Ana Paula Tavares As vizinhas. As vizinhas cujas conversas e coscuvilhices ele täo bem - c, pelos vistos, täo mal - adivinhara. Para gáudio das duas senis indiscretas, encontrarem a cämara onde estava detido o mestre foi mais fácil do que podiam supor. "Mestre. O sacrifício da vossa fílha Valéria foi duro mas valeu a pena. Estais livre e nos aqui estamos para servir-te." Näo é certo se elas teriam completa nocäo do significado das pala-vras que estavam a proferir. Talvez sim, talvez näo. O certo é que o mestre näo se coibiu e aceitou a oferenda. Saltou voraz sobre os corpos delas, que despedacou e sugou e bebeu e devorou ate se sentir, ligeiramente, recuperar as íorcas. Ao fundo, nos corredores do santuário, ouviam-se gritos. Uns de terror, outros de coragem, a dar o alarme. Dräcula sorriu. O mundo tinha esperado tanto tempo que bem podia esperar mais urn pouco. Antes de sair, que diabo, iria divertir-se um bocado. E empalar uns quantos trades e corromper umas quantas ! freiras. Näo, ali näo haveria freiras. Esta contraria era a misoginia encar-nada. Enfim, nada que näo pudesse ser resolvido a seu tempo. Olhou distraidamente para o corpo de Heising, caido nas escadas, numa posi- J cäo impossivel, desarticulada, um pe para um lado, um braco partido i para outro, o que fazia dele uma especie de suastica humana. Dräcula suspirou, quase condoido com a sorte de Heising, alias Jose Alberto da j Silva Ferreira: caramba, ele havia homens que lidavam mesmo muito mal com o processo de divörcio. Tanto que, coitados, se punham a imaginär histörias. O monstro está livre! Acudam! Näofujam, temos de o enfrentarl Salve-se quern puder! Socorro! Estamos perdidos! Está tudo está perdido! Com© tocAR^vioLino Susana Caldeira Cab ago A nossa história comecou porque Alice queria tocar violino. Desde sempře que queria tocar violino, sentir o vibrar das cordas sob os seus dedos, a máo delicadamente firmě a segurar o areo, cabeca inclinada e olhos fechados, o deleite do som a espalhar-se pelo auditório em suspenso e, no finál, a apoteose das palmas. Em sonhos via a sua figura esguia num palco, a roupa escura a contrastar com o tom absolutamente alvo da pele, as suas máos de dedos finos segurando um Stradivarius que dominava o mundo, homens e mulheres presos nas cordas do seu violino e hipnotizados pelos movimentos do areo. Nos sonhos toda a sua existéncia estava concentrada naquele pequeno instrumento e, cingida e vibrantě como uma corda naquele desejo, ardiam-lhe notas nas máos que compunham música imortal e sublime. Mas náo sabia tocar violino. Agora era tarde, tarde de mais para iniciar semelhante odisseia pelo mis-tério dos arcos e das cordas, pelo que se limitava a observar a felicidade dos outros. Em todos os finais de tarde de sexta-feira Alice podia ser encontrada no auditório da Gulbenkian. Talvez alguém a tenha visto. Era aquela mulher já bem entrada nos 40, sentada na plateia A, do lado esquerdo, perto dos primeiros violinos. Nessas sextas-feiras saía cedo do trabalho e naquele específico dia era Inverno, vestiu o sobretudo antigo e fora de moda, apertou-o junto do peito, soltou os caracóis do cabelo e saiu para o frio do finál da tarde já escuro. Como era uma trabalhadora exemplár, CFI-CONVAM-09 129 jxmtual e produtiva, o chefe permitia-lhe estas escapadelas de fim de tarde ás sextas-feiras. Saiu da Reparticáo de Financas para as ruas da Baixa, já iluminadas do Natal, enxameadas por gen te apressada nas c o nip ras. Subiu ao Chiado, viu as montras da moda, suspirou pelo dia em que teria a ousadia de vestir tais roupas. Um dia, Alice, urn dia... Lá ia Alice, Chiado acima, estava frio, chovia, a chuva era sempre uma contrariedade que náo conseguia dominar. Náo gostava de chuva, impedia-lhe a liberdade do caminhar, causava-lhe desconforto, molhava os sapatos e obrigava-a a abrir o chapéu de chuva e ela náo gostava daquela prisáo das máos ao chapéu, á mala e ao saco da Fnac com as recentes aquisicoes. Parava sempre na Fnac, demorava-se entre o conforto mudo dos livros, CD e DVD e levava sempre alguma coisa para o solitário seráo das noites. Naquele dia centrou as suas atencoes na busca que a ocupava já há dias, mas novamente se frustrou qualquer encontro com gravacoes do violinista Dario Cannourids e partiu levando apenas uma versáo do concerto para violino e orquestra de Sibelius que ainda náo possuía - mais uma para juntar a outras na satisfacáo de uma verdadeira obsessáo pela obra que havia adquirido ao longo dos tempos. E, como sempre lhe acontecia quando se deparava com aquela obra, uma inquie-tacáo dominou-a, algo que nunca conseguira justificar. Perante aquele concerto, Alice experimentava