombrada olhar, o outro acompanha-o neccssariamente. E isto podc ser muito doloroso. Condenada a inaccäo, pelo terceiro dia ouvi, enfim, numa bol.sa de eco interior, o que a oftalmologista me dissera sobre o sonho e voltei ao Hospital. Chcgar ao cubiculo dela foi, se possivcl, ainda mais simples, munida apenas de uma guia e de um recibo de consulta; nos dez minutos que esperei no corredor vazio atenderam-se trés desastrados que acabavam de espctar coisas nos olhos. Já sabia que a médica que eu procurava só estaria no fim-de-semana. O oftalmologista da quinta-feira, pessoa táo seca que fazia apenas gestos rectos e falava de longe csticando dedos que sublinhavam o enunciando da receita (duas vezes ao dia durante quatro dias), censurou-me a falta de cuidado na pressäo da compressa como se eu näo estivesse no meu per-feito juízo e mandou a enfermeira fazer-me urn penso exemplar. Foi já com urn olhar novo, esclarecido, que esperei a minha oftalmologista ä porta do Hospital, no sábado de manhä e a dei-xei depois passar por mim sem a reconhecer. Já no cubiculo, e eu esmagada pelo cngenho de luz e lente, respondeu-mc calma que sabia, com cfeito, interpretar alguns sonhos em algumas circuns-täncias c aquele horror ao universal soubc-me bem. Era pessoa eminentemente discreta, náo precisava de se chegar ä frente para ser vista. Ela trazia o seu proprio contexto. Contei-lhe o sonho e os sentimentos que desde entäo Ihe estavam associados e a busca que näo mc dava dcscanso. Seguiu-se um siléncio, um aspiro, um sopro: - Esse näo sei o que será - disse. - Em regra, só percebo bem os sonhos de minha casa. No corredor, os ciganos lcvantavam uma algazarra de insultos e impropérios tal que näo foi possivel continuar. Entraram dois homens de negro c de ambos escorria sangue do olho direito. Pararam na soleira, como dois pegadores de touros, muito direi-tos, afeitos ä dor, c olhavam de lado como galinhas, de sobrolho - I-. algado, altemadamente, para a oftalmologista e para mim. Tal-vez tenha sido por isso que os sentimentos de esperanca e de perfeita confianca que até ali inexplicavelmente nutrira por ela se tingiram de uma reserva, de uma quase suspeíta em relacäo á sua capacidade como interprete; afinal ela era a pessoa a quem acontecia aparecerem ciganos aos pares, sangrando c isso, por contiguidade, fundava o cubiculo numa subcorrente de perigo, da impressäo de que sc vivia ali uma situacáo-aviso. A oftalmologista levantou-se da banqueta. Diante dela, os dois homens ficaram mudos e cheios de reveréncia. Atrás, no corredor, onde a tribo se estabelecera, podia ouvir-se cair um alfinete. Percebi que a algazarra e o sangue seriam para ela coisa recorrente. Lidava com eles por sinais, observou-os na lupa cm siléncio, brusca, um pouco amuada, como se lhes levasse a mal o facto de näo ficarem tratados de uma vez por todas. E se eles gemiam, porque ela lhes tocava lá nalgum ponto sensível, suspendia-se, recuava um pouco o tronco, esperava um segundo aparentemente abstraída e vol-tava ao ataque. Eu aproveitei para me escapulir, porque vivia já em pleno a inseguranca em relacäo a tudo o que me levara de regresso ao , Hospital. No parque de estacionamento, manobrando compli-cadamente a viatura para näo bater em nenhum dos obstáculos expostos, semia, para me proteger, que afinal o sonho näo teria talvez importáncia de maior. que se explicava em definitivo pelos restos diurnos, e que, agora que o olho via e parecia adaptar-se , de novo ä funcáo, melhor seria dedicar-me a uma acťividade exte-rior, uma ginástica, o legítimo socorrer de outrem, a vida de relacäo. Esta é uma ideia aeróbica que tem o seu fundamentu, pois säo os próprios médicos a dizer que a maioria das enfermidades acaba por se esbater. No passardo tempo, desvanecera-se muita da intensidade do sonho. E saber que havia quem pudesse inter-pretá-lo era já consolacäo bastante. 63 0^7 /rys-Jfy 0 Luisa Costa Gomes Casa assom brada Deixei-me, portanto, ficar a viver na comunidade dos inqui-linos, e até com renovado entusiasmo, procurando estabelecer outros pontos de contaeto para alem dos dc mera residéncia. Houve ali urn interrcgno em que se foi ao cinema em conjunto, se encorajou o intercämbio de amigos, mas cedo cada um reincidiu na sua propria rotina e se contentou com os cruzamentos ocasio-nais äs portas do ířigorífico. Os sonhos, no entanto, näo só näo amansavam, como se tomavam cada vez mais ferozes, renovados também eles, e apresentando a curiosa caracteristica de terem alguns conteúdos diferentes, mas sempre a mesma forma. Tcnho uma memoria vaga dos meus Ultimos tempos na casa assombrada. E como estou convencida de que uma memoria vaga é sinal de uma experiéncia do caos, e da consequéncia infiro cien-tificamente a causa, concluo que teräo sido realmente confusos e conturbados esses mcses. Julgo lembrar-me de escaramucas, de quase conflitos, de um mal estar, de fiorários estudados ao minuto para que os enconrros no corredor da casa näo se proporciona^-sem. Viver no mcsmo espaco, contemplar da mesma perspectiva as mesmas traseiras, isso requeria protocolos passiveis de revisäo constante. O Paulo, pela Primavera, apaixonou-se e deixou livre o quarto, por onde passou depois uma sequéncia vertiginosa de ocupantes; o Jonas teve uma Bolsa e dissipou-se algures na Europa e o Márcio, rendido a evidéncia de que em Portugal náo se fazia carreira na palhacice, emigroupara Barcelona, onde me cruzei com ele, por mera coincidéncia, ao cimo das Ramblas, mis anos depois. Näo foi, portanto, nem por acaso, nem por necessidade, mas por uma ordern de causas ainda por identifícar, que mc encon-trei de novo á porta do cubículo de Lucia Pinheiro na Oftalmo-logia do Hospital. Ali, sinto-me como um férreo intelectual de esquerda que rumasse de joclhos a Fátima cm peregrinacáo. Ocupadíssima, ela estendeu-me um cartáozinho com a morada, disse que estaria em casa domingo de manhä. É um bairro impessoal, de vivcndas dos anos sesscnta, por trás das avenidas médias, os sinos de uma igreja próxima tocam, está um dia de sol intenso, tudo parece em relevo. Quando dobro a esquina vejo-a a sair do prédio, descalca, a correr em direccäo ä igreja enquanto poe desajeitada um lenco de lä preto na cabeca. Pelos metis cálculos, e por experiéncia propria, sei quanto é difícil atar no queixo um lenco que näo tem as dimensôes apropriadas. H näo posso deixar de íicar ansiosa com a dificuldade que, afinal de contas, só Ihe diz respeito a ela. Está vestida de minhota, com uma saia curta e a perná nua. Persigo-a dc muito perto estráda fora, indecisa entrc subir para o passeio ou manter-me no alca-träo, a saia pesada bate-lhc na dobradica das pernas ao ritmo da corrida. Consigo alcancá-la, ainda correndo digo-llie que devo ter feito nova lesäo no olho e que precise de um médico. Ela vira-se, nervosa, atrasada, de arrecadas e cordôes ao pescoco, de onde pende um coracáo de ouro carnudo e papudo como um embriáo. [á no sopé das eseadas da igreja ela diz-me que nesse momento náo me pode atender, que tem de ir ä missa, e pede-me que a espere á porta de casa. Pareceu-me, nessa altura, evidente, que teria de me mudar para lá. Sonhar nessa casa o que houvesse a sonhar e resolver o assunto de uma vez por todas. Assim fechei a casa anterior, arru-mei o cssencial na ruochila e bati-lhe ä porta ao fim do dia. Hla pôs-me num anexo, para näo interferir com a vida de todos os dias. Ali estive bem, consegui acabar o conto que andava entra-vado há mcses, só por isso acho qtte valeu a pena a mudanca. Mas os sonhos pararam, ás vezeš agarrava a restea de uma imagem, uma pulsacáo que ficava depois de acordar, uma ou outra assom-bracäo. Um dia sonhei nitidamente com o anexo em que vivia. Acordei desencorajada. Procurei Lúcia na sala de estar e con-tei-lhe o pormenor com que vira a clareza instantánea e fugidia das formas pregnantes da minha cama baixa, da estante abaulada 64 6S v? -frč, ^ ^ y Luisa Costa Gomes de livros, da secretária onde rcpousava a pessoa da máquina de escrever, como se tivessem nascido e se descolassem das paredes onde se haviam tornádo, com o tempo, evidentes e amorfas. Lucia ouviu atenta, naquela maneira que ela tinha de se pres-tar intcira ä ocupacäo do presente e no final, quando eu esperava, de chapéu na mäo, uma manifestacáo superior de outra inteligencia, cla riu-se. E escudada na intimidade que se constmíra a pulso nos Ultimos meses, comentou apenas que eu era mesmo parva. FANTASMA Muitas vezeš, já no carro a caminho de qualquer lado, pas same pela cabec;a que a casa em que agora vivo acabou dc explodir. Ou me csqueci do gás aceso, ou óleo caiu na água, ou ela atingiu um pontode perfeita incontencáo e rebentou, espalhando manus-eritos pelas redondezas. Outras vezeš, ao descer a ultima rampa que me traz de volta, e se aeontece, por um acaso ainda maior, cruzar-mc com uma ambuláncia que sobe, oeorre-me que a casa ardeu, ou arde ainda, dessa mesma explosáo em que näo pensei á partida. Hoje parece-me que o sonho que me assombrou näo foi nem adivinhacáo do futuro, nem sintoma do passado, nein sinal dos céus, mas a vida em si mesma que me visitou naquela noite. 66 De vez em quando volta para mc assombrar, quando menos espero, ameio de uma viagemnocturna de carro na auto-estrada, ou de uma frase de que subitamentc me ausento. incerto de quem será o autor das ultimas paíavras. A lembran^a ataca-me e eu recuo, alerta, preparando-me para a onda de culpa e de vergonha. Vejo-me sentado mim sítio escuro, um tecto baixo, míra círculo de cmngas. Tém as camisolas molhadas da chůva e asbotas sujas s. - de lama e relva. O eheiro é o da conspiracáo para fazer o mal. No ; centro, deitado no cháo de cimento, um rapazinho nu. E o que vejo agora e me toitura. A aparicäo é um comboio iium tunel, gri-tando ä aproximaeäo, decrescendo para o negro com um sorriso mau - esmagando tudo na passagem. Anos inteiros sem aconte-i cer. Depois, num dia em que me sinto feliz sem razäo nenhuma, ie oico despreocupado o rádio no carro, o fantasma aparece no retrovisor, uma auséncia muito densa sentada no banco de trás, :: e impôe-se. E vejo a erianca imóvel deitada no chäo e näo posso íázer nada. v-- tím dia, revolto-me. Sei di/.er exactamente que atravessava o parque com o Luciano pela mäo, e o menino vinha ensimesmado 67 c^r?^ typ/] ft? 'KlfiQ Luisa Costa Gomes Fantasma de uma festa de anos em casa de um amigo. Já desistira de lhe fazer perguntas e tentava distraí-lo com os nomes dos animais e os sons que elcs fazem c conccntrei-me nos patos do lago insípido e foJhoso á procura de um pormenor com que pudesse conquistar o meu filho. A máo do lago rodeou-mc entáo a nuca, puxou-me a cara para a superfície onde boiavam uns arremedos de ncnúfarcs, e obrigou-mc a olhar. Náo contava, de certcza, com a resisténcia que lhe opus. Forco a cabeca para trás, mas screnamente, para näo assustar o Luciano e na luta que se tráva pela imagem que antes fora nebulosa e geral, náo mais que uma impressáo, vejo por fim destacar-se uma figura, como num retrato a óleo, com o respectivo ťundo trabalhado a terra qucimada, verdes e ocre e efeitos que realcam e ensombram. Reconhcci o personagem daquele retrato. Procuro-o depois em casa nas fotografias desse tempo e näo tenho dúvidas de que seja o lendário Emílio, o vándalo, o ferido, o macerado, o sutu-rado e cicatrizado Emílio que subia muros indiferente aos cacos das garrafas, que passava descalco nas foguciras, que fervia cobras e cmpalava galinhas, roubava fruta verde e fugia de casa de scus pais, e dormia sempře sentado - dizia-se - em permanente estado de alarme e alerta, inatingivel, inimpressionável, fixo num únieo tito hivisível, em cuja vizinhanca náo se conseguia respirar. Convenco-me de que foi Emílio o incitador da torrura. Emílio quem primeiro, logo antes disso, nos trouxera a notícia da imper-feicáo daquele rapaz. Foi ele que nos ensinou o que queríamos ver, o que queríamos que ele nos mostrasse, a tal imperfeicäo. Decido vc-lo. Emílio atende-me agora ä porta de pantufas. rodeado pelos einco filhos que parecem todos iguais e olham o estranho confiantes, fazendo-me recepeáo de tal forma calorosa que me vejo for^-ado a enxotá-los bonacháo, como quem despega lesmas dos bracos com movimentos empastados. Emílio parece feliz e aliviado de me ver, a mulher acabou de sair para o super- 68 _ ^__^___TTT^ZZI__________-■__ mercado e deixou-o com as eriancas, que ele entretém como pode num regime de videojogos e dvds. Enquanto me estende o copo de cerveja, noto-lhe uma vaga assimetria na cara, um olho mais vivo do que o outro, as pregas junto á boča mais marcadas no lado do olho semimorto - vítima de um foguete de fim de festa -, como se cle tivesse comecado a murchar por dentro; mas näo é isso que mais me intriga nele. Näo nos víamos há mais de trinta anos. Aparece-me agora nor-malizado, sem sintomas, equilibrado e assente numa vida que imagino pacatamente atribulada e tingida de urna infelicidade inteiramente normal. Aquele remoto rapaz feroz está agora que-brado e sentado. Fala serenamente dos filhos, com movimentos cttrtos de cabeca na direccäo do sofá onde eles se apinham, e insiste em enunciá-los a todos pelos seus nomes próprios - Jose-lito, Joel, Jonas, Jasäo e Joly - e tece-lhes os louvores habituais e as recriminacóes gerais de queni perfeitamcnte os desconhece. Sem jeito para dissimular a falta de ansiedade, levanta-se nos interva-los do diseurso, em busca das bases para os copos, por gavetas e recantos, para näo estragar o tampo ä mulher. E vai pondo, espa-cadamente, urna ou outra pergunta em cima da mesa. Mas eu, o mais das vezes, näo tenho coragem de a recolher. Näo quero que Emílio saiba nada. Näo quero comparacôes de sucessos e fracas -sos, quantidadc e qualidade dos filhos, capacidade de resisténcia ao tempo, ao casamento, volumes dc vitalidade, numero aproxi-mado de decepcôes e proŕundidade da tristeza na maior parte dos dias. Trago a missäo de saber, mas näo tenho a coragem de pergumar. Como estou perdido no caminho, e me vejo acossado por memórias de factos de que náo tenho formalmente a culpa, precipito-me, como é hábito, para as conclusôes. Inquieto-me ainda mais quando pressinto que os filhos dc Emílio se calaram näo para ver a televisäo, mas para ouvir o que dizemos. lntimidam-me, e oico acanhadamentc a Emílio uma . s-p o ý cjyvo«s7' ft? 'tfJU^J Luisa Costa Gomes Fantasma descricäo muito detalhada das diferencas entre os vários tipos de almoŕádas ortopédicas - cuja marca aiemä ele represcnta. Quero sair dali ä pressa. Emílio näo estranha isto e näo soiicita uma des-culpa. Abraca-me e beija-me na čata e mantém a mäo no meu ombro e diz-me que apareca sempře que quiser, cnquanto me leva ä porta. Quando saio, os filhos de Emílio já näo estäo na sala. Sai com um sentimento confiiso que depressa se transforma numa tristeza abaulada, que abränge a sua vida toda - e inclui o seu proprio filho, que ele prefere a tudo, por quem desiste dc tudo, a quern arrulha, e que ele passeia, e por quem cspera, e softe, c anseia, e por quern se sente sozinho e demasiado inca-paz, aquém do que é preciso, rimido daquele olhar rigoroso da crianca que o trespassa c se sabe insubstituivelmente adorada e perseguida. No passeio, onde já anoiteceu, deseja como nunca a claridade da visäo-e näo ainda a coragem da accäo - que lhe permita de uma vez por todas alocar o fantasma, entregá-lo ao dono e desfazer-se dele. Quase determina ir de novo ao lago, submeter-se á garra que lhe puxa pela nuca, para poder ver de novo com clareza - e voltar a partir investigando noutra direccäo. O que mais o intrigara no Emílio fora isso mesmo, aquele estar inteiro e certo na sua sala, com seu rol de ignotos crimes e cauda dc vitimas de breu c mats cinco criancas que amava e inocentemente desconhecia, sobre quem näo tinha duvidas, nem hesitacöes, nem sonhos dourados, nem deliquios de anteeipaeäo, nem vontades de triunfo, nem sentimento de troféu, nem expectativas frustradas, nem vin-ganca, nem ressentimento. Flavia um amor que aeeitava, desco-movido, aqueles seres como fenómenos naturais que seguiriam o seu curso sem intervencäo. A visita a Emílio näo foi, por isto, curativa. O fantasma, enlou-quecido por um ciúmc, um amuo decrepito, tornava-se assiduo, quase violento. Aparecia-lhe in conveniente no duche, acenava-lhe de outra mesa no cafe, interpunha-sc, quase histriónico, quando ele falava a algum conhecido. Mas a urgencia de se livrar do intruso vem apenas do imaginär que a besta lhe ronda já o Luciano, e isso impede-o dc dormir. Decide visitar em expedicáo o local do nasci-mento do fantasma - talvez tocando nas paredes sujas da casa da lenha, onde se deu o caso, procurando por lá algum sinal que lhe abra a imagem toda e o faca lembrar e compreender. Escolheu um dia de Primavera, quente e doce, para encontrar p que procurava; andou a pé pclos caminhos da aldeia deserta, meteu-se por eucaliptais, saudou os dois pinheiros testemunhas do seu primeiro - e quase único - acesso de fiiria infantil. Reco-nheceu de longe a casa da lenha e os grandes jardins um pouco áridos e despiu-se e tomou banho no tanque e os cheiros eram os mesmos ainda, como era ímutável o estalar da caruma debaixo dos pés e para si mesmo, enquanto observava, dizia que fora sua aquela infäncia de pinhas e de pinhöes, zumbidos dc mui-tas moscas, tflia imponente e alfarrobeiras, giestas e latadas de buganvilias no meio da planicie aberta que protegia; e também uma infáncia de fogäo a petróleo onde o garrafao se colocava invertido. E se partia com desconcertante facilidade. -Tive um grilo numa gaiola - disse cle a Luciano - quando era da tua idadc. Queria mais uma vez livrar o Luciano do mal de estar sozinho, mas o miúdo olhava para a televisäo e o pai näo vinha a propósito. Lembrou-se entäo exactamente de quem estivera dentro da casa da lenha. Emílio tinha um assistente que executava as ordens. Ninguém falava. Todos fixos na vítima, unidos numa campanula quente, suando de medo e excitacáo. Lembrou-se do nome de quem estava ä porta, um rapazinho vivo e cheio de iniciativa, 70 IP É 71 • />-f-°if «jp /fi>r-Jfy (7) -j^Omjj^y <0!U>J'řP ^^£._J?