by Joäo de Jesus Paes Loureiro Todos os direitos desta edicäo reservados Escrituras Editora e Distribuidora de l.ivros Ltda. Rua Maestro Callia, 123 - Vila Mariana 04012-100 - Säo Paulo, SP - Telefax: (11) 5082-4190 e-mail: esenturas@eserituras.com.br site: www.escrituras.com.br Coordena cäo ed i to ri a 1 Raimundo Gadelba Projeto gráfico e ilusl racöes Denise Bitencourt Polo da rapa Raimundo Gadelha Revisäo Ana Maria Herrera Soares Irnpressäo e acabamcnlo Palas Athena Impresso no Brasil Printed in Brazil Dados Internaeionais de Catalogacäo na Publicacäo (CIP) (Cámara Brasileira do l.ivro, Säo Paulo, Brasil) Loureiro, Joäo de Jesus Paes, llJ V) Joäo fle Jesus Paes Loureiro: obras reunidas: poesia I. - Säo Paulo: Escrituras Editora, 2001. -(Paes Loureiro) I. Poesia brasileira I. Tltulo. II. Serie 01-3193 CDD-8G(J.é£Lcos do imAýtiUrLo Z/ Primeiras palavras 2ß Introdu^äo 1. A ßoetLob do LmAxjlttÁrLo 5ß l.l Poesia, poética, cultura &5 1-2 Cultura amazônica $4- 1*3 A dominante cultural 1.4 A Formacjio da dominante 110 1.5 Floresta de simbolos //'5 Notas bibliogräficas 2-. (9 im/UÜ/et wUÜmI t?? 2.1 A Visualidade amazônica 146 2.2 0 Sayré rjr 2.3 0 Marambiré 2.4 O Círio dť Oriximiná r/é 2.5 Os barcos ríé" Notas bibliográficas 3. A clumínA^u) poética, dos mutos 1J3 3.1 Os mundos entrela^ados e a contempla^äo op« 2oé" 3.2 0 Boto 2.2.1 3.3 A Boiúna ou a cpiľania da Cobra-Grande ou o visível esplendor invisívcl do rio 233 3.4 Poromina-Minare ou as venturas e desventuras de um pícaro Z$6 3.5 lara e Tambatajá - Miloš do amor no cora?äo da Amazônia z8z Notas bibliográficas J/é" 4.3 O Pássaro Junino ou o amor proibido ou sangue do rncu sangue 34-0 4.4 0 Boi-de-Parintíns - Uma dramaturgia das paixöes ou a fogueira do imaginário 3/3 415 Brinquedos de m i rit i 3ßi Notas bibliográfícas -}0.f 5.2 0 ťspclho qut'brado do imaginário ■f/ťf 5.3 Deslendário 4-zo Notas bibliográfícas Bibliografia 433 Biobibliografía 3ßß 5.1 A poética da cullura amazônica Hä tempos que venho pensando em analisar a cultura ama-zönica a partir de um ängulo de abordagem que tenha eorao resultante, ponto velico impulsionador, a sua esteticidade dominante. Uma esteticidade entendida como iuncäo essen-t-'ial ao hörnern, vetor de identidade numa sociedade dispersa, fortalecedora dos entrelacamentos da eomunidade. Anälise da qual, postulando o rigor critieo de uma visäo cientifica, se reconheca "a causalidade deeorrenle complexa individuo-sociedade assim como as causalidades entre o sociologico, o politico, o econömico, o demogräfico, o psico-lögico, etc."1, e que possa tcr como componente de aproxi-macao intuitiva e compreensiva a emoeäo que essa cultura desperta. Os escritos de viagem - "eofres mägicos cheios de deva-neios"'-, de certa maneira, representam essa modalidade de percurso que se abre ä emoeäo. Instrumentalizam o sensivel paralelamente a uma racionalidade compreensivo-interpre-tativa de novas realidades. Eies revelam um conheeimento maravilhado, que confere uma alma expansiva do "eu" aos temas objetivamente analisados e oferecidos ao conheeimento do outro. Estabelecem, ao lado de uma relacäo entre o conheeimento e a realidade conhecida, uma relacao da sen-sibilidade com a aparencia formal e significante do que estä sendo conhecido. E certo que o conheeimento maravilhado, comum aos viajan-tes, muitas vezes, tem sido reservado ao vago campo da lite-ratura de viagens. Säo estudos lidos com admiraeäo cautelo-sa, em virtude do proprio maravilhamento que Ca/, o triunfo dessas narrativas. Prineipalmente, pelos (juc estäo certos de (jue a ra/.ao e necessariamente o lugar da impassividade 1 MOKIN, Iidgnrd. Sociologic. P;uis: Fyard (Point), l'JH4, p. 94. I LÜVY-STRAUSS. Claude. V'n'.s/c.s Tropiqucs. Paris: Plön, ll)«JS, p. 16. 2/ distanciada, da emoeao exilada, espécie de eondicao superior do (listinguir e do julgar. De uma razäo panóptica, enfim. I;oi a leitura de dois livros exemplares e rigorosos, plenos de erudicäo e emoeäo, que me estimularam a iniciar este cami-nho acumulado de propositus: Tristes Trópicos, de Claude Levy-Strauss' e Eros-Teceläo de Mitos, de Joaquim Brasil Fontes1. Tristes Trópicos é um obra-prima de literatura científiea tle viagem, no espaco cheio de sinais do Novo Mundo. 0 autor conjuga interpretaeäo e emoeao, tendo o euidado de estabe-lecer, na estrutura da obra, a distincäo e a interpenetraeäo desses campos - ora no sentido formal, ora no procedimen-to revelador de seu humanismo impregnado de uma tropical melancolia. Ele revela a possibilidade desse procedimento metodológico, no rigoroso ämbito da etnologia. H autor, munido de um respeitável instrumental teórico que coexiste com uma cultivada sensibilidade estétiea, tornando o leitor cativado pela seducao de seu relato, percorre as terras do Novo Mundo, pereebendo-as, compreendendo-as de forma aproximativa pela emoeao e problematizada pela ni/ao eienliilea. Demonstra, operativamente, que näo é só do päo da razäo que vive um trabalho de ciéncia. Convivem nele o "valor do testemunho" e o "valor de emoeao"'. Fica bem claro que é possível perceber-se uma nova realidade, sem isola-la suspensivamenle no microscópio minucioso de uma objetividade insaeiável e distanciadora daquilo que em nós sente en(|iianto estamos pensando6. IIa vários momentos em que Lévy-Strauss libera a emoeao, o devaneio, sob o impacto do conhecimento quase aurático da nossa terra. Um conhecer cheio de a prioris conccituais ou 3 LÉVY-STRAUSS, Claude. Tristes Tropiques. Paris, Plön, 1995. 4 FONTES, Joaquim Brasil. Eros- Tcccläo de Mitos Säo Paulo: Pstai;äo Liberdade de . l'J'Jl. •> I.I-VY-STRAUSS, Claude, op.cit. 1995, p. 10. 6 Alusäo a Fernando Pi-ssoa, pocla metafisico [)ortugués, a prop<)siio da temática do pensar e sentir, presente cm sua obra estétiea. Z2 antecipado pela fantasia. Säo estratégias de ligaeäo, na maio-ria dos casos, entre os longos percursos cic documentacao e interpretacäo etnográflca do novo mundo brasileiro. Percebe-se urna metodológia pendular entre o documento (o científi-co e extra-estético) e a emocäo (o estético). Neste procedi-mento pendular o momento estetizado sc deflagra, de um modo geral, pelo jorrar da memoria diante de situacöes em que o estímulo ao imaginário, ä emocäo devaneante se impöe como domináncia desse momento. Ľ nessas eireunstäncias que emerge o humanismo do autor como diseurso interior, auto-reflexivo, contribuindo para enriquecer o encaminha-mento objelivo da análise. A travessia oceánica e a entrada na "lloresta-galeria" amazôniea säo expressives exemplos desse proeedinienlo. Nas "páginas de viagens", eapílulo correspondente a viagem além-mar, Lévy-Strauss reeorre a urna desmedida alegória, para expressar a travessia oceäniea, substituindo a eventual narrativa do dia-a-dia dessa longa parte da viagem. Numa elisäo de espaco e tempo, o autor lanca-se poeticamente a um tempo-espac.0 cósmico ou mítieo do movimento do universu. Nessa rccorréncia retórica a urna alegória cósmica, a viagem do paquete Capitaine-Paul-Lemerlc durante a travessia do Atläntico é substituída pela imagem arquetipal do sol e da lua, na Jornada do dia e da noite. Lsse longo ľragmento "eserito num barco", ao despedir-se do Velbo Mundo, desere-ve, de iníeio, um pôr-do-sol. No ílm deste fragmento - após o cielo de um erepúsculo, urna alvorada, um dia, tiovo ere-púseulo e nova noite, cpiando o movimento do texto e do cosmo apontam para um novo dia nesse diseurso do sublime - o autor apresenta urna espécie de alvoreeer desse novo dia-era, o Novo Mundo. Corte einematográfleo, montagem poéti-ca. 0 etnólogo-poétieo procedendo como um mitólogo-poeta. Mas é no ingresso da Amazônia - imagem retentiva do Novo Mundo - diante de suas llorestas catedralescas e de seus corais de signos, que a emocäo estética de Lévy-Strauss lhe reservou um outro momento de poesia igualmente ligado ao tempo e ao espaco, visto que agora cle também viaja na Z3 travessia clo recorrente mar de suas recordacöes. A música e a poesia ocupam a cena. A música dos outros-dele: Chopin, Debussy, Stravinsky. A poesia dele-mesmo, fruto de um espí-rito abandonado aos trabalhos do ócio do devaneio: Amazona, amada amazona, tu que näo tens o seio direito e que nos contas coisas betas tens caminhos demasiado estreitos'. Lévy-Strauss passa, em Trištes Trópicos, de uma dominancia da objetividade para a subjetividade, do etnográíico para o estético, de forma clara e distinta. Fica bem explícito j)or onde o científíco e por onde o estético caminham, pois, afi-nal de contas, näo se trata de um estudo da dominancia esté-tica (|ue está em questäo. Mas é o procedimento de um etnó-logo que näo renuncia ä dimensäo do estético na compreen-säo do hörnern e sua realidade social. Eros - Teceläo de Mitos, de Joaquim Brasil Fontes é umaBatterie benjaminiana por nitre os versos e a vida de Safo". As qualidades distintivas percebidas e realcadas com perspicácia por Benedito Nunes, nesse livro exemplar, resultam de uma forma "persuasiva esedutora", uma disfarcada hermeneutica, sob a "forma episódica, digressiva e fragmentada", conduto-ra de uma interpretaeäo problemática e aproximativa, no qual f) metodo é aberto ás digressöes. Fste livro me inspirou uma confianca numa abordagem metodológica plurivalente, capaz de se produzir diante de cada fato analisado, sem que haja imposicäo de um metodo obsessivo, unívoco, subordinando a análise dos temas, mas (jue também se fosse produzindo como praxis metodológica ao apelo dos fatos. Como se o procedimento metodológico I ! I VY-STRAUSS, Chiudc. op.eit., (T.A.) p. 411. ii NINIS. Bcufdito, "Qui- islo dl- metodo..."