uma sensacao inexplicável, como se a sua vida se movesse ao som daquela música. Mas naquele dia Alice explicou aquele sentimento pela coincidéncia entre a descoberta de mais uma gravacáo e o concerto daquela noite: pela primeira vez, iria escutar ao vivo a obra de Sibelius. Caminhou em direccáo á estacáo de metro do Chiado, preferia aquela junto ao Largo do Carmo para subir o Chiado até ao fim, ver as montras, o Fernando Pessoa carregando turistas ao colo, sentir o cheiro dos bolos e das castanhas assadas no Inverno. Mesmo com chuva. Entrou na estacáo do metro, segurou-se ao corrimáo para náo escorregar e pros-seguiu nas escadas rolantes até náo terem fim. Alice gostava de escadas rolantes, levavam-na onde queria sem demora e sem a inquietacáo da queda. As carruagens carregavam o calor dos corpos que embaciavam os vidros, ao final da tarde era insuportável, outra contrariedade naquele ritual, Alice náo gostava daquele contacto fisico com estranhos nem de lhes sentir os odores e as dores que se foram acumulando na pele durante todo o dia e ainda mais detestava adivinhar-lhes os pensamentos mais íntimos. Saiu na estacáo junto ao El Corte Inglés, apreciava andar aquele bocadinho até ä Gulbenkian e apanhar frio no rosto para se sentir viva. Alice é um vampiro. Adolescente sonhadora do amor eterno, do principe perfeito, da alma gémea, Alice viveu durante anos enfeiticada pela música saida do violino de Antoine Vladdpuim, seu vizinho do lado. Bern implorava aos pais para lhe concederem a bencäo de produzir täo maravilhoso som com as suas próprias máos, mas o espírito prático do pai apontava-lhe a inu-tilidade de tal ofício e a máe a necessidade de agradar a Deus de outras formas. Assim, vivia colada a parede do quarto a beber aquele som, apai-xonando-se pelo seu feitor até se atrever a um contacto directo. Antoine recebeu Alice de bracos abertos; gostava da adoracäo da jovem e tocava-lhe vezeš sem fim as pecas favoritas. Para ela foi o encon-trar do seu principe como nos contos de fadas, um hörnern de paragens longínquas, de ar aristocraticamente belo, que tocava violino como um deus. Antoine surgira misteriosamente, como vindo do nada. Pouco se sabia daquela singular personagem, apenas que era estrangeiro, algures de um pais indefmido do Leste europeu, amante de violinos desde a sua nascenca, pois possuía uma pequena oficina onde os criava com as próprias máos, da forma tosca em madeira até ao brilho final, fazendo-os soltar música. Da adoracäo casta pela música até aos prazeres mais pro-saicos foi um instante e cedo se viu nos bracos do seu principe a receber juras de amor eterno. A primeira vez de Alice surgiu repentinamente, num dia de chuva invernosa que teimava em dedilhar os vidros da janela da sala, quase em uníssono com o pizzicato de Antoine. Foi nesse dia que o tornou nas máos, o corpo dele colado ao seu, os bracos rodeando-lhe os ombros, as máos dele nas suas. Seguiu as orientacčes que Antoine lhe sussurrava junto do ouvido como se as escrevesse com os lábios na sua pele. - Como as coordenadas de um beijo... Deves segurar o violino entre o ombro e o lado esquerdo do queixo. Alice seguia com dedicacäo e enlevo as instrucöes técnicas de Antoine, a colocacáo do violino, a posicáo do tronco, das pernas e dos pés. Pare-cia-lhe um esforco quase sobrenatural aquela precisäo de movimentos que via Antoine realizar com a ligeireza de um bailarino. Mas náo desistiu 130 131 e, ao fini de algum tempo, conseguiu manter por minutos aquele alinha-mento quase militar. Por fini Antoine inioiou-a no conheci mento das cordas e do areo, colocando-lhe delicadamente as máos na posicie cor-recta, corrigindo-lhe suavemente a postura. Alice sentia na sua máo esquerda o corte das cordas, na sua máo direita as cáibras do areo e no seu pescoco a respiracáo e o rocar dos lábios dele. Lutou por concentrar--se nas suas máos mas, aos poucos, os seus pensamentos voaram para o que sentia noutros lugares, para sensacoes nunca sentidas até entáo. Era muito mais do que sonhara. A superfície macia do corpo do violino contrastava com a aspereza das cordas que lhe marcavam os dedos. O poder daquele instrumento misterioso, que sempře pensara usar para o domínio dos outros, dominava-a a ela num pas de deux de melódicos i díl i os e angústias corpóreas. As dores sofridas no corpo intercalavam com notas eristalinas que algumas vezeš conseguia arreba-tar aquele pequeno ser que a desafiava e desafinava até as lágrimas. Alice permanecia de pé, no mcio da sala mergulhada na penumbra fria feita de cortinas negras que teimavam permanecer cerradas e da auséncia quase total de mobiliárío. Os seus pés como que pairavam sobre o