Diabo. Säo coisas de um poder que ainda anda ä solta. Com Ienlidäo, abriu uma portada e Antonio Pires encolheu-se, defen-dendo as pálpebras fechadas com o s dedos. - Hoje é a transicäo e já Ihe custa. Amanhä, morre á menor luz do dia. Saia, corra da volta para o abrigo. Sobretudo, näo fale com ninguém. Ve j a os seus denies. Já näo säo norma is. Se alguém desconfiar, espeta-lhe um pau pel o peito dentro até que saia o grit o. «Näo compreendo», disse o portugués. «Näo compreendo nad a do que dizem!» Mas tinha apenas o estalajadeiro co m o interlocutor. Patrick. Branwell deixara de falar. Ia pisando, com uma grande cólera, o soalho. Ao lamento de Antonio Pires estacou. - Levante-se, que e u von consigo até lá - disse. O estalajadeiro recuou sob o impacto da surpresa: - É doido? - F.u levo o hörnern para o seu destino. 'Recorda-te de mim': tem a certeza de que foi isso o que a crianca disse? - Disse-o a voz, assim que me apeei. Essa voz foi o lio que me pren-deu. Se se aproxima, está sujeito ao mesmo. - Essa crianca é a minha irmä Maria. Essas palavras säo-me dirigi-das. É a minha irmä moria que me chama. Ouvi-a muita vez. Só que até hoje eu nunca soube de onde me chamava. - Uma vampira já näo chama por ninguém - disse Wormald, com a sua autoridade. Recebiam os trés a cor leitosa que entrava pela janela e a palidez tornava-se comum a toda a sala. Os livros branquejavam como ossadas. Patrick Branwell repetiu: - É minha irmä. O portugués estremeceu e levantou-se. V LAD, 0 EmPALADOE^ Joäo Tordo 56 Foi Vlad, o Empalador, quern me fez acreditar em vampiros. Eu tinha 12 anos e ele para cima de 50; ou assim me pareceu naquela altura, pois era muito mais parecido com o meu avó do que com o meu pai. Pode também ter sido a maquilhagem e as roupas - e talvez Vlad fosse, na verdade, muito mais novo do que o julgara; ou, quern sabe, talvez náo tivesse idade e fosse imortal. Mas isso, por agora, nada tern a ver com o assunto. Éramos trés. Eu, um miúdo silencioso e circunspecto chamado Xavier, e o Ernesto. Xavier era meu amigo desde crianca. Ao Ernesto conhecera-o nesse ano, na escola, e hoje penso que apenas se juntou a nos - um trio insuspeito e solitário - porque mais ninguém o queria. Ernesto era grande e tinha um feitio terrivel. Nas aulas interrompia constantemente a pro-fessora Magda com perguntas despropositadas e com palavroes até ela o mandar para a rua; uma vez no corredor, aterrorizava as continuas escon-dendo-se em recantos e aparecendo-lhes de surpresa com um esgar maléfico no rosto. As continuas gritavam, a turma ria-se, a professora desesperava. Nos intervalos, andava atrás dos miudos mais novos no recreio e, com um isqueiro, pegava-lhes fogo as mochilas. Eu e Xavier observámo-lo durante algum tempo em siléncio. Depois r.rnesto veio ter connosco e perguntou-nos se gostariamos de ir atirar pedras aos cisnes do lago que ficava no centro do jardim proximo da escola. Dissemos que sim; era difícil matar o tempo, e nenhum de nós linha ideias. Nessa Primavera haveríamos de conhecer o vampiro. 59 Um final de tarde de Abril, a professora Magda levou-nos a um par-que de diversóes que fícava no meio da cidade. Alguns colegas faltaram porque os pais náo os deixaram ir; eu pedi algum dinheiro á minha máe - para mim e para o Xavier, uma vez que os pais dele raramente acediam a financiar qualquer género de diversáo - e uma camioneta da escola deixou-nos á porta de uma feira com cheiro a algodáo-doce e a estrume. Havia um circo dentro da feira, talvez fosse essa a razáo do cheiro. Ernesto trazia muito mais dinheiro do que nós e fiquei a pensar, sem saber porque, que ele o roubara. A professora pagou a primeira diversáo (o car-rossel, de que ninguém gostava excepto as