-____—-- Luisa Costa Gomes tentado impedir a humilhacao da crianca? Se tivesse corrido a chamar alguém, se conseguisse ter vencido o meu proprio medo, a minha curiosidade? O fantasma desta memoria volta ainda de vcz em quando, sente-se um bocado desamparado. É um desses fantasmas sem abrigo, c eu acolho-o e deixo-o andar por aqui, desde que ele se porte bem. c näo interfira no dia-a-dia. O AMANTE NATURAL lila dizia sempře que nunca na vida poderia ter estado com outro hörnern. Elc era o seu amante natural. Depois fazia esta coisa inerível: desabotoava-lhe o punho da camisa, puxava-lhc a mäo direita até á altura da boca, e beijava-lhe o monte-de-vénus. Ele corava, ela dizia que elc estava a corar, e todos se riam. Os olhos dele pousavam inadvertidamente nos do genro mais novo, que bai-xava a cabeca, apanhado em falso. Desde que saltara para o barco, perdia o pé. Caminhara até ä ponte adiantando-sc ao amigo que lhe fazia companhia, o mudo amigo grave. E lesto, elástico, de manga curta apesar da névoa, inspeccionara proa e servico de bar, imitando um miudo que excitado imita um miúdo que entra num navio. Distrairam-se depois a seguir a simples manobra da largada, um hörnern robusto de camisa branca que desengaja num saeäo a corda da amarra; o amigo sossegado, atento; e ele fisicamente arrancado da mar-gem, c debaixo dos pes a massa incerta c aquele fio de sentido que se corLava e ele via, pela primeira vez, a amurada viva, uma cerca branca de ferro, e um banco corrido de plástico. A separatio racha-o pelo nicio - o Antonio Mendonca engenheiro civil 74 Luisa Costa Gomes O amaiite natural que ia ver uma obra ao Pinhäo, casado com trés filhas maiores, um neto macho a caminho - e o outro, uma coisa alheia, um rasto sem luz, näo propriamente uma sombra, que lhe dizia dentro da cabeca, impertinente, já estive aqui, sei exactamente o que se vai passar a seguir. - Tenho sessenta e cinco anos - disse ele ao amigo - e nunca andci de barco. Espantou-se o Jaime, que reagiu ao espanto com indignaeäo. E a casa na praia? Os Vetoes dentro de água? A pesca submarina? Nunca andaste de barco? Nem a gasolina, nem a remos, nem de gaivota? Fiz agora mesmo essa descoberta, respondeu ele, nunca andei de barco na minha vida. - E que tal? - perguntou o Jaime. - Isto náo é nada - rcsponde. - Já passa. Mas as margens afastam-se, por mais que estenda o brago, alon-guc os dedos, há um momento em que se perde o tacto, agarrado á branca amurada com picos de fermgem, que deixa tinta nas palmas, para limpar discretamente ao rabo das calcas. A primeira curva do rio, ä desfiada de pobres aglomeracóes interrompidas, fei as granjas cobertas do embaraco da exposicáo permanente ao olhar dos barcos, Antonio Mendonea é levado aos tempos da guerra, a lugares sujeitos a tirotcio, a bombardeamento, presos no pesadelo da retaliagäo. O outro Antonio Mendonea, de costas direitas, ao lado do Jaime, explicava-lhe, a pedido, o funeionamento da eclusa. Quando deu por si, tinha um circulo de ouvintes näo despi-ciendo, ouvintes que surripiavam a inforrnaeäo, näo muito próximos, mas fixos nele, lá dando aqui e ali a sua cotovclada coniveute ao parceiro, e alguns surpreendiam-se a assentir com a cabe?a quando ele fazia a pausa pedagógica, para deixar tudo aquilo ir assentando no Jaime. Mas na eclusa propriamente dita, a olhar para a alta parede negra c limosa, a interrupcäo do flttir ip disereto do barco e a prisäo apertada dos paredöes do dique cor-romperam Antonio Mendonca, que se subdividiu em quatro, ou melhor, cada um dos anteriores se partiu em outros dois. Um par manteve-se na zona da proa, como pilares a um lado e a outro da cabina cnquanto o terceiro pedia^m tónico ao empregado do bar e o ultimo, sentado no banco corrido da popa, cobrindo a reta-guarda, aguentava sozinho o peso mnésico. Este sabia que vinha aí um penedo, o primeiro penedo do pereurso, e sobre ele ia estar um pássaro a que chamaria, quicá impropriamente, garca, porque nenhum dos quatro Antonios percebia de pássaros. E ia espantá--lo, uma garja ali, e apenas porque ignorava a fauna daquelas tais margens. Deu por si, na proa, confuso, irrespirável, e os discípu-los que o tinham ouvido explicar o mecanismo da eclusäo, acei-tando pormenores c temios técnicos como iätalidades, aproxi-mavam-se de novo, sorrateiros; mas ele calou-se, depois de dizer baixinho ao ouvido do amigo que estava um bocado cansado de estar de pée que se ia sentar lá atrás, a olhar para ontem. O Jaime, apesar de silente, näo deixava de ter sensibilidade, e estranhando o incaracterístico passe no fŕaseado - que pôs logo na conta da cxcitacäo da viagem -, resolveu acompanhá-Io. Pelo caminho, em lenta procissáo sinuosa, António Mendonca via cabeeas, umas eseuras, outras claras, e nelas cstampada a mesma expressäo atávica das aldeias, das feias granjas, do trabalho dos campos que escorrem para dentro dos rios, das casas inacabadas e pintadas de castanho, de verde eontraditório, pela urgencia do trabalho inin-terrupto dos campos e dos biehos onde tudo se esvai. A cabeca da vinganca. Passou por um grupo que comentava os méritos relati-vos das companhias de aviacäo. Prcfcriam, de uma forma que näo tirtha apelo, a companhia tailandesa, excepcional. António Mendonca é que passava um mau bocado. A trans-posicäo do estreito do Carrapatoso, a ascese suťocante, ainda ia durar uma boa meia hora. E aquela profusäo de si proprio, espa- 76 Luisa Costa Gomes O amante natural lhada da proa ä popa, näo o deixava pensar. Procurou concen-trar-se nas coisas pcquenas: o belo dente incisivo que o sorriso fraterno e ausente dele mesmo, Antonio Mendonca. de cotovelo apoi ado no bar, lhe reenviava ao ouvir, do empregado que lhe ser-via bebidas, as notícias, quaisquer que elas fossem; mas interŕeria nele, pelo caminho de um Mendonca ä sua projeccäo, o claro céu imenso, e entre o inŕínitamente pequcno - a mancha branca aqui na unha do polegar - e o infinitamente grande do ar por cima, näo havia meio termo, nem escala, nem escaier. Entravam navelocidade média do cruzeiro quando o Jaime lhe tocou no braco, e cle viu, porque já sabia que ia ver, o solarengo paraíso familiar, a casa altiva senhorial, a mansäo oitocentista, bem cuidada, buganvilizada, preparada para a visita cerimoniosa e cheia de falsas memórias. E brindaram mudamente os quatro mendoncas sem gesto que os denunciasse, aos avós que foram e ainda náo morreram, ä casarona murcha c melancóľíea de pais ausentes na guerra, de filhos que dali häo-de sair para os bons países e regressarem vergados ao peso da noiva e do diploma. Mas o velho carvalho centenário... António Mendonca é agora uno. Absorvcram-se as dispersôes, é o mesmo exacto da terra firme. E escolhe este momento para gritar um grito que alarma os outros, porque vé o pé do irmäo mais velho, Paulo Eduardo Carlos Arronches de Mendonca, primogé-nito, médico, salvo da guerra para herdar o nome, o pé saindo sob a forma de fumaca, do bico fino da torneira por onde se serve, a pedido, a cerveja dc pressäo. E que ele sentiu no peito o aperto aflitivo desse irmäo no barril de cerveja e a forma houdínica que inventou para nascer. Nascendo pelo pé, sob a forma de ťumo, o irmäo gasoso, salvo da guerra para morrer na Suécia, n o frio de um acidente de automóvel, com Misa, gravida e amuada. O amigo pcga-lhe de novo pelo braco, olha-o, interroga-o. Está genuinamente perplexo. Que irmäo? Que é isso do irmäo? Tu tens algum irmäo? Nunca me disseste que tinhas um irmäo. A encosta era agora täo bonita e ordenada, na sua hierarquia monótona de vinha, o sol batia claro, pregnante, näo permitia inconsciéncia. Antonio de Mendonca fieou-se pelo óbvio: o que ele dizia ser o incidente--chave da sua vida, a noite em que pai e mäe decidiram sacrificá-lo ao nome, e salvar o irmäo da guerra. Matedalizaeäo dessa noite, o dia em que apanhou o aviäo, aos vinte e dois anos, já engenheiro, alleres, para Angol a, tremulo do nome que levava, séquito do nome que levava, c que havia de atrair as balas em rajada. O que ele agora calou diante do amigo Jaime foi o ataque de riso que ele tevc, as lágrimas de riso, a carta arnarrotada na mäo, a noti-cia formal em que o pai ressentidamente lhc anunciava que o carro do Paulo derrapara lá na Suécia, caíra ao fiorde, esmagando dois suecos degalochas que passavampara apesca; e que o neto, o neto macho, o que valia, nunca havia de nascer dali. Só dele, António, tem cuidado contigo, quero dizer comigo. António na guerra grá-vido do seu nome. Ele investigara, muito depois, isso dos fiordes, e era consensu geral que os da Noruega cram os mais bonitos. - Estou faito disto - disse o faime. - E água, água e mais água. Vamos em seis horas e meia de água. Saímos na Régua, tcnho lá uma tia. Havia muita realidade na Régua. Era a subir, a tia estava no alto de uma avenida enřárruscada, fazia questáo em viver no meio do povo. Adoptara o hábito e os costumes dos chineses, emendara para Liu o seu nome, embora, aos oitenta e cinco anos, já poucos restassem para Ihe kmbrarem o original. Era pequena e rápida a tia Liu, con-fessando a António dc Mendonca, parádo a meio da sala em que se acumulava iconografia mista, que se zangara definitívamente com o Partido após a miséria, a desgraca, a vergonha dc Tiennamen. E con-cluíra, soturna, passando-lhe o copo baco em que servira um Porto: - Aquilo näo é uma demoeracia popular. Näo me venham cá com cantigas. 78 79 Luisa Costa Gomes O amantc natural Jaime ajoeihou-se aos pes da tia Liu e ela, com inesperado zelo, encavalitou-se nele. Antonio Mendonca nunca vira táo lesta invalida. O sobrinho carregou-a as costas para a impropriamente chamada sala de jantar, um quarto repleto de caLxotes dc papeláo onde a tia Liu guardava o bric-á-brac das memórias de cinquenta anos passados na China revolucionária. Jaime sentou a tia numa cadeira de bracos c continuou a falar-lhe, filial, silvestre, de um laranjal que ali teria havido no tempo do tio Apócrifo, um laran-jal que ele dizia perfeito. Liu apontou, num sorriso que era tudo mcnos triunfal, para a janela da sala escura e abrindo as portadas Antonio de Mendonca, sem ter dc se habituar á luz da tardc, teve a revelacSu do laranjal, presumido em suas copas redondas e belos contrastes, quase quase mimoso, nas traseiras da casa burguesa que a tia Liu herdara de um sobrinho-neto, por sucessivo.s golpes de um destino antinatural. Jantaram do saco de plástico que os viajantes trouxeram do supermercado. A tia Liu cxplicava as incomodidades da sua vida e a forma como ela as tratava. como problemas sem valor que se resolviam por si próprios. Tinha a ajuda de um ex-camarada do Partido, que regava o jardim, apanhava as laranjas e lhe punha coisas necessárias ao alcance da mao. Antonio de Mendonca, comendo, náo percebia com rigor em que consistia o ambiente festive da sala, mal iluminada por um candeeiro de pe com um abat-jour vermelho-sangue de franjas, decorado com motivos do realismo socialista. E acabou por considcrar que era a positivi-dade c a forca animica da tia Liu que coloriam a sala sincretica de um sopro quase sexual. Ela fez questáo em quc passassem a noite. Jaime náo lhc sabia fazer frente, a sua autoridade sobre ele parecia narural, e nem foi capaz de lhe chamar a ateiicáo para o facto de náo sérem já pessoas novas, habilitadas para tais aventuras do dormir intem-pestivo, e de a parte desabitada da casa estar coberta de pó e a cheirar a mofo. Antonio de Mendonca ainda teve a veleidadc de opor alguma resisténcia, mas Jaime iravou-lhe o braco, fez-lhe um gesto de contemporizaeäo. E levou-o por um corrcdor estreito para uma ala da casa que Antonio Mendonca reconhe-ceu perfeitamente. Subiu as escadas já cativo do conhecimcnto que elas espontaneamente ofereciam. E, entrando no quarto que improvavelmente reconhecia como o seu, olhando em volta, sen-tiu de novo a vida como nas agudezas da infäncia, e com um nó na garganta comentou, tal filho pródigo, que alguém mudara o candeeiro da mesinha-de-cabeceira. Jaime olhou-o, preocupado: - Queres que telefone á tua mulhet? Deve tcr respondido ao Jaime, näo se lembra; sentou-se diante da janela aberta, na senhorinha azul, e caiu a dormir. Voava gente ä volta dele. Acordou gelado a meio da noite, dentro da ima-gem nitida do quarto da pensáo suíca em que passara com Lucy a lua-de-mel. Era meiga, Lucy, era uma pessoa macia, mas resi-liente, näo se amolgava com facilidade. Ele apertava-a com as mäos e metia-se dentro dela e ela recebia tudo com empenho e agia äs vezes por conta propria e depots suspirava e voltava ä forma original. O lugar que ela escolhera para cenário da novel actividade era uma esläncia de esqui, um quarto apainelado a madeira cor de mel e acolchoados garridos na cama de casal, com umajanelarasgada sobre um vale diante deumaparede demon-tanhas que de vez em quando, em virtude de conjugates amo-rosas da atmosféra, ficavam azuladas. Nesse quarto, Lucy, uma noite, a segtmda se näo a terccira do idílio, tornou čerta iniciativa. E Antonio de Mendonca, estar-recido, contivera um ataque de riso perante o inesperado ofe-rccimento. Na manhä seguinte, exausto de uma noite reflexiva, encheu Lucy de carinhos, deu-lhe o chá por uma colherzinha de prata, evitando no entanto olhá-la de frente; e quando faziam delicados passeios de mäos dadas pelos caminhos conhecidos, So Luisa Costa Gomes pelo pequeno bosque de abetos nas proximidades da pensáo, e iam enlacados as lojas de souvenirs, Lucy tagarelando sobre as pai-sagens e o resto do fold ore local, Antonio de Mendonca apren-dia a ausentar-se na exacta proporcao das temas festas que pro-digalizava á mulher. Náo sabia onde estava. Acusou-se de olhar concupiseente outros casais dc esquiadorcs, dc especular sobre o que fariam eles sozinhos em seus quartos apainelados, se todos teriam de aprender a dissimular o mesmo horror. E abismou-se, culpado, no inferno que ele julgava ferver-lhe algures nas pro-fundezas. O casamcnto durava há quarenta anos, e eram felizes. Nessa noite em casa da tia Liu, acordado de repente scm saber porqué, olhando de cima o laranjal, ligou enfim o ataque de riso que cle conteve ao ataque de riso que ele tcve; lamentou a via-gem que deixara a meio. E scntiu pena de nunca ter chegado a conhecer o irmáo, que ele tanto podia ter amado, morto antes de tempo e infrutifero no amor desde entao. 82 DOUBLEFACE Luz mutável nos monies. Nüvens rápidas eriam sombras na ondulacáo da erva. Depressôes leves cobertas de musgos e mato raso descendo a perder de vista, uma sugestäo muito fina de haver mar, fora do alcance dos sentidos. Aqui e ali o lombo de um penedo, um charco de ras, um muro dc silvas. Mas nada quebra o espaco aberto que desliza. O ar é azul de manhä, quase sugerindo temperatura ideal eterna, mas o vento sopra de popa, de trás da casa, e da varan da sobre a planície sente-se a vertigem de um ponto de fuga. Pelo carreiro que serpenteia, acompanha-o á esquerda um canavial, passa urna clareira e um pinheiro retor-cido como uma labareda, antes dc a eurva descer e deixar de ver a casa. Oculto, respira, continua. Ĺ a primeira vez que estäo os dois sozinhos numa terra estra-nha. Quiseram casar como sempre tinham vivido, no meio da grande família e dos amigos anligos c concordaram passar depois um més longe. Ľscolhcram um longe com água corrente, o exo-tismo dc uma lingua que náo compreendiam, e a aventura da solidäo. Vinham sedentos um do outro, passaram os tres primei-ros dias na cama. Nos intervalos, olhavam-se de muito pěno, sem .s aj70!?? Luisa Costa Gomes Double/a cc falar. Fizeram um passeio a pé, e nele zangaram-se sem saberem dizer porque. Estava muito vento, ele avangava diante dela, vigo-roso, alerta, eiifeiticado por tudo quanto via. Ela náo respirava bem em campo aberto, os olhos näo tinham onde pousar. Deci-diu voltar ä casa. Na varanda, sentava-se velhíssimo o casal harmonioso, balan-cando lado a lado nas cadeiras, de manta sobre os joelhos, embora o vento pouco refreasse o calor abafadico. Lcvantaram os olhos do livi'o único que liam, de cabecas encostadas, para lhe sorrirem, mas abstraidos, como se ela fosse mais uma nuvem do céu. Nina vivia seduzida no temor por cstes velhos. De manhä, no quarto, aninhados urn no outro, ouviam-nos conversar na cozinha a fazer café, ouviam-nos na sala, ouviam-nos depois enquanto prcpara-vam o almoco, num diálogo ininterrupto, onde näo havia alte-ragöes de tom, nem emogáo vána, nem pausas longas, apenas o diminuto siléncio da hesitagäo. Quando o jovem marido saía para o passeio da tarde, ela ficava a dormitar no quarto, gozando o abandono, e ouvia os donos da casa a zumbir na varanda. a mulher lendo alto passagens de livros, recortes de revistas, e recomecava o vaivém do comentário. Ouvia-os depois no jardim virado ao vento, plantando e podando, e de novo na cozinha, e na sala, e insone, ouvia-os as vezeš ainda pela noite dentro, ines-gotáveis. Ele näo resistia a ir cada vez mais longe. Näo estabelecia metas, näo registava feitos, simplesmentc näo conseguia impedir-se de ir todos os dias mais longe e de voltar a casa cada vez mais tarde. Nesse primeiro dia em que se zangaram sem saberem porquč, ele desceu a ondulagäo que se abarcava da varanda, virou a curva do pinheiro e desapareceu. Chegou a um lago onde encontrou uma mulher muito branca, nua, que lhe estendeu os bracos. Ele despiu-se e banhou-se com ela; näo teve medo, soube que cla o aceitatia logo e abracou-a e toda a tarde a abracou, ate cair a noite e ela se afastar, desvanccendo-se algures, talvez dissolvida na água do charco. No outro dia passou o lago e alcancou um bos-que onde encontrou um sábio que toda a tarde lhe disse coisas sábias que ele fez o possível por nunca mais csquecer. A mulher especulava sobre o que diriam os velhos um ao outro. Talvez falem sobre as memórias que tem, disse ele, i noite, na cama. Náo há fotografias na sala, em lado nenhum, näo há retratos de filhos, de pais, nem deles próprios quando novos, disse Nina. Talvez comentem factos da vida das aldeias, disse elc. Aposto que nunca saíram daqui, disse cla, näo conhecem mais da terra que a casa deles. No dia seguinte, intrigada, perguntou-lhe: Achas possível que eles estejam a discutir o sistema métrico? Ele näo estranhou a pergunta. Tinha-os visto acalorar-se pela pri-meira vez sobre o comprimento de uma corda de juta e o hörnern patecerainflexivel. Näo dizia nada, limitava-se a negar, abanando a cabega, de olhos fechados. Quando ele saiu no dia seguinte para o grande passeio, ela tirou da mochila a tela e os ólcos e pös-se a olhar para a planície. Mas o que queria verdadeiramente pintar era em linhas gerais o movimento sincronizado do casal harmonioso a por a mesa do jantar. Ele a toalha, ela o jarro do vinho, ele o talher, cla os guar-danapos nas argolas, aos pares, primeiro dois, depois outros dois, tudo isto quase sem levantar os pes do chäo, com forgoes leves do tronco, e quando um avangava a mäo direita, o outro recolhia a esquerda, unidos pela cabega, debarxo do candeeiro. Era urn presépio pitoresco em que acumulavam as funcöes de pai e mäe e burro e vaca. E estrela do presságio. A planície näo se deixava representar. O vento mudava as cores