soalho des-pido de tapetes e só levemente se apercebia de Antoine por trás, junto a si. Apenas as máos dele tocavam nas suas, por vezeš sentia o rocar do cabelo e da roupa um do outro, quase uma presenca imaterial, um espec-tro que pairava á sua volta vigiando-lhe os movimentos e que a manti-nha presa no centro daquela sala despida e cada vez mais escura. Mais presente e corpóreo, unia-os o violino. Naquele primeiro dia passaram--se horas, o tempo era marcado pelo enegrecer que sucumbia lá fora e inundava a casa até ao acender do candeeiro na rua junto á janela e que projectava uma luz fina e amarelada que entrava através das cortinas e percorria a sala. Mas na sala o tempo estava suspenso entre os dois cor-pos quase unidos pela música que comeeava a nascer das máos dele sobre as dela nas cordas e no areo. O encantamento que Alice sentia náo lhe permitiu surpreender-se com a sofreguidáo com que Antoine, no dia da primeira vez, lhe beijou o pescoco de forma demorada até perder as forcas. Assim pensou ela que nunca havia sido beijada, pelo menos daquela forma. Sentiu os lábios dele na sua pele, depois os dentes que se eravaram na sua carne e de seguida aquele sugar da sua forca vital. Uma fraqueza invadiu-a como 132 sono, o corpo a desfalecer aos poucos, primeiro as pernas, depois aquele torpor a subir-lhe pelo tronco até deixar cair o violino inanimado no cháo. Alice, quase morta, via aquele líquido quente e vermelho cobrir--lhe as roupas, correndo em fio atrás do violino até ao cháo. Amparada , nos bracos dele, sentiu nos lábios aquela bebida espessa e fria que engo- liu com esforco. Era a sua primeira vez e nada se poderia comparar com esse momento de sublime encantamento e entrega. Foi, para sempře, a medida de todos os outros que se lhe seguiram, onde Alice procurou sempře um vislumbre daquele dia, uma repeticáo do que é absoluta-mente único. Nunca mais conseguiria dissociar aquele início de sangue com a experiéncia de soltar notas de um violino também pela primeira vez. No dia em que Alice se entregou de corpo e alma, Antoine bebeu--lhe o sangue, dando o dele a beber. O sangue dela tinha o sabor doce dos chocolates que ele lhe oferecera e o dele o sabor de todos os outros ; que já bebera até entáo. Era esta a única eternidade que Antoine lhe ofe- receu, náo de amor, mas da sua agonia pereně por saciar aquela avidez de sangue nos corpos dos outros. Como surgiu, Antoine desapareceu i levando o seu violino. Logo no dia seguinte Alice constatou que a casa se encontrava fechada, sem sinal de qualquer existéncia ou mesmo do que se havia passado no dia anterior. Verificou a oficina, também vazia e abandonada, sem qualquer vestígio da passagem dele. Antoine desapareceu repentinamente sem deixar rasto, deixando Alice entregue a uma vida que lhe era desconhecida, acabando-lhe com todos os sonhos de adolescente e sem qualquer preparacáo ou conselho sobre a sua nova condi^áo de filha da noite. Voltou ao seu quarto, agora vazio da música de Antoine que outrora lhe trespassava as paredes. Alice recolheu-se, entáo, na memória do tempo passado ao ponto de ouvir de novo o violino de Antoine marcado no seu corpo com uma profundidade nunca antes sentida. Alice náo gostava de ser vampiro. Apesar da experiéncia singular e quase divina da sua primeira vez, repugnava-Ihe aquela existéncia pri-sioneira na sede, o vaguear nocturno por sangue fresco que a impelia contra a sua vontade. Preferia o ronronar do quotidiano, os gestos pequenos que repetia dia a dia, aquelas pequenas satisfacoes que obtinha dos seus rituais de sextas-feiras. Doia-lhe aquela fraca toleráncia ao sol que a for- :' cava a usar protector solar todos os dias, a impedia de ir á praia, que Ihe t 133 impunha a mentira de afirmar que os eczemas que constantemente lhe flagelavam a pele eram apenas psoríase e que a palidez persistente pince-lada de veias azuladas nada mais era que anemia. Privada dos prazeres culinários e assolada pela caracteristica aversäo ao alho, Alice foi dei-xando a companhia de amigos e familiäres cujos convívios sempre pas-savam por belos repastos. Nunca mais voltou ä igreja para desgosto da mäe. Näo podia sequer entrar. Bern gostaria, seria uma oportunidade de indagar junto do Criador a razäo do seu estado eterno. Mas a porta era--Ihe sempre barrada pelo crucilixo que lhe provocava dores lancinantes no corpo. Conviver com semelhante condicäo passou a ser o seu maior tor-mento. A mentira tomou-lhe os dias e a busca as noites. Evitava como podia saciar a sua secura nos outros humanos, como ela havia sido em tempos, mas igualmente lhe causava asco ver-se forcada a servir-se dos cäes e gatos vadios que dizimava äs