raparigas) e, depois, ficámos por nossa conta, combinando uma hora de partida junto dos portoes. O parque estava vazio naquela altura do ano e, por vezeš, parecia um lugar assombrado; havia uma montanha-russa velha e decrépita que, se fosse posta em marcha, provavelmente desabaria, e uma pista de carrinhos de choque em desuso, com os carros ferrugentos arrumados a um canto. Ernesto estava mais inquieto do que o habitual. Eu e Xavier carni-nhávamos atrás dele, arrastando os nossos tenis maltratados pel a terra, na quietude habitual, enquanto Ernesto ria alarvemente da avancada decomposicao daquele lugar. "Olhem para aquilo", dizia, apontando para a roda gigante. "Aposto que ficou parada a meio da viagem e houve gente que morreu de fome lá em cima." Ria-se muito, o seu riso histrió-nico e agudo a que eu e Xavier nos havíamos habituado, e olhava-nos sem piedade. "Vamos, estúpidos", mandava. Quando nos cruzámos com um palhaco que fumava um cigarro encostado a uma tenda, Ernesto fez--Ihe caretas e perguntou-lhe se era o palhaco pobre. O palhaco gesticulou coisas feias e veio atrás de nós e Ernesto correu á frente a rir-se muito alto da patifaria. Escolhemos o comboio-fantasma. Apesar de todo o dinheiro que tinha, Ernesto obrigou-me a pagar. Era a minha vez, explicou. Entrámos no vagáo e uma senhora disse-nos para nos mantermos sentados e náo tocarmos em nada. Assim que o vagáo avancou pelo carril e passou as portas de entrada, Ernesto levantou-se e comecou a arrancar as teias de aranha que decoravam os cenários. Movíamo-nos lentamente, a chiar, pelo carril acidentado, e os sustos eram pouco convincentes: uma bruxa despenteada de madeira que surgia de uma porta fluorescente, um homem decapitado que segurava a sua propria cabeca atrás de uma j aula, um caixáo que se abria e de onde saía um esqueleto ao qual faltava as falanges de uma máo; pelo meio, urros e gemidos, o bater de ossos, sons horripilantes. Xavier dava pequenos saltos á aparicáo de cada nova cria-tura; eu mantinha-me sentado tal como a senhora dissera; e Ernesto, á proa da nossa pequena embarcacáo, como um pirata desgovernado pela promessa de fortuna, ria as gargalhadas com cada uma das tristes sur-presas que iam surgindo, tentando arrancar bocados de coisas. Quando o vagáo fez uma curva apertada á esquerda o vampiro apa-receu. Encontrava-se de pé no final de uma recta, uma longa capa negra cobrindo-lhe os ombros, as pernas abertas ladeando os carris. Iluminado por uma névoa vermelha, tapava o único caminho que era possível ao vagáo percorrer. Até Ernesto fez um segundo de siléncio: aquele náo era um boneco, tinha o tamanho de um homem e a postura de um homem. O rosto estava escondido pela obscuridade, mas o chapéu alto e as longas unhas denunciavam-lhe a espécie. Ernesto logo recuperou a insoléncia e voltou-se para trás. "É o avó do Drácula!", gritou. Ao meu lado senti Xavier alerta e depois soerguer-se no assento quando o vampiro levou a aba da capa ao rosto, protegendo a sua identidade do pirata que, num histerismo proximo da loucura, gritava impropérios áquela figura ene-voada que se recusava a sair do trilho. Xavier tápou os olhos no momento do embate, mas este náo aconteceu: o vampiro subitamente ergueu-se no ar - levado por engenhos invisíveis, calculei mais tarde - e sobrevoou o vagáo como o anjo negro da mořte sobre os túmulos das suas vítimas. Mas náo escapou incólume: Ernesto lancara-lhe uma máo e roubara-lhe um dos sapatos. Pouco depois a viagem terminou e saímos por portas idénticas as que havíamos atravessado no início. Ernesto bradava aos céus da miséria daquela diversáo e, ao mesmo tempo, ria sem parar, levantando bem alto o troféu que arrecadara. A senhora que sentava os passageiros olhava-nos