constantemente, distraia das formas que sc tornavam vagas, debotavam do perímetro e pareciam elas mesmas apari-góes haladas. Dedicou-se primeiro ä esquadria c ao parämetro e obteve em tragos grosseiros uma paisagem semelhante na forma 84 ; a/5 Luísa Costa Gomes Doubleface I a um penico, e na alma, a um alcoólico viciado no jogo. Ele, pelo seu lado, depressa entrou numa area rochosa, curioso do que iria acontecer. De trás de um penhasco saiu-lhe ao caminho um bando de malfeitores que, por lhc poderem roubar pouco, lhe deram muita muita pancada. Ficou a sangrar, depositado sobre um penedo, mancou até casa já noite feita, e deitou-se na cama onde Nina sonhava aflita que ele era espancado por um bando de ladröes. Continuou no dia seguinte o projecto da planície, enquanto ele se afastava armado dc varapau em direccäo ao pinheiro. Ia decidido a vingar-se, para näo perder a face diante dela. Ela acei-tou desta vez como princípio a mancha e a marcaeäo do terri-tório específico da cor. Ouvindo os velhos meeänicos por um lado, os efeitos construtorcs e destrutivos do vento por outro, c atraída pelo seu entrosamento, percebeu que devia tentar na tela a representacáo de uma máquina mutável enquanto o jovem marido vagueava pelos campos envenenados. Abandonou-o o impulso de caminhar a direito. Tornou-se um suspeito, de desvio em desvio. Quando voltou, percebeu que ela também näo conseguia pin-tar. O vento parou ao fim da tardc, a luz mudou, sujou o campo, eles sentaram-se na varanda e magicavam, cada um por si, na maneira de resolverem o problema. Na cozinha, como automates, os velhos tomavam comprimidos. Ach o que é suicídio conjugal, disse ela. Andaram a estudar venenos to do o santo dia, tém para ali um armário cheio de sonífcros. Ele sentiu o sonífero pertencendo á ordern vegetal, como junípero, conífcra. Sei até o que diseutiram este tempo todo: a forma de morrerem e quem ia primeiro. Devem t er pensado em atirar-se da falésia, devem ter pensado cm enforcar-se os dois em simultáneo saltando sínero-nos das cadeiras para o ar, devem ter pensado em dcitar-se na cama e deixar-se morrer de inanicäo. Estás a ver que se calaram S6 finalmente? Tomam os comprimidos segundo o metodo um para ti e um para mim. Näo querem cá ficar um sem o outro e näo sabem se tém coragem de levar a coisa até ao fim. Ele näo achou estranha a fantasia. Disse que deviam ser vitamin as, para ficarem mais fortes, aguentarem mais um Inverno. Que se eles se calas-sem muíto tempo teriam de pedir ajuda e chamar alguém que os levasse ao Hospital. Achas que tudo isto c por nossa causa? perguntou Nina. Náo vejo como possa ser por nossa causa, res-pondeu Nina. Havia fogo ali perto, ouviram gritos, o ar encheu-se de furno e de fuligem. Eles desceram a correr, dobraram a curva do pinheiro e viram que ardia o campo todo, o mato, a erva, os troncos vergados da nortada, e o charco, como um olho de outra natureza, posto de parte, escusava-se por näo ser inflamável. Mas imitava, na superfí-cie, um vermelhäo carnudo, e o amarelo cádmio das labaredas que em volta subiam a pique aparecia na água transformado em ocres num fundo de terra de sombra queimada. Como náo viram nin-guém, foram forcados a concluir que quem gritava eram eles: ela viu os verdes exactos que havia de usar, e recolheu uma mancheia de terra com que dar aguada na tela. E ele amparou-a, ajudou-a a palmilhar o campo c näo lhe estranhou a fantasia. »7 "---- : csfroxS) W/i '^^0 i { I f* TRES MENINAS Ä porta, um hörnern alto e louro, num excelente fato escuro, fala em surdina com a sua propria imagem. Tenta convencé-la, espera a resposta, escuta, pausa, pensa e insiste. O polícia olha-o, paciente, cnsaia um gesto de apreensäo c rccua um passo, com uma frase simples. E um diálogo respeitoso que Vánia, sentada ä mesa, de frcnte para a grande praca da catcdral, náo vé. Anota no caderninho de viagem que tem de organizar melhor o tempo se quiser chegar a ver ttido: «Mas ás vezeš o que parece desorganiza-cäo é uma forma da afirmacäo da liberdade. Prefiro ser desorga-nizada, porque assim ao menos sei que estou viva. Gosto de me perder na eidade.» Na mesa do canto, quatro homens de chapéu jogam convictos äs cartas e fumam sem mäos, uma habilidade que a entusiasma a ponto de escrever: «Extraordin arias figuras de negro, de uma dignidade! Näo falam, fumam, devem passar os dias aqui, no cafe, ajogar o tempo nas cartas.» Quando se levanta, eles desviam os olhos para ela um instante, um deles comenta, os outros dáo uma risada e voltam ao jogo. Vánia atravessa a praca em passo elástico, cheia de si. É assim que se sente, assim escreveu: «Estou cheia de mim. Aprendo 89 ^Y C- --h^/ K^Y/ Luisa Costa Gomes quern sou. Estcs dias de solidäo tem-me ensinado tanto!» e entra na catedral e olha para o alti'ssimo tecto em aböbada e admira a luz coada e procura no guia a explicacäo dos vitrais e senta-se ä experiencia dentro do confessionario. Recolhe-se num banco traseiro a olbar para a cruz cravejada de preciosidades. Aprecia o clima particular desta igreja, fresco e seco, povoado de imagens carnudas em molduras pesadas, urn predominante torn bojudo. uma curiosa falta de elevacäo, escreve: «Tudo pode ser belo. As cores, os cheiros, os ruidos. Tudo e apieciavcl. Sobretudo cste silencio espccial.» Ca fora, o mendigo sem pernas estende o braco compridis-simo, a mao em concha, quase urn bcngaleiro. As longas barbas escondem o pescoco encardido, o olho vadio segue duas velhas que se afastam agarradas aos porte-monnaies, enquanto o outro fixa Vänia com avidez. Comeca a contar-lhe um por um os moti-vos do seu infortünio. Vania sorri, procura uma moeda para lhe dar e uma palavra do pobre lexico comum, segue caminho para o museu de arte antiga, estudar o principio da perspective. No programa da tarde, ainda hi o museu de figuras de cera c uma virgem miraculosa de cujos olhos flui um rol de incertezas. Para descansar dos profuses monströs do museu («o.s pesadelos tambem podem ser uteis e importantes», anotara antes de dor-mir um sono profundo de dez horas seguidas), Vania senta-se numa praca protagonizada pcla estätua dramatica de um herdi da resistencia, rodeado de arcada romanica, e escreve, a pensar no desmembrado anterior: «Näo sei o que ele me dizia, mas tinha um ar tab sereno, uma figura de um quadro, um Job que perdeu tudo e que vivc ainda, que ainda pode vir a ser feliz de novo.» Um bando de mulheres escuras, de garridas saias rodadas ate aos pes, conversa de crianca escarranchada na anca. Os meninos, bamboleados a um lado e a outro na consequencia do diälogo das mäes, olham-se, hostis. Vania sente-se bem, esta urn sol frio, Trcs meninas admira o equilíbrio da arcada e a relacáo interessante que esta-belece com o retorcido sofrimento do herói (que ela vé «lírico»), enquanto as rnulheres a observam de viés e comentam entre si. Uma delas decidc-se a avancar, quando se ouve o eco de uns cas-cos, e surgem a propósito dois oficiais de polícia a cavalo, doura-dos e emplumados, que as fazem dispersar espavoridas. Cai o sol de repente, a temperatura desce a pique c Vánia decide continuar de autocarro. Na paragem, um cego, confoita-velmente abancado, perná traeada, balancando a chinela, micro-fone na mao, dcelama explicite em třes línguas o que se imagina, pela toada, sérem poemas, acoplados ao seu pedido de esmola que termina em qualquer coisa mastigada c espirrada que soa a shastalachti. Vánia entra no autocarro a sorrir para si mesma e senta-se num banco de dois lugares; á sua frente um senhor de cerra idade, muito bem posto, hesita antes de se lhe dirigir em Francés, será esta a primeira vez que se encontra ela na nossa magnífiea capital europeia? E que pensa ela da catedral compó-sita, bombardeada e recompilada? E do grande castelo cm que o betao substituiu com van tágem a pedra destruída? De monu-mento em monumento, este senhor, depois de se certificar de que ela passava ali uma semana sozinha, convidou-a para jantar na residéncia, no dia seguinte, com elc mesmo e a esposa e esten-deu-lhc o cartáo de visita. Vánia aceitou, pediu algum esclareei-mento sobre como chegar e despediram-se amigos. A paragem seguinte encontrou-a a pensar no Mareos. Era uma pedra na construcáo do seu castelo. «Do meu palácío», esereveu. «Cada momento, cada pessoa, é uma pedra, 6 um degrau na construcáo da rainha história. O Marcos ťoi importante. ficou para trás. Anseio descobrir tudo, ver o mundo todo, conhecer toda a gente, conhecer-me.» Passeava agora na zona do mercado. Náo ouvia os gritos dos vendedores que a chamavam. Dois gatunos espiavam, combinavam acostar-se-lhc, um havia de distraí-la, o 7^ -A f.-r-rjXi// —p ^. -»rr^ f y*°Zy^ Luisa Costa Gomes Trés meniuas outro passava a correr c levava-lhe o saco. Para Vánia, boiando na multidáo, as caras eram uma cara. Os gritos, música. Passou uma menitia, toda de azul cerúleo, a saia rodada com uma barra de bordado inglés, e vinha pela máo de sua máe. Ao passar, scm uma olhadela, toda clandestina, tocou os dedos de Vánia numa festa dcliberada. Mais uma vez ela se sentiu eleita, rodou sobre os calcanhares e seguia-a. Os gatunos abanaram a cabega, ela saia já do mercado, estava fora da sua zona de actua^áo. E Vánia atrás delas, enquanto mae e menina se embrcnhavam apressa-das nos becos do bairro antigo, e cada vez por mais ncgra ruela, mais sórdida betesga, mais subtil atalho, mais inconformado carreiro, até as perder de vista, enfiadas pela abertura escavada num muro, e do outro lado uma prai^a abandonada por onde avancavam ties homens curvados contra um vento que soprava subito, gelado. Estava escrito no guia, na zona dos pcrigos: evitar o bairro antigo á noite, onde se juntám os ladroes; as traseiras da sé a toda a hora, onde se vende droga, mulheres e criancas; e o terminal das camionetas, o fim das linhas. Vánia passara em branco essa página. A noite, antes do sono beato, lia romances contempo-ráneos de moralidade simplificada. O guia servia-lhe, por isso, apenas como director de curso. Teve frio e despachou-se para o autocarro. Pediu ao condutor que lhe dissesse onde devia sair, perto da pensáo. Ele acenou e assentiu. Mas numa curva do bairro antigo disparou e num instante se encontraram em avenidas lar-gas de desenho imperial, com seus renques de plátanos e um pequeno arco que imitava bem o do Triunfo, por onde passaram as seis pessoas anódinas que cabeccavam, um travesti chorando e um par de drogados que, alcita, trocava comentários repetiti-vos. E Vánia anotando, em letra estremecida, no seu cademo de viagem: «Vou contar o tempo a partir daqui: o tempo da minha primeira aventura. Agora, comego.» O autocarro, entretanto - e muito gradualmente - transformava--se em camioneta. Comecavam a ver-se os bairros de barracas e as semi-hortas, as instalacôes cléctricas eclétícas, fabriquetas e fümos esbranquicados na noite de brcu e um cheiro quimico que picava. Séria ainda a mesma cidade? Ao levantar a cabe^a do caderno Vánia encontrou-se sozinha diante de uma pra^a imensa, escura, dcserta, ao fundo da qual se recortava nitidamente a fachada de ferro e vidro da estacäo de comboio iluminada. O condutor desa-parecera com os passageiros. A camioneta recolhia-se, junto de muitas outras, fantasmagóricas, desabitadas, de luzes acesas, em fila no rim da linha. Vánia arrumou o caderno e saiu, espreitando pelo vidro á direita e á esquerda. Estava no terminal das camionetas, tinha de atravessar a praca, caminhar para a boca da estacäo c apanhar o comboio para voltar a cidade. Dava o primciro passo quando viu, ao longe, trás meninas e as suas seis sombras, fugindo de dois enormes marinheiros lou-ros. Os marinheiros väo descompostos, cambaleiam, falam alto, excitados parecem pcrsegui-las, querer agarrá-las. Elas correm aos tropecöcs nos sapatos enormes de salto alto, parám, däo gri-tinhos, olham para trás, ensaiam a ruga, param de novo. Mas se os marinheiros param, elas avancam um poueo para elcs, fazem uma espeeie de danca infantil, guerreira, e recuam de novo, mantendo a dištancia. Os marinheiros loealizam Vánia, esbracejam numa aflicäo de bébedos, desviam a marcha e dirigem-se para ela, em altos brados, apontando as meninas. Vánia agarra bem o saco e corre para elas. «Stop, stop» diz, perdendo o fôlego. Abrandam o passo, esperam que Vánia as alcance. Säo tres meninas chi-nesas, franzinas, sujas, desgrenhadas, que näo tém mais de dez anos. Agora consideram Vänia hostis, em siléncio, de alto a baixo. Os marinheiros pararam a meio da praca, abracados, prevendo o desfecho. Quando as meninas cercam Vänia, ela volta-se para eles a calcular a dištancia, vé-os estenderem-lhe um braco teatral, 92 93 _.0-—-—' Luisa Costa Gomes uma adverténcia solené, c depots as meninas falam rapidamente entre si e dáo-lhe pequenos empurróes, pequcnos toques e uma agarra-lhe a máo e puxa-a cm direccáo á ofuscantc fachada no final da praca. Vánia sente a sua primeira dúvida que comeca como um desconforto nas barrigas das pevnas. Liberta a máo, ultrapassa as meninas, de corrida chega á porta - c é engolida nas fauces da luz. : Acorda com o barulho das lambrettas, a cabeca a estalar do calor ' e do valium. Näo há maneira de fugir ao ronco omnipresente, lancadas nas vielas cm competicáo, correndo no Lungotevere por entre os carros. Éferragoslo, feriado cumprido a rigor, a tínica distraecáo é comprar mapas da cidade e programas culturais ; nos dois quiosques abertos no centro, para acabar a seguir turis-. tas no carril Piazza Navona, Pantheon, Fontana di Trevi. Onde quatrocentas pessoas de todo o mundo sc sentam, sedentas, con-templando a pouca ďágua. O mar propriamente dito fica a milhas e o percurso inclui ;, autocarros e comboios; aqui estäo trinta e cinco gratis de polui-cäo densa, como numa sauna pantanosa em que se desprende a custo o pé do verde limo, e a gente se arrasta no ruído das vespas, o caldo, a alma, a forma, o fundo dc onde se eleva o fragor ao longc dos carros, e junto ä porta, na viela, os gritos límpidos das romanas pelos seus homens e pelas suas eriancas, que ficam a reverberar solitários nas vogais abertas e sobem pelas paredes até á água-furtada sufocante onde dorme no chäo, dc janela aberta. E o tercciro dia em Roma, näo sabe já dizer se o barulho está nela 94 95 i Costa Gomes Cakcio ou na cidade. Dá por si a folhear o programa das festas e a procurer, cm vcz das tradicionais feiras culturais que animam o Veräo da Europa, a seccäo dos hotéis, dos hotéis com piscina. Telefona para os dois ou trés recenseados, inquire sobre as medidas da piscina e a afluéncia, o meío ambientc, a extcnsáo do parque c näo se esquece de perguntar se a geréncia garante o sossego. A recepcionista, uma voz ířesquíssima, ri-sc, c garante. O hotel é no extreme oposto da cidade, ela atravessa em vários autocarros, enganando-sc no sentido, usando generosamente o passe semanal e encontrando-se comoVaticano, que tem andado a evitar, pelo menos duas vezeš. Nisto leva uma hora e meia e enfim, no calor esbraseante das doze, chega ao destino. Paga o que Ihe pedem para entrar, senta-se num suspiro na cadeira de piscina, á sombra, no meio de um parque imenso, de colinas mansas, relvadas, e árvores singulares, de muita história. Abre as suas 101 Ilistórias Zen, reclina-se, suspira de novo - ao longe ainda ouve o zumbido das máquinas na cidade que ela escolhe ignorar, seguindo já a ficäo da leitura - e ao suspirar ouve o som perťu-rante do martelo pneumático que se lhe desatara nesse instante mesmo por trás da cabeca. Olha em volta, subita e apavorada. Os banhistas mantém-se de olhos fechados, ou lendo revistas de jet set internacional, impávidos. Parccia ter aterrado num mundo em que só ela via, só ela ouvia. Ao empregado que lhe passa ao alcance da mäo, levando cocktails de bandeja, pergunta retórica que barulho é aquele e se estará demorado. Percebe que estáo a fazer obras na piscina interior. O empregado ri-se ao informá--la. Tem orgulho na piscina interior. Pergunta-lhe se quer beber alguma coisa, faz um gesto na direecáo do cocktail, como se pudesse ficar logo ali. Ela recusa, escandalizada ä ideia de ficar com a bebida destínada a outro, olhando de novo em volta á procura de apoio, que náo encontra. Tenta a leitura, desiste. Levanta-se para dar um passeio pelo parque, vé a piscina interior ainda sem tecto, de perfeita colunata neoclassica, que gente do Teste conströi determinada e obtusa. Senta-se enfim protegida por um choräo imenso e continua a leitura. Soven Shaku morrera aos sessenta e um anos, deixando um largo corpo de discipulos e ensinamentos. Durante o Veräo, os discipulos podiam fazer a sesta, embora ele proprio fosse incan-sdvel na meditaeäo e nunca dormisse de dia. Diz-sc que quando tinha doze anos e era disci'pulo aplicadissimo, uma tarde soco-brara, exausto. Dormiu tres horas profundamente e acordou em sobressalto, ä entrada do mestre, que cstacou na soleira, confuso, embaracado. - Perdoa-me - murmurou o mestre, recuando - pcrdoa-me. E saira em pontas de pes, como se o disci'pulo fosse urn hospede muito ilustre. Soven Shaku, dizia a moral do conto, nunca mais dormira de dia. O martelo pneumätico parara para almocar, sacara da marmita e sentara-se com os tres homens do maco e do picäo. O capataz, assim como vigiara franzido o trabalho, vigiava agora o recreio, em pe, ao sol, comendo a sandui'che, na mäo esquerda a lata de cerveja, Ela aproveitava o silencio, correra para dentro de ägua. E insuficientemente cantado o eco das vozes nas piscinas, como se refractam na ägua, se tornam mdltiplas de si pröprias, pare-cendo sair de parcdes, de pianos imatcriais, de recortes, da natu-reza das miragens. Mas a ägua cstava moraa, uma vclha americana atietica fazia vinte e cinco piscinas inalterävel, em linha recta, ä alemä, passando por cima de quern estivesse. Ela saiu para se dei-tar na cadeira ao sol, mas ansiosa, lancando de quando em vez o olho aos operärios que agora fumavam cm silencio. Descansar deprcssa, dormir de dia. Saltam entao dos buchos para a borda da piscina dois portentosos pancudos e comecam a jogar ä bola. Acertam ä primeira numa senhora que lhes acena diplomätica de longe, compondo o chapeu dc pallia. A alegria deles e indizivel 96 - ^oif ^^yy_Y-- -yzvOäZLjJO? . ao despojamento exibicionista de Justina sem interferir, ofereceu leva-la a almocar a um restaurante tipko de Sesimbra. Desde a refeicäo vive-ram em trio, depots ä quatre, já que Cristina se sentira na obrigacäo de empalar. No Carnaval da passagem de ano Justino lidera a fila da conga, como louco. Atrás dele vem Marta, da companhia securizante, que trouxe a Ruben, e Ruben a Margarida de Sousa Lampreia, sua ex-, e a Pedro, que havia como amigo a Ricardo, e ele, Sincera, a manicura. Adelina inter-pôs-se, com seu ventre enorme, onde se acoitava todo um guido cinemato-gráfico. E a cada um destes, em cacho, se intcrmediavam outros e outras. No seu lugar, que era o terceiro a contar de Cristina, sem deseontarMarta -s e Ruben, que indisciplinadamente cntravam e saíam para outras dancas, 104 Luisa Costa Gomes Justina teve dúvidas. Mas näo as tinha sempre?Pensava que era tempo de irsubindo no privilegia e no favor de Justino. A casa permanecia intocada, memorizada. O violino no saco e asguiiarras encostadas dsparedes reple-tas. Teve saudades. Daquelasgrandes construcdes no ar. Que se sustentam da sua propria realidadc. II OUTROS CONTOS POR EXTENSO - Quero o maior! - desde pequeníssima, sempře o maior. O urso: o maior. O cáozinho: o maior. O livro, se o escolhia: o maior, o com mais cores, o com aletra mais gorda. E, na comida: o prato maior, a fatia maior, a posta maior. O bolo: evidente-mente, o maior. Poupada, apenas nisto das letras. Abreviaturas, smiplificaeóes. Escolhido para nome Ne, porque encontra muito comprido o que lhe impuseram - Ana Lúcia é o seu nome da escola, com que assina os testes e os trabalhos, e Né o seu nome livre. Vai agora a atravessar a passadeira de peóes e a eserever uma sms ao mesmo tempo. É um truq q costuma ťzer para mostrar q tanto se lbe dá. Que é forte. Um carro pára, os travóes guin-cham, os pneus até dtm fmo, a mulher baixa o vidro e grita-lhe: - O menina, quer ir já para o céu, táo novinlia? Nc třeme tanto que os dentes chocalham na boča, o carro a dois milímetros dos tenis de plataforma que nesse dia estreia, o telemóvel na máo onde a sms comecada ainda enlanguesce: «vmos hje ao cc enema k v o k?»; e a condutora olha-a de dentro da carrinha familiar, sorrindo, cínica e arrancando, em esfogue-teada primeira, grita: A/' ~ť sp^ry f_______ 109 Luisa Costa Gomes Por extenso -Menina [...]