dúzias. Apenas uma vez por semana se permitia ao luxo do sangue humano. Äs sextas-feiras Alice seguia, atormentada pelo desejo, a vergonha de ser o que é e o impulse vinga-tivo de se alimentär de música e de violinistas. A culpa era do violino. E dos violinistas. Por isso Alice devorava-lhes a música e, de seguida, o sangue. Naquela sexta-feira o programa previa-se morno, culminado com o concerto para violino e orquestra de Sibelius. A orquestra residente seria regida por maestro conhecido mas o sólista era-lhe desconhecido. Dario Cannourids parecia ser um violinista-fantasma. As buscas que realizara no Google saíram goradas e nem täo-poueo encontrou gravacöes em que tal nome surgisse. Aquela aura de mistério que parecia rodear a figura desconhecida do violinista impunha a Alice uma aflicäo até entäo desco-nhecida. Nesta sexta-feira teria de improvisar a forma de abordagem, a condueäo do sólista até aos jardins desertos e escuros da Gulbenkian, e ela näo gostava de imprevistos nem improvises. Habitualmente planeava cada sexta-feira ao mais minucioso detalhe, estudava a sua vítima e estru-turava cada passo e momenta do ataque até ä exaustäo. Ao contrario do que se vé nos filmes e se lé nos livros, os ataques de vampiros näo chamam a atencäo de cacadores de almas penadas mas sim das autoridades. Alice consumira toda a ficcäo existente sobre os seres em que ela propria se transformara, única forma de aprendizagem sobre a sua condicäo, e verificara, com desalento, que, salvaguardando as características clássicas apontadas, a vida de um vampiro em nada se assemelhava ä ficcäo. Näo há glamour na perseguicäo faminta de outros seres para lhes acabar com a vida até ä ultima gota de sangue, a sensuali-dade da mordedura é inexistente face ä conspurcaeäo que gera e o romantismo da luta entre os bons e os maus é sanado pelos pormenores comezinhos que em cada um dos lados se impöem. Alice bem gostaria que näo fosse assim e que fosse possivel saciar-se impunemente. Mas tinha de tomar cuidados que näo surgiam nos livros e nos filmes, näo ser vista ou associada ä vítima, usar luvas para esconder impressöes digitals, prender o cabelo para que nenhum se solte, limpar o sangue que sempre lhe manchava as roupas. Naquele dia ainda pensou em desistir. Näo tinha piano, desconhecia por completo a forma como iria abordar Dario Cannourids e levá-lo de forma discreta para os jardins. Pensou em socorrer-se do esquema habitual, animais vadios, ou mesmo da forma como matava o seu desejo de sangue humano nos meses em que näo havia concertos, utilizando os homens incautos e lascivos dos classificados dos jornais. Alice caminhou em direccäo ä Gulbenkian e os seus passos hesitavam por entre as obras do metro e a vontade de fugir ao inesperado. Acabou por ceder äquela fome de violino e sangue e subiu as escadas que davam acesso ao edifi-cio. Ainda era cedo, dirigiu-se ao bengaleiro onde depositou o seu casaco, deambulou pelo espaco observando as poucas pessoas que ia reconhecendo como os habituais das sextas-feiras. Entrou no auditório quase vazio e dirigiu-se ao seu lugar conduzida pelo rapaz com ar de estudante universitário. Sentou-se direita e aguardou o momento em que a orquestra entraria e se acomodaria, afinando os instrumentos. Do seu ponto privilegiado de observaeäo, Alice recordou a forma como Antoine afinava o violino e comparou os seus gestos com todos os violinistas da orquestra. Antoine tratava o seu violino com a paixäo de um amante, mimava-o e acarinhava-o antes de tocar. Os gestos dos violinistas da orquestra pareceram-lhe mecanicamente desapaixonados, gestos de quem cumpre uma obrigaeäo. As obras iniciais seguiram ao mesmo ritmo lento da sua ansiedade crescente. Era noite e a noite dominava-a, agucava-lhe os sentidos e a sede ao ponto de sentir a vermelha seiva correr nas veias de todos os seres vivos 134 135 que a rodeavam. Apurava-se até ao éxtase o odor a sangue, uma miscelä-nea que a agoniava. Alice era especialmente sensível aos sabores e aromas e preferia um sangue mais puro, livre dos amargos causados por medicamentos, do fétido da doenca e dos maus hábitos alimentäres. Após o intervalo, finalmente Sibelius. A sala em suspenso pela entrada de Dario Cannourids e Alice tinha os sentidos apurados no seu auge, sentia o remexer nas cadeiras no final da plateia, o pigarrear no balcáo e um odor vagamente conhecido que se comecava a instalar vindo de longe. Sonhava com o sólista, pressentia-lhe o pescoco tenso, o movimento do areo, as cordas a vibrarem sob os dedos. Entrou Dario Cannourids, uma figura alta de passo seguro e Alice ficou de olhar preso, náo pelos habi-tuais motivos, mas porque algo nele