Vivo ainda!... Ik/We ß^yhp}Ah A ENFERMARIA DUM HOSPITAL - uma sala grande cheia de treva, um pouco vermelho faiscando ao meio - um lampiäo. Na escuridäo terri-veis ais, arquej amentos de peitos que a doenca cruelmente esmigalhä) grandes manchas apavorantes de negrume, subindo pelas muralhas, contorcionando-se, esbracejando pelos cantos. Dir-se-ia visöes, monströs gemendo, arrastando-se numa cadeia. O candeeiro so iluminava no alto e em baixo dois quadrilongos sangrentos. Ais, ais ternveis - e o lampiäo baloucando-se vermelho, sangrando pavorosamente luz, uma claridade que deixava entrever apenas numa meia-tinta, tremen-do, fugindo, delirando como uma ägua-forte de Goya, uma fileira de catres alinhando-se - a ordern no sofrimento... Ele gemia acordado ainda, gemia pensando na bela vida doutros 2 tempos - quando saudävel, quando cheio de alegria... A santa vida an- ~:k tiga vinha-lhe por bafejos: apareciam-lhe pessoas amigas, o seu quintal, a sua mäe. Uma ideia que lhe ia vagueando no cranio fixava-se | pouco a pouco... Näo se lembrava o que era, queria procurar, fugia- f lhe, voltava persistente, afligindo-o. Afinal fez-se o claräo no meio da febre... Nesse dia - era dia de Natal... Ficou satisfeito um instante, na-quele adormecimento em que se sentia, quase contente por ter venci-do a febre, conseguindo lembrar-se, agarrar aquela ideia vagabunda... Dia de Natal! dia de Natal! Depois outra vez afligiu-se. Mas era uma dor tenuissima, reflectindo-lhe imagens que ele vira, pessoas adoräveis que ele conhecia... Era a sua casinha cheia de luz, as cintilagöes de loi-ca doirada pelo sol, a janela do seu quarto abrindo para a alegria amorävel do quintal, a mäe risonha e encarquilhadinha, de olhos 4 tzDKSr AfUH &r&ZA FLo^ ii/uis, dum a zu J de vel ha faianca que o tempo desbotou. Dia de Nalili!... H as velhas costumeiras da sua aldeia, as adoráveis festancas i lu-iiis de ingenuidade, o menino Jesus rubicundo - tudo lhe ia sur-(u'ndo no adormecimento da febre, aos frangalhos, repousando-o... Sempre vivera tranquilamente com a sua mäe, na sua casinha, sein aflicöes nem impaciéncias. Pouco a pouco, porém, a vida comecou .i correr-lhe mal, e assim, quando de Braga, um carpinteiro, o Jerolmo, (i chamou para ele trabalhar na sua oficina, ainda que lhe custasse dei-xar a boa velhinha que ele adorava - partiu. Quinze dias depois entra-va no hospital com a febre. Escreveu ä mäe sossegando-a, escreveu iieraendo e chorando: «Olha, minha mäe, näo te aflijas, näo te aflijas que de hoje a quinze dias já eu hei-de estar apanhando o sol no teu quintal, minha mäe...» No entanto piorou - e naquela tarde a febre es-ganou-o, alucinando-o: via carrancas contorcionando-se, rindo mal-dosamente, fitando-o odientas, visöes, monströs estranhos, numa sarabanda infernal... O doente do catre junto ao dele, urn pedreiro, perguntou ao en-fermeiro: - O vinte e cinco piorou?... E o outro, indiferente, acenou com a cabeca que sim: - Vai indo, vai indo... Os doentes daquele canto de enfermaria, o pedreiro, urn velho com cabeca de caveira a que tivessem pegado barbichas ruivas, dois outros, davam-se bem, fazendo panela ä parte. Eram sempre queixas do hospital, do enfermeiro e da pouca comida; recordacöes da vida de lá de fora, lástimas da doenca - e nem se eseutavam uns aos outros, cada um contando e só se interessando pelo seu sofrimento. O velho há mais tempo ali dizia os que vira morrer, ia contando como vinham buscar aqueles que a Morte esganava, numa grande caixa de madeira pintada de negro. E era um terror quando a caixa aparecia! - A Morte é boa!... - dizia ele rindo, estortegando os beicos rae-donhos. - A Morte pare defuntos... Ai como ele, naquela