! Menina Qualquer Coisa, palavra que ela näo percebe e escreve no tlm «ia sendo atropelada! touaq td a trmer!» e envia ä Ana Márcia que Hie responde logo «tase!». Aq palavra q ela näo percebeu teve um efeito curioso ein Ana Lucia. Comecou a tomar mais atencäo ao mundo, a estar mais alerta para td o que ia e vinha ä sua volta, á espera de a reconhe-cer. Podia aconteccr em qualquer lado, na piscina, a meio de um salto da prancha, e ter a orelha tapada pela touca. No polyvalente, ä passagem de alguém, embora lhe parecesse poueo provável. No polivalcnte havia sobretudo ruido. Mas era preeiso estar pre-parada. No café, ao interv do almoco, no meio da vozearia dos rapazes que se batiam por td e por nada, ouviu a palavra «descon-chavada» vinda de uma mesa de mulheres-gralhas e achou q näo era Aquela a Que Demaiidava, mas acabou por ficar. Agora, em vez de responder «tase» quando o tio Antonio, o meio tolinho meio-irmäo do pai q vive na cave, lhe pergunta com um olhomeio fechado: «Qtalo dia...?Na escola...?», ela diz«Olha, tive um dia mesmo desconchavado», deixando a Leila interdita, com a franja a encaracolar-se-lhe e a escova de alisar o cabelo a pilhas rodando estupidamente na mäo. Foi lanchar, quase sem fomc, escolhendo a fatia maior. Leila disse, no dia seguinte, aftindada na torrente de palavras sem sentido com q normal-mente a enviava para a escola: «encardida». «O qué?», perguntou. «O qué o qué?», perguntou a Leila. «Disseste que a camisola estava o que?» «Encardida?» A palavra que Ana Lucia buscava näo era «encardida», mas passou a usá-la tb na frase «Sinto esta fase da minha vida um bocado encardida». E comeu pouco ao pequeno-almoco. SMS para cá e para lá nas aulas. O tema: um MMS da Ana San-dta que mostrava um hörnern todo nu com uma grande cabeca de abóbora. Mas Né já estava noutra. Achou os colegas todos «lugubres». E, no interv das dez e meia, espantou a Ana Mar- garida ao dizer que a comida do refeitório era «sordida», que o Paulo andava «sorumbatico» e «extravagante», mas sorriu ao nome da namorada dele, quando lho disseram: Mirtflia Tulia. Näo cra de troca, era um nome q era um nome verdadeiro. E a fräse favorita: «O Paulo é cá um lapa.» E o filme de murros no centro comercial? «Inane», comentou. Procurou (sem realmente procurar) os sítios onde seria mais provável ouvir a palavra que näo percebera da primeira vez. A casita onde morava com o meio tio e a mulher, Leila, passou a ser uma «cho9a» e o earro deles um «chaco». Olhou Silvestře, o misterioso vizinho que estudava matérias misteriosas, com nova motivaeäo. Espiava-o do seu pário em frente ä garagem e achava tudo feio - fora a cameleira, «deslumbrante». Epequenos musgos no muro, «pitoresco». Näo falava muito. Ficava a apreciar o pouco que tinha, procurando as palavras mais apropriadas com gula. Näo era, por excmplo, pai-xäo o que sentia por Silvestře, mas «encantamento», e em outros momentos, «delirio». De vez em quando escrevia uma palavra no muro, de h'quen a líquen. Silvestře, entretanto conquistado pelo prolongado silěncio dela, convidou-a para tomar um café. Acompanhou-a ä vitrína do balcäo. - E um pastelzinho, por favor - pediu Ana Lucia -, aquele ali. E apontou, discreta. Era o mais humilde, mas foi dito por extenso, com um belo sorriso de amor, com as letras todas. 110 111 VITiMAS DE UMA HISTÖRIA MUITO LONGA E IMBRICADA I .l Para iludir o spken dos domingos, iam ate Lisboa. Embora ili- I mitados, os encantos da praceta, da esplanada, da praia e d as coli- » nas de Paco de Arcos, näo chegavam a entusiasma-las. Tinham ; quinze anos, uma queria ser medica, a outra mudava de ideias ,j todos os dias. Ao säbado, as aulas acabavam ä uma da tarde. Elas j comec^vam pclas tres as volcas a praceta, descidas ä praia, subi- I das aos campos. Passando como proscritas pelos grupos de ami- j gos, formados ä roda das motoretas, ouvem-nos de raspäo falar de cilindradas e de professores do liceu. As raparigas do grupo, { perifericas aos rapazes dos motores, olham de vies essas que ai » väo, fora do jogo. No dia seguinte, depois da missa, so a ideia * de refazerem, pela tarde, o que ficara feito no dia anterior, lhes aperta a garganta, lhes da vontade de chorar. '} Agora uma diz que se tratava de um passeio regulär, a outra r. insiste que sö esporadicamente saltavam para o comboio que as j levava a parar em todas ate ao Cais do Sodre. Uma lembra-se de 1 - viagens diferentes, que a outra diz näo tcr acompanhado, por näo l se recordar dos pormenores. A primeira reclama da ma quaiidade I da memoria da segunda. A segunda protesta que e a primeira r "3 "/j.'*~rjXi// Luisa Costa Gomes Vítimas de uma história luuito longa e imbrieada quem comete conŕusôes, mistura as épocas c reclama do abuso. Estäo as du as no intervalo maior, na sala de aula de urna delas - e sem saber como, foram parar ao passado. Já nessa altura, nos domingos de mil novecentos e sessenta e oito, só se cncontrava no centro da eidade quem näo tinha mesmo mais nada que fazer. Os divertimentos cram poucos e consistiam sobretudo em passear e em olliar. Grande parte deste passear e deste olhar ťa/.ia-se e m ruas, pracas, igrejas e castelos. Äs duas amigas, ainda incertas dos mteresses espirituais pró-prios, a arquitectura, e mesmo a história daquelas pedras, moti-vavapouco. O entretenimento que sobrava éram os estrangeiros. Havia relativamcnte poucos franceses. De qualquer modo, o fŕancés era urna lingua escolar, que evocava o senhor e a senhora Dupont dos manuais, com os dois pequenos Marie e Michel e as suas activida-des impossivelmcnte pequeno-burguesas. Quando interferidos na promenade, os franceses respondiam mal aos avancos delas. Éram desconfiados e as mulheres faziam bcicinho aos contra-tempos. Näo gostavam que se Ihes demonstrasse que näo estavam absolutamente a par de tudo, passado ou presente. Se as rapari-gas, no seu fervor, diziam que os portugueses tinham inventado as touradas, o casal antipático lembrava que já os gregos, j á os micénicos se confrontavam com a besta e, ainda por cima, näo se matavam aqui os toiros como era de lei. Se, em descspero, clas falavam de Francisco Sanches, de Pedro Nunes e do nónio, näo muito seguras da importáncia universal daqueles sábios, o casal havia de encolher os ombros, de recordar a Inquisicäo, as Invasóes, quando näo a guerra em Africa. Só mais tarde, uns anos mais tarde, é que os franceses se renderam ao típico e exigiram ser levados como iguais äs tascas onde sc comem as coisas populäres. Os aíemäes, por seu lado, punham dois problcmas: näo falavam línguas e éram demasiado cultos. Quando falavam Inglčs, e o faziam sem csforco e sem agravo para as glotes, éram temíveis. Ninguém conscguia enganar um alemäo. Quando ouviam as raparigas dizer que os portugueses tinham descoberto a America, o Brasil, o Japäo, povoado a índia e, sem qualquer ajuda, coloní-zado de uma penada o continente afi-icano de cabo a rabo, oíha-vam friamente de uma para a outra, abanavam a cabcca e puxavam do guiade bolso. Esse livro estava chcio de datas, dereproducôes de fachadas, dc avisos contra gente como elas. Rcpunha a ver-dade dos factos. Näo havia nada de mais humilhante do que um alemäo bem informado. Houve outros dissabores. O maluco que as perseguiu um dia, Rua dos Fanqueiros abaixo, teimando em convencé-las de que era elc mesmo Pedro Alvares Cabral. Os dois velhos surdos que elas acompanharam pelas ruas de Alfama em altos brados, fazendo assomar äs portas as comadres interrompidas no eterno dormitar. Uma família de nacionalidade indefmida, intrigante, com trés meninos täo bem comportados que dávam arrepios na espinha, pegados como pingentes äs saias da mäe. E os turistas que, de guiados se transformavam em guias, e as puxavam por capelas, por museus, a explicar as riquczas patrimoniais que lhes dávam sono e tedio. Havia ainda as nacionalidades intermčdias que näo tinham para elas qualquer interesse: os luxemburgue-ses, os holandeses, feli/.mente raros; tinham alguma timidez em aproximar-se de norucgueses, suecos e dinamarqueses pela repu-tacäo de imoralidade que os precedia. E os cspanhóis de todos os quadrantes, evidentemente, näo contavam. Por isso elas preferiam, sobre todos os outros, os america-nos. Entre esses, os hippies americanos do Rossio. Entrc esses, os mais sujos e desgrenhados. Se tocassem guitarra, a tarde estava ganha. Estcs rapazes americanos, foram elas descobrindo com a experiéncia, éram de uma candura inexcedível. Se lhes diziam que tinham sido os portugueses a inventár o telefóne, o fio do "S A *.<- - 't? (é. TT^t'U 'J cs^oxS) W ft? 'U&Q Lnísa Costa Gomes Vítimas de uma história muito longa e imbricada telefone, a linha do comboio, as árvores de fruto, o an dar em pé, maravilhavam-se. Maravilhavam-se igualmente de tudo, fosse o elas terem cacado leôes, haver termas romanas por baixo do Ros-sio, ou ter o bom do Giraldo Giraides ficado entalado na porta de um castelo. A sua ignorancia era táo geral que náo éram capazes de suspeicäo. lam sempře dedilhando a guitarra, e dizendo bestial, incrível, num halo de haxixe. Éram táo fáceis como difíccis de impressionar. Uma diz agora que náo era por isso que preferia os americanos. Preferia os americanos porque eles se estavam nas tintas para o lugar. Insístc que, a maior parte das vezes, eles nem sabiam bem onde é que estavam. Náo estavam na America, isso chegava-lhcs. Era tudo bom, o mar, o sol, a comida, o vinho, as raparigas. E ela queria era ir para a America c náo se lembrar mais de onde é que estava. A outra diz que náo era bem assim. Admite que eles náo fariam muito finca-pé na verdade dos factos, estavam ali para se divertir, mas também porque o americano náo comprecnde a nocäo abstracta de História Muito Longa e Imbricada, de parses que se perdem na bruma dos tempos e dos romanos e, talvez, egípcios. Apenas conhece o Facto Concreto. Saí de casa, apanhei o aviäo, em Espanha namorei uma espa-nhola. Mas tém de concluir que eles deviam saber que estavam a ser enganados. Era por delicadeza que se maravilhavam. Afinal, estavam num pais que náo era o deles. Por mais nordestinos que fossem, tinham o seu quinhäo - nesse tempo ainda limitado - de con vivéncia com latinos. Já reconheciam, educados pelo cinema, a figura e as patranhas dos mexicanos. Na pior das hipóteses, tinham atravessado a Espanha. E descnvolvido, com isso, uma atitude de entusiasmo sem compromisso em relacáo a tudo o que lhes quisessem contar. É preciso saber que todos estes estrangeiros, cultos ou bru-tos, para alem de as fascinarem pela simples ineréncia de sérem estrangeiros, vinham favorecidos pela cxpericncia da viagem. 116 1 Elas tinham Paco d'Arcos e o liceu. Imaginavam esscs longos I e retorcidos percursos, sem nimo, leves, dc mochila ás costas. IO que tinham para dar? O Quinto Império do Mundo e uma guerra em Africa. O seu modus operandi tinha poucas variacoes. Agora, cal adas na sala de aula, ouvindo o tumulto dos miúdos no reereio, uma delas v pensa que náo havia intencáo delíberada, que tudo se passava í por acaso. Pensa que é a outra a inventář um propósito, quase j um sistema, onde ele nunca chegou a existir. Mas para esta é t claro que pelo menos o metodo de aproximacáo era constante. ! É verdade que tanto podiam meter conversa com um casal de I velhos alemáes, como com trés colegiais suícas que, com risinhos, I procuravam maneira de chegar ilesas ao Castelo. A acostagem I dava-se logo no Cais do Sodré, porque era aí que comecavam as f dificuldades dos turistas saídos do comboio. Para onde ir? Que I autocarro tomar? Onde descer? Era sobre essa aflicáo do turista I que elas agiam. I Uma diz que era sempře a outra que comecava. A segunda I afirma que náo teria imaginacáo para tanto. A primeira lembra-se I da versao - táo inventada como outras - da lenda de S. Vicente, I em que os corvos que acompanharam a bareaca do santo se trans- I formavam cm abutres negros, uma espécie rara e que hoje náo I existe na Peninsula, e comeram - enquanto conversavam, porque I eram abutres muito faladores - as entranhas do primeiro traidor 1 portugués, um tal Goncalo Anes de Bandarra, esperando que ele I náo constasse dos guias. > Dcpois era conforme. Se os tinham ali, fixos e bem impres- •; sionados, evoluíam para histórias de casas assombradas na baixa -pombalina. Velhos arruinados que se atiravam dc janelas, na tra- *; dicáo solené dos Vasconcelos. Muito ouro, afundado em galcóes, a boča do porto. Histórias de amor negro, com coracóes arran- ■'. cados, palpirantes, pela boca. E a epopeia das Descobertas, com ■i 5, v 117 Luisa Costa Gomes Vítimas de uma história muito longa e imbricada a sua prodssäo dc succssos, colocacáo de padrôes, invencäo do mundo, domínio do mundo. Éram mitos universais, reťeriam o poder e a riqueza, náo tinham nada que enganar. Os velhos ale-mäes, se percebiam o Inglés delas, sorriam dc uma ccrta mancira. As raparigas suícas dávam os seus gritínhos, em pé aos solavancos no eléctrico dos Prazcres. Lá cstava uma mars séria que pedia pormenores, para s e recolher a ponderar. E havía sempre um momcnto cm que passava nos olhos do cstrangeiro urna espécie de medo, que o retraía. - Mcdo dc qué? - pergunta a primeira. - De duas miúdas que se divertem a contar mentiras aos turistas? Essa diz que náo era medo, mas suspeita, depois certeza. A outra insiste que era medo, havia sempre um momento em que eles tinham medo. Do nosso império? Da nossa forca? Náo sei de qué, responde a segunda, nem há mistério. Medo de ser escolhido para a mentira numa terra alheia. - Porque deixámos de o fazer? Aconteceu-nos alguma coisa? A segunda, talvez porque tenha acabado por se dedicar ao estudo da História, responde que tudo acaba um dia natural-mente, pela mera forca da passagem do tempo. Mas também sabe que deve ter acontecido alguma coisa que pudesse ter feito as vezes de urna conclusäo. - Lembro-mc dc um inglés - diz a primeira - de bicicleta e sandálias. Houve um homem inglés de sandálias que, naquele tempo, era coisa pitoresca de labrego. Que lhes disse ele? Ficam ambas caladas, olham para o quadro verde onde uma alinhou as formas de um verbo em -ir. e esse inglés entre elas, muito rosado, com o panama descaído sobre os óculos de lentes grossas. Pergun-tou-nos primeiro se éramos portuguesas, diz uma. E tu disseste «infelizmente». E ele até estremeceu. A segunda tem de concor-dar. Estavam ä porta da Sé e ele tinha-as ouvido falar Inglés com uma rapariga que csbracejava sobriamente num panico todo ale-mao. Segundo perceberam, a fachada da Sé náo correspondia á reproducáo que ela trazia no sett livro de bolso. Esrava suja, estava velha, e ficava contra todas as expectativas a meio de uma subida, entalada em prédios condenados. Paisagisticamente, o fenómeno era um desastre. A prim eira diz que o inglés deve ter feito uma pergunta muito simples sobre História. Uma pergunta cuja resposta se aprende nas primeiras classes da escola e se esquece cm virtude do peso de tantos outros factos que se aprendem depois. Elas ficaram as duas em siléncio um bom bocado e a primeira diz que foi a segunda que decidiu mentir. Náo era mentir, diz a acusada, era inventář. Como faziamos sempre, acrescenta. Como faziamos sempre. A meio da resposta pronta, o inglés montou na bicicleta, disposto a descer para a Baixa. Já de perná alcada, abanou vigoro-samente a cabeca, lancou-lhes um olhar de tancor, de desprezo: -You don't know?You don'f know? Elasvieram, sem serpropriamente atrás dele, descendo silen-ciosas a Rua de Santo Antonio. So pararam no Cais das Colunas. É curioso, diz a primeira, é exactamente assim que me sin to ainda. A segunda brinca: tinhamos quinze anos, ainda náo sabíamos de que terra éranios. tamos para Lisboa como quern vai ao estran-geiro. Mas suspeitávamos já que havia ali muito para estudar. E a primeira: dcvíamos considerá-lo uma injustica. Com tanto pais em que náo se passa nada... Dando as costas aos turistas desobrigados e livres que pas-savam de máos dadas, em pequenos bandos, nessc domingo, ficaram ambas viradas ao rio, pregadas ao cháo - e tinham aos ombros todo o peso da vergonha. itS I i m t 119 NAO IRE OUTRAS FORMAS DE CHEGARAO PORTO Scmpre houvera em casa esta coisa de ir ao Porto. Aos doze anos o Bruno já nem ligava. Felo meio de Setembro, bronzeado, o proverbial pai, sentando-se para passar o Inverno diante da tele-visäo, dizia: - Näo importa, vai-se para o ano. - Pelo S. Joäo - dizia a mäe. E era a mesma mulhcr que tinha raedo de ir ä praca, que se encolhia colada äs paredes, assustada com os guinchos das peixeiras. Do Porto era uma gente excěntrica casada com a tia Maria de Lourdes. Primeiro um tio Manolo que tivera, depois de um ultimo passeio au naturel de bengala e chapéu de palhinha rua de Santa Catarina abaixo, de ser internado e divorciado. Um tio Fernando, reconhecidamente comunista, com retratos de Estaline colados por dentro dos armários e que cantava fado de Coimbra com letras «melhoradas» por ele, como dizia em post scriptum fatal ás cartas bimensais da tia, agrafando-lhes a lírica. Quando linal-mente a tia Maria de Eourdes se ofendeu com o regulär cnxo-valho da visita prometida e adiada cada ano pelos parentes, era já mullier do tio Heitor, negociante em grosso de congclados. S.