com estranheza. Era um sapato preto normal, sem fivelas ou atacadores, dos que se calcam facilmente e também facilmente se tiram. Quando nos afastámos do comboio-fantasma Ernesto atirou-o para um caixote do lixo. Regres-sámos aos portoes da feira depois da hora combinada. A noite caíra. Eu e Xavier caminhávamos a passo rápido, mas Ernesto ficara para trás, entretido nas suas cogitacoes; a professora Magda podia ser bastante severa se nos atrasássemos. Primeiro vi a turma reunida junto da saída, 60 61 depois procurei sinal tlela; e foi entáo que o vi. Xavier e Ernesto náo o reconheceram - para eles, o vampiro ficara na semiobscuridade de urn troco decorado com teias de aranha - mas eu soube que era ele, mesmo estando de costas para nós. Falava com a professora e era muito alto, muito mais do que parecera á distáncia. Tinha as costas encurvadas. O cabelo grisalho e emaranhado estava agora preso num rabo-de-cavalo; vestia um fato-macaco sujo de óleo e botas pretas de cavador. Tinha a pele amarela. A professora Magda sorria e escutava-o. Devo ter abran-dado o passo, pois Ernesto passou-nos á frente. Xavier, como sempre, ficou do meu lado. A professora voltou-se para a turma e disse: "Quem andou no comboio-fantasma? Este é o senhor Vlad, o vampiro de servico." O homem pigarreou e, vasculhando os pequenos rostos com os seus olhos bacos e injectados de sangue, acrescentou, numa voz táo grave que pareceu sobrenatural: "Vlad, o Empalador". Depois olhou frxamente para Ernesto e sorriu cheio de maldade. Porque o medo é um perfume táo forte - ou, simplesmente, porque um miiido segue os seus amigos ate ao fun do de um poco á procura de coisas perdidas - eu, Xavier e Ernesto comecámos a frequentar o parque de diversoes. Eu e Xavier náo tínhamos particular vontade de o fazer, mas Ernesto recusava-se a deixar-nos ir para casa a seguir as aulas sempre que, por algum acaso ou fruto de um furto, se encontrava com dinheiro no bolso. Os meus pais davam-me sempre dinheiro para o lan-che e nenhum de nós lanchava, por isso tinha sempre mais do que preci-sava. Xavier, o mais pobre, pagava os bilhetes de autocarro. Uma tarde, quando Ernesto caminhava decidido á nossa frente, Xavier confessou--me em voz baixa que voltar ao parque de diversoes era um erro. Ele dizia coisas misteriosas como estas de vez em quando e náo me dei ao traba-lho de lhe perguntar porqué. Cedo compreendi que Ernesto náo queria ir ao parque de diversoes; queria, uma e outra vez, andar no comboio-fantasma. No principio ainda protestei, mas logo me dei conta que os meus protestos serviriam apenas para o incendiar ainda mais - e eu tinha medo de Ernesto, tinha receio de que ele me agredisse. Nos meus sonhos, espancava-me até á inconsciéncia defronte dos meus colegas á porta da escola e ria-se muito alto, deixando-me no cháo com a cabeca enfiada num canteiro. De maneira que, nessa Primavera, ficámos a conhecer intimamente o trilho acidentado e monótono daquele comboio-fantasma. A coisa podia ter ficado por ai se Ernesto náo estivesse determinado em fazer a vida negra a Vlad, o Empalador. Desde que o homem anun-ciara o seu nome com pompa e cireunstáncia á frente da turma inteira que Ernesto náo se cansava de, nas aulas e nos intervalos, assumir a expressáo intensa de um louco - o esforco era minimo, como tantas vezes ressalvava Xavier - e, levando o cotovelo á frente do rosto, anun-ciar a vontade de chupar o sangue as raparigas e á professora Magda. Esta mandava-o para a rua aterrorizar as continuas. Era, porém, no vagáo do comboio-fantasma que Ernesto se excedia. Náo me recordo precisamente de quantas vezes fomos ao parque, nem de quantas vezes andámos naquela diversáo; mas sei que o vampiro ficou meia-duzia de vezes