(Introdutfio), in FONTES, Joaijuim Brasil, op. cit., 1991. 2-4 respondesse a um desejo do modo de como serem abordados, contido nos próprios fatos. 0 sentido dzflänerie benjaminiana (vagar sem a finalidade de urn Inn) se revelou operative) ä passagem compreensiva e produtora de compreensao de Joaquim Brasil, por entre as galerias de mármore dos versos e vestígios da vida de Salo. Pareceu-me esle sentido urn meio adequado a realizacao de urn desejo até entao incerto de tlanar como urn viajante por passagens da vida cultural amazônica c por sua "floresta galéria"9 - ornada de mitos c de simbolos. Nada está lotalmenlc organizado em compendios na cultura amazônica. É preciso crrar pelos rios, tatear no escuro das noites da floresta, procurar os vestigios e os sinais perdidos pela várzea, vagar pclas ruas das cidades ribeirinhas, cntiin, procurar, na vertigem dc um moment o (pie se evapora cm banalidades, a rara experiéncia do numinoso. Experimental' o Irémito de um caminhar errantc que vai descobrindo com decoro a irrupcao perene da lonte da beleza. Flanar pela cultura amazônica, deter-se aqui e ali, recorrer ao passado, reenviar-se ao prescnte, distrair-se minuciosamente nuni lugar, apressai -se atentamente nouiro, cm suma, caminhar sem obriga^äo imediata de urn tun. Umi\ Jláncric dc via-gem labirintica cm um mundo cm que os deuses ainda nao estao auscntes, as pessoas sao capazes de prodigios diantc da natureza e da vida, em que ainda näo se deu o desterro do numinoso. Um mundo no qua] as significances nao desapa-receram c antes que a indústria do consumo se apodere intei-ramente dos hornens, transformando-os cm coisas. Hnflm, numa vida cultural cm que o "ainda" é uma palavra chave seja dc pesar, seja dc esperanta. Como na história de Saíb ou dos ľragmentos dc vitrais de seus versos, a cultura amazônica tern padecido de uma espc-cie dc incomprcensäo e confinamento similar ao de todas as histórias de amor e perdicao. Como na imagem safica parccc u por outra razäo. 0 fato é que existem ainda hoje alguns mocambos, que se situam no Amapá, no Para (nas rcgiôcs dos rios Trombetas e Tapajós). Naturalmente que é uma situacäo válida para a Amazônia como um todo e prineipalmente a partir da embocadura. Houve, de fato, importacäo dirigida para atender aos interesses dos fazendeiros e plantadorcs de cana. Belém e seu entorno, zona bragantina e estráda a cami-nho do Maranhäo, receberam abundante mäo-de-obra negra. 0 algodäo e a cana-de-acúcar foram lavouras expressivas na atual microrregiäo bragantina. Lavouras desmanteladas pela Cabanagem. A mais ricas fazendas c lavouras de arroz e de algodäo no Pará encontravam-se entre o Gurupi e o Turiacu, território que o Maranhäo disputou. 0 Decreto n^ 639, de 12 dc junho de 1852, determinou a desanexacäo desse território do Pará e sua incorporacäo ao Maranhäo. Isso se deve ao peso politico do Maranhäo e principalmente do latilundiário Cändido Mendes de Almeida, com vastos interesses ali apli-cados. No Marajó também houve introdu^äo de negros, mas é sabido (]ue o criatório exige pouca mäo-de-obra. Por volta de 1822, a populaeäo urbana de Belém contava com maioria negra eserava. Constituía, somada a africanos livres e crioulos libertos 2/3 da populaeäo. Aldeias de negros ainda existem no baixo Tocantins (vila do Carmo, p. ex.), no Inhangapi (Piti-mandeua), nas margens do Guru|)i, tanto no lado paraense como no maranhense. Urna das conseqúéncias da Cabanagem foi estancar o fluxo de negros, pelo "empobrecimento" dos eapitalislas e latifundiários. Ii precise destaear que, em face da especificidade de sua natureza, das condicôes políticas, sociais c geográllcas que persistiram aíč mcados deste século, difícultando ou desesti-mulando sua penetracäo; da dificuldadc dc accsso; da existencia de uma economia voltada para o mercado externo europeu e muito pouco integrado regionalmente e nacional-mente, a Amazonia se manteve isolada ou marginalizada com relacäo ao Brasil e ä America Latina. A rudovia Heléni-Brasilia, que constitui utn marco de rompimento desse isola-mento, ou pelo menos de sua progressiva diminuicäo, é con-cluida em 1961 e passa a funcionar em condicôes precárias, mas nos anos 70 e 80 novas rodovias passam a conectar outros pontos da Amazonia ao espaeo nacionál. Tem início um processo intense de migracäo das camadas pobres de outras regioes, especialtnente camponeses expulsos de suas terras pela nova política de industrializáciu e modernizacäo da agricultura, ou de trabalhadores em geral que a recessao dos anos 80/90 jogou no desemprego e que se dirigiram para a Amazonia em busca de uma oportunidade, seja no garim-po, nu m grande projeto, na abertura de uma estráda ou outra qualquer de que tenham notícia. A predomináncia numérica dos índios e caboclos durante alguns séculos, a economia apoiada no extrativismo da llo resta, na qua! o caboclo constitui um elemento-chave em face do saber aeumulado sobre o habitat natural, e a persis-téncia da eultura cabocla diante das outras contribuieoes t|ue viriam a ocorrer nas ultimas décadas foram latores que atua-ram sobre esse universo isolado, a fim de eonterir ä socieda-de que nela vive características singulares (|ue a diferenciám no conjunto da sociedade nacionál. b. Culture (>ů(H4Lir & culture caboclr- t) tjue é alual eslá, portanto, cnraizado no presente; por sua vez, o que é folclore, num passado remoto. Um a renovacäo; outro, a (radicäo. f.ssa é uma concciluacäo de folclore dada pelos antropólo-gos. Os lolcloristas conceiluaram o Folclore a partir do modelo das sociedades européias, imposto nas sociedades coloniais. Admitem a verticalidade c a horizontalidade, islo e, a sincronia e a diacronia. Admitem também que toda a sociedade parlicipa da criacäo e manutencäo do folclore, que ele resulta de relacôes constantes e necessárias entre todos os membros da sociedade. 0 foMon'sla lem esludado com interesse "novas" manifesta-cóes de folclore, islo é, o "folclore nascentc". Folclore matéria viva. História oral de um povo. f) período colonial brasileiro é a raiz de uma formaeäo cultural brasileira, sob alguns aspectos bastante comprometida com estereótipos semeados pela ideológia da colonizacäo. 4-0 Como fa t o res ideológicos frearam o auto-reeonhecimento que a sociedade nativa precisava ter por sens próprios valo-res. Ao mesmo tempo, eunharam certas matrizes tendentes á desvalorizacäo dessa sociedade, concebida por essa linha de pensanicnto ideologicamcnte marcada, como sendo consti-tuida por uma composicao racial inferior, incaj)az de sobres-sair no campo mais alto do pensamento. Urn exemplo dessa postura intelectual pode ser encontrada na obra de Araújo Lima, Amazônia. A ľerra c o Homem: "Os acidentes do tempo, através de urna suposta evolucäo de hábitos regionais nao tém registro entre gente; näo há progresso nem regres-so; a tradicao e a rotina perduram como Ibrmas de prcguica, de inércia mental"20. Como os núcleos de inŕluéncia e implantacäo da cultura europcia transplantácia estiveram instalados no Rio de Janeiro, Säo Paulo, Minas Gerais e Bahia — e suas práticas eram mais consoantes ao que se entendia na cpoca como o "atual" e o "moderno", no sentido do novo on avancado — o que se praticava nas Regiôes, ainda que sendo urna prática contemporanea, passou a ser entendido como o "mais anti-go", o "ľolclórico" e, por consequencia, o mais primitivo. Na verdade, fundindo o conceito de mais antigo com o de primitivo, essa cultura, posla em conlronto com a cultura dos centros receptores do transplante europeu, passou a ser considcrada unifbrmemente como iblclore. Deu-se uma idco-lógica conversäo do eixo da verticalidade (caminho do Iblclore) no eixo da horizontalidade (caminho da cultura popular). A dištancia no espaco passou a ser entendida como dištancia no tempo. Uma sutil operacäo da objetiva da cámara escura da ideológia. Lstar longe do espaco europeizado sig-niflcava estarsituado nimi tempo passado, primitivo. Passou-se a entender como sendo somente do arnbito do Iblclore as manilestacoes culturais das regiôes mais distantes dos "núcleos centrais", confundindo-se tiisso a cxj)ľessäo atual, presentc, estilisticamente mi'dtipla, de autoria reconhecida (]ue caracleriza o campo da cultura popular. 