-rnfJ-Ki/ / Ltlisa Costa Gomes E contava em ultima missiva a irma que era fcliz como nunca, mas que faltava a felicidade dela conhccer o sobrinho, reconhecer o cunhado - e rever naturalmente em pessoa a Maria de Fatima, que ficava sempre nas fotografias com um olho aberto e outro fcehado. Bruno, nas ferias grandes dos seus dczasseis anos, decidiu che-gar ao Porto pelos seus proprios meios e estrear a idade adulta. Eizeram-se telefonemas, a tia exaltou-se primeiro com rccri-minacoes, depois chorou, descnterrou rivalidades do passado, vingancas soezes das preferencias parentais, depois pediram-se desculpas, e ouvia-se ao fundo o bater dos dados e o bma-a dos amigos do tio Heitor, uma imprecatjao mais castiga atravessava os ares dc Portugal e fazia a mae de Bruno tapar com pudor o bocal do lelefone. Foi-se comprar o bilhete dc comboio, marcou-sc o lugar, fizeram-se pianos, deram-sc recomendacoes e, na vespera, o Bruno caiu a cama com uma doenca infantil. A tia, susceptibi-lizada. csqueceu-se de mandar nessc ano o cartao de Natal, que havia de ser ou um S. Nicolau com grossa barriga de cerveja, na assuncao injuriosa de que so as pessoas gordas e que sao divinal-mente boas, ou um coelhinho branco que sobrara da Pascoa. Curado em duas semanas, Bruno fizera, entretanto, a sua praia na Caparica. Apanhara os escaldoes e as dores de barriga que lhe competiam e fizera por se interessar pelo meio ambiente. Mas as raparigas de Lisboa nao conseguiam agradar-lhe e nao se podia fazer ao piso as cstrangeiras, dada a fraca rluencia que obtivera nas linguas delas. O mundo das raparigas de Lisboa - c Bruno ineluia nessas latamcnte a margem sul - era-lhe tio estranho e ameaijador como um filme apreto e branco. Eram as risadas des-prezivas, as dietas, as fomes de constante novidade, as fantasias com actores de cinema, um rol de coisas misteriosas que lhes davam prazer ou as enojavam. Sentado na toalha, olhando em volta, o Bruno achava-as todas insuficientes. Ou magras e perni- Näo ire outras formas de chegar ao Porto curtas, ou magras e rabudas, ou gordas e peitudas ou gordas e sem peito, ou narigudas, ou olheirentas, ou narigudas e olheirentas, uma coleccäo de combinacôes disparatadas, próprias do facto de haver mulheres em excesso. Nenhuma tinha aquele corpo digno de um grande amor. Aquelas máos dc anúncio, os olhos de cores singulares, a pele lisa c mate dos manequins. Muito novas eram muito secas, escortaiihavam o cabelo ou derxavam-no crescer a baixezas intoleráveis, coloriam-no, descoloravam-no, faziam dele o centra do mundo. E pintavam as unhas dos pes a verniz preto ou roxo, punham tatuagens no baixo ventre, despindo-se cm qualquer lado com ä vontade para as exibirem. Tropecava-se nes-tas raparigas por todo o lado. Mas näo se podia mexer. Näo havia sossego. Ao encontrá-lo na rua, as colegas de escola com chusmas de primas e de amigas, chegavam-se muito a ele, as mäos enfiadas nos bolsos de trás dos calcôes, oscilando num único chinelo de plataforma, como cegonhas á espera de atacar. Procurando os olhos dele, que fazia peito e cruzava os bracos, fixando o horizonte, elas lambiam os beicos. Encurralado, o Bruno arranjou um pequeno método para sobreviver, namorando sempre cm numero par c em múltiplos de dois. Saia com duas raparigas, em dias alternados, depois com quatro. Mas andava sempre pelo menos com uma, para se proteger das outras todas. Do Porto vinha, entretanto, um siléncio de morte. Passou o Natal e, em Marco, quando reuniu a turma para decidir o dešti no da viagem de fim de curso, foi com admiracáo que ouviram o Bruno propôr o Porto. - Ao Porto? Fazer o que? Havia, naturalmente, as vantagens de serperto e dc serbarato. Mas näo teve votos, e acabaram em Faro com bebedeiras dc cai-xäo á cova, a vomitar pelos cantos, primeiro passaporte para uma verdadeira história pessoal. A partir dessa altura, as coisas pre-cipitaram-se. Submerso num horário escolar mais do que com- 123 TLsjrx? __------- Luisa Costa Gomes Näo ir e outi-as forraas de chegar ao Porto pleto, o Bruno reduziu-se äs delfcias e aos rancores do one-on-one de um amor por e-mail, cujo atormentado final coincidiu com uma nitida revelacäo interior e a motte da tia Maria dc Lourdes. A nitida revelacäo interior relacionava-se com o facto dc com-preendcr que nunca navida seria engcnheiro e que o seu futuro havia de passar pelos filmes ou pcla televisäo. Em Junho de 1998, com vinte anos perfeitos, o Bruno sen-tou-se finalmente no Inter eidades com destino ao Porto. Come-cara a tomar um suplemento vitaminico uns quinze dias antes, consciente de que näo se pode ser nunca demasiado descon-fiado. Este era o scu primeiro emprcgo, a primeira reuniäo a que ia com responsabilidades quase executivas, enviado pela produ-tora cinematogrdfica em que fazia a recruta. Agarrava-se ä pasta e levava mdquina fotografica. Tambem levava a fantasia de bater ä porta do tio Ileitor e de se aprescntar. Devancando, sentado na carruagem, jd virado a norte, sonhava cm abracar aquele tio, sentia que tinha direito aquele tio. Näo sc atrasara, näo se enganara, näo adormecera. Ninguem Ihc poderia assacar a responsabilidade de näo chegar ao Porto e de faltar ä reuniäo, fazendo perder o contrato decisive a produ-tora. Coisas acontecem que nos ultrapassam, mesmo sendo mais pequenas do que nos. Näo fora morte de hörnern, drama natural, problema sindical. A falha tecnica ocorrera em Vila Franca, esperara-se uma hora, duas horas, quando finalmente a compo-sicäo resolvera avancar, ainda era possivcl, ainda tudo era pos-sivel, embora a margem de seguranca tivesse sido tragicamente diminuida. Mas Santarem viu de novo o comboio parado a cinco quilometros da estaeäo e quern soubesse ler as expressoes corpo-rais dos experientes homens de linha, eoncluiria que o problema estava longe de sc resolver. Ou seja, näo chegou a chegar ao Porto, comendo dc pe uma bucha seca na estaeäo de Coimbra. E como jd nada valia a pena, 124 porque passara a hora da reuniäo, adiada para dia incerto, o Bruno voltou para trás. Comboio, nunca mais. Esse emprcgo sem futuro fora substituido por outro, noutra pequcna produtora especiali-zada em filme documental para instituicoes do Estado, e Bruno era o designado por excltisäo de partes para as tarefas que näo interessavam a mais ninguém. Neste contcxto, havia de ir real-mente ao Porto a urn Festival Internacional do Filme Publicitário Farmacéutico. O aviäo, pagou-o do seu bolso, telefonando tantas vezeš para a companhia aérea que jd tratava as funciondrias pelo nome proprio. Estcve trés dias e trés noites no Porto soterrado na cave de um hotel a ver filmes, de pouco lhe valendo, como dizia o folheto, a excelente localizacäo, muko central, daquela unidade hoteleira. Da experiéncia ficara-lhe uma impressáo de abafamento cheio de pó, tinha visto uma ponte, luzes a noite. Chorando com o excesso dc imagens por segundo, tenso, dorido, empanturrado de informaeäo desagradável sobre laxantes e antidepressives, o Bruno näo esperara pelo aviáo do regresso e apa-nhara uma boleia äs quatro da manhä para Lisboa. Conheceu, entretanto, uma mulher com quem casou. Estava na altura. Mas o Porto, o frustrantc, distante Porto, ainda ima-culado apesar da orgia de anúncios farmacéuticos, chamava-o ainda. Teve uma oferta de emprego, na producáo de um filme a sério, para a Televisäo. O casamento desfazia-se. Ele foi. Foi com todas as calmas. Foi por dentro, em carro proprio, parando turísticamente pelo caminho, para ver Alcobaca, para ver a Batalha, o pais que havia ä beira da estráda secundaria. Sc fosse segura a existencia de motivacöes inconscientes no Bruno, näo seria arriscado dizer que cle desafiava o destino. Queria, talvez, ver se eonseguia chegar atrasado 3 entrevista. Sendo o destino, esse sim, imprevisivel nas suas maquinacöes, colocou-lhe um acidente em cadeia no caminho, envolvendo uns quantos automóveis, feridos ligeiros, óleo na estráda, atrasos de Í2S Luisa Costa Gomes Näo ir e outras formas de chegar ao Porto ambulancia e prescnca demorada da polícia, e fazendo com que, de facto, o Bruno falhasse a entrevista para o emprego e se encon-trasse sozinho, sem perspectivas e fluido como nunca no Porto, ao fim de uma tardc dejunho. Jantavauma francesinha numa tasca imunda e fixou-se por acaso numa rapariga que conversava sobre futebol com o empregado, encostada ao balcäo, a mexer o café. O Bruno j á tinba diseutido futebol com mulheres, e isso até entäo parecera-lhe um pouco aberrante. Mas csta sabia o que dizia, nomes, datas, posicôes e classificacôes, e tinha a desenvoltura de quem näo tem nem tempo nem paciéncia para os preliminares. O Bruno introduziu-se na conversa como lisboeta aficionado do Norte, sofreu os ataques deles com galhardia e aceitou o convite da rapariga para irem a um bar ter com amigos. Passeando pelos Aliados, o Bruno aebava tudo grande, tudo bonito, e até o comovia um pouco o nome dela, que era Leocádia. Era alta e atlética, os cabelos negros Crespos c soltos batiam-lhe nas costas enquanto andava. Ele tentava acompanhar o passo largo e todo jovial que parecia ser o estilo das raparigas do Porto. No meio da conversa dela, saudável, quase desabrida, sobre os dois homens de que no momento tentava desembaracar-sc para amar um terceiro, o Bruno ia fazendo perguntas sobre o velho Porto, apercebendo-se com surpresa de que näo sabia, nem apro-ximadamente, a morada do tio Heitor. Conteve-se para näo per-guntar a Leocádia se conhecia um tal negociante de congelados que fora casado com uma Maria de Lourdcs Ferreira. E fazia o gesto habitual de afagar o telemóvel, na intencäo dc perguntar ä mäe o paradeiro do tio, quando a Leocádia o empurrou para um desväo, o beijou de lingua na boca aberta, e lhe disse que tinham chegado. No bar, discoteca minimal, Leocádia deixou-o ao balcäo e esqueccu-se dele. O Bruno tomou a atitude que se esperava, bebendojjiTi numa atitude descomprometida e ocupando-se a percorrer com os olhos a sala que, salvo pequenas diferencas na populaeäo, era afinal sempře a mesma. Numa destas observacóes panorámicas, descobriu um surum a pouco metros, um bruta-montes agarrando pela cintura uma rapariga que o empurrou e se dirigiu, no tal passo largo c jovial, ao balcäo onde estava o Bruno. - Diz que estás comigo - mandou ela. O Bruno ficou com dúvidas. Näo lhe agradava mentir. Mas o sorriso aberto dela, a ondulaeäo dos cabelos compridos e claros, os olhos trocistas näo permitiam qualquer reserva. Era Amelia, disse, trabalhava numa loja de desporto c ha via de sc tornar sócia daquilo tudo dentro de pouco tempo. Era grande, a Amelia, com umas pernas magras que näo acabavam. Pagou a ultima bebida ao Bruno e levou-o para a cama. Na manhá seguinte, abria elc o frigorífico ä procura de água, e parou com uma sombra a deslocar-se no canto do olho. A jancla, em contraluz, com uma caneca de chá na máo que dizia V AI TU!, olhando-o, radiante, estava a Cidália. -Vim beber água - disse o Bruno. Por trás dela, avistava-se tipicamente a Torre dos Clérigos c um céu bačo de cidade industrial. Amanhecia. Uma motoreta subiu arua nimi estrépito e aba-fou as palavras dela. Mas os olhos diziam tudo. -VK>nMJjr^ ^y ___-—- ; c*?ws> by/l ft? 'Kífij FELICLDADE Ela apareceu ä porta da sala, estava cansada e sabia que náo ia dormir, ele chegava sempře tarde do consultório, ela interrompia o que estava a ver na televisäo para lhe fazer um copo de leite e uma torrada. Ele ou comia a torrada e deixava o leite ou bebia o leite e deixava a torrada, forma de um hörnern preservar alguma independéncia. - Näo bebes o leite? Sempře magoada. Levara-lhe um croissant ao consultório, a meio da tarde. O ultimo doente entrava ás sete, era um habitual de queixas sem consequéncia, medicado e despachacio em dez minutos. Ela fez mencäo de esperar que ele acabasse as consul-tas, como muitas vezeš fazia, olhando as montras pelas redonde-zas e sentando-se depois na sala de espera a ler revistas. Quando entrara no gabinete, sem se fazer anuneiar, ele estava ao telefone. Tivera, ao vé-la, um movimento de contrariedade. A forma como ela o surpreendera a falar ao telefone, recostado, lánguido, feliz. O rosto elevado a um ponto abstracto, a luz branca do negatoscópio batendo no lado bom, rejeitando a cicatriz do desastre para uma escuridäo disereta. 129 ^7 Luisa Cosra Gomes Felicidade - A Zininha ceve 18 a Matemática - disse ela. E ele pousara o auscultador. Agora era preeiso fechar as portas ä chave, confirmar que as persianas estavam corridas e travadas e olhar uma ultima vez lá para fora, para o pátio das traseiras onde de vez em quando passavam sombras e se dizia acontecerem coi-sas. Apertou bem o roupäo, foi ä cozinha, puxou a fita da per-siana, que näo cedeu.Os íilhos já dormiam, ela teve cuidado. Confortou-o a cle o som familiar. Todas as noites cla rondava a casa guardando restos, fechando coisas em caixinhas de plástico, aferrolhando portas, tapando, cercando, travando c encerrando e era assim que ele sabia que o dia tinha acabado. Ouvia, sentado dc frente para a porta da sala, os ruídos da pessoa dcla como um emissor de radar. Ela parava á porta da sala, ele fechou o sorriso. - Estás a beber. Ficara na sala de espera do consultório atc ás sete e meia. Na universidade pedira um certificado de frequéncia para a Zininha, mais abaixo comprara uma camisola para o Ti co. Depois lera no jornal as notícias que já conhecia da televisáo. Eram tantas, as notícias, tantas as catástrofcs. Na ultima meia-hora dormitara na sala de espera que cheirava a gente, onde dois velhos conversa-vam de coisas remotas. Ele mandara entáo a enfermeira avisá-la de que ainda ia demorar. Ela conversara com a rapariga, tentara cxtirpar-lhe a origem do telefonema do sorriso, mas ela traba-lhava ali há pouco, desconhecia tudo. Ao sair do consultório, ao rodar a chave na porta do carro, e nas curvas do caminho, apresentou-se-lhe como um fantasma dc terror, inteiro, sempře novo, o sorriso de beatitude que ao entrar no gabinete surpreendera ncle. Como agora, de chávena na máo, paráda de frente para o frigorífico, quando se suspende e lhe espia os movimentos, na sala. Sente que ele se mexeu no cadeiráo, que vai levantar-se, pegar no telefone, continuar a con-versa interrompida. Num instante está na sala, urgente, de pé, 130 encostada ao sofa. De repente o Tico sai do escuro da entrada, dá um passo e recorta-se alto, magro, silencioso, vestido de negro. Pára como se nunca tivesse andado, a olhar fixo para a televisáo apagada. - Pensei que estivesses na cama, a dormir! O filho passa ao largo, desaparece no corredor. - Ainda lá fora a uma hora destas! E de manga curta! Veio depois pousar a chávena da verbena delicadamente, aťas-tando no tampo de mármore da mesa pequena o copo de uísque com o dedo mindinho. Empurrava-o aos bocadinhos, fazendo-se desentendida, conquistando espaco. - Bebe mas é o chá. Ele ouviu-a depois nas lavagens e ultimacöes. Parecia seg-ui-la um rasto de luz curta, naquela mecanica de ligar e desli-gar interruptores. Parava para se pentear sob uma campanula dc claridade, a toda a volta a escuridáo gradualmentc tomava corpo; depois aparecia enquadrada noutra porta, passando ainda lesta nas pantufas, a cabeca ergtvida, atrasada para fechar assuntos. Näo que lhe interessasse o que cla ťazia ou näo fazia. Era parte da sua vida. Reeonhecia o familiar peso no pcito, sen velho devotado amigo, coisa perfeitamcnte sentada sobre o esterno. Agora o peso tinha nome proprio, chamava-se cancro, era um segredo - o sorriso voltou enquanto a seu lado a verbena esmorecia. Acorda, näo sabe se acorda, näo se lembra de ter dormido. Sente-se em falta. Prccisam dela. Tem sempře medo. Levanta-se e vai a sala, onde ele dorme no sofa, ao lado de uma garrafa de uísque completamentc vazia. Depois abre a porta do quarto de Zínia, ouve no escuro a respiraeäo pausada e avanca, tem de olhar para ela, tem de lhe ver a cara. A luz que vem do corredor näo ehega, ela acende o candeeiro c pousa-o no chäo, para näo ferir o sono da filha. Zínia sabe o que quer. Mesmo dormindo, 131 —P : C^TO^l typ/j Luisa Costa Gomes Felicidade sabe que acabará o seu curso de Biologia, que se casará entre os vinte e cinco e os trinta com um hörnern de profissäo, que terá dois filhos, um menino, uma mcnina, que viverá em Lisboa e depois, com as criancas criadas, terá uma quinta algures, com bichos ä soka, porque Zínia gosta de cavalos. Näo quer piscina. Quer uma quinta ao pé do mar, para olhar ao longe. Dorme pou-sada, penteada, as unhas róseas chegadas umas äs outras sobre a aimofada. Nada aflige Zinia. Ami seu pai, sua mäe, vai ao cinema, faz ginástica, viaja com os amigos nas férias do Veräo. Apaga o candeeiro, respira fundo, metc-sc pelo corredor. O quarto de Tico está vazio. A roupa espalhada, os livros da escola em pilhas, o computador aceso, no monitor, em contínuo. a legenda do costume NÄO ACONTECEU NADA NÄO ACON-TECE NADA NÄO ACONTECERÄ NADA NUNCA ACONTE-CERANADA, a legenda da parede de siléncio em que ela embate sempře, falem com ele, diz o psicólogo, tem de arranjar maneira de comunicar com ele, e esse olhar negro, de lämina, que o íilho Ihe deita quando cla sc interessa pelo que o interessa, a formula i, o futebol, mas desajeitada, incompetente - há trés anos fechado no quarto, chegando a desoras näo se sabe de onde, saindo sem dizer uma palavra, é uma fa se, diz o pai, é normal, isto passa. Mas encorajado pelo exemplo heróico dele. Talvez um dia também o hörnern da casa consiga voltar a desoras. Ela revista as gave-tas do íilho com vergonha, é a única forma de estarem juntos. Apanha-lhe papéis que a mostram em caricatura, com penas de galinha, a cacarejar. E poemas, näo sabe se eseritos por ele, se copiados de livros, sobre a tristeza, sobre a tristeza e a miséria e a injustica do mundo, sobre näo saber quem é, sobre näo querer nada. Ela odeia-se. Lé livros que falam muito do amor. Livros cm que o amor é a solucáo. O psicólogo diz que ele está a crescer, que é absolutamente normal que queira ter mais autonomia, refe-re-se-lhe na consulta como «a mäe». Ela protege de mais, ela näo protege o suficiente, ela näo tern vida propria, ela e demasiado cgoista, ela näo pode invadir, näo pode abandonar, näo pode cul-par, näo se pode culpar, tem de estabelecer regras, tern de ter a sensibilidade para saber quando näo as aplicar, tem de ligar, tcm de desligar, tem de scr feliz, Serena, firme e ela olha para o psicö-logo, composta, no seu papel de mäe normal e dentro da cabega grita-lhe apavora-me que ele se sinta sozinho, que ele tenha de passar por isto tudo sozinho, näo quero que o meu filho sofra. E assim täo dificil de compreender? Digam-me ao menos que näo e por minha causa, que näo sou eu que o faco infeliz. Mas para que perguntar? O psicölogo compreende tudo. Foi ä cozinha tomar outro comprimido para dormir. Fechou a porta do quarto de Zinia, foi ä sala, passou a mäo na mäo dele, depois olhou-o de perto, pondo os öculos de ler para lhc ver a cicatriz na cara. Näo era nada de especial, um pequeno acidente de avJtomövel, um vidro, um estilhaco, näo se notava quase. Ele e que se ressentira. Falava a tres quartos. Deixara de ter vontade de ser ele. Mas o sonho dela näo era melhor. Via-se com um recem-nas-cido nos bragos, a sail" de urn velho edificio. Procurava näo molhar os pes nos charcos oude apareciam em espelho longas ramadas. Olhava para a rua alagada, que ia dar a uma praca para onde a agua corria em catadupas. Chora, mansa, perdida na cama. O tempo passa. 