lhe era familiar. Observou a forma como limpava o violino, o areo, como afinava o instrumento. Era ele, parecia mais velho, o que era impossível, Alice sabia que ele näo enve-lheceria. Mas era ele, os movimentos únicos e irrepetíveis, a figura exotica e aristoerática de Antoine Vladdpuim. Durante a obra Alice ganhou certezas, o Sibelius de Dario Cannourids era o violino trio de Antoine que surgia novamente na sua vida da mesma forma subita e inesperada como surgiu da primeira vez. O seu incontrolável d esej o por sangue humano deu lugar ä änsia que era enfrentá-lo ao rim destes anos de auséncia inexplicável, desde aquele dia em que a eternizou para a morte e desapareceu sem deixar qualquer vestigio de existéncia. O areo do violino dele retalhou o seu coraeäo inerte ás primeiras notas: o som era cortante e fino como foram os caninos dele, anos atrás, a invadir o seu pescoco. Alice sentiu o pouco de sangue que lhe corria nas veias gelar ao ver mais uma actuaeäo que deixava o publico assom-brado no seu violino, a raiva consumia-a por ver que nada mudara, aquele talento demoníaco de predador que a amaldicoara para sempře e que a condenara a uma existéncia de trevas. O primeiro andamento tombou sombrio no auditório, os sentimentos de vinganca envolveram--na, interrogou-se sobre a melhor forma de o fazer sofrer enquanto se deixava seduzir pela música que saía daquelas mäos malditas e daquele instrumento que já vira o seu sangue correr-lhe pelas cordas. Lutou por manter aquele escuro sentir mas o areo daquele violino desvanecia-a de volta aos momentos de plenitude no interior do seu quarto com o ouvido colado ä parede, ao seu recanto na sala da casa de Antoine onde bebia a música dele, aos dias em que estava viva. For momenios a música ainda falava da felicidade possível ao lado dele, agora que eram iguais, ambos filhos da noite, eriaturas negras e solitárias movidas apenas pela paixáo do sangue e do violino. Mas Alice sabia que tal era absurdo, nunca poderá existir vida normal entre dois seres nefastos e inertes, cujo único desígnio é mortifkar o mundo com a sua cobica sangrenta. Des-pojou os seus pensamentos daqueles sonhos impossíveis de alegrias humanas que ainda lhe restavam ao som das últimas notas do primeiro andamento. Estava decidida, era altura de mudar tudo, tinha o mundo á sua frente e á sua disposicáo, era invencível e imortal, sentia uma forca inesperada que nunca antes lhe assoberbara a noite e, pela primeira vez, sentiu realmente o júbilo de ser a cacadora. É sempře difícil surpreender um vampiro, ela propria sabia que, desde a sua transformacáo, durante a noite, os seus sentidos estavam apurados como os de um animal, qualquer som, cheiro ou sabor imper-ceptíveis a um humano invadiam-na inexoravelmente. Antoine também era assim, tinha mais experiéncia que ela e por isso seria sempře difícil iludi-lo. O melhor momento para capturar um vampiro seria, certa-mente, quando se alimentava. O sangue quente e vivo dos humanos, no instante em que lhe invadia e corria nas veias mortas e frias, provocava um estado de absoluto éxtase, uma sensacáo de renascimento efémera que embriaga. É a ténue oportunidade de tais sanguinárias eriaturas térem de novo uma aparéncia de vida, uma pequena vela que ilumina num ápice a escuridáo, tempo breve em que voltam todas as fragilidades humanas. Será nesse momento que Antoine poderá ser interceptado e confrontado, pensou Alice, enquanto o segundo andamento a invadia e lhe tranquilizava os pensamentos, dava-lhe a capacidade de raciocinar friamente e de analisar a situacáo em todas as suas vertentes. Tomando as vestes de estratega tracou o seu piano ao ritmo meticuloso e preciso do Adagio de Antoine. A danca desafiante do violino de Antoine no terceiro andamento deu alento aos seus desígnios. Alice, na plateia, guerreira solitária, aguar-dava a melhor oportunidade. Ele, com o seu exército de cordas, madeiras e metais, em constante e ostensivo incitamento á luta. Puxado pelo som grave das cordas regressou a ela o estado de animal prestes a lancar--se sobre a presa. Em todas as notas que se iam soltando pelo auditório 136 137 anunciava-se a brevidade da luta. O duelo en t re os seus pensamentos mais profundos e o virtuosismo arrebatador de Antoine dominava a sala, a batalha que se adivinhava entre eles era previamente celebrada com estrondoso aplauso, instante ideal para Alice se ret i rar com descricäo. Compreendia agora a sua obsessäo. Há anos que aquela obra de Sibelius a consumia, ouvia-a incessantemente, buscava compulsivamente todas as giavacöes e versöes existentes como se cumprisse um designio superior, como se aquela música sombria e inquietante