0 isolamento que recobria a Amazônia com o manto do mistério, dištancia e intemporalidade, que a impedia de intercambiar sens bens culturais, contribuiu para que se acentuasse sobre ela uma 41 ntra essa visao foldorizante e primitivista, Sendo assim, eon corrente de pensamento, ao tratar-se de uma cultura ^ nica do caboclo, e\a será entendida como expressäo c a dade que constitui a Amazonia contemporanea a i ^ dessa sociedade e contemporanea a da oc\denta\. Utna ra dinámka, original e criativa, que reveia, interpreta sua reattdade. Uma cuitura que, por meio do imagi ^ situa o hörnern numa grandeza proporcionai e ultrapa ra da natureza que o eircunda. Conviria ainda discutir a questäo do lugar da cultura ca 0 cla na cultura regional. Em primeiro lugar, deve-se leiti que a sociedade brasiteira é extremamente estratifica concentrada em termos de renda e de participac/äo nos tru ^ do progresso. Se esses tracos caracterizam a sociedade bras leira como urn todo, no caso da Amazonia cstäo aguca <■ pelas epecificidades da economia extrativista, segundo a qu milhares de coietores de frutos, raizes, resinas, óleos e essen cias de árvorcs da floresta dirigem a produqäo para alguiAS poueos empresários que otigopoiizam as transacts de COtn pra e venda. As outras atividades produtivas apresentam vitn certo grau de marginaUzacäo em relacao ao mercado e nao possibitttam uma boa margem de rentabilidade economic3 (pesca artesanat, pequena agricuitura, etc.), uma vez q^e tamhém säo dependentes de uma cadeia de intermediärios que retem parte signiticativa da renda delas procedente. Esta situacäo Ihes confere um baixo rendimento monetário e um reduzido poder de compra. Em face disso, o modo de viver e o trabaUio do caboclo säo considerados pelos segmentos mate abastados da populacAo como primitivos, assemeihados aos dos indigenas e, por isso, inferiores, embora predominantes. Isto é, justamente as reiacoes de producao e de comerciaUza-cao que Ihes säo impostas pelas camadas mais abastadas da populacäo säo lesivas aos seus interesses e dificultam ou impedem a melhoria e a e\eva<;ao do padräo de vida do caboclo, sendo essas mesmas reiacoes que estabelecem e reforcatn os estereotipos v'mculados a eles. Ainda eomo eonseqüencia da estratificacao econömica e da marginal\zae,r\o social de amplas faixas da populacao brasileira (äs quais é cerceado no todo e em parte o acesso ä eultura considerada erudita, eivilizada, ä educaeäo formal mais estruturada e a outros bens culturais), os caboclos da Amazônia, mesmo nas eidades, mantém ä medida do possi-vel sua eultura. Esta, de um lado é marginalizada ou ignora-da pelos podereš públieos, tornáda sob a condieäo de uma subcultura; de outro lado, a interdieäo de participacao nos ämbitos da eultura de origem européia e americana - considerada superior - propiciou a expansäo da eultura cabocla entre os segmentos mais pobres da populac^äo da cidade. Sobre (luestöes relativas a este "hörnern amazônico", o cabo-clo, tém-se abatido as mais sutis formas de preconceitos, que foram potencializados a partir do século XIX, cm decorren-cia da grande expansäo no Ocidente, de teorias decorrentes do chamado "determinismu elimático" c das "teorias raciais". Angelica Maués, refletindo e analisando o problema "que sc convencionou chamar generieamente de hörnern amazônico", repassa eriticamente algumas das mais divulgadas c prestigiadas opiniöes sobre a questäo". Inicialmente aponta o brasilianista Thomas Skindmorc (|ue afirma que "... racas mais escuras ou climas tropicais nunea seriam capazes de produzir eivilizacöes comparativamente evoluídas"22. lan seguida, analisando outro autor, o naturalista e cronista Frances Louis Agassis, desiaca um trecho de sua obra Viagem ao Brasil, na qual, o autor, citando o Brasil como exemplo da perniciosa mistura de rac,as, diz que os estudiosos que che-gassem ao pais veriam "... que cssa mistura (de racas) apaga as melhores qualidades, quer do bianco, quer do negro, quer do índio, e produz um tipo de mestizo indeseritível, cuja energia lísica c mental se enľraqueccu li o mesmo autor, referindo-se ä Amazonia, sentencia: "Essa classe bíbrida, ainda mais marcada na Amazônia por causa dos elementos indígenas, é numerosíssima"24, Mesmo Euclides da Cunha, que produziu importantes estudos documentais sobre a Amazônia, cunhou alguns prestigiados estigmas sobre cla, rorno, por exemplo, o da "pequenez incapaz" ou da "inlcrio-ridade do hörnern diante da natureza" exuberante: "Ora, entre as magias dacpieles cenários vivos, há um ator agonizante, o hörnern""'. Mais dois autores de prestígio como intérpretes da regiäo, os paraenses Raimundo Moraes - nascido em Bělém, capital do list ado - e Jose Verissimo - da cidade de Óbidos, no medio Amazonas paraense - também säo mencionados por Angelica Maués, cm scu estudo sobre a etnia na Amazonia. 13c Raimundo Moraes sai a sentenca: "A vastidäo da plam'cie diminui a forca do hörnern que a povoa De Jose Verissimo, cujo prestigioso nome intitula uma das series de estudos amazónicos publicadas pela Universidade Federal do Para, o hörnern amazönico configura-se como um "incons-tante, despreocupado, sedentário, desambicioso, indolente, desleixado, degradado". E a solucao que apresenta é uma espécie de eutanásia genética: "Esmagá-los (essas raeas cru-zadas) sob a pressäo enorme de uma grande imigracím, de uma raca vigorosa que nessa luta pela existéncia de que fala Darwin, as aniquile, assimilando-a, parece-nos a única coisa capaz. de ser útil a est a província"". Ao longo da serena convic^äo de sua análise, Angelica Maués eselareee que "... nas idéias e imagens sobre o hörnern amazonico e também sobre sua propria regiäo, está presents, por vezes de forma exemplar, uma forma de pensamento (ou ideologia) que foi sendo elaborada desde o periodo colonial, ebegando ä sua forma mais sofisticada no final do secu 1 o XIX"/H. Sendo cert o que "a identidade étnica remete sempře a uma origem historica"29, precisa-se levar em conta que, no ángu-lo desta análise, näo se deve confundir a identidade com sen-tido de superioridade ou pureza raciais e, muito menos, com o de exaltaeäo do espírito nacionál gerado pelos regimes autoritäres. Estes conceitos, que constituem anomalias ou delormacöes degradantes do sentido da identidade, näo l'a/.em parte dos pressupostos com que aqui säo enfbeados esses problemas. 0 sentido de identidade que perpassa transversal mcnte as reflexöes que compöem este trabalho é o de auto-reconhecimento, auto-estima, consciéncia do proprio valor, conjugados ä consciéncia da propria insercäo no con-junto da sociedade nacionál e, mais amplamente, na socieda-de dos homens. A sociedade amazónica tendo consciéncia de 4-'^ la dessa original expressao cultural e da expenenaa huma na ai acumulada A ideia nao e a de fazer deste estudo uma expressao etnocen-trista de uma determinada cultura, nem de exaltar a excelen-cia de uma cultura que, supostamente, deveria permanecer imobilizada no tempo. Mas de discutir e contestar a ideia de uma cultura inferior e pobre a cultura popular da Amazonia, revelar sua originalidade, apresentar sua riqueza, compreender sens tracos essenciais e dominantes. Ha uma visivel predominancia de fatos concernentes ao Fistado do Para, o que nao significa que o estudo se volte para urn area especifica; ao contrario, ele pretende ser tematico, dai por que a selecao de exemplos partiu da pressuposicao de que sao suficientemente representativos de uma realidade mais geral e, assim, que a generalizac§o da analise para outras situacoes similares do cspaeo amazonico e possivel, com niveis divcrsos de atenuacoes ou ressalvas. Por Inn, o autor pretende (pie este estudo, apesar da simpli-cidade de que se reveste, possa ser, de alguma forma, original na abordagem do tenia cscolhido, util socialmcntc e des-perte no outro a mesma emo^ao epic o moveu durante a sua realizacao. S3 NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 FERREIRA REIS, Arthur César. Problemática da Amazônia. Rio de Janeiro Casa do Estudante do Brasil, 1968, p. 93. 2 VÍEÍRA, Pere Antonio. Relacäo da Missäo da Serra de Ibiapaba. Cité par Pianzola, Les perroquets jeunes. Paris, L'Harmattan, 1991, p. 51. 3 VEJA. Revue, Säo Paulo, Editora Abril, n- 28 p. 78. 4 HURLEY, Jorge. Chorographia do Pará e Maranhäo-Rio Gurupy. Revista do Instituto Histórico e Geográflco do Pará. Belem V. 7:4 - 44, 1932, p. 6/7. 5 VELIIO, Octávio Guilherme. Freníes de Expansäo e Ľstrutura Agraria, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 39. 6 VELHO, Octávio Guilherme. Op. cit., 1981, p. 96. 7 ALMLIDA, Mendes de. Provisäo do Conselfw Ultramarínu, 1737, in Velho, Octávio Guilherme. Op. cit., 1981, p. 35. 8 VELHO, Octávio Guilherme. Op. cit, 1981, p. 35. 9 CAMPOS, Augusto & Harolde. Revisäo de Sousändrade. Säo Paulo, Invencäo, 1964, p. 25. 10 CAMPOS, Augusto & Haroldo. Op. cit, 1964, p. 27. 11 CAMPOS, Augusto & Haroldo. Op. cit, 1964, p. 129/130. 