132 133 : VP0? ar?io«jota>/i to? 'MJJ(7 QUE. Proposicäo. As armas e os barôes assinalados, etc. Invocacäo. E vós, Tágides ininhas, etc. Dedicatória e Narracäo. Epopcia é narrativa em verso, etc. Luis de Camôes (ic;24?-i58o). Morre a i de Junho de 1580, pobre e abandonado por todos. Sendo o seu cnterro feito a expensas de uma instituicäo de beneficéncia a Companhia dos Cortesäos. Salvou a sua obra com o braco no ar. Foi vítima de naufrágio. Amou urna barbara na India. Dcz cantos, verso decassílabo, clássico ou heróico, em estrofes ou estáncias, oito versos cada. Rima abababcc. O herói de Os Ĺusťadas é o povo portugučs. Ocidcntal praia lusitana, sinédoque. Prosopopeia. i'ersonificacäo. Baco, contra. Vénus, Jupiter e Marte, a favor. A nossa epopeia é superior porque a Európa domina o mundo. O Rcnascimento é nada do que é human o me c estranho. Isto sabia o Carlos com seguranca. O resto logo se via, era questäo dc ir deitando o olho ä direita e ä esquerda, quicá mais além ainda, e inventár ä medida. Näo é o horném a medida de todas as coisas? A vcrdade é que o tempo näo dera para mais. Quedara-se na véspera com um olho no hollywood c outro no resumo do Camôes, ouvira a mäe rczinsar antes de adormecer Ári/£r? Aŕ1 135 _ „ 2^%o A -iL- Luisa Costa Gomes na sesta que a prostrava sempre depots das nolicias nacionais. Dc viés, ouvindo o ligeiro ressonar parental, o Carlos percebera que podia enfim dedicar-se por inteiro ao filme na televisao. Agora aprecia o mapa da sala e avalia os pontos de apoio. A Lídia nao está. O Flávio, a direita, só muito dificilmente terá alguma utilidade, o Ilya está longe de mais e o Idalino náo é de fiar. Acompanhando com o olhar a professora que fecha a porta da sala, o Carlos encomenda-se, sem mesmo sabé-lo, á inspíracao das Tágides e á boa vontade de Jupiter. A doutora Formosa, por sua vez, tivera o capricho de inovar. Em vez de propor aos alunos as sinédoques do costume e as fatais prosopopeias, abalancara-se - porque os achara eminentemente preparados, eminentemente motivados - a dar-lhes a ler están-cias que nao conheciam de antemáo e a pedir-lhes que identifi-cassem, que transcrevesscm, que descrevessem, que caracterizas-sem, que justificassem, que comentassem c que avaliassem. E que todas estas aptidSes e actividades se exercessem sobre materia do Canto VIII que nao fazia manifestamente parte do program a. O delegado de grupo torcera um pouco o nariz, era bom fun-cionário, bem falante, ferrenho da clareza dos objectives, cog-nitivos. afectivos e mais alem, ideólogo apertado das estratégias de operacion alizacáo, prestigiado pelas actas minuciosas dc que ninguém poderia reclamar. O Carlos correra os olhos pelo teste. Fora a primeira óbvia aliteracao («vagabundo vás passando a vida») e a prosopopcia ou onomatopeia ou lá o que era do II.2.1. a), sobre pouco mais ousaria dizer que tinha a certeza. A seu lado, o Flávio riu-se a mastigar uma frasc. E o Carlos, sófrego, olhou para o teste na csperanca de lhe encontrar alguma graca. A janela da sala, nas alcgrias da falta de castigo, mostrou-se a cabecorra do Ricardo. de nariz colado as grades, curioso. A doutora Formosa sorriu, serena, c accnou. Ele csticoLi-lhc o dedo medio e rugiu a cor- 136 Que. rer. Estava calor para Maio. O Carlos conformou-se, baixou os olhos á estáncia. «Mas aqueles avaros Catuais/ que o Gentí-lico povo govemavam/ Induzidos das gentes infernais/ O por-tugues despacho dilatavam./ Mas o Gama, que náo pretende mais/ De tudo quanto os Mouros ordenavam/ Que levar a seu Rei um sinal certo/ Do mundo que deixava descoberto/ Nisto trabalha so [...]». O Carlos relé c passa ä frente. Percebe que há ali uma tramóia qualquer entre os Mouros e o Gama e procura o léxico que Formosa teve o cuidado dc ancxar á prova. Ela já nadava cm águas bem turvas, era melhor náo abusar. Quanto ao Carlos, resta-lhe informar-se sobrc estes Catuais, o que quer dizer Gcntílico, quem sáo as gentes infernais, que ele suspeita tenham a ver com o Gentílico povo, qual o signiťicado de despacho, o que seria aquela cena do dilatar, o que está ali a fazer aquele ordenavam. Levar a seu Rei um sinal certo, c daí para a frente acha claro, o Gama quer voltar a Portugal a dizer ao Rei D. Manuel que encontrou a India. Inspirou e de caneta em riste confirmou que a Neide continuava debrucada sobre o teste, a cortina de cabelo vermelho varrendo a folha para cá e para lá. Porque dilatavam os Mouros o portugués despacho? Porque, eserevcu o Carlos, porque os Portugueses, e separou por que, e licou na dúvida. Porque. Resolveu juntá-los de novo, soava melhor, depois fez um tracinho vertical todo trémulo a romper a ligacáo e esperou em Deus que a professora percebesse que ele ao menos hesitara. O Carlos estava muito treinado nas psiques dos professores. Sabia como eles cram sensíveis aos processes, identíficar, reconhecer, analisar, sintetizar, eriticar, avaliar, reflectir, e que a falta de saber de facto responder, o melhor era estar sossegado, mostrar-se empenhado, esforcar-se por manter os olhos abertos e revelar-se participative) item que fosse pela neutralidadc. Em casa, na escola, o Carlos sabia que o que mais contava para os adultos era o seu asscntimcnto. 137 J7? 'K3J^ Luisa Costa Gomes Que. Para a mae havia as coisas iinportanf.es e as coisas sem qual-quer importáncia. Estas mudavam bas taňte ao longo do tempo. Era capaz de dizer, sábado, por cirna dapizza do almoco: - A única coisa importante é a nossa dignidade como nacáo. E domingo, no barulho do centro comercial, á mesa colectiva do café, comendo o donut, o Carlos ouvia-a dizer que: -Aúnica coisa que conta neste mundo é o dinheiro. - Eiro, dizia o pai. Isto irritava o Carlos porque, embora quieto e calado, reser-vado c secreto, era o tipo de informacáo que Ihe fazia falta e gostava de reunir. As vezeš tomava atencáo, por baixo da impas-sibilidade dos fins-de-semana, mas já percebera que náo valia muito a pena. Dali só vinham generalidades cambiantes, ner-vosas, que pareciam mero fruto de um sentimento de ameaca. Se estava Janete, a amiga da mae que trabalhava nos Correios, afirmava-se que sem saúde é que náo se ia lá. E a máe tinha um olhar vago, duvidoso, porque saúde era coisa que nunca havia plenamente. Nem a sua Ode ao Outono conseguira acabar a tempo de ser publicada no Diário do Cávado. Uma dor na barriga da perná passava a ser a única coisa que importava. Depois vinha a erise de vesícula. Suspendiam-se as rimas até ver. Permanecia a Língua Portuguesa. Aí, alto e pára o baile! Por isso, lá em casa náo havia fostes nem viestes, nem hades nem quaisquers, nem irá-se, nem virá-se, nem meter, nem porque éques, nemprontos. Mas vivia-se a erise permanente. De perná tracada no sofa, o pai punha os óculos de ver televisáo, gritava para dentro ao bater das oito: - Olha o nacionál, Susete! E ela precipitava-se da cozinha com o pirex da lasagna descon-gelada e sentava-sc ao pé do pai, ainda com as luvas de torno cal-cadas, um pouco debrucada para a frente, como se cheirasse em directo a corrupeáo de Portugal. - Que vergonha! - dizia. 138 - Estamos acabados - dizia o pai. - Isto daqui para a frente e so putas e campos de golfc. A mae olhou-o numa censura, por causa do miudo. Era por cstas e por oulras. La se abastardava a Lingua Portuguesa. - Vanios ser a Republica Dominicana da Europa - concluia o pai, a tentar apagar o mau passo. - Mas sem os cocos. Todas as noites se abatia sobre eles uma nova decepcao. Aguerra do Iraquc sempre os distrafa do fado nacional. Mas o pai achava que era manobra deles, para nao se falar no desemprego e na crise da economia. E enquanto o pais se sentava a ver pedoii-lia, o pai comentava que ningucm queria saber da crise da cortica e que Portugal era um pais a prazo. Algucm ja se apercebeu de que dentro de dez anos todas as rolhas serao de plastico? E o pais a gastar milhoes com o bicho da cortica! - Eles querent la saber - dizia a mac. O Carlos encolhia-se, comecava a ficar consciente das unhas dos pes, detcstava que os pais falassem por cima do som da rcle-visao. A doutora Formosa, pcquenina, cheia de minucias compe-tentcs, era imensamente dedicada as suas turmas, que enchia de objectivos, mapas, graficos, palavras cruzadas, videos, outros complementos didacticos e toda a casta de estrategias motiva-cionais. Nao seria por falta de empenho dela que eles nao chega-vam la. Tinha pelo Carlos uma afeicao especial. Achava-o reser-vado e sonhador, como cla propria era, no fundo. O entusiasmo de Formosa pela epica camoniana so tinha igual na delicia da lirica, que fimcionava muito bem com os meninos e as meninas do nono ano. Nada que se comparasse ao sucesso do fogo que arde sem se ver, dclirio de risinhos c bilhetinhos pela turma, mas mesmo assim, elevando a voz para o grandioso, Formosa tinha--os na mao. As arm as e os baroes assinalados ainda Ihe davam, ao fim de quin/.e anos dc docencia, algum tremor, uma exaltacao !39 -^^A/y/^ ^yJ?zf—-—■--- Luisa Costa Gomes Que. melancolica das coisas que tendo sido foram o que foram c davam saudade do tal futuro que nunca seria. Porque entre o Quinto Imperio do Mundo que ela nao sabia exactamente o que era e esta Europa do Marketing e da Publieidade, de onde o espirito escapara, mormente o epico, Formosa senria-se a olhar para as mesmissimas grades nas janelas do imenso abarracamento tem-porario de anexos e pre-fabricados escolares em que passava os dias. Grades a que tambcm o Carlos arrimava os olhos, perplexo com os versos que lhe propunham. Parece que ser poitugues era ter sempre vontadc de fugir. De ir por at fora com baroes ou sem baroes. Buscar era coisa de grandeza. Ficar punha-nos doentes, naquela moinha como quern coca - ou histericos, pregados ao esgar perene dos anuncios de grandezas. Andou ali um bocado a brincar com o lapis por cima dos qua-dradinhos da escolha multipla. O Gama era heroi epico nasenda dos grandes hcrois da epopeia grega. Vcrdadeiro ou falso? Quern era o protagonista da Iliadai Aquiles? Ulisses? Homero? O Carlos arriscou Aquiles, depois riscou Aquiles e pensou de novo. A vida toda era um concurso. Era uma adivinha em que os vencedores davam saltos e socos de alegria no ar e os vencidos dedicavam dc olho enxuto a derrota aos vencedores. Tsso aprendia-se e trei-nava-se na escola. No resto, talvez acertasse por acaso. O Carlos confirmou Aquiles por exclusao de partes, botou-lhe uma cru-zinha e foi para a gramatica. «Nisto trabalha so; que bem sabia/ Que, depois que levasse esta certeza,/ Armas e naus e gentes mandaria/ Manuel que exercita a suma alteza/ Com que a seu jugo e Lei someteria/ Das terras e do mar a redondeza;/ Que clc nao era mais que um diligente/ Descobridor das terras do Oriente.» Scte ques. Felizmente aqui nao tinha de perceber o scntido, so dizer o que era cada um dos ques. O Carlos, que gos-tava sobretudo daNeide, da forma como penteava o cabelo com o que houvesse a mao, madeixas penduradas nos lapis, enroladas 140 nos pinceis da educacao visual, a franja agarrada a cabeca por bocados dc fita-cola, trancinhas, repuxos, ganchinhos coloridos. Ta comeste a Ncide?, brincava o Flavio. O Carlos, que gostava. Pronomc relativo. Repara que na mesa lhe tinham feito um^ra-fitti dos Aerokids. O qual, dissera-lhe a mae. Assim, sabes sempre. Quando puderes substituir por 0 qual. Manuel que, parecia evi-dentemente relativo. Que bem sabia que. Ai, o Carlos ricava-se. Mas nao eram os sacanas dos ques todos relatives? O Flavio apanhou-o a olhar para a Neide, mostrou-Ihe a lingua, riram os dois. O Flavio levantou tres dedos, tambem estava com dificuldades nos ques. Que bem sabia que. Quern sabe, sabe alguma coisa. E o Carlos, depois de deitar um fugaz olhar sig-nificativo a professora, esticou o dedo medio na direccao dela e o Flavio ftingou de riso. Formosa desviou os olhos, nao quis intervir. Fingiu que tivera uma ideia de rcpente e puxou de um papelinho - e o Carlos, abandonado, teve de voltar a solitaria tarefalusiada. 141 XT EGA DE QUEIRÓS: Um episodic menus conhecido da sua intimidade Ff ■ a H ■Í til f A i [•f u I ň 1 ■s : 1 M M U 1 Tornado da fiiria de escavar, nem ouviu o trováo que assustou os outros. So muito remotamente se apercebeu do uivo rouco do pequeno Albert Bureau que, sentado no seu earrinho solitário, no meio da relva, abria muito a boca a olhar o céu. José Maria largara a pá que usava na praia, em Val-André, e arrancava a máo as raizes que já deviam pertencer á sebe de lilases e os longos filamentos de relva; a Maria dava gargalhadas trocando do medo de Lucien, que pareeia táo estouvado e afinal tremia com uma pinga de chůva e o estalar do trováo. Agarrou-se a ele, puxou-o mais para debaixo do arbusto e esqueceu-se do José Maria que continuava de cara no chao, os joelhos enterrados na terra mole, unhas prctas, cada vez mais fando. Interrompeu-os o grito de dona Isabel que vinha a corrcr pelo jardim. Queria que se abrigassem da chůva. Náo ouvindo resposta abriu a pequena cancela que separava o jardim dos Queirós do jar-dim dos Dureau e pós-se a anunciar em voz muito alta a ementa do lanche que os esperava a todos na cozinha. A Maria for a primeira a ceder, assim que ouviu o santo nome do arroz-doce, resto do jantar da véspera, mas arroz-doce tout it mime - co Lucien correu atrás 143 Luisa Costa Gomes Eca de Queirós: um episódio menos eonhecido da sua inrimidade dek. A ama de Albert, enorme, de lenco branco na cabeca, lim-pando as máos ás ancas, saía entretanto da casa gémea com todo o seu tempo e sorrindo correspondia ao tolo esgar da erianca. - Oui, mon bébé, oui.Je suis la. Arrastava o carrinho para dentro, aos solavancos pela escada acima. O Zezé só parou de esgaravatar quando sentiu o peso de Isabel ao seu lado e viu pelo canto do olho as botinas negras cui-dadosamente afastadas do montc de terra que ele coleccionara: curvada sobrc ele, apreciando o trabalho feito, indiferente á clmva fraquínha que descía em halo dos castanheiros e das rílias, dona Isabel Correia esperava. Zé Maria levantou-se, sacudiu-se c pós-se a caminho de casa. Sentia a nurse andando atrás dele c entretinha-se a despachar o passo, para a apressar a ela. Gradual-mente, foi comecando a correr - e ela rindo atrás dele, aver se o apanhava, o que se deu a meio da escadaria de pedra da entrada, c com muitas cócegas o obrigou a sentar-se nos degraus para lhe descalcar as botas cheias dc lama e carregá-lo para dentro debaixo do bra^o como uma encomenda postal. Depositado na entrada, o Zezé correu descalco para a cozinha, onde se escondeu. '1'inha já quase oito anos e diziam que sabia fazer versos. Gos-tava de map as e charadas e aprendia Latím. Mi carissime pater, esereveria mais tardc, na ultima carta ao pai, seribo tibi earn epištolám in latinům, etc. e assinava Josephus. A irmá mais velha ocupava muito espaco, ele achava-a gorda, era a preferida do Papá. A máe deslumbrante preferia-o a ele. A ele que fazia versos. Ouvia os gritos dos irmáos mais pequenos na sala, a voz da cozinhcira que dava ordens á eriada Maria, o eriado Charles que passava para cá e para lá, mesmo rente ao seu esconderijo, sem dar por ele. Todas as vozes da casa, na complexa tarefa de dar de comer a tres meninos, o chamavam para a sala. Quando se calaram, desistindo de o procurar,.ele saiu pela porta da despensa e apresentou-sc. Os irmáos estavam distraídos a beber o leite. A máe passou-lhe as máos no cabelo, desaprovou os pés descalcos, mandou a eriada buscar uns sapatos secos c outra camisola, pediu ao Charles que trouxesse uma toalha para esfregar o cabelo do menino e pen-teou-o, com súbitos pequenos intervalos para o beijar. Quando se viu saciado, José Maria perguntou pelo pai. «Papa travaille», disse a máe. «Que faz cle?», perguntou o řilho. «Papa ecrit», disse a máe. «Escreve o qué?» A Maria, nesta altura, estava interessada. O Antonio olhava pela janela e Alberto comecava a sua birra. - Coísas - disse a máe. Primeiro era preciso neutralizar a Maria, que tinha por incum-béncia quotidiana ir chamar o pai para jantar, quando ele se csquecia de descer. Antonio e Alberto, demasiado ocupados a serem pequenos, näo lhe inventavam quaisquer obstáculos. Náo tinham ainda batido as seis horas, mas já era noite. O vento soprava sem hostilidade, era uma brisa confortável, que decidira apenas acompanhar a chůva, para a tornar mais interessante. E isso ela era, Zezé via a poalha csvoacar, tracando belos arcos, mrbilhöes, toda a sortě de formas e de sombras e gozava aquel c siléncio, o sossego táo raro na casa, como uma grande cela taciturna, contemplativa. Quando subiam de roldáo os trés mais velhos ao segundo andar onde ficava o quarto das brincadeiras, contíguo ao quarto de trabalho do pai, é mais que certo que on a eriada Maria ou o Charles os seguiam de perto, alumiando e vigiando sem importunar. A máe näo o queria sozinho a noite na escada empunhando velas acesas. Mas náo deu por ele sair, entretida a embalar ao colo o Alberto que, lito nela, näo a largava da vista um só instante. E ela, embora rendida, ainda deitava de vez em quando uma espreitadela á sala onde a Maria e o Antonio, sentados a mesa, desenhavam. O Zé Maria subia lentamente, cle tinha o sentido da soleni-dade. Parou no patamar do primeiro andar onde ficavam os quar- 144 H5 (=5- // '.^V/^^ *^rv>-f f- ■ J C^90^ c^p/] ft? 