sem sapatos (que acabavam, invariavelmente, no caixote do lixo) e outra meia-dúzia de vezes sem dignidade. Ernesto fez tudo o que pode para o humilhar. Uma vez, trouxe uma bisnaga de água que tinha a forma de uma pistola fluorescente e quando Vlad sobrevoou o nosso vagáo espirrou-lhe o rosto sem piedade; arre-messou-lhe, noutras ocasióes, dezenas de objectos que ia guardando na mochila da escola (incluindo pedras, fruta podre e bolas de matraqui-lhos); bateu-lhe, cuspiu-lhe, encheu-lhe os olhos de terra, rasgou-lhe a roupa e a capa; e, enquanto Ernesto fazia tudo isto, eu e Xavier sentá-vamo-nos no banco traseiro do vagáo pactuando com aquele triste espectáculo por medo de levar uma tareia. Quando a viagem terminava, saíamos dali o mais depressa possivel, quase a correr pelo parque de diversoes fora. Até Ernesto temia, de certa maneira, a represália do vampiro; também ele temia aquela figura escura e misteriosa, e talvez fosse essa a razáo pela qual a atormentava. So que Ernesto fugia a rir e eu e Xavier fugíamos como se tivéssemos visto o diabo. Numa sexta-feira quente de Tunho Xavier recusou-se a entrar no comboio-fantasma. Havia algum tempo que falávamos em desistir enquanto era tempo e, perante a minha indecisáo, ele decidiu sozinho. Ou talvez tenha sido a terrível visáo do canivete no bolso de Ernesto. Xavier disse: "Náo entro ali contigo se tiveres isso no bolso." 62 63 Estavamos no meio do parque. Pais e filhos comiam algodao-doce e cruzavam-nos em todas as direccoes. Havia luzes de todas as cores, e baru-Iho, e a musica repetitiva propria das feiras. O parque continuava a ser uma miseria, mas era o vinico da cidade. Ernesto mostrara-nos o cani-vete como se nos mostrasse urn premio. Xavier olhara-me preocupado e depois disse aquilo a Ernesto. Seguiu-se uma discussao que terminou com Xavier no chao, depois de Ernesto o socar com muita forca. Olhei para Xavier, que sangrava do nariz, e quis ajuda-lo a levantar-se, mas Ernesto colocou-se entre nos. "Queres levar tambem?", ameacou. Tive de abandonar o meu amigo e de seguir Ernesto, que me arras-tou pelo colarinho. Olhei para tras e vi Xavier ainda no chao, como se me afastasse num navio em direccao a uma sinistra borrasca. Na minha cabeca surgiam imagens terriveis do que faria Ernesto com aquele cani-vete, do que faria erguendo a mat) pesada e vigorosa e rasgando o corpo do vampiro de um lado ao outro, cujas visceras desceriam sobre nos como as mascaras de oxigenio de um aviao. Havia uma fila para o comboio--fantasma, mas Ernesto ameacou dois miudos ma is pequenos e passa-mos-lhes a frente. Entramos no vagao. A bruxa remexia a sopa, o esque-leto saiu do caixao, o homem decapitado segurava a cabeca, a mumia ergueu os bracos para nos atormentar; e, depois, chegamos a curva que levava a recta do vampiro. Assisti horrorizado ao momento em que Ernesto abriu o canivete. Fe-lo em camara lenta: a lamina descobriu-se devagar, uma lingua brilhante na obscuridade do tunel. No fundo, nao acreditava que ele o fosse usar para magoar Vlad, o Empalador; mas para que servia entao? Nunca cheguei a dcscobrir. Na recta do vampiro nao se encontrava ninguem: apenas o carril, mergulhado em efeitos pirotecnicos e na nevoa vermelha. Ernesto gritou: "Olha, o cobarde escondeu-se!" O vagao aproximou-se devagar - a velocidade diminuia naquele troco para aumentar a expectativa -, as rod as chiando sobre o ferro puido. Havia um estranho silencio, como se as vozes gravadas das cria-turas pertencessem ao passado. Agora estavamos sozinhos. O fumo adensou-se e, quando atravessamos o lugar onde sempre haviamos encontrado Vlad, uma tigura emergiu das sombras - nao a nossa frente, mas atras do vagäo. Voltei a cabeca e adivinhei o vampiro, que