12 VELHO, Octávio Guilherme. Op. cit, 1981, p. 27/28. 13 L0UREÍR0, Violeta. Miséria da Ascensäo Soeial. Säo Paulo, Marco Zero, 1987, p. 16. 14 VELHO, Octávio Guilherme. Op. cit, 1981, p. 28. 15 Cité /jar VELHO, Octávio Guilherme. Op. cit, 1981, p. 32. 54 IG MO OG Vianna. Ciclo do Ouro Negro. Porto Alegre, Livraria Globo, 1936, p. 61. 17 GRENANÜ, Francoise et Pierre. L'identite insaciable, Les eaboclos amazoniens. Etudes rurales. Paris, Editions de L'Ecole de Haütes en Sciences Sociales, 1990, p. 35. 18 GRENAND, Francoise et Pierre. Op. cit., 1990, p. 35. 19 GRENAND, Francoise et Pierre. Op. cit, 1990, p. 33. 20 LIMA, Araújo. Amazónia. A Terra c o Hamern. Säo Paulo, Companhia Editora Nacionál, 1945, p. 201. 21 MAUÉS, Angelica. A Questäo étnica: índios, bra neos, negros e eaboclos. Estudos e problemas amazönicos. Beiern, Idesp/Seduc, 1989, p. 195. 22 SKINDMORE, Thomas E. Preto no Branca: raqa e nacio-nalidade no pensamento brasileiro, cité par Maués, Angelica op. cil., 1989, p. 197. 23 AGASSIS, Louis. Viagem ao Brasil. Säo Paulo, Companhia Editora Nacionál, 1939. Cité par Maués, Angelica oj), cit., 1989, p. 199. 24 AGASSIS, Louis. Op. cit., 1989, p. 199. 25 DA CUNHA, Euclides. //; Inferno Verde (prcfacio) de Rangel, Alberto. Tom's, Typografia Arrauettia, 1927. 26 MORALS, Raymundo. Amphiteatro Amazönico. Säo Paulo, Mclhoramentos, 1936. Cité par Maués, Angelica. Op. cit., 1989, p. 200. 27 VERÍSSIMO, Jose. Estudos Amazönicos. Bělém, Universi-dade Federal do Para, 1970, p. 86. 28 MAUÉS, Angelica. Op. cit., 1989, p. 197. 55 29 MAUES, Angelica. Op. cit, 1989, p. 204. 30 DURAND, Gilbert. Lcs structures anthropoloyiques de V imaginaire.Paris, Dunod, 1994. As estruturas antropolögi-cas do imaginärio (Trad. Helder Godinho). Lisboa, Presenca, 1989, p. 17. 31 DURAND, Gilbert. Op. cit., 1994, p. 41. 32 DURAND, Gilbert. Op. cit., 1994, p. 43. 33 DURAND, Gilbert. Op. cit., 1994, p. 37. 34 MAFI-'ESOLI, Michael. Au crcux des apparenccs. Paris: Plön, 1990, p, 25. (I.A.) 35 MAFPESOLI, Michael. Op. cit., 1990, p. 27. 36 MAFFES0L1, Michael. Op. cit., 1990, p. 35. 37 JAKOBSON, Roman. Huit questions de poctiquc. Paris, Seuil, 1977, p. 77. 38 MUKAROWSKY, Jan, Escritos Sobrc Esietica e Semiötica (in Arte. Lisboa, Estampa, 1981, p. 34. 39 MUKAROWSKY, Jan. Op. cit., 1981, p. 34. 40 BRECHT, Bertold. Merits sur le theatre. Paris, L'Arche, 1972, p. 350. (T.A.) 41 BRF< FIT, Bertold. Op. cit., 1972, p. 344. 42 Obra de pesquisa publicada por: Funda^äo Nacional da Arte/Secretaria da Cultura do Estado do Parä/Instituto do Dcsenvolvimcnto Economico e Social do Parä. Beiern, 1979/81. A ooétuub do ima^üiArio 1.1. ŤoesuUj jwétiabj cuMburos Na Grécia antiga, mítica e heróica, quando a poesia - pelas manhas de "róscos pes" dos pocnias de llomero - comceava a caminhar na infáncia de si mesma, já estava ela cntranha-da na alma das palavras e trazia o imaginário na esséncia da linguagem significante. Orfeu encantava os humanos, os ani-mais, as árvores e as pedras com sua voz. Hni eonseqiiéncia da mořte de sua amada Eurídiee, teve de deseer ao inferno a ílm de resga(á-la. E cantando e tocando a citara, eomoveu os deuses da mořte, obtendo licenca para reconduzi-la ä vida. A condictio que lbe foi imposta foi a de caminhar ä frente dela, sem olhá-la e sem dirigir-lhe a palavra, sob o preeo de um penoso siléncio. Esse foi o saerifício exigido a Orfeu para reeonduzir Eurídiee á vida. Deveria pereorrer um caminho sem palavras, sem canto e sem o amoroso olhar, no cspaco interrnediário entre a eternidade e o tempo. Nesse percurso de retorno á vida - cm que lugar do ser a poesia continuava ílo-rescendo, na diminuta, mas imensa distáncia cpie havia entre eles dois? Certamente, no lugar onde as palavras estivessem abrigadas do mundo exterior, nesse momento, a elas interdi-tado. No lugar do siléncio ardente do pcnsameiito, o lugar onde as palavras qucimam como uma cháma no eseuro - o lugar do devaneio. Do devaneio inquieto que ligava Orfeu á Eurídiee. 0 vago pensamento náo revelado com palavras e, ao mesmo tempo, teeido de palavras — linguagem do pensamento cm liberdade. 0 est ado que interliga os seres sob um estado inlemporal de poesia o devaneio poético. Essa lin guagem da pura emo^ao poetizada, anterior ao verbo do poema, mas resistente ao siléncio das palavras. Orfeu devaneava em estado poético puro e denso, capaz de transgredir os interditos e contemplar a face invisível e essencial do amor. Scduzira as divindadcs com o canto da poesia que o divinizava. Por isso o siléncio, que o reduzia ä ľrágil condicao humana, foi-lhe imposto temporariamente, como pena e condicao do amor triunfante. O amor, "esse fogo que arde sem se ver"1, no amago do poético, obrigava Orfeu a circunscrevé-lo no campo do imaginário e do desejo, pois o amor em Orfeu era imanencia de poesia. Em cstudo em que analisa o significado da poesia, Defense de la poesie" (Deľesa da Poesia), Percy Bysshe Shelley afirma que os materials da poesia säo: a linguagem, a cor, a forma, os hábitos civis e religiosos. Além disso, considera ser o poema, num sentido mais restrito, uma combinacao da linguagem métrica, ä qual reconhece a condicao de faculdade soberana, assentada no coraeäo da naturcza invisivel do hörnern. Uma essentia de linguagem produzida pela imagina-Cäo, vindo sempre acompanhada de prazer, mesmo no sofri-mento. 0 poeta seria, na visäo de Shelley: "Um poeta é um rouxinol que se instala na noite e canta, para alegrar de sons doces a propria solidäo"3. Revelando a beleza escondida do mundo, a poesia alarga o círculo da imaginacäo, alimentando o pensamento. Com sua forma, a^áo, linguagem e repercussáo na cultura, ela torna, ate mesmo, uma época mais memorável do que outra. Por intermédio dela foi construída a época do heroísmo grego, com Homero; a passagem para o moderno mundo europeu, com Dante; o renascimento expansionista portugues, com I.uiz Vaz de Camöes; o choque de mudanca para o mundo contemporáneo industrial, com Baudelaire; a consagrac/io da cultura antilhana, com Saint-John Perse; a conflituosa história sul-americana contemporánea, com Pablo Neruda. Pode-se indagar qual seria a eompreensao da grandeza da vida grega sem um Sófocles, do Édipo-Rel; do cosmopolitismo espanhol medieval, sem um Calderón de La Barca, dos Autos Sacramentais; da conflituosa grandeza da corte inglesa sem um Shakespeare, do Ret Lear. E, ainda mais, como seria pos-sivel imaginär a epifánica fascinacao do cristianismo, sem que a doutrina de Jesus Cristo, dos profetas e dos apóstolos viesse impregnada pela poesia judaica mais antiga? Co Charles Stevenson, ao dcsenvolver sua reflexao sob re a poe-tica, estudando a constituicao do poema4, o faz como se per-corresse o campo do texto levando nas maos a lampada de uma pergunta: "0 que e urn poema?" A certa altura, Stevenson recorda o conceito de Charles Sanders Peirce proposto em Collected papers: "Expressao 'um poema' denota uma seqiien-cia de palavras que exprimem tal e qual significacao"1'. Em seguida, considera que Valeria a pena reformular a ques-tao, colocando-a de outra maneira: "A expressao 'um poema' denota tal ou qual significacao que sc exprime por uma sequencia de palavras"'1. Na verdade, para cada um dos casos ha uma infmidade de argumentos ordenados por Stevenson, no sentido de avaliar qual a melhor maneira de dizer, enfim, o que um poema e. Em todos cles, no cntanto, seja cm apoio a primcira ou a segunda formulacao, sobressaem dois aspec-tos constantes em toda poesia: a palavra e o imaginario. Stevenson reflete tambem sobre a questao da recriacao imagi-naria pela leitura, o que acrescenta ao problema o rico angulo da recepejio do texto poetico. E quando faz referenda ao imaginario ativado da recepcao poetica dos leitores: o que acon-tece quando um poema e iido por pessoas diferentes? Por certo, a sequencia de palavras sera a mesma. As qualidades verbais, a mclopeia e a fanopeia tambem. No entanto, outras serao as variantes do [jrazcr no imaginario de cada um, ao comprcender os diferentes significados do mesmo poema; por-que a sequencia das palavras no verso nao e um mero ou arbitrary processo. Ha um livre jogo que as infinitas possibilida-des do devaneio permitem. A linguagem poetica torna-se uma "ilusao de intencao", segundo Wimsatt e Beardsley, na sua ampla Philosophic analytique ct csthctiquc (Filosofia Analitica e Estetica), citado por Stevenson7. Ou uma pratique signipan-tc (pratica significante) como define Julia Kristeva em La revolution du Langage poetique (A Revolucao da Einguagem Poetica), no qual estuda a vanguarda no fim do seculo XIX, com base na obra poetica de Baudelaire e Lautreamont. Essa "pratica significante" que faz do poema poesia interme-diada pelo prazer. Mas uma forma de prazer iniciatoria, isto e, que sempře está iniciando ou está sempře se originando e produzindo urna "infinitizacáo do sentido"8. É que, 110 poema, a linguagem está deslocada do senso corrente da