imensa enfermaria, se recordava da alegria da sua casinha e da sua pobre mäe... Que faria ela entäo, coitada?... Se ele morresse, quem a sustentaria? quem?... Pelo fim daquela tarde sentiu-se mal. A febre redobrou-lhe: pa-recia-lhe que as sombras pelos cantos eram monströs, espiando-o itos, e o candeeiro uma ferida, uma fcrida medonha cscorrcndo sangue... Delirava cheio de aflicáo, arrefecia, arquejava - e de repen-te perdeu o sentimento como se a vida lhe parasse - desmaiou. Quaiv do voltou a si náo se podia mexer. Mas ouviu - distintamente ouviu: - Morreu... E a voz do velho: - Lá vai o vinte e cinco!... Parecia que ia táo bem!... - A caixa... Olhem lá a caixal Hem? era com ele? Teria ele porventura morrido? Seria a Mořte aquilo - ouvir, pensar e náo se poder mexer, náo sentir?... Teria um pesadelo?... - Pronto, a caixa... Ouviu bater a tampa da caixa e entáo compreendeu... Oh, que-ria berrar, lutou para gaguejar um uivo - e náo podia! náo podia! Di-zia-se obscenidades, rugía-lhe uma fúria, uma raiva terrível na alma, Compreendia enfim: a sua insensibilidade parecera aos médicos a mořte!... E lá ia essa noite flcar na casa dos mortos, junto dos outros cadáveres apodrecendo - meu Deus!... - até que ao outro dia o ras-gassem na casa das autópsias... Uivou - uivou lá dentro áquela lem-branca, numa fúria terrível. Babujava-lhe a alma, enlouquecia áquele nome autópsia, todo o pensamento se lhe debatia, como uma fera doida mordendo-se, ensanguentando-se numa jaula. Depois ficou num aniquilamento medonho. Tinha a sensacáo dum emparedado, sentia-se envolto numa frialdade de reptil... Ouviu novamente a tampa do caixáo bater - e um dos homens . dizer, rindo: - Caramba! cinco para amanhá, hem! Era a casa dos mortos - quatro paredes negras, a luz entrando por fendas onde os varóes de ferro se cruzavam. Uma prisáo onde os cadáveres esperavam a autópsia, apodrecendo em cima duma banca de granito, nus... Outra vez se debateu. Ele ficava ali ao pé dos mortos - ele cheio de vida!... - ao pé dos cadáveres ignobilmente verdes... Jesus!... Ima-ginou que caíra em cima dum: os seus beicos beijavam talvez alguma ferida horrível, cheia de podridáo: teve a sensacáo medonha, sentiu a carícia nojenta dum ventre podře rocando-se, amorosamente rocando-se, pelo dele. Confrangeu-se: novamente a fúria encheu-o: mordia-se lá por dentro numa raiva sem Hm - uma vontade de ulular, de se des-pedacar, de fugir numa revolta em que ninguém seria capaz de o deter... Minha máe! ó minha máe!... Chorou, pediu a Deus, pediu numa oracáo fremente que o matasse enfim ou que o livrasse daquela tortu-ra sem nome. Ó máe! ó minha máe!... Lembrou-se da sua casinha que nunca mais veria, da alegria do seu quintal, das boas fruteiras antigas - e aquela noite foi passando - passou-a assim em angústias, em re-voltas e aniquilamentos... Ouviu abrir a porta. Era entáo dia já? vinham buscá-lo para o ras-garem?... Pois que o despedacassem afinal, que mais lhe valia morrer!... Nem tinha forcas entáo para raivar e parecia-lhe sentir a frialdade terrível do bisturi abrindo-o!... Mas uma alegria sem fim invadiu-o, ou-vindo: - Filho! meu filho!... Era a sua máezinha, era a boa velha que ternamente o beijava. Ouvia-a chorando, cheia de tristeza, morrendo de dor. E a vontade! a ánsia que ele tinha de lhe dizer: - Ouve, minha máe, olha que eu náo morri! náo chores, minha máe! Jesus! Jesus! como ele quereria abracá-la, sofregamente enché-la de beijos numa adoracáo - á sua máezinha - e inerte, inerte sempře!... E, como ela conversasse com o enfermeiro, compreendeu que a santa velha obtivera que ele náo fosse á autópsia. Sentiu que o removiam outra vez. Que lhe iriam fazer? Fazia