se tinha esquecido de entrar em cena; pela duracäo de um instante fiquei cego pelo volume do seu corpo coberto pelo manto negro; ouvi um grito sufocado; e, quando a figura desapareceu nas sombras, encontrava-me sozinho dentro do vagäo. Uns momentos mais tarde emergi dos tüneis do comboio-fantasma para as luzes ofuscantes da feira. Com excepcäo de Xavier, nunca falei a ninguem do que acontecera. Nem aos meus pais, nem aos meus colegas, nem ä professora Magda. Contei apenas ao meu amigo - contei-lhe, uma e outra vez, como se contasse a mim proprio -, mas Xavier ja decidira havia algum tempo que Ernesto näo era um problema seu. Ele avisara-me de que regressar äquele parque era um erro e eu ignorara os seus avisos. "Fica contente por ter sido ele e näo tu", disse-me. E depois, subitamente, como se nunca nos tivessemos conhecido, abandonämos a nossa amizade. De um dia para o outro, tornamo-nos estranhos: sentavamo-nos na mesma sala de aula, cruzavamo-nos nos corredores, avistävamo-nos no pätio; e, ainda assim, permaneciamos sös. Havia um segredo que era um abismo nas nossas vidas. Durante alguns dias ninguem deu pela falta de Ernesto. Envergo-nho-me de o dizer, mas parecem-me ter sido dias felizes, como os que se encontram num bosque quando os animais väo beber ao riacho. Os meus colegas sorriam, as continuas trabalhavam sem medo, a professora Magda raramente era interrompida. Depois apareceu um homem acom-panhado do director da escola - um homenzinho timido, palido, de bone amarrotado entre as mäos - que veio falar com a professora Magda. Bateram ä porta da sala e ela foi ao corredor. Voltou uns minutos depois e anunciou que o tio de Ernesto, com quern este vivia, trouxera a noticia de que o nosso colega se encontrava doente. A doenca era prolongada e, provavelmente, Ernesto näo voltaria ä escola ate ao final do ano. Eu suei profusamente durante esses momentos e mantive a cabeca baixa e os olhos na secretäria. No pätio, escondi-me nas sombras. Senti-me tentado a procurar Xavier e a derramar os meus medos - ele saberia o que dizer para me acalmar -, mas era tarde de mais para procurar consolo na sua placidez. O proprio Xavier parecia ter mudado, como se o desaparecimento de 64 CFI-CONVAM-05 65 Ernesto houvesse alterado a natureza das coisas. Imaginei Ernesto dei-tado na cama, a pele mortica e amarelecida como a de Vlad, o Empalador, imaginei as visitas nocturnas do vampiro; imaginei quantos teriam sofrido o contagio. Se Ernesto estava contaminado, o seu tio tambem estaria; e, quern sabe, a professora Magda tambem fosse agora vitima do monstro. Ou o director da escola, ou os mens pais. A noite, no meu quarto, fechava as janelas apesar do calor. Trancava a porta; debaixo dos cobertores, tremia de receio; dormia pouco. Sera que o vampiro viria por mim? Ele levara o nosso colega e, embora Ernesto nunca tivesse sido um amigo, era apenas um rapaz. Nunca o visitei. Talvez ja nao estivesse em casa do tio; talvez estivesse morto. Sem saber porque, imaginava que Vlad, o Empalador, o tinha enterrado no cemiterio do alto da colina onde eu vivia; que, nunia noite de lua cheia, Ernesto se ergueria do seu tumulo de terra fria e bolorenta para me ator-mentar eternamente, chupando o sangue do meu pescoco livido da mesma maneira que Vlad chupara o seu. E, depois, negava tudo, desmentia, recu-sava-me a acreditar em vampiros; jurava a mim proprio que eram pro-dutos da minha imaginacao excitada e da culpa que me dilacerava. A Primavera deu lugar ao Verao. As raparigas comecaram a usar saias e os rapazes calcoes e camisas de manga curta. Eu e Xavier passa-mos ao lado desta mudanca e, embora nao falassemos - era agora um pacto estabelecido entre nos, um ancestral acordo de silencio -, qualquer pessoa conseguiria perceber que eramos cumplices. Nao sei se ele alguma vez regressou ao parque de diversoes, e gostaria de lho ter perguntado; gostaria, ate, de o ter acompanhado numa noite de calor e de ter procu-rado, como se fossemos detectives, pelos resquicios do ataque a Ernesto; talvez pudesse ter escrito uma historia acerca do assunto. Porem nao eramos detectives; e o que lhe acontecera era, provavel-mente, indizivel. Haveria resquicios? Haveria, naquele tunel sombrio, resquicios do sangue de um rapaz de 12 anos atacado pelo vampiro de um parque de diversoes? Haveria maneira de contar a alguem o que tinha acontecido sem passarmos por dois miudos morbidos que brinca-vam com assuntos serios? Quando o Verao chegou ja todos o haviam esquecido. Ernesto era um miudo pobre e sem importancia; alguns diziam que nao tinha pais. O tio, como vim a descobrir muitos anos depois, mudou-se para uma aldeia duzentos quilometros a sul da cidade e, no dia dos seus 50 anos, suicidou-se. O vampiro escolhera a vitima perfeita, um buraco negro na constituicäo do Universo, um lapso momentäneo de deus. Restava sugar --lhe o sangue ate näo sobrar qualquer resquicio. Tambem eu teria esquecido Ernesto - ou, se näo o esquecesse, te-lo--ia arrumado no sötäo das memörias estranhas - se, no final desse Veräo... Xavier desaparecera da minha vida. Fui de ferias com os meus pais e regressei quando a cidade ainda dormia ao relento, o sol escaldante, a ägua escassa. Sentia-me sozinho no mundo, mas, com 13 anos, descobrira coisas de que näo suspeitava sobre os rapazes e as raparigas, e esses pensa-mentos mantinham-me entretido e inquieto. Ja näo pensava em vampiros, nem trancava a janela do quarto; havia outras coisas por descobrir, exis-tiam livros na biblioteca do meu pai a que nunca prestara atencäo e que queria ler avidamente. Escondia-os na mochila e levava-os comigo para o jardim. Lia-os sentado sobre a relva, enfiados no meio de um manual escolar. Corava. Desejava. Habitava um mundo profano. Se Xavier tivesse estado comigo teriamos falado das coisäs que descobrira. Sabia, por exemplo, depois de ter lido um capitulo de um romance, que as mulheres sangravam do sexo. A ideia deixava-me estupefacto e fazia-me corar. Durante algum tempo pensei que seriam os homens a faze-las sangrar e depois um outro livro - um livro de medicos e cientistas -explicou-me que sangravam sozinhas. Senti-me menos culpado. Se alguma vez pensava em Ernesto? Era Ernesto quern pensava em mim. O seu rosto surgia dentro da minha cabeca como uma coisa invo-luntäria e ä deriva; eu resistia-lhe, lutava contra ela, dizia-lhe que se fosse embora. Preferia pensar nas raparigas que atravessavam o parque, umas mais novas e outras mais velhas, umas a sangrarem do sexo e outras näo; todas elas em direccäo a um lado qualquer onde, um dia, as encontraria a meio do caminho. Depois, no principio de uma noite ventosa em que regressava a casa - ansioso pelo momento em que me pudesse deitar sozinho na minha cama e fechar os olhos e sonhar com as raparigas - vi o vampiro do comboio-fantasma que levara Ernesto. Estava parado num passeio, ä espera que o semäforo mudasse do vermelho para o verde. Reconheci-o 66 67 logo. A mesma espinha curvada, as mesmas máos enormes e venosas, a mesma pele amarela, o mesmo cabelo grisalho. Usava um lato-macaco sujo de óleo e botas de cavador. Vlad, o Empalador, monstro devorador de sangue, aguardava sinal para atravessar a estráda. O meu corpo aque-ceu como uma panda de pressáo; senti-me zonzo, julguei que i a des-maiar. Escondi-me atrás de urna árvore. Quando o coracáo deixou de dar saltos dentro do meu peito atrevi-me a espreitar. O vampiro cami-nhava devagar. A cidade estava escura e os