comunieacäo e transťigurada em "inštancia simbólica"". Como tal, "da resulta mais que cm qualqucr época um meio de acäo no processo de transformacäo social, ao mcsnio tempo em que registra esse processo"1". Ľ claro que urna obra poética, nessa linha de raciocínio e como bem o expressaram, semiótiea e linguisticamente Mukarowsky11 c Jakobson" , näo pode ser reduzida ä funcäo estética. A outras ľuncóes que a constitucm: "A obra poética deve, cm rcalidade, se derinír como urna mensagem verbal, na qual a funcäo esté-"r;i .'' ;i d()nunante"*3, Ambos os autores reconhecem a existencia de outras íuncoes além da estética na linguagem - a Pratica, a teórica, a mágico/rcligiosa. No caso da poesia é ä |1,1,;io estética que se confere o papel de dominante, isto é, o < e governo do sistema, ao mesmo tempo em que, ordena a icrarquia das outra ľuncóes da linguagem, no corpo consti-,ll1lvo da obra poética. ssai rica idéia de dominante, conjugada á de hierarquizacáo laletica das funcôcs, constitui-se num instrumental teórico (v malise do poético que ultrapassa o seu emprego cspccí-K'u. mas näo exelusivista, feito pelos mencionados teóricos a semiótiea. É, na verdade, um instrumento metodológico, de amplo espectro, que estabelece caminhos fccundos ä uiu-rpretacáo dos fcnômenos culturais. Pla permite que se compreenda, por exemplo, no vasto campo da história das culiuras ou no das tradicôes culturais aquilo que pode cons-tituir neles a característica fundamental, aquela capaz de revelar o que é originál e importante, nos diversos períodos (la história de urna sociedade e no corpo significante de sua cultura. Cultura, aqui entendida, como configuracäo intelec-tual, artística e moral de um povo ou, mais amplamente, de urna civilizacäo, e que pode ser compreendida no processo de seu dcsenvolvhnento histórico ou num periodo delimita-do de sua história. A cultura vern sendo considerada, dcsdc a Antiguidade Clássica, como algo que cngloba diferentes ängulos de urna totalidade voltada para a criacao e preservaeäo de hens materiais e imateriais, passando pelo cultivar, pelo habitar, pclo cuidar. E o hörnern, por intermédio dessas formas de relaeäo coin a realidade, torna-sc um doador de sentido äs coisas. 'ľ. S. Elliot, no ensaio de 1948, Notes towards the definition of culture, estudado por Benedito Nunes, em Urn con-ccito de cultura'*, encontra na cultura ties niveis de abran-géncia - individual, social e histórico. Nele ainda eoneeitua cultura como sendo constituida do conjunto formado pelas expressöes intelectual, artística e moral eoneernentes a uma determinada civilizacäo e mesmo a um povo, construido no processo de sua história como urn todo ou num determinado periodo. Esse conjunto de expressöes resulta numa complexa reuniäo de linhas de pensamento, parämetros de gosto, éticas de procedimcnto que decorrem de uma existencia social objetiva. Esta ultima revela as criacxies da cultura como sendo próprias do caráter de uma produeäo social. Verdadeiramente, modos de proceder e pensar peculiares estäo presentes cm todos os niveis dos agrupamentos huma-nos. Essas diversas formas de recortar e expressar a realidade sintetizam, em seu ämbito, o complexo universu da existencia humana, em (|ue as mais diversas formas de vida säo postas ein prätica, dentro da reeiprocidade dinämica das relacöes constitutivas da dimensäo social da cultura. E como erntender a cultura como sendo um processo de aperfeicoa-mento, a "perfeicäo da alma", para lembrar Georges Simmel, nas reflexöes de A Crise da Cultura, em sua Eilosolla da Modernidade. Referindo-se á cultura brasileira como um todo, Benedito Nunes formula uma síntese judicativa: "Sonios como povo, dotados de uma cultura propria, que tem sua fisionomia dis-tintiva, o seu ethos peculiar, em que componentcs de extra-c/m portuguesa se fundem na(|ueles caractcrcs primitivos, indigenas e negros, com que os nossos modernistas lb ram os primeiros a contrastar o arcabouco da cultura intelectual, tamhém denominada superior, cultura fatalmente importada, porque de origem européia, e (pie presidiu, desde os tempos da Colônia, a Ibrma^äo de nossos bacharéis, juristas, letrados t cruditos-".. Ne ,:lliot. citada antcHnr° ° aUt°r' al™ da reflexäo sobre T. S. mas de outras [e-se ai a algUns trar™ CUltura« Benedito Nuncs refe- Ufd0s sob um ponto9 d CSSenciais da cultura brasileira ana-nao dcsobriga de lev VLSt'' d* SUa g|obaIicJade. A afirma-,;1 e™ grandes regiöes * ? C°nta c'ue ° BrasiJ se aprcsen-(vm ärpas de acentuaringraficas e cu,turais que compreen-,0m,ar^ ao [0nan T^cos distintivos de cult ura, que se PaiS' seJ'a Pelo isoIamentCmCO S(*U,0S st^ Pc,a ^xtensäo do nim e°ndiei0nyfJas ™° a ^ algumas dessas regiöcs fica-S(;j;' Pelo desigual ^°^n,,lcamente durante longo tempo, ^buicöes tHnie0Prr,°heSSO de desenvolvimcnto on pelas l(iS, reSiöes do nUP " u"ra,s c^ marcaram bem ma is cer-CU!tUra -»»Wtaica en5,', tUd° isso * P»«'vcl falar-se em l'X",k'"1 «■' » exprw.™ 3 nordes'i"=<. por exemplo, que Van,onll,1 * Am4ön nVreaS c°™*PondenteS, rcspccti- n,d e 30 N°*«te brasileiros. /.z. CultureamA^óftiab a. Natureza Amazönica: O Olhar do Natural e do Via j ante. Na Amazonia pode-se reconhecer ainda nitidamente dois grandes espacos sociais tradicionais da cultura, cada qua! assinalado por caractcrísticas bem defínidas, mas também mareados por uma forte articulacao mútua, que se processa em deeorréncia de procedimeníos próprios ao desenvolvi-mento regional: o espaco da cultura urbana e o da cultura rural. A cultura urbana se expressa na vida das cidades, prin-cipalmente naquclas de porte medio e nas capitais dos Estados da regiäo. Nas cidades as trocas simbólicas com out ras culturas säo mais intensas, há maior velocidade nas niu(1 an(,'as, o sistema de ensino é mais estruturado, os equi pamentos culturais säo em muito maior numero e há o dina-mismo proprio das universidades. No ambiente rural, espe-cialmente ribeirinho, a cultura mantém sua expressao mais tradicional, mais ligada ä conservaeäo dos valores decorren-tes de sua história. A cultura eslá mergulhada nutn ambiente onde predomina a transmissäo oralizada. Ela reflele de forma predominante a relaeäo do hörnern com a natureza e sc apresenta imersa numa atmosféra em que o imaginário privilegia o sentido estético dessa realidade cultural. A cultura do mundo rural de predomináncia ribeirinha cons titui-se na expressao aceita como a mais representativa da cultura amazónica, seja quanto aos seus tracos de originali-dade, seja como produto da aeumulaeäo de experiěncias sociais e da criatividade dos seus habitantcs. Aquela em (pie podem ser percel)idas, mais forteniente, as raizes indigenas e caboclas tipificadoras de sua originalidade, (lorescentes ainda em nossos dias. Contudo, é precise entender (pie a cultura do mundo ribeirinho sc espraia pelo mundo urbano, assim como aquela é receptora das contributes da cultura urbana. Interpenetram-se mutuamente, embora as motiva coes criadoras de cada qual scjam relalivamente distintas. es A cultura amazônica, em que predomina a mot.vacao de on-gem rural-ribeirinha, é aquela na qua! melhor se expressam, mais vivas se mantern as manifestacöes decorrentes de um imaginário unificador refletido nos mitos, na expressao artis-tica propriamente dita e na visualidade que caractenza suas produces de caráter utilitário - casas, barcos, etc. 0 interior - expressao (pie designa o mundo rural, embora inclua vda e povoados - é o lugar das tensöes próprias dessa soeiedade onde os grupos humanos estäo dispersos ao longo de extcn-sos espacos e onde se acham mergulhados numa idéia vaga de infinitude, propiciadora da livre expansäo do imaginário. Sobrevive nela uma consciéncia individual pela qual o hörnern se realiza como co-criador de urn mundo em que o imaginal estetizante e poetizador se revela como uma forma de celebracäo total da vida. Conforme se vera mais adiante, quando da análise de alguns rnitos amazônicos, neles a vida é celebrada pela ilguracao do amor como ligacäo suprema dos seres entre si e como exaltacäo dos sentidos nas relacoes dos honiens com a realidade. Trata-se de uma cultura que é ŕundada por homens que vivem num mundo imaturo, em via de eompletar-se, como "numa imensa página do Genesis ainda inacabada", para •'•mbrar a clássica expressäo de Euclides da Cunha, no initio deste século, no prefácio do livro Inferno verde16, cujo "'tulo, paradoxalmcnte, reforma um dos estigmas da regiäo. (J mesmo autor, na obra Ä M argem da História, tratando da geografia, das mutacöes do tempo e da cultura na Amazônia brasileira, acrescenta, numa espécie de impressionismo metodológico que tem sido a constante do modo tradicional de aproximaeäo dos estudiosos da mitificada terra das Amazonas - indias guerrciras vistas pelos primeiros explo-radores, tambem cotihecidas pelo nome de leamiabas: "A impressäo dominante que tive, e que talvez corresponda a uma verdade positiva, é esta: o hörnern ali é ainda um intru-so impertinente"". Alimenta, o autor, a idéia de uma natu-reza hostil ao hörnern, natureza feita para si, invadida gra-cas ;i teimosia do hörnern. No entanto, ao lado dessa visäo paradoxal de um lado genesis ainda em formacao, c de outro, inferno já formado - o que o texto ilustra é a situa-äo desmesurada e alegórica da natureza, ao lado de uma visäo da presenca do hörnern como personagem de uma saga pessoal tenaz. E, mais adiante, ainda na mesma obra, Euclides da Cunha acrescenta: "A Amazonia seivagem sein-pre teve o dorn de impressionar a civil izacäo distante. Desde os primeiros tempos da Colönia, as mais imponentes expedites e solenes visitas pastorais remavam de preferencia äs suas piagas desconhecidas"'". 