fosse nuncio do seu destino. E era. Agora Alice recordava com nitidez, Antoine tocara para ela excertos, aquele tema do primeiro andamento que parecia um grito animal lirico, daquele concerto pouco tempo antes de a iniciar no mundo dos violinos e das trevas. Reconhecia, naquele m omen to, a música como aviso de mudanca, anteriormente de transformacäo e agora de vindica-cäo. Mas sentia algo mais, mais do que o sentimento de vinganca täo comuffl nos homens e que Ihe deveria ser estranho no mundo dos seres que estäo para lá da vida. Alice saiu do edifício para o jardim carregando dentro de si a fome de cumprir a música que há pouco a devorara e aguardou a saida dos músicos, única oportunidade para um confronto. Sabia que Antoine sentia a sua presenca assim como ela a dele, pelo que o efeito da total surpresa nunca iria surgir. Seguiu-o pelo jardim, ele acompanhado por uma jovem mulher que reconheceu como a flautista da orquestra. Para-ram num recanto escurecido por árvores altas e arbustos densos. Alice parou também, oculta nas sombras, observando aquele comportamento familiar de predador, aqueles instantes que se antecediam o ataque fatal e que ela propria vinha repetindo ao longo dos tempos. O momento certo, pensou, o momento em que ele se deleita com o sangue dela, está mais frágil, vulnerável aos ataques enquanto está temporariamente ine-briado pelo fluxo de sangue fresco e vivo a entrar-lhe nas veias e artérias mortas, única altura em que se experimenta novamente a sensacäo de estar vivo. Alice seguiu na direccäo deles, Antoine segurava a flautista desfale-cente nos bracos enquanto se embriagavam de vermelho um no outro, e näo vira Alice surgir. Embora Antoine sentisse vagamente a presenca dela perto näo a viu recolher a flauta de prata do chäo e avancar na sua direccäo com ela em punho como uma estaca. Antoine apenas tomou plena consciéncia da presenca de Alice tarde de mais, no momento em que esta o derrubou, fazendo-o cair no chäo desprotegido, de peito aberto. Surpreendeu-se com a forca dela, afmal era vampiro novo em contraponto a ele com séculos de existencia que o vinham fortalecendo cada vez mais. Alice sabia que a flauta seria uma arma imbativel. A prata é um veneno, mas nas suas mäos enluvadas era inofensiva. Cravada no coracäo morto de Antoine seria o fim. Näo hesitou: segurou bem alto a flauta, bem acima da sua cabeca e, com uma forca que ela propria desco-nhecia, cravou-a em cheio no coracäo de Antoine. Alice nunca antes tinha assistido ä morte de um vampiro. Em bom rigor o único vampiro que conhecera era Antoine e era ele que agora estava morto. Mas como matar o que está morto? Olhou o corpo agora totalmente desprovido de existencia de Antoine, uma pedra como aque-las que a rodeavam que se desfez em pó e que se misturava na terra, elimi-nando para sempre aquela figura de séculos num insignificante momento de cinzas. Näo há nada de luminoso na morte de um vampiro. Näo há luz ao fundo do tunel nem epifania ou arrependimento. Um total exter-mínio täo instantäneo como longa é a existencia de noite e sangue. A flautista pareceu recuperar daquele torpor causado pela privacäo súbita de sangue e Alice despertou. Era necessário suprimir todos os indícios, tudo o que se passou deveria ser anulado e apressou-se a termi-nar a tarefa iniciada por Antoine. Antes que a flautista despertasse para uma nova existencia, tomou-a nos bracos e bebeu-lhe o pouco de sangue que ainda restava nas veias. Depois, cravou-lhe a flauta em cheio no coracäo. No exacto momento em que este morria para o mundo dos homens, o som do borbulhar vermelho que ascendeu pelo interior da flauta a forcar a sua saida por todos os orifícios lembrou-lhe um solo desafinado e tosco. A experiéncia foi desagradável, näo gostava de flau-tas, exacerbavam o sabor metálico do sangue. Recolheu o ultimo vestigio da existencia de Antoine que jazia no chäo, aparentemente inerte e alheio a tudo - o violino. Tomou nas mäos o instrumento da sua transformacäo, sentindo nele um reconhecimento pelo reencontro ao fim daqueles anos, como se, desde tempos imemoriais, pertencessem um ao outro. Alice demorou-se na observacäo detalhada do violino, do areo e do estojo que os albergava, passou os seus dedos com suavidade pelas cordas ainda quentes de Sibelius, pela madeira bem preservada apesar da 138 139 idade e pelo estojo em pele corao seda onde, pela primeira vez, sentiu o relevo de uma inscricäo quase invisível ao olho humane). Alice sabia que todos os seus gestos a partir daquele momenta deixariam de ser plantados no mundo dos homens. Já nada a ligava aos vivos para alem do sangue. Era agora um vampiro e, pela primeira vez, aceitava