es-forcos incríveis para ver se se lembrava, pelo que ouvira dizer aos doen-tes, do que lbe iriam fazer... Ouviu passadas. Uma voz rouca perguntou: - É este? E a máe chorando: - Sim senhor... - A senhora é que é a máe, hem?... Tem sido estes dias um tra-balho, senhores!... E depois eles morrem com uma barba de seiscen-tos diabos!... Era o barbeiro! - pensou. O barbeiro do hospital, um piteireiro repugnante, verde como um sapo, que ele via passando na enfermaria a tossir, os olhos pisqueiros da pinga. E ouviu-o, que ia tagarelando: - Talvez a senhora náo queira crer... Pois olhe que a barba en-durece depois que a gente vai para o outro mundo, palavra de hon-ra!... E uma barba má de fazer, como seiscentos diabos!... E depois para uma pinga, senhores!... A senhora é dc longe, hem? Da Abelheira?... Linda terra!... Näo se aflija, senhora!... Jsťo a gente tem de morrer!... Depois, piedosamente, a mäe amortalhou-o, enchendo-o de lá-grimas... Ai, como a pobre mäe tinha vindo de longe, a saia de lä pela cabeca, apanhando a inverneira, gemendo e chorando, para dizer adeus ao seu filho!... Nunca mais o veria!... E ä lembranca do seu Manuel morrendo num hospital juntavam-se as santas recordacöes de quando ele era uma erianca saudável, cheia de alegria, beijando-a risonha, pendu-rando-se das fruteiras a roubar maeäs amarelas, gritando: - Oh mäe! oh mäe!... - Ai como a santa velha veio de longe, a saia de lä pela cabeca, solu^ando, batida pela inverneira!... E ele ouvia-a chorando, ouvia as carícias que ela dizia terna-mente, vestindo-lhe a roupa domingueira, os beijos que ela lhe dava - ouvia-a inerte, inerte sempře!... A dor que ele sentia!... Enchia-o uma vontade terrível de chorar, de a beijar, de a beijar numa fúria, ä sua mäezinha, ä sua querida mäe - de lhe dizer, de uivar: - Minha mäe!... Sentiu que iam fechar o caixäo - para sempře! Nunca mais! nunca mais entäo ouviria, veria a boa velha, a sua aldeia, as fruteiras do seu quintal! Iam entäo para sempře encerrá-lo - a ele, cheio de vida?... Oh, entäo a raiva transbordou: alucinou-se, fez esforcos medonhos para ulular, para se erguer enfim, livre, solto!... Rugiu - e ouviu lugu-bremente, implacavelmente bater o primeiro prego no caixäo!... Bom Deus! oh mäe! olha que eu vivo ainda - oh, minha mäe!... Suplicou, pediu - e outra vez ouviu, como uma maldicäo, ferozmente, impiedo-samente, o martelo enterrando o segundo prego!... Oh Jesus! oh meu Jesus, eu sempre acreditei em ti - Jesus!... Tinha vontade de se matar, de se despedacar - e inerte, inerte sempre! Raivou - e novamente, ter-rivelmente, o martelo caiu outra vez!... Endoidecia, dizia obscenidades, insultos. - Oh canalhas! - Queria viver, queria sair dali. - Canalhas! -Ouviu a mäe dizer, desfeita em pranto: - Adeus, meu filho!... - Babu-jou urn insulto a Deus - e ainda, medonhamente, inexoravelmente, o martelo enterrou outro prego!... Entäo tomou-o uma raiva tamanha, uma alucinaeäo täo grande, que a tampa do caixäo voou erifim - e ele levantou-se, ergueu-se, livido, vivo, terrível!... - |-'ilho!... Saiu do hospital e foi para a sua aldeia, com a sua máe. Morria - mas a morte na sua casinha parecia-lhe bem-vinda como um re-pouso. Pouco a pouco desfalecendo sob o olhar maternal banhado de lágrimas, vendo pela janela as macieiras antigas do seu quintal, no seu leito, no seu quarto doirado pelo sol, que punha cintilacoes de oiro nas vidracas - nesse Inverno azul -, ele sentia um adorável en-ternecimento, um repouso sem fim invadi-lo - e sorria á Morte, sen-tindo nas suas as máos da sua santa máe... In Revista Ilustrada, Lisboa, n.° 19, 15 de Janeiro de 1891, pp. 3-4. Com a indicacáo de ter sido escrito na Foz do Douro. Ill