0 que sc percebe e que as circunstäncias da vida amazönica vem regulando peculiares rclacöes entre os homens e o meio, tanto no que diz respeito aos lins präticos da producäo, cir-culacäo e consumo, assim como vem dando origem a um processo doniinantementc oralizado de transmissäo cultural, t) liomem da Amazonia, o cahoclo, vivendo Ibra do contex-to das grandes cidades - Beiern e Manaus especialmente -näo sc encontra completamente integrado ä moderna socie-dade de consumo, suprindo parte de suas necessidades coti-dianas pela abundäncia dos rios e da lloresta. (Ii quando migra para as cidades - grandes, medias ou pequenas —, car-rega consigo c nelas insere uma parte dos tracos de sua cul-tura original.) Nesta, o tempo dos homens e como algo acon-tecendo sensivelmente, visivelmente cm derredor. Libertos do espaco pelas asas do imaginärio, por meio do qual explicitam e subrnetem ä sua medida a nocäo de espaco, os homens estabelecem em plenitude, sua relacäo com o tempo. Sob a liberdade que o devaneio permite, o espaco e quase como que absorvido pelo tempo, assumindo uma leveza cjue compensa as duras Fainas ejornadas na lloresta ou nos rios. Säo inü-meras essas envolventes atitudes de contemplacäo operativa, cm que o real e o imaginal sc interpenetram livremente. Nesse sentido, habituaram-se a apreender o espaco de forma descontinua ■ - cada segmento desse vasto espaco unitärio e um espaco natural reconstruido socialmente e, por isso i'ini-co, ao mesmo tempo que igual e integrado ao espaco universal. Vivenciam uma experiencia perceptiva equivalente a do cinema (e ä da televisäo) em que, gracas ao processo de moti-tagem, o tempo e o espaco säo recriados sob parämetros do tempo diegetico cinematogrällco. Como sc houvesse o permanente renascer de um tempo original sempre acontecendo, um tempo-instante de origem perene, que fosse recolhendo os fragmentos do espaco, como uma rede de pesca acolhe e recolhe os peixes. Mergulho na protundidade das coisas por via das aparen-cias, esse e o modo da percepcäo, do reconheeimento, e da criaeäo pela via do imaginário estético-poetizante da culture amazonka. Modo singular de criaeäo e recriaeäo da vida cultural que se foi desenvolvendo emoldurado por uma espeeie de sfumato que se instaura como uma zona indistin-Cntrc.° real e o surreal. Como elemento que estabelece uma divisao imprecisa, semelhante a do encontro das águas l'u ^es difercntes) de certos rios amazônicos, con,o as do oľtti/0nrľcC°m ° Negr0' ()U d0 Amaz°nas com o Tapajós e «>s. 0 liimte entre as águas amarelas de um e negras, ver-ou azuladas, de outro näo está deílnido por uma linha « <» e precisa, mas por águas misturadas, viscosamente ln ťM>retadas, que criam uma tonalidade imprecisa negro-drnarelada, como se essa forma de sfumato fosse estabele-cendo uma realidade única, na física distincäo que caracte- za os dois rios. H é num ambienle pleno de situacöes como sa que caminha o bachelardiano hörnern notumo da ^ azoma. Depara-se este hörnern noturno com situacöes de precisos limites, de variadas circunstäncias geográficas que väo motivando a criaeäo de uma surrealidade real, ä stmclhanca do cfeito provoeado pelo maravilhoso épico, ^ um reeurso de poetizaeäo da história, nas epopcias. m;< surrealidade cotidiana, instigadora do devaneio, na qU; os st'n1«dos permanecem atentos e atuantes, porque é Proprio desse cstado manter a consciencia atuante. É o mesmo que ocorre, porexemplo, numa sala de cinema, convert ida em locus do sfumato entre o real e o imaginário do cotidiano universal, e exemplo da emergéncia de uma espé-cie de sentimento do maravilhoso, no decorrer habitual e prosait-o do dia-a-dia. Dependendo do rio e da floresta para quase tudo, o caboclo usufrui esses bens, mas também os transfigura. Essa mesma dimensäo transllguradora preside as trocas e traducöes sim-bólicas da cultura, sob a estimulacäo de um imaginário impregnado da viscosidade espermática e fecunda da Q dimensáo estética. "Com efeito, e este é o paradoxo, este esqueeer de si, este mergulhar do indivíduo na viseosidade ambiente, eleva-se a uma espécie de universa]"1'. Pssa transfiguracjio do real pela viseosidade ou impregnacäo do imaginário poético, acentua uma passagem entre o coti-diano e sua estetizaeao na cultura, por meio da valorizacäo das formas auto-expressivas da aparéncia, nas quais o inte-resse de quem observa está concentrado. Interesse que dire-ciona o prazer da contemplacao da forma das coisas marca-das pela ambigüidade significante propria do que é cstético. Nessas condicöes, no ámbito de uma sociedade como a Amazonia, ainda sem as grandes prcssoes da sociedade de consumo c do utilitarismo funcional das sociedades contem-poraneas, o hörnern encontra um lugar e um espaco tornados de uma forma peculiar que propiciam o devaneio poetizante. E gracas a csta forma peculiar do olhar do hörnern da regiäo (que a Amazonia, que sempře se constituiu para os viajan-tes e estudiosos urn espaco delimitado de geografia e cultura), tornou-se também uma extensäo ilimitada ás instigacöes do imaginário. Por essa via prazerosa, o hörnern da Amazonia percorre pacientemente as inúmeras curvas dos rios, ultrapassando a solidäo de suas várzeas pouco povoadas e plenas de incontáveis tonalidades de Verdes, da linha do horizonte (jue parece confinar com o eterno, da grandeza (jue cnvolve o espirito numa scnsacao de cstar diante de algo sublime. "Náo obstante ser uma das regiöcs mais defi-nidas e individualizadas dentro dos quadros continentals, a Amazónia náo é, contudo, uma regia o fácil de dellnir e deli-mitar, a comccar pela plurivaléncia de sentido do termo que a nomeia, (jue tanto pode signiťicar uma bacia hidrográfica como uma província botánica, um con junto politico como, espaco eco n 6 n i i co." M Sob o olhar do natural, a regiáo se torna um espaco conceptual único, mítico, vago, irrepetível (posto que cada parte desse espaco náo é igual a outro), proximo e, ao mesmo tempo, distantc. Seja para os que habitam as margens des-ses rios, que parecem demarcar a mata c o sonho, seja para os que habitam a floresta, seja ainda para os que habitam os povoados, vilas e as pcquenas cidades, quo parcccm estar tmillf> mais tium tempo congelado do que num espaco dos nossos dias. Ha um olhar que se dirige para a regiäo, que esta impregnado desse pröximo-distante que e todo proprio das situacöes auräticas, eomo pöe em relevo Walter Benjamin ao estudar a multiplicacäo da obra de arte na epoca atual. Benjamin earacteriza a aura em seu ja clässico texto "A obra de arte na epoca de suas tecnicas de reprodu-V;»<> : "A ünica aparicäo de uma realidade longinqua, por mais prüxima que esteja"". Nas varias fbrmas de contato com a regiäo, essa e uma impressäo constante, isto c, esse pröximo-distante, esse pcrto-longc, esse tocavcl-intocävel, em que o hörnern vive seu eotidiano que sc apresenta a ele revestido da atmosfera (U' uma coisa rara. Mesmo nos conflitos gerados pela devas-tacao crescente de sua celebrada natureza, os fatores de «'uratizacao flcam evidentes: um bem ünico e universal, impossivel de scr recuperado, ser destruido; riqucza de fauna e 'Tora eujo desapareeimento representava uma perda ^substituivel; acervo de formas de vida incalculäveis, como S( ela fosse um fecundissimo utero do universo (em poueo ni;ils de 1 hectarc de floresta ainda näo afetada pelo hörnern, encontram-se mais especies do que cm todos os ecossiste-mas da Europa juntos); presenca constitutiva de valores mtransferiveis e intransportäveis. Para o viajante eomum ou o estudioso, este constitui um prineipio instaurador, princi-P»o segundo o qual a Amazonia e concebida como um bem unico e irrepetivel, revclador de um nie et nunc que e o resultado de uma acumulaväo de signos do imaginärio universal. Signo de uma natureza tida como ünica, original c irrepetivel, em contra-posicäo com uma epoca de reprodu-Cäo multiplicadora da natureza. Desde as epocas remotas dos grandes exploradores, dos cro-mstas viajanlcs, dos naturalistas que a percorrem ate os dias de hoje, eniun, para o viajante que vem de Ibra, contcmplar a Amazonia exige deles um verdadeiro ritual: desejo intenso, ideias, plancjamcnto, recursos