meus pais esperavam-me para jantar, porém decidi segui-lo. Tinha de o fazer. Caminhei atrás dele durante muito tempo. A Lua surgiu no céu, redonda e luminosa, a sua brancura cruel, recortada contra a vastidáo nebulosa do Universe. O vento era quente, mas eu sentia frio; sentia um medo terrível que me enregelava os ossos. Vlad andava pela cidade sem rumo aparente, e contudo a sua passada era segura e definitiva, a pas-sada de uma eriatura cujos mais pequenos vagares eram premeditados. Mantive-me distante, a cinquenta passos do vampiro, para que náo me pudesse ver - como se Vlad precisasse de olhar para saber que eu ali estava! -, e, subitamente, reconheci a rua em que estávamos. Vi, á dis-táncia, o contorno da roda gigante, uma sombra negra como carváo contra a claridade espectral da noite. Vlad entrou no parque pelo cami-nho de terra que nascia do passeio quebrado da cidade, repleto de ervas daninhas e de musgo. A terra era suave debaixo dos meus pes. Deveria haver luzes, mas só havia os vultos imóveis das casotas onde se escon-diam os prazeres de outrora; as antenas dos carros de cheque, arruma-dos na pista, sibilavam á passagem da forte brisa. Depois Vlad desapareceu, deixando a vaga lembranca do seu vulto na noite. Olhei em todas as d i recedes, mas tudo o que vi foram as formas ameacadoras das coisas imóveis: uma tenda, um cava]o no carrossel, a barraca abandonada do algodáo-doce. Tive medo, como se as coisas se movessem sozinhas quando desviava os olhos; avancei a passo rápido, procurando a sombra do vampiro. Encontrei o comboio-fantasma. Ali estava a grande máquina, escondida por tapumes e um tecto falso; o car-ril percorria um semicírculo entre os dois pares de portas, cujas dobradi-c,as rangiam e chiavam. Pensei que devia sair dali, mas uma vez mais o meu corpo desobedeceu á vontade. As portas de said a abriram-se e do interior surgiu um dos vagóes. Vinha vazio e fez o percurso de sempre ......."r~~ T movido pela electricidade, parando a meio do caminho entre as portas. Mas näo havia electricidade; näo existia qualquer luz excepto a da Lua. Avancei um passo. O vagäo aguardava-me, titubeante; queria levar-me para dentro da mäquina, onde Vlad, o Empalador, me esperava. Era um convite sedutor; tive de lutar com todas as minhas forcas. Corri para casa, o vento a bater-me nos olhos, e chorei. Perdi-me no caminho e cheguei tarde, muito depois da hora do jantar. No Outono os meus pais mudaram de casa e eu mudei de escola. Nunca mais vi ninguem desses tempos: os meus colegas, a professora Magda, o vampiro, as raparigas no parque. E, porem, näo e verdade. Um dia encontrei Xavier no saläo de jogos a que costumavamos ir e, depois de um cumprimento timido, perguntei-lhe por Ernesto. Ele disse que Ernesto regressara ä escola em Outubro depois de uma longa ausencia. Mas Ernesto ja näo parecia o mesmo; era uma pälida sombra de si proprio. Dizia-se que tinha tido ictericia e que por isso a pele ficara amarela e os olhos bacos e cavados; que por isso estava täo magro, que por isso quase näo falava e parecia um morto-vivo. Foi a ictericia, insistiu Xavier. Antes de nos despedirmos, perguntou-me se alguma vez regressara ao parque de diversöes. Menti e disse-lhe que näo. O que poderia eu dizer? Que Ernesto nunca estivera doente? Que, mesmo depois do Veräo, quando as mäquinas eram desligadas e o parque abandonado, o comboio-fantasma continuava a funcionar? Que Vlad, o Empalador, perma-necia nas sombras junto dos carris, aguardando a sua pröxima vitima? Que quem por lä passasse numa noite de lua cheia poderia encontrar a figura solitaria de um miüdo, sentado num vagäo que eternamente entrava e saia das portas moribundas daquela diversäo sem vida? Quem iria acreditar em mim?