essa conditio ao ponto de obter uma satisfaeäo até entäo nunca sentida em cumprir o seu destino. Naquela noite de certezas, Alice chegou a casa cansada mas sem a sensaeäo de tarefa cumprida. Carregava nas mäos o violino de Antoine, o mesmo que a iniciou na sua existéncia de til ha da noite. Consciente de que a mořte dele nunca poderia alterar o seu estado eterno, sabia agora que, mais que a retribuicäo pela sua condicäo imposta, o seu destino era perpetuar essa mesma condicäo. O impulso que a levava a se apropriar da música guardada nos violinos daqueles que matava nada mais era que o cumprimento de um desígnio maior. Náo era só vin-ganca contra Antoine, esse era o sentimentu humano que ainda Ihe res-tava e que a fazia manter-se naquele mundo dos homens de forma funcional. Algo superior e transcendente movia-a no mundo onde nas-cera pelas mäos de Antoine e pelas cordas do seu violino. Entrou no quarto onde apenas ia naqueles dias em que se alimentava de música e sangue e onde nós, todos os troféus obtidos ao longo de todas essas batalhas, a aguardávamos. O quarto era parcamente iluminado pela luz do tecto, a janela per-manecia sempře fechada, os estores corridos de forma a näo penetrar a mais pequena luz que nos perturbasse o sono e o siléncio. Todas as pare-des estavam ocultas por estantes de portas envidracadas. Ao acender a luz näo se via qualquer rasto de pó a circular no ar, näo havia partículas que pairassem naquele lugar quase asséptico. Alice entrou no quarto levando o violino de Antoine, sabendo que aquele seria o ultimo que aí iria entrar e o que marcaria a diferenca. No interior do quarto e com a luz acesa era possível ver o nosso leito dos Ultimos tempos, o interior das estantes envidracadas. Estava repleto de violinos alinhados, éramos dezenas e aguardávamos o dia em que ganharíamos nova vida. Aquele dia. Olhou-nos, os violinos que vinha recolhendo desde o dia da sua transformacáo, os violinos que a rnaravilharam nas mäos daqueles a quem bebeu o sangue. Faltava este que tinha agora cons i go, o violino daquele que lhe bebeu o sangue, o violino vampiro e o único que nos poderia transformar. Colocou o violino de Antoine no centro do quarto numa pequena mesa. Pousou-o, o areo ao lado, e saiu do quarto fechando a luz e a porta. Aquele era o nosso momento, o dos violinos e náo dos homens, embora em breve nós e ela fóssemos partilhar da mesma sede de sangue para a eternidade. Era sexta-feira: Alice saiu da Reparticáo de Financas para a rua ao fim da tarde. Seguiu para o Chiado, olhou as montras das lojas da moda. Náo chovia, Alice apreciava aquela liberdade de caminhar com apenas o saco nas máos onde se ocultava um vestido preto e o estojo onde dormia o violino de Antoine. Neste dia náo ia á Gulbenkian. Há meses que os seus dias eram ocupados com os seus pianos recentes: escorrer música e espalhar sangue pelo mundo através das nossas cordas e da forma mais prosaica que encontrou - uma loja de violinos. Tinha tarefas a cumprir, era tempo de nos dar destino, nós violinos renascidos que esperávamos pelo nosso novo percurso de existéncia. Caminhou pela rua sonhando com os dias em que nos iria ouvir, o som apaixonado dos filhos da noite nas máos das suas vítimas antes da apoteose das palmas e do sangue. Seguiu Chiado acima em direecáo á antiga oficina de Antoine, agora a sua loja de violinos com inauguracáo marcada para breve. Entrou na loja onde aguardávamos, expectantes e ansiosos, pelo dia em que seríamos acolhidos. Sentou-se junto da antiga secretária que ainda restava dos tempos de Antoine e abriu as gavetas na esperanca de encontrar alguma informacáo que complementasse aquilo que encontrou no estojo do violino dele. Nada mais encontrou que pó e manchas de sangue. Restava--lhe apenas seguir aquela pequena insericáo que encontrara no estojo do violino onde constava o nome e morada do fabricante do instrumente. Jesouin Vlason, algures no Bairro Judeu em Barcelona. Para Alice náo existiam dúvidas, Jesouin Vlason era a assinatura que se perdia num recanto da madeira do violino de Antoine e já muito cocada pelo rocar do seu ombro, o responsável pela eriacáo daquele violino vampiro, cer-tamente ele próprio um deles. E agora Alice ambicionava tomar-lhe o ofício, aprender com ele aquela arte de eriar música e mořte. Alice saiu levando o violino de Antoine. O vestido preto ajustava-se bem ao corpo de contornos de final da adolescéncia disfarcados até entáo por roupas e posturas adequadas á sua suposta idade no mundo 140 141 dos vivos. Ao ombro esquerdo pendia uma pequena mala onde transpor-lava apenas uma carteira e o bilhete de aviáo que a levaria a Barcelona. Na má o esquerda