'f4jU$ r Luisa Costa Gomes Eca de Queirós: um cpisódio menos conhecido da sua intimidadc tos de dormir e apagou a vela. Agora completamente só seguiria apenas a luz fraca do bico de gás que ardia no patamar de cima, até vislumbrar o risco luminoso por baixo da porta fechada do gabincte do pai. la táo chcio de precaucöes que a meio desse ultimo laňce percebeu que se esquecera de respirar. Parou diante da porta, i cscuta. Näo se ouvia nada. Pelo buraco da fechadura näo viu mais que as familiäres estantes de carvalho, cheias de livros enca-dernados, ordenadíssimos. E a banca de trabalho, da alrura das estantes, com o tampo inclinado, sob o qual reinava um esboco de confusáo. A lareira estava acesa e no grande espelho que ficava sobre ela, viu reflectida, ao longe, a imagem do pai. Abriu a porta sem medo, e sem ruído, para que o näo notasse. Viu a figura alta e esguia, em pé, dc costas para a porta, a cabeca curvada sobre um livro. Depois viu-o caminhar absorto até ä lareira, chegar o livro mais ä vela que ardia no parapeito; ali ficou uns instantes a ler, depois fechou o livro de repente e passeou, para trás e para diante. Zezé aproveitou uma destas passagens para se esconder atrás do repostciro. Dali podia ver melhor, embora o espectáculo tivesse o seu qué de monótono. O pai tirava um livro da estante, ou da mesa de trabalho, ou de qualquer outro lugar, abria-o, fechava-o, dizia uma fräse que ele näo conseguia ouvir bem, parava com o livro na mäo, arrumava-o de novo, caminhava para cá e para lá na sala, parava, caminhava. Enrolava muito devagar um cigarro, acendia-o, puxava duas fumacas, esquecia-se dele no cinzeiro e ia enrolar outro para diante do espelho. Agora falava sozinho. Mas calou-se de repente, a cabeca erguida, posta um pouco de lado, um meio-sorriso nos lábios, que lembrou ao Zezé, num calafrio, a tola expressäo atrasada do pequeno Albert Dureau. O pai esqueceu-se ainda desse segundo cigarro, e atrás da banca alta, cantarolando, entreteve-se a dobrar a margem e a cortar ä faca tiras de papel glace que juntava no tampo a seu lado. Quando achou que tinha terminado, voltott ao infcio do ciclo, rebuscando livros, enrolando cigarros, caminhando para cd e para la - mas aquela felicidade que Zeze primeiro vira nele, tornara-se num caminhar sombrio, de cenho carregado, que mordia a mortalha e se esquecia do livro aberto para resmun-gar, cabisbaixo, fechado. Pensou o filho que ele havia de ser um animal numa gaiola. Que especie de animal seria, Zeze näo sabia dizer. Näo lhe parecia animal de ameacas, grandioso, inesperado. Urn animal doente, isso sim. E tambem todo domestico, como os gatos pesa-papeis que datavam do tempo em que houvera duas gatas em casa, ou como os cäes e os pardais de louca que enfeitavam as mesas e as estantes. Urn animal domestico velho e doente. Aquele pas-sear näo era de tigre, nem de leäo, mas de bicho aborrecido, que ansiava por uma distraccäo. Zeze interessou-se de novo por ele quando o viu precipitar-se sobrc a alta banca de trabalho, molhar a pena no tinteiro de cris-tal facetado e arranhar a folha de papel - riscando-a, primeiro em tracos largos e depois cm gestos mais mitidos. Dc onde estava näo conseguia ver bem, percebia com clareza que o casaco de trabalho do pai se descompusera, que clc cscrcvia com os bracos muito levantados, a cabeca curvada sobre a folha, sem sorrir uma dnica vez. A testa franzida encarava a pägina dificil que näo queria ceder. Zeze via o monoculo baloicar desamparado no fundo do cordäo. O que lhe passou pela cabeca foi a imagem de um grande cäo crucificado. Um longo cäo negro arquejante com as patas sobre os ombros do seu dono. Quando o cäo se preparava para lhe 1am-ber a cara, o Ze Maria acordou, para ouvir o dito aspero do pai que repunha, seco, a pena no sitio: - Isto e que eu sou uma besta! 146 H7 "jP&SmssW? eHj^—^-____-~~- : ^Wt^i^// ft? Luisa Costa Gomes E assim lhe resolvia o enigma. 0 pai nao conseguia escrever versos. Nao era como o Zeze, que rimava os seus tombeaux com bateaux e roseaux sem se alterar. Pere com mere. Penser com aimer. Pareceu-lhe ouvir passos na escada. Era dc certeza a Maria que vinha estragar tudo. Adiantando-se a irmä, Zeze espirrou. O pai suspendeu-se. Abriu muito os olhos, fez um ar excessiva-mente espantado, fingiu näo ter percebido de onde vinha o som. Ja cheio de riso, Zeze forcou novo espirro, abanou um pouco a cortina. Viu o pai dirigir-se pe ante pe na direccäo contraria, com grandes gestos de comedia, empunhando o corta-papcis como urn punhal. - Anda aqui urn grave resfriado - dizia ele -, onde cstard ele, esse grave resfriado? E fingia procurar nos lugares impossiveis, dentro de eaixas de cigarros e de livros de estampas, por träs de estantes e dentro do tintciro, pondo o sett monoculo com grandes ares dc drama, retirando flores das jarras e espreitando-lhes a ägua, inquisitivo. Com cstas actividades vinha brincando, onde estara o resfriadis-simogravissimo, o serious cold, very cold indeed and serious, o very serious rhume, somebody sneezed, oh yes a sizeable sneeze, oh yes through a snorty snotty snout, qui est-ce qui a snize?, onde estara o tris rhumant me'che, o mechant rhume - e assim se i a aproximando, em circulos cada vez mais apertados, do Zeze que se encomia, deleitado, ä espera de que ele abrisse a cortina. Quando a Maria fmalmente entrou no escritörio, ja eles riam loucamente nos bracos um do outro. MEMORIA DE SILVANA Nasceu bebe prematura, mirrado, sufocado de viscosidades, täo meio-morto que nem chorava, apesar das pancadinhas que a Maria Carantonha, afiita, lhe ia dando com dois dedos nas costas. Fora encontrar Mecia escondida no galinheiro, espapacada a um canto, e sö dera pelo sangue quando lhe metcra a mäo por baixo para lhe pcgar ao colo. Enrolara o inocente no xaile que trazia aos ombros e saira dali sem destino, rente äs paredes, rua do Souto abaixo, atordoada pelos sinos que tocavam ja matinas, nas mirfa-des de igrejas e capelas. Ainda via a menina-mäe, mostrando como ehagas nas mäos os ovos esmagados, uma ultima vontade na boca: - Chama-lhe Ga-galante - disse Mecia, trocando, no delfrio, o nome da mäe, Silvana, com o da vaca que a matara. Na corrida, fora dos caminhos conhecidos, Maria teve mais que tempo dc se afeicoar tambem ä recem-nascida, afcicäo de misericördia, tal a que dedicava a Mecia, a filha meio-gaga, arreganhadinha e melancölica de Luis de Azevedo. Näo a pai-xäo animal que dera logo aos scus dois bastardos, entregues por ele ä roda; benzeu-se em reflexo, na ponta dos dedos, a porta 148 149 Luisa Costa Gomes Memoria de Silvana travessa da igreja da Misericórdia e passando o areo da Porta Nova, entrando no Campo das Hortas, procurava ainda maneira de salvar a erianca. Já bem para lá, desfalecendo, deixou-a, furtiva, debaixo de um castanheiro, tal como veio ao mundo, no meio das ervas, sem nada que a pudesse ligar á Casa. Náo tugia a menina, náo respirava. Maria saiu dali com o coracáo num novelo. Que era aquela raiva sombria, aquela inveja, ou alegria, de gozar, muito ao fundo, o sofrimento da Mécia, tontinha como era, indefesa, fazendo perguntas tolas num mcio-sorriso que deixava a companhia per-plcxa? Porque correra, sem pensar, para longe da roda, expondo a erianca a perigos ainda mais certos? E revivia a hora em que chorara e se torcera de angústia, pedindo a Luis de Azevedo que lhe náo levasse o Telmo, o filho do seu coracáo... No galinheiro, Mécia agonizava. Ainda perguntou a Maria, já muito sumidamente, se as pitas também teriam alma, que havia uma, enfezada, cabisbaixa, que era tal e qual uma reíigiosa fran-ciscana no seu passinho pisco. A galega sossegou-a, lavou-a no tanque com muitos cuidados que a náo vissem, deitou-a na cama e foi acordar Luis de Azevedo. Era a Mari a Carantonha a subir a toda a brida para a Senhora do Leite e o Carlos da Vinna a chegar com a mulher e o filho Antonio as hortas. lam de passo, com tempo, a gozar a manhá que nascia e ouviram o vagido da erianca. Antonio, já mancebo, andando á frente de gadanha ao ombro, entrara no bosque pequeno em que passavam todos os dias. E os dois restantes, ajoelhados, debru-cados sobre a menina, presepio o seu tanto desfalcado. Disse a mulher: - Ó Carlos, acaba com a pobrezinha, acaba com a pobrezinha que isto é um vale de lágrimas... E o Carlos pegou-lhc pelos pés, segurou-lhe a cabeca do tama-nho de uma laranja, assestou-lhe os dedos ao pescoco. Nísto, um grito de aflicáo. Era o Antonio. Largaram a erianca, que gemia, e correram ao bosque. Tinha caído num fojo o Antonio, a perná torcida por baixo do arcaboico nada fraco. Mas a máo direita dele repousava sobrc uma area imensa de carvalho que, aberta ali mesmo á cachaporra, mostrou um estendal de dobróes de ouro, de colares de pedras valiosas, que deixou os trés da família assaz assarapantados. - Foi ela, Carlos - disse a Rosalia -, foi a menina que nos con-cedeu este tesouro. Cresceu fortíssima, generosa, meiga, contente, Serena c em tudo absolutamente amável esta menina. Aos catorze anos já pegava no irmáo por baixo do braco e andava com ele de roda, hörnern feito, rindo ás gargalhadas. Os pais adoptivos e o irmáo chamavam-lhe Anjos, porque ela náo era um, mas muitos anjos, como diziam. Tudo lhe interessava. Se era a máe a fazer a sal-moura, queria saber, se era o pai a desentocar a lebre ou a armar á raposa, ia com ele, e tudo o que via a deslumbrava, tudo o que ouvia lhe ficava gravado. Chegavam os frades a visitá-los, ela queria aprender Latim. Achava uma graca infinita nas palavras, como elas se desenvencilhavam para querer dizer tanta coisa e mudavam logo de sentido no que se tirava ou punha náo mais que uma letra. Se calhava passar um que tinha visto mundo, ficava a ouvi-lo e fazia perguntas, náo uma aqui e outra ali, por desfastio, mas todas de carreira e importantes. Até lhcs entrou a porta um mestre de dancas da Corte, cujos guinchos geométri-cos dcleitaram Anjos e Rosária, de braco dado e brados de riso, saltaricando pela casa. E com tal curiosidade, o cerro é que nunca lhe passou pela cabeca duvidar que ali pertencesse de raiz. Como a descoberta dela, também o imenso tesouro foi pouco diseutido. Olharam para as pecas, admiraram á pouca luz um ou dois colares, volta-ram a cnterrá-los. Sabe-se que o dinheiro cháma a cobica alheia 150 Ar-So-? ~W f' Luisa Costa Gomes Memoria de Silvana c a guerra propria - e deixaram-no estar. Com Anjos, no entanto, näo havia meio de acabarem as béncäos. Caíam-lhes em casa como chuva, entravam pela porta, desciam pela diamine - tudo renascia, crescia, brilhava. O gado, ahorta, a boa vizinhanga. Logo que os dois irmäos reais se dcscntenderam, Anjos quis inteirar-se do que se jogava para o futuro. Foi recebcr o senhor D. Pedro ao Mindelo. No fim do cerco do Porto, velando a família esfomeada, näo quis ser parte de urn pais dominado por um rei traidor e caceteiro. Foi ai, sorrateiramentc, que lhe comegou a falar o sangue paterno, a Franga a sussurrar-lhe lá de íonge e a chamá-la. Pois fizeram todos a trouxa e foram de caminho para Paris, mal sabendo que cumpriam a sugestäo genética do soldado de Soult que, aproveitando tmia distracgäo da Maria Carantonha, apanhara sozinha a Mécia e lhe fizera em trés tempos a crianga. Mas näo passaram sequer os Pirenéus, que as saudades apcr-tavam. Davam cm chorar todos, entrosados como o vime nos ccstos, babando a broa, acampados nalgum palheiro; tal Sansäo com seu segredo, a forga desta Anjos desvanecia-se na dištancia do Minho. Entretanto, o Imperador do Brasil lá avangava como podia. Ela acabou por reconhecer que, feitas as contas, a terra tem pouco aver com os sens reis. Voltaram. Lembraram-se do tesouro enterrado, imaginaram subtrair-lhe umas pegas para se estabclecerem algu-rcs nos bons ares, fora da cidade. lam portanto, quase de passeio, procurando sem procurar, por onde lhes dava na vencta, seguindo o rasto dourado de Anjos, ä es pera que ela dissesse alto!, aqui fica-mos. No meio disto, salta-lhes ao caminho um rapaz aflito que os puxa pelas mangas para um casaräo perdido num vale. Lá dentro, morria uma velha senhora ainda fidalga nas falas: - Silvana! - disse ela, muito pasmada, a olhar Anjos. - Dona Silvaninha de Braväes que faz aqui? E täo nova, täo forte! Isto será o céu? Pois näo morreu? Que é feito da vaca Galante? Também cá mora? A família, junto ä cama e ainda admirada do anterior magní-fico da casa, entreolhou-se e pós aquilo na conta do delírio de moribunda. A velha senhora fé-los pro meter quc aceitavam a doagäo - a casa derrancada, os outeiros, os arroios, os matos, os arvoredos, os milheirais, as belas barrosás e um paväo solitário e confiou-lhes o rapazito mudo, que se encostara á ombreira a olhar para fora. Näo foram mais longe. A terra näo dava por falta de cuidado, cuidaram dela. Espalhou-se por ali a fama da forga milagrosa de Anjos. Sabiam-na constitucional, diziam que bebia, fumava, praguejava e näo desdenhava de perder o seu tempo a sovar quem se quisesse medir com cla. Um dia, andaria pelos vinte e muitos, saiu sozinha para cagar nos lados da Portcia Grande. Andou por montes e vales até ter sede, parou e quando levava á boča o cantil viu um pouco mais ä frente, sentado numa pedra, um homem a olhar para um coe-lho. O bicho, muito quedo, olhava a direito para ele. O cäo, dei-tado aos pés do dono, considerava ora um ora outro, intrigado. Anjos achou graga ao quadro, chegou-se mais. O cociho fugiu e o homem virou-se. Olhou-a sem a ver. - Calado, Medurl - disse ele para o cáo. - Entáo vocemecé deixou-me fugir o coellio? - E que tem vocemecé a ver com isso? - E com uma espingarda que é um mimo! - Calado, Medorl - disse cle ao cäo, que já estava calado. Pegaram na conversa por causa da arma, a ultima palavra em espingardas de caga, trochada e de espolcta, e passaram-na de mäo em mäo. O homem apresentou-se, Telmo de Montenegro e Azevedo, da Quinta do Amparo e passado um bocado é que achou coisa estranha no cagador. Quando Anjos, de jaleca cas-tanha, calga justa c bota alta de carneira lhe disse o nome e tirou !5- Ar^zP **** ^ í^y^o typ/; ft? 'XJÚtf Luisa Costa Gomes o chapéu, soltando a cabeleira ruiva e fazendo alcar, no gesto natural, o peito, acendeu-se nele o interesse. E ela mirava-o tam-bém, apreciando-lhe o cabelo arruivado, os olhos pretos e o cor-panzil. Estavam assim entretidos, ouviram o piar da perdiz. Ela asses-tou a lazarina e de um tiro certeiro matou-a. O Mcdor abocanhou a peca sem entusiasmo, foi depositá-la aos pés do dono, que a rece-beu e se pôs, ä dištancia, a fazer o jogo que melhor conhecia. - Que me dás por ela, Anjos? Dás-me um beijo? - Heí-de comprar-lhe o que c meu? E, sem mais, foi-se a ele e pegou-o de cernelha. Ele torcia-se, de perdiz na mäo, fazendo negaca, afastando Anjos, resistindo-lhe. Ela ŕineou-se bem, agarrou-o pelos lombos, levantou-o no a r e largou. Telmo bateu de surpresa com os costados no cháo. - Tome! - disse ele, de mau modo. E, já levantado, agarrando a espingarda, sem lhe proeurar os olhos que há pouco parecia desejar, atirou-lhe a perdiz. - E passe bem. Anjos ficou a vé-lo i r, sorrindo. O Medor é que voltou atrás, pelo sim pelo näo c levou o troféu. NOBARRLL Desta vcz decidiu que ia ficar sozinho e observar o Natal no silencio religioso da quinta. Inventava uma desculpa qualquer, uma gripe fatal contagiosa, ou uma tarcfa rustica. Eles haviam de respeitar isso, referiam-se sempre ao trabalho com a admiracao que se tcm por uma coisa que nao se compreende. Ja experimen-tara umas quantas vezes, para nao ter de ir a festas de anos e aos crismas das filhas das primas, e funcionava bem. «Nao posso ir, estamos a mondar o centeio» ou «ha que podar a ervilha» e «e tempo de engravatar o feijao frade». Nao havia apelo. Tinha jus-tamente acabado de formular a decisao quando a mae telefonou a dizer que a irma mais velha, a quern calhava fazer a consoada nesse ano, se tinha ido embora de repente, passar o Natal ao Bra-si 1, a um sitio que se chamava, esrupidamenrc, Natal; e que ela desceria a quinta com a tia Celisa para «tratar de tudo» e convidar toda a gente. Ele fez a mala, meteu-se no carro e rumou a Espanha. Deixou um bilhete em cima do contador indo-portugues da entrada, e dizia simplesmente: «Fui-me embora. Imporcante Congi'esso de Agro-Pecuaria em Sevilha. Volto depois do Natal.» E assinou o 154 !S5 Luisa Costa Gomes No barril nome complete., Manuel José Andrade Lá-Dentro, para o caso dc a máe náo o rcconhcccr, entre sete filhos, só pelo nome proprio. Ao quilómetro vinte e um, o carro parou. Ele chamou o reboque pelotelemóvel, esperouvinteminutos naberma da auto-estrada, e teve um baque quando lhe apareceu o Valente ao volante, porque soube logo que ia correr mal. O Valente lcvantou-sc do assento, bateu com a testa no espelho. no ressalto deu uma cabecada na porta, atirou o cotovelo contra a janela e deitou-sc no cháo a gri-tar com dores agarrado ao braco. Ele chegou-se ao Valente para o ajudar a levantar, mas ele gritou, como já se esperava: «Nem mc toques, pá! Estou todo partido!» e o Manuel José resignou-se a pedir uma ambuláncia pelo telemóvel. Este era o tal Valente que estivera «tubereuloso» uns dois ou trés dias, depois de ter tido um «cancro do intestino» que se curara por si mesmo. Comccou a chover muito. O Valente continuava a gritar e a água borbulhava na boča, esparrinhava como um chafariz. Manuel Jose atirou-lhe um plástico por cima, refugiou-se no carro e adormeceu. A ambuláncia chegou passados outros vinte minutos, recolheu o fetido e zarpou sem ele dar por isso. Quando acordou era de noite, rodou a chave na ignicáo e o carro pegou Eram dez anos de caprichos assim. Já devia ter aprendido. Passou a fronteira, a chůva parou, ele desligou o telemóvel e procurou um hotel para passar a noite. Saiu da auto-estrada, atravessou uma ou duas aldeias, um as quintas, umas herdades, as deprimentes torres quadrangulares de umas quantas igrejas e compreendeu que näo seria fácil encontrar melhor que uma pensäo de beira de estráda para camionistas. Acolheu-se, exausto. ao Nockes Buenos Bary Habitaciones. O Natal em casa dos Lá Dentro era uma operacáo em grande. As oito irmäs da mäe, felizmente ainda todas vivas, compareciam com a descendéncia até ä terceira e mesmo quaita geracáo, jun-tando-se aos quatro irmáos do pai, já muito mouco, mas ainda belicoso, para comparar reminiscéncias, enquanto os consortes cruzavam conversas sobre tem as da actualidade e as criancas muito engalanadas se espalhavam pela casa e tinham carta de alforria para todo um leque de safadezas que ficavam, por uma noite, impunes. Era tudo - e isto muito possivelmente náo seria coincidéncia, mas efeito de algum gene - gente