flnancciros, tcmpo, motivaeäo, 70 ato de presenca para eontemplá-la e vive-la. Nada suhstitui o csíar dianíc děla ou o ícr estado ucla. li como participar de uma eerimónia do imaginário. Porma-se uma atmosféra pro-pícia "... ä elaboracao de uma aura estética na (|ual reeneon-tramos, em proporcöes diversas, os elementos que reenviam á pulsäo comunitária, ä propensäo místiea ou a uma perspec-tiva ecológiea"22. Percebe-se nas relacöes esletizantes com o real da Amazónia que há um maravilhamento do hörnern, o que é proprio de quem está diante de algo que é imenso e diante do qual a pequencz do hörnern se evideneia. Pequenez que é superada pelo hörnern natural por intermédio de um imaginário que a transforma e permite uma articulaeäo com a natureza, dentro de uma relacáo em que estáo presentes as categorias perto-longe, convivéncia-est ran ha mento. Penetrar na lloresta, navegar nos interniináveis e incontá-veis rios (aproximadamente 14 mil eursos ďágua) provoea a sensaeäo de estar distante "do mundo" e náo a de estar diante de um mundo delimitado; a de estar diante do proprio universo. Um mundo eheio de "por qués", de questöes suspensas no ar, tal como est as aparecem nas lendas, pe^as de teatro, músicas e outras manifestacöes da cultura. Psse permanente questionamento do mundo está presente mesmo em ritmos sim|)les e típicos da terra, como os carim-bós. Como exemplo, nas palavras de uma composicáo no ritmo paraense do carimbó, seu autor, Mest re Lucindo, pes-cador e compositor do município de Marapanim, Microrregiáo do Salgado Paraense, assim inquire: "Pescador, pescador, por que é / que no mar náo tem jaca-ré? / Pescador, pescador, por que loi / que no mar náo tnu peixe-boi? / Eu quero saber a razáo / de no mar só ter (uba-räo..." 0 pescador-sonhador, perdido na solidäo das águas, tenta ultrapassar a familiaridade redundante do cotidiano, buscando explicacöes (|ue cle desentranha da ambigüidade do mundo em torno, no qual o dia-a-dia adquirc dimensáo cósmica. Conheccr o que há de inexplicável ou descobrir o que de submerso se pode encontrar nas explicacöes habi-tuais, eis o sentido da navegacáo desse ser imaginante den tro de si mesmo tan face d;is coisas. 7* b. Do olhar do índio ao do Caboclo - urn mcsmo per-eurso. Na cosmologia indígena, quando os mitos sc reportam á criaeäo do mundo amazönico, na verdade, estäo sc referin-do a criaeäo "do mundo", ä criaeäo do planeta Terra. A pří-meira noite de tudo saiu do coraeäo de um tueumä (peque-no coco de palmeira). "Escureeeu, o cururu, o sapucaia, puseram-sc a coaxar; as corujas a piar; o jurutaí, o murucii-tvitu, a acuraua, o rasga-mortalha, os morcegos, precipita-,:'m-se na escuridäo, enchendo a íloresta de gemidos, de Pios, de roncos, de ferros, de silvos diversos"(...) "Mal bri-Inou a estrela ďalva, a moca separou a noite do dia e os pás-saros do dia cantaram e os da noite calaram" (...) "E assini se rez a primeira noite", registra José Coutinho de Oliveira, (_ni Folclore Amazönico". Pode-se também recorrer a Nunes ereira, no antológico Moronguetá - um decameron indigent "0 sol, antigamente, era um moco forte e bonito"(...) "0 sol beben todo o urucu e foi ficando com a cara vermelha fomo o urucu e a muirapiranga. Depois subiu para o céu e se meten entre as nuvens"2'. As características e os elementos locais sao universalizados ■ 0 local assume a categoria de universal. "A lua, também, antigamente, era mulher." (...) "Hoje cla é a lua. Äs vezeš é M<>Va-Nova. E, äs vezeš, também está prenha""'. Antigamente o (bgo näo existia."(...) "Nisto, apareceu a 1,1:1 Ba^urau ()ue era dona do fogo e vinha fazer beijus com as raizes da mandioca. Atrás dela vinha urn menino nas costas de sua mac". (...) "0 menino saltou em cima da Vclha Bacurau e tirou-lhe o fogo da boca"2t. Quer dizer, o Mundo nasec naquele ou daquele mundo amazönico; o Mundo é aquele mundo. 0 proprio universo nasce dele e, ao mesmo tempo, é o mundo amazönico. Quer dizer, um todo unico, imenso, próximo-distante, em processo de partejamento, como sc fosse um mundo sempře vindo á luz - mundo das origens perenes, sem distincäo entre o natural e o sobrena-lural, como na antiga Hélade teogönica de Hesiodo e Homero. 72 Há, no mundo amazónico, a produ^ao de uma verdadeira teogonia cotidiana. Revelando uma afctividade cósmica, o homem promovc a conversáo estetizante da realidade em signos, por meio dos labores do dia-a-dia, do diálogo com as marés, do companheirismo com as cstrclas, da solidarie-dadc dos ventos que impulsionam as velas, da paciente amizade dos rios. F como se aquele mundo fosse uma só cosmogonia, uma imensa c verde cosmo-alegoria. Um mundo único rcal-imaginário. Foi-se constituindo nele uma poética do imaginário, cujo alcance intervém na complexi-dade das rclacoes socials. Vejam-se dois excmplos ilustrati-vos: o da mae solteira e o da mul her casada (|uc tem um filho sem o concurso do marido. Sáo situacóes que a moral reguladora local reprime, exige punicao ou vingan^a. No entanto, se num caso ou noutro, for accita a explicacao de ser um "Mlho de boto", o interdito desaparcce c o "anormal" repoc a normalidade. O imaginário estetizante tudo impregna de sua viscosidade espermática e feeunda, acentuando a passagem do banal para o poético. Aquela é geradora do novo, do reeriado. Valoriza a dimensáo auto-expressiva da aparéncia e sua ambiguidade significante, nas quais o interesse passa a se concentrar. A cultura amazonica talvez represente, neste final de século, uma das mais raras permanencias dessa atmosféra cspiritual cm que o estético, resultante de uma singular relacáo entre o homem e a natureza, se reflctc e ilumina a cultura. Cultura cjuc continua sendo, como uma luz aurática brilhando, c que persistirá enquanto as chamas das queimadas florestas, j)ro-vocadas pelas novas empresas (juc se instalam, com a entrada do grande capital na regiáo e a mudan^a das rclacóes dos homens entre si, náo dcstruírcm, irremediavelmentě, o locus que possibilita essa atitude poético-estatizante ainda j)resen-tc nas vastidóes das terras-do-sem-fím amazónico. Forma de vivencia e de reproducáo que tendem a permanecer vivas c feeundas, na medida em que sobrevierem no espa^o amazónico as condi^óes desse locus, no qual a presenca humana, do índio ao caboclo atual, encontrou mcios para uma produ-c_ao poetizantc da vida. 73 c O imaginário regional refletido na Literatura Nacionál 0 imaginário assumiu desdc sempře o papel de dominantě no sistema de producáo cultural amazónico. Como conse-quéncia, a contribuic^o amazónica á literatura brasileira se rez e se laz, predominantemente, por meio de produtos desse imaginário, diferentemente do que ocorre com as outras regides brasileiras. O Nordeste tem oferecido tenias que refletem a condicao humana no ambito dos conflitos sociais, enťocando os tcmas da seca, da pobreza, do misti-cismo e, cm especial, do retirante (sertanejo que migra, diante da impossibilidade de permanecer na terra, fenóme-"o f)ue pcrdura há pelo menos 2 séculos). O romance Vidas Seeas, de Graciliano Ramos, exemplifica singularmente este I)(,nt0- Ncle o autor narra a tormentosa história de uma lanulia dc retirantes, que sai de uma regiao a outra do scr-tSo cm busca do trabalho, durante um periodo de seca; o Poema Mořte e Vida Severina, de Joáo Cabral de Melo Neto, tornou-se um clássico moderno, ao narrar a história do reti-rante Severino, que foge da seca, migrando em direcáo á eidade do Recife, no litoral, e que vai encontrando a mořte ao longo dessa jornada; em Os Sertoes, de Liuclides da cunha, avulta a figura mística do beato Antonio Conselheiro, em meio a descricoes da terra, do homem e da luta social de um grupo camponés que proeura fundar uma V|,|;' grupal justa e harmonica no sertáo nordestino e que termina esmagado pelas foryas militares. Já a Regiáo Sul do Brasil tem fornecido temas que decor-rem fundamentalmente das sagas históricas vividas j)elos pioneiros das fronteiras. Na novela histórica 0 Tempo e o Vento, Erico Veríssimo relata a história de duas famílias ini-migas, os Terra Cambará e os Amaral, envolvendo-as no eonjunto de situacóes históricas que estáo implicadas na construeáo do território nacionál, nas lutas separatistas e na revolta armada de 1893; os romances A prole do corvo e Vm quarto de légua em quadra, de Luis Antonio de Assis Brasil, tématizam eriticamente, o primeiro, a Revolucáo 74 Farroupilha c, o segundo, a colonizacao acoriana no Rio Grande do Sul, questionando a politica de povoamento desajustador da epoca, por inadapta^ao e desespero do migrante para intergrar-se ao meio. Diferentemente das demais regiSes brasileiras, a Amazonia vem ofereccndo a cultura cm gcral e aos grandes movimen-tos artistieos brasileiros, em maior quantidade, temas resul tantes do seu imaginario social. Serve de exemplo o mito dos indios Macuxi, Macunaima, recriado no romance do paulista Mario de Andrade, inn dos principais nomes