balancava o estojo em pele contendo o violino de Antoine. Náo necessitava de mais nada. A máo direita seguia livre, o braco rocando levemente na anca que apenas se levantou para urn breve aceno na nossa direccáo. Seguiu directa ao aeroporto, a montra ainda oculta náo deixava vislumbrar sequer a sua inexistente sombra assim que fechou a porta atrás de si. Mas, por breves minutos, era possivel escutar o eco decrescente dos seus sapatos firmes pisando a calcada até nada mais se ouvir ou sentir dentro daquele espaco. O nosso destino seria esperar, assistir á partida dela para Barcelona, a sua busca pelo mestre, a sua aprendizagem e, finalmente, o seu regresso com toda a sabedoria que nos iria perpetuar. Uma ingenuidade. Náo foi dificil para Alice encontrar a oficina já obsoleta onde se criava a morte em forma de música há séculos. Jesouin Vlason esperava-a, pelo que náo foi com surpresa ou espanto que a viu entrar. Num primeiro olhar reco-nheceram-se como iguais. Ele viu nela um vampiro novo, uma mulher, um corpo ainda fresco e com a memória do tempo dos vivos. Era tudo o que necessitava para a construcáo de mais uma obra-prima. Ela viu apenas um vampiro velho e gasto como as paredes escuras e empoeiradas do cubículo onde a recebeu. O facto de estar sentado na sua minúscula bancada tornava dificil ver que era um homem de estatura alta, mas adi-vinhava-se a secura dos seus ossos e pele. A sua pele branca da auséncia de sangue e do excesso de pó da madeira cobria-lhe os movimentos len-tos e meticulosos com que manuseava um violino enquanto a inquiria, sem grande curiosidade, dos motivos da sua visita. As máos, ásperas como lixa, terminando em dedos grosseiros, calejados e massacrados pelo manuseamento da madeira, contrastavam com o corpo de aparén-cia delicada. Alice mostrou-lhe, entáo, o violino de Antoine, que mereceu um imediato olhar de reconhecimento pela sua obra-prima. Jesouin tomou--Ihe das máos o instrumento e acariciou-o suavemente, detendo-se nas pequenas falhas de uso. - Estranhas máos onde ele foi parar. Consegue tocá-lo? Este foi feito para reconhecer o verdadeiro mestre. Calculo que Antoine o deixou de ser... - Antoine está morto. - Boas notícias as que me traz. Surpreendida? Pensava a menina que me afligiria com o facto de ele estar morto? - perante o olhar sur-preendido de Alice, Jesouin prosseguiu - só a invejo por ter sido a máo que pós cobro a táo nefasta existéncia. Calculo que náo saiba o que temos em comum. Também eu nasci dele, mas comigo ele náo teve a amabilídade de me tornar eternamente jovem, como pode cons-tatar. Alice olhou aquele eternamente velho com alguma pena, embora os seus sentidos lhe impusessem cautela. Jesouin aparentava uma velhice macia, os seus gestos eram fatigados e o tom de voz lembrava-lhe a ter-nura do seu avó. Mas o olhar daquele anciáo aparentemente adorável lembrava-lhe outro olhar mais jovem e que vira pela última vez a desfa-zer-se em pó nos jardins da Gulbenkian. Jesouin escondia, com a sabedoria dos muitos anos vividos e muitos séculos no limiar da morte, a felicidade que o invadia. Antoine morto, o violino dele novamente nas máos que o haviam criado e agora ela, aquela que iria permitir a realizacáo do seu mais profundo desejo desde que ficara imortalizado naquele corpo inútil que pouco lhe permitia. - Mas o que queria saber era... como tocar este violino? No exacto momento em que Alice o interrogava, Jesouin levantou o areo do violino de Antoine; Alice olhou, confiante, como se recebesse a primeira aula; e com uma agilidade inesperada, em vez de o colocar sobre as cordas do violino, trespassou-lhe o coracáo. Tal como a primeira vez, Alice entregou o seu destino sem dor ou resisténcia. Como se sempře tivesse o conhecimento e a certeza de que o seu nascimento, vida e morte fossem envolvidos nas cordas do violino. Como se o momento da sua morte fosse o preciso instante entre a nota finál do último andamento e o profundo siléncio da plateia antes da ovacáo. E antes mesmo que se desfizesse em pó, Jesouin retirou do seu corpo já sem qualquer resto de vida as cordas vocais. Foi tudo o que sobrou de Alice. Agora cobrem de forma perfeita o corpo em madeira, num alinhamento perfeito de um violino que nunca desafma. O primeiro violino. O de Antoine, o segundo. Faltávamos nós para compor aquela orquestra sangrenta de violinos e Jesouin ver o seu sonho cumprido de nos juntar a todos num só tom. 142 143 Susana Caldeira Cabaco Po r isso, embora impacientes e ansiosos, esperamos. Apesar desta sede que nos revolta as cordas, desta fome que nos corrói a madeira mais do que o caruncho, esperamos. Mas, enquanto esperamos, alguém quer tocar violino?