muito alegre e conversadeira. De modo que, sendo apenas umas cento e ses-senta e poucas pessoas, em virtude da jovialidadc da quadra e dos vinhos da regiäo näo lhes era difícil parecerem umas quinhentas ou mais. Há sete anos, quando fora a vez de a mäc fazer a con-soada, a festa do Natal vitimara, só na véspera, uma cozinheira e uma criada de dentro, derreadas de stresse e horas extraordi-nárias. Manuel José caíra dc cama com um virus. E a enfermeira russa do pai, uma das primeiras a fugir ä fome no Lcste, afirmou, indignada, näo lhe scr possfvel imaginär tanta indigestäo, Para Manuel José isto ia contra a sua natureza mais profunda, que era quase monástica, alem dc signifiear uma canseira sem igual e sem ajuda. A mäe preferia mandar fazer. Ficava genuina-mente espantada com o facto de as coisas, quaisquer que fossem, näo se organizarem sozinhas e aparecerem feitas de moto proprio. «Tratar de tudo» consistia em sentar-sc muito agasalhada na sala grande, a beber gin com a tia Celisa. O Natal servia para ver a família, trocar prendas - as irmäs competiam na magnificéncia dos presentes que davam e a paráda era cada ano mais alia - e jantar maravilhosamente no esplendor matizado de velas aeesas, ä sombra do pinheiro autentico, rodeada dos passos, devidamente abafados, das criancas. Afligia Manuel Jose este materialismo, o esquecimento do significado profundo do Natal, a leviandade, a perversidade dos anúncios que apelavam aos mais baixos ins-tintos das criancas. Afinal, a quadra simbolizava o nascimento do Menino, o amor de Deus pelo Hörnern, o comeco puro da Vida c de uma Nova Ali an 9a. 157 u. ■jXi// Wm -jc^oosuj^----—~- Luisa Costa Gomes No barril Para uma pessoa sensivcl ao barulho, o Nockes Buenos Bar y Habitaciones náo constitui a escolha ideal. Manuel Jose näo pregou olho, desesperado com o vaivém dc pegas e camionistas, o bater de portas e o guinchar de velhos elevadores. E ainda discerniu, no alvor da madrugada, urn desconcertantc rouxinol que lhe esgotou a paciéncia. Lcvantou-se e desceu para o bocadillo da manhä. Igno-rava que o dono do bar era maiorquino, c com surpresa percebeu que havia de comer ensaimadas, dando-lhe nauseas a idcia dessa banha de porco a que rescendem. Na mesa do canto juntava-se uma dúzia de camionistas mascarados de Pai Natal, na sua grande maioria ainda perdidos de bébedos, as companheiras de aventura pousadas nos joelhos, ou abracados a outros Pais Natal. Encolheu-se Manuel Jose no canto oposto e fez de conta que näo existia. De tripas revoltas, enrolou naboca a ensaimada c fechou os olhos. Engoliu, teve um vómito, e quando abritt os olhos, tinha sentado ä sua frente um dos Pais Natal da mesa dos bébedos. Era um Pai Natal imprevistamente credivel. Tinha uma barba verda-deira que lhe caía a direito até ao esterno, um ar afável, avuncular, sereno, quase santo e esta ideia era transmitida, compreendeu, em virtude de uma única pálpebra dcscaída. Como Manuel José havia de descobrir e lamentar, Joaquin Javier näo era o tipo de homem a quem se podia dizer que näo. O «näo» excitava-lhe o lado argumentative, ele erguia a cabeca para poder vcr melhor pelo olho meio aberto e näo desistia enquanto o interlocutor lhe fizesse fřente. E näo era propriamente loquaz, apenas näo aceitava replica. Isto para dizer que Manuel José acabou por se encontrar, sem saber como, empoleirado no assento do camiäo tit, a caminho do pueblo de Joaquin Javier, onde se vivia, segundo ele, o verdadeiro espirito do Natal. Chegaram ao meio-dia - Manuel José retcmperado por uma viagem em que dormira descansado - a uma praceta árida, no cimo dc um planalto a meio de uma planicie que se estendia a perder de vista cm todas as direccöes. Estava um frio de rachar e soprava um vento que gelava. Acabavam de descer do camiäo - Joaquin devolvido ä vida civil na sua roupa natural de camio-nista - quando lhes saltott ao caminho um homem alto e magro dos scus trinta anos, num traje de inspiraeäo biblica, que cum-primentou Joaquin expressivamcntc e lhe perguntou ä quei-ma-roupa: - Quem sou eu? Joaquin considerou-o em silencio de alto a baixo urn bom momento. O homem vestia uma tünica branca de algodäo rude ate aos pes e umas pantufas de carneira. A barba, postica, era longuissima, assim como a cabcleira branca. Trazia um bordäo a que acrescentara, atado com um cordel, um raminho de oli-veira. - A Paz - disse Joaquin, apontando o raminho no bordäo. - Näo - disse o homem. O «näo» despoletou uma discussäo breve e intensa. O grosso do argumento seria este: Joaquin defendia, laconico, um certo consenso simbölico. Se assim näo fosse, seria o caos, a anarquia! O raminho dc oliveira simboliza a Paz desde tempos imemoriais e näo era um papalvo qualquer de Prallä de San Ildefonso que ia mudar isso. Talvez um grande artista, um grande pintor pudesse colocar o raminho de oliveira no bico de uma aguia ou de um urso polar e assim torcer-lhe o sentido, mas para isso era preciso um genio que ali por suposto näo havia. - E a criatividade individual? - gritou o outro. - Näo adivinhas, pronto, estä certo, mas näo mc venhas com teorias! - E desceu a rua furioso, brandindo o bordäo a que Joaquin arrancara num ultimo assomo de raiva o raminho dc oliveira, aos gritos: - Sou a Facienda, conol A Facienda! A Pacienda! Era assim täo dificil de adivinhar? - E Joaquin gritou-lhe que era batota represen-tar Virtudes Anexas. t58 159 rj srp c"(yf rVlV^ A* ay?-, u/zvvi/ T' , ■ c^to^o07?/! ft? 'k&q .__. y ~, 1/ -??. Luisa Costa Gomes No barril Os liabitantes, por razoes que se perdem na noite dos tempos, chamavam á aldeia Prallá de San Ildefonso, ou seja, Para Lá de San Ildefonso, embora San Ildefonso, a vila mais próxima, tivesse sido arrasada durante a Guerra Civil. Há uns cinco anos o alcaide tivera uma ideia promocional c criara uma tradicao. Em Prallá ia vivcr-se o verdadeiro espirito do Natal. Recriar-se-ia, com todo o realismo, a Natividade. E dcsdc entao se representava durante uma semana o Auto do Natal, em que toda a aldeia participava. 0 alcaide chamara as partes interessadas e despachara a constru-cáo das infra-estruturas para acolher os turistas. Esbocou-se um movimento de resisténcia, rapidamente abafado com apromessa de um campo de futebol. Fizeram-se trés hotéis, um deles com piscina interior. Esperou-se a invasáo dos turistas. Por enquanto, cram só Manuel José e uma pequena velhinha solitária, que se dizia ter sido ama-de-leitc do alcaide. Na preparacáo do Auto, os «actorcs» jogavam uns com os outros o «Qucm sou eu?», embora os prémios náo fossem de molde a incentivar o empenho. Para alem de Maria (uma rapariga que dava efectivamente á luz na véspera de Natal) c de José (no papel altemavam os dots carpinteiros desempregados da aldeia), eriava-se uma profusao de personagens animados c inanimados do Antigo e do Novo Testamento, porque todos tinham de ter, por mais pequena que fosse, a sua deixa. E todos os anos se inven-tava mais personagens, para renovar o jogo. Num golpe dc ima-ginacao, o alcaide concebeu para esse Natal a personificacSo das Virtudes Principals (as quatro cardinais e as trés teologais) que, na véspera da represenlacáo do nascimcnto do Menino, defron-tavam na praca os Sctc Pecados Capitals. O pároco fecbara os olhos quer á calinada teológica (toda a gente sabe que as Sete Virtudes Principals náo se opoem aos Sete Pecados Capitais, basta 1 er Hugo de S. Vítor) e fechou sobretudo os olhos ao Carnaval dos Pecados Capitais, cada um rcpresentado por um animal exótico. Basta dizer que a Avareza era o hörnern mais peqtteno da aldeia num fato de urubu e a Indoléncia, como o proprio nome indica, uma preguica; este ano ealhara a um adolescente hiperactivo que optara por reprcsentar a Indoléncia escalando os candeeiros da Rua Direita. Joaquin Javier decidiu que Manuel José também ia ser actor. Entrando na taberna onde se amodorravam Noé e Zebedeu, enquanto Moiscs seguia a emissáo do Eurosport, Joaquin saudou a assembleia. Na parede do fundo, por baixo do anúncio de Prallá de San Ildefonso Viva El Verdadero Espiritu de Navidad, sentava-se um friso de Reis Magos com as respectivas oferendas. O Inccnso era dono da única oficina da aldeia, onde se mandava arranjar os tractores, por uns prefos disparatados. Noé pousou a pomba e disse: - E tu, quem és? Joaquin percebeu com vergonha que náo estava vestido para o Auto. Desculpou-se com o trabalho. disse que Ihe tinha sido distribuído o papel de Fariseu, mas que o chapéu era complexo, c ainda näo estava pronto. Conferenciaram depois sobre o que poderia Manuel José representar no Auto de Natal, assim á ultima da hora; os papéis estavam todos tornados e o pastor de cabras que fazia de Mirra lembrou-se das Bodas de Caná. Manuel José náo se podia impedir de estranhar aqueles espa-nhóis. Eram todos graves, cireunspectos, cerimoniosos, e ouviam-se uns aos outros até ao fim, acenando com a cabe^a. Havia de ser isto naturalmente por forca da personagem que encarnavam. Ao cair da noite todos deviam estar nos seus postos. Comecava o combate entre o Vício e a Virtude. A rapariga que ťazia dc Maria estava por poueo, já se lhe ouviam os gritos na rua. Passou um romanci a cavalo. Joaquin Javier apressou-se. Levou Manuel José para trás da Igreja que dava para a praca, por uma ruela que ťazia cotovelo. Aí, no cimo de trés degraus de pedra, estava um barril. JĚbm n? »^c; ť ^Y . a^TJ 0 . ____/ ^11 -7? Luisa Costa Gomes Joaquin curvou-sc, cntrelacou os dedos das mäos, e disse a Manuel Jose que fizesse dele escada e subisse para o barril. Manuel José já tinha aprendido a náo dizer náo. Apenas adiantou timidamente que talvez fossem necessárias mais instrugöes, pois ele näo tinha muito boa ideia do que havia de fazer dentro do barril. - Pois serás a Agua que se transforma em Vinho - disse Joaquin, cheio de pressa. - A tua deixa é «Nasceu o Menino». Quando ouvires o pastor que vem com os Reis Magos gritar «Nasceu o Menino», levantas-te e dizes «Aleluia, eu era Água e trans-formei-me cm Vinho, aleluia!», que é para o Alonzo, que está ali ao fundo da rtia, tocar o disco com o som dos sinos e o Juan Paco largar o foguctório. O resto é fácil de prever e conta-se cm poucas linhas. O parto da rapariga complicou-se - a erianca vinha de pés para a fřente -, mandou-se chamar o médico da vila mais próxima, que a levou no seu proprio carro para o Hospital; nasceu pouco depois, menina, com tres quilos e seiscentas, saudável e berrona. Os outros todos, sem Maria e sem Menino, dirigiram-se á taberna da praca c deram início as festividades. Quando se soube da Feliz Natividade pelo telemóvel, S. José estava já perdido para a vida, disse apenas «Ena!» c colapsou de brucos sobre a mesa. Tirara a aureola, que lhe magoava a nuca. A aureola servia a Abraáo para fazer uns tru-ques de magia. E Manuel Jose, dentro do barril, tolhido até aos ossos, na excitaeäo da estreia, ouvia zumbidos nas orelhas, ouvia o eco do coraeäo a bater, e perguntava-se se teria acaso falhado a sua deixa. O Alonzo e o Juan Paco, a soprar nas mäos, passando depressa pelo barril, nunca se lembraram de o chamar. CARNE E OSSOS SIP if 1 O jipe despistou-se na estráda molhada, capotou, rolou duas vezes sobre si proprio e deslizando na fina toalha de água, foi embater de través num monte de fardos dc palha que espera-vam melhores dias. Ele rodou a chave na ignicäo e percebeu que estava vivo. Levou a mäo ao bolso do casaco, no gesto automático de tirar o telemóvel, premiu o botáo da agenda e no desenro-lar dos nomes näo foi capaz de reconhcccr ninguém. Quando o hörnern lhe bateu no vidro da frente com os nós dos dedos, como um vizinho que curnprimentasse dc passagem, perguntou-se se o conheceria, se o conheceria täo intimamente como as pessoas que trazia na agenda. Acenou que estava bem e disse que näo pre-cisava de ajuda. Tentou abrir a porta, que cedeu ä primeira, saiu e encarou o hörnern parádo ä chůva no meio da estráda. Acalmou-o c despediu-o, acompanhando-o cordial ao taunus verde, abrindo-lhe a porta, como sc tivesse acabado de lho vender. O carro desapareceu na chůva, na noite escura, c ele saltou umas quantas vezes, cada vez mais alto, para testar o comporta-mento saudável do esqueleto. Era óbvio que tinha dc haver qualquer coisa partida, qualquer coisa que tivesse cedido no impacto, 163 Luisa Costa Gomes Carne e t e era justamente o segundo dedo do pé direito. Já via as luzes de Lisboa, a dor aumcntava na proporc/äo da consciéncia dela, tor-nava-se obstinada e exigente, aquela unica coisa no mundo que näo admitia negociacáo. O carro pegou logo, e sofrera sobretudo no seu amor proprio tecnológico. Era um jipe para matar, näo para morrer. Quem lá fosse dentro por aquelc prc^o näo estava submetido äs leis naturais. E embora o acidentado näo se lembrasse da grande família que o esperava para a ceia de Natal, reunida na casa de origem, foi perfeitamente capaz de esmiucar as vantagens c desvantagens de cada hospital de Lisboa. Decidiu-se, enfim, por uma zona nobre, com uma clientela que ele supos mais escolhida, onde as pessoas de um lado e do outro dos balcöes sabiam quern era quern. Mas a sala de espera abarrotava afinal de gente anónima, querxosa e sonolenta e ele preferiu ficar cá fora a fumar um cigarro e a ganhar coragem para tomar lugar na fila. A dor no dedo partido, no entanio, näo tinha tantos preconceitos sociais. O dedo doía-lhc já no corpo rodo. Scntia os olhos a enterrarem-se nas órbitas e surpreendeu-o o gemido continuo que lhe saia da boca. Decidiu puxar pclas galonas e enfrentar os demónios da burocracia. A enfermeira disse-lhe, impacicnrc, que sc scnrassc na sala c csperasse a sua vez, rema-tando, com gosto: - Há gente a morrer na sala de espera. Sentou-se e esperou. Entrou um hörnern baixo, magro, que timidamente se ajeitou ao lado dele, conquistando espaco na cadeira devagar. Trazia a mäo direita cnvolta numaligadura chcia de sangue. Ele teve ganas de comecar uma conversa de hospital, mas conteve-se, e deliberandi), adormeceu. Acordou ao toque do telemóvel, uma voz festiva de mulher perguntava: onde estás? ainda demoras muito? estamos todos ä tua espera! e ele respon-deu que tinha tido uma reuniáo até tarde e que estava a sair nesse instante do escritório. Ao dizé-lo, olhou para o chäo, onde alas-trava uma po<;a de sangue aos pes do homem da mäo entrapada. O homem percebeu o olhar e o horror que implicava c timidamente procurou esconder o sangue, pondo-lhe as grossas botas em cima com cuidado. Primeiro uma, depois outra, ao centro do lago vermelho. Ele procurou, sabendo que näo tinha, aspirina nos bolsos do casaco. O dedo partido doía-lhe intensamente na cabeca. Adormeceu de novo, a transpirar. A enfermeira tocou-lhe no ombro, acordou sobressaltado c seguiu-a para o ortopedista e daí para a radiografia. Coxeia pouco depois pelo corredor com a radiografi a ao alto na mäo direita, orientado por uma outra enfermeira que o leva ä ortopédia e lhe faz sinal para se sentar noutro corredor, noutra cadeira, ao lado de outra porta. A sonoléncia é agora povoada de vozes conřusas. Tira o telemóvel do bolso e vai passando os noraes da agenda. Pensa em pedir socorro. A dor, com o tempo, torna-se insuportável. O nome da mulher da voz jovial junta-se cnfim á cara dela e reconhece-a: é a mulher dele. Faz-lhe uma festa pelo visor do telemóvel. Os outros nomes da agenda váo tomando corpo: os ŕilhos, os pais, os irmäos, ä espera na casa de origem. Quando levanta os olhos, sorrindo, encara os dois medicos que o olham de pc, bem-pa-recidos, jovens, seguros de si, como numa série americana de hospitais. O mais alto traz um barrete de Pai Natal e o outro um disereto ramo de azevinho pregado na banda da bata branca. O do barrete curva-se para lhe tirar a radiografia da mäo enquanto o outro o olha fixamente como se tivesse uma coisa importan-tíssima para lhe dizer, mas näo se conseguisse lembrar do que era. Ali mesmo ä luz do corredor, o médico do barrete vermelho ergue bem alto a radiografia e inclina-se todo para trás. A borla branca do barrete oseila no ar. - Vocé tem aqui uma fractura no terceiro dedo - disse. 164 165 1 í.-^xjxpy -TPXžaujn* ^ftLJĹ——-— 77 Luisa Costa Gomes - Nao é no terceiro - disse ele - é no segundo. - Dói-me hor-rivelmcnte o segundo dedo - c levantou um poueo o pé, para que também cle fosse testemunha do acidentc. - Aqui na radiografia mostra uma fractura do terceiro dedo, portanto... - e inclinando-se sobre o pé, seleccionou-lhe o segundo dedo e violentamente lho puxou e apertou. Quando ele gritou de dor, o ortopedista perguntou, sereno: - £ este que lhe dói? No entanto, na radiografia... - Mas eu nao estou aí na radiografia, estou aqui sentado á sua fřente. - No entanto, a verdade médica - disse ele - está na radiografia. - As pessoas náo sáo só came e ossos. - Sáo carne e ossos, sim - disse o médico, como o pai que ťalasse a uma erianca birrenta - tal e qual o peru do Natal. Muitas saudades da casa onde a família o esperavapara a ceia da véspera de Natal. Náo quero conversar, disse ele ao médico, tenho a família á espera. Dé-me qualquer coisa para as dores que eu tenho pressa. O ortopedista do azevinho ao peito, que até aí se mantivera silencioso, erguendo o dedo das sentencas, teve enfim a sua intervencáo: - Ah - disse - é a voz do sangue. Afastou-se a coxear pelo corredor sombrio. Quando chegou á porta e se voltou para trás, ainda vřu os dois ortopedistas lado a lado, rindo-se com sacudidclas de ombro, como ratinhos. CRISTO EM CASA DE MANUEL ASSUNCÄO & FAMÍLIA Para onde vai um, váo todos, é o lema de Manuel Assuncáo e família. No caso vertentc, náo váo a lado nenhum, porque o homem dos estores tinha dito que vinha na quarta, náo quinta, ou melhor sexta feira, e Manuel Assuncáo e Senhora acordam todos os dias pelo dcalbar da aurora com a luz cinzenta e těm a manhá estragada. Paciéncia, lěem mais a Bíblia. Fazem leitura temática, catando nas Escrituras todas as passagens sobre o amor divino, todos os versículos sobre o fogo do Inferno, c as onze da manhá encon-tram Manuel Assuncáo e Senhora, ao despique, em sabatina, exa-minando reciprocamente os conhecimentos. Mas, com o passar do tempo, tém-lhe dado cada vez mais forte no Apocalipse. E que se o homem náo vem naquelc dia, nunca mais, só depois do Natal. Pára tudo no Natal. Á senhora de Manuel Assuncáo oferecem os colegas, todos os benditos anos, na troca de prendas da festa de Natal, a mesma caixinha de Fetrero Rochá; que ela dá á Madalena, que diz: «Ah, é verdade, vocés sáo Testemunhas de Jeová, náo celebram o Natal!» O homem dos estores viera há quinze dias c deixara tudo na mesma. Ficara parádo a meio do quarto, com uma espécie de 166 ^^^^ 167 ur*