da moderna lileralura brasilcira no qual o autor relala as aven-turas picarcscas do hcrdi, desde a lloresta amazonica ate a cidade de Sao Paulo. A obra e considcrada urn dos marcos iniciais da segunda fasc do modernismo brasileiro, iniciada em 1930. Macunaima estabelece "a medicao entre o material folclorico e o tratamento literario moderno via Freud e con-soante uma corrente de abordagem psicanalitica dos mitos e dos costumes primitivos que as teorias do inconsciente e da mentalidade pre-ldgica propiciaram"". Ainda nesta mesma obra, Bosi caracteriza o heroi dessa rapsodia de Mario de Andrade da seguinte maneira: "Simbolicamcnte, a figura de Macunaima, o heroi seni nenhum caniter, I'oi trabalhada como sintesc de um presumido modo de ser brasileiro des-crito como luxurioso, avido, preguicoso e sonhador": carac-tercs que Ihe atribuia um tedrico do Modernismo, Paulo Prado, em 1925 em Retratos do Hrasil'". Outro exemplo de contribuicao, por via do imaginario ama-zonico com o prcstigio de marco literario, e de autoria do gaucho Raul Bopp. Trata-se do poema Cobra Norato, basea-do em lenda amazonica homonica, (pie valoriza, alem de novos motivos poeticos, a camada sonora da linguagem poetica, com base na musicalidade do falar do norte brasileiro, decorrente da agregacao na linguagem cotidiana de vocabulos indigenas e negros. Considcrada uma das criacdes mais caracteristicamente brasileiras da nossa literatura, o Cobra Norato narra, no clima do imaginario estetico poeti-zante do cotidiano natural amazdnico, as aventuras de um moco (|uc, apds matar a Cobra Norato, especie de scrpentc 75 encantada que vive nos rios da Amazonia entra na pel do assustador animal mitologizado, e sai em busca da filna da Rainha Luzia, eom a qual pretende, obsessivamente, se easar. Para Alfredo Bosi, o longo poema irnobihza em sua estrutura, "o telúrieo interioriza e sentido como libido e ins-tinto de morte"11, vinculando esse poema "a voga arncani-zante de Paris anterior á Primeira Guerra ("art negre ) . Tambcm foi a exploracao da sonoridade ritmiea das palavras do voeábulário indígena e negro dos versos que loi destaca-da por Roger Bastitle, eitado por Bosi ao falar da obra de Bopp, considerando-a "incorporacáo da poesia africana á poesia brasileira,,,(J. 0 poético e o mítico sempre apresentarn eonstantes alinida-,l( - Algumas vezes parecem imagens de espelhos paralelos. 0 mito, muitas vezes, expressa a poética das eoletividades humanas, ao relatar sua história idealizada. 0 poético, por seu lado, mitifica as palavras e os sentimentos, no ato de torná-los poetizados. Mítico e poético sáo produtos de urn imaginário estetizante, no entanto, apresentam-se como verdades aparentes, ou formas de verdade, legitimadas pelo ]'vre jogo entre a imaginacáo e o entendimento, tal como percebido por Kant, na sua Critica da Faculdade de Justica", luta e mořte, na realidade e no imaginário da populac^o. História resguardada na memória do povo, basi-camente, pela tradieáo oral. °Piniáo dos historiadores, A Cabanagem foi urn dos mais profundus, amplos, sérios movimentos politicos revolucio-nanos do periodo regencial brasileiro, estendendo-se de 1835 a 1840. Verdadeiramente, ela serve de eixo invisivel em torno do qua] gira a história de uma parte da Amazonia, t'specialmente do Pará. Sua propagacao no imaginário ama-zonico assemelha-se ao que ocorreu com os epsódios da cavalaria ou das cruzadas, no imaginário dos povos da Peninsula Ibérica. Aí, como lá, a oralizacáo criativa e poeti-zante acreseentou uma dimensáo legendária aos aconteci-mentos. Sáo inúmeros os textos (relatórios administrativos, de viagens, de inspe^ao, de missoes específicas e mesmo geográficos) que Fazem mencao a tesouros enterrados por pessoas em fuga, nesse ou noutros períodos, aparecendo e reaparecendo na historiografia regional. Atualmente, essas mesmas matrizes do imaginário repóem, sem cessar, o Fantástico em inúmeros processos soeiais que ocorrem no espaco regional. 0 exemplo mais ilustrativo, ao longo da década de 80, é o da Sena Pelada, para onde acor-reram, em menos de seis meses, 50 mil garimpeiros proce-dentes de vários pontos do pais, li lá permaneciam mesmo após a exlracáo do ouro ter chegado a níveis insignifican-tes, o numero de mortes ter alcancado taxas muito elevadas e as condicóes de vida e trahalho no local se degradarcin em níveis absolutamente insuportáveis para a maior parte dos homens. Estes, entretanto, de um lado, estavam pressionados pelas duras condicóes da vida anterior - o que os liavia levado á decisáo de trabalhar em Sena Pelada. Do outro, estavam impulsionados pelo mito, sempře renovado do Eldorado: a idéia da existéncia de uma laje de ouro macico no lundo da cava da mina, á qua! todos teriam aeesso quan-to mais lundo cavassem. Os que se loram antes do lim bus^ cavam, noutros lugares, a fortuna individual mim bambuiro de ouro em alguma das centenas das minas espalhadas pelo espaco económieo. A cultura amazónica é, portanto, uma producáo humana que vem incorporando na sua subjetividade, no inconsciente cole-tivo e dentro das peculiaridades próprias da regiáo, motiva-cóes simbólicas que resultam em criacóes que estreitam, humanizam ou dilaceram as relacóes dos homcns entre si e com a natureza. Uma natureza plurivalcnte para o homem, da qual cle retira náo apenas sua subsisténcia material, como também espiritual. Mesmo sob imposicao exógena, resultante da miscigenacao racial de intcgracao cultural, a experiéncia da vida dos habitantcs foi gcrando, por sineretismo dc ele-mentos indígenas e europeus, uma cultura em que o devaneio do imaginário da sociedade ganhou especial importáncia. e. Os conflitos de signos A história cultural da Amazönia, regiäo que passou por longo periodo de grande isolamento até o início da dccada de 60, lem sido palco de conflitos de imagens e signos, cm maior ou mcnor intensidade, no decorrer de sua peculiar história. Durante os primeiros séculos após o descobrimento do Brasil (em 1500), a catequese e a pedagogia dos padres da Igreja encarnaram a doutrina e tbram agentes de uma imposicao simbólica sobre a cultura indígena. Atuando de maneira dispersa no espaeo, mas contínua no tempo, foram levando sím-bolos rcligiosos, morais, culturais estranhos as populates indígenas ou ribeirinhas, inserindo no imaginário indígena novos elementos, novos conteúdos que passariam a compor, no processo de assimilacáo cultural, justapostos a base cultural indígena, os fundamentos da cultura propria da expres sáo amazónica cabocla. Foi uma espécie de impacto que no processo aculturador contribuiu ä reestrutura^áo da expres-sáo nativa, juntamente á fbrmacäo de uma nova etnia resultante da miscigenacao do índio com o branco europeu. Outro momento de conflito de signos da cultura amazónica foi o do Ciclo da Borracha, uma das épocas mais destaca-das da história cconómica e social da Amazonia. Fsse ciclo económico é compreendido por um periodo de intensa 80 exploracäo do latex, a hevea brasiliensis, nativa da regiäo, cuja fase eeonomicamente mais significativa se estendeu de fins do século passado até por volta de 1920. Durante a Segunda Guerra, essa atividade economica experimenta novo florescimento, embora de menor irnportäncia. Culturalmente, o Cielo da Borracha funcionou também no sentido de imposicao de signos com repercussäo Ibrtemcnte idcologizantc, reforc,ando o sentimento de inferioridade cultural nativo em face da cul tura "de Ibra" e a dependéncia dos modelos e das influěncias culturais europcias. Con cent ran do suas atividades culturais nas cidades, esse fantástico ciclo representou a pressäo urbana sobre o imaginário social das grandes capitais conto Bělém c Manaus, repercutindo, alem disso, nas pequenas cidades e nas comunidades ribeirinhas. É uma fase em que se deu uma forte subordinaeäo aos padröes da cultura européia e que serviu como estimuladora do imaginário "de Ibra" sobre a regiäo. Uma obra exemplificativa clesse imaginário europeu sobre a Amazonia é o Ulme Fritzcaral, do cineasta alemäo W. Herzog, no qual rclata a saga fantástica do personagem-titulo, em busca do latex, na terra das Amazonas, tendo, até mesmo, submetido os temi-veis índios Jívaros a trabalhos de seu interesse. Ao lado dessa fertilizacäo do imaginário europeu sobre a Amazonia, a construc.äo de teatros de grande beleza arquitetónica como o Teatro da Paz, em Beiern, e o Teatro Amazonas, em Manaus, onde eram promovidas as representacöes das companhias líricas internacionais; a imitaeäo da moda européia nos tra-jes e nos costumes; a presence de artistas famosos, como o trágico italiano Giovanni Emmanuel que sc exibiram em temporadas artísticas; a divulgaeäo da música crudita pclos paclres-músicos; a apresentaeäo de obras cénicas de teatro ou de opera em lingua estrangcira; a noticia de lucros fabulosos do comércio da borracha, que permitia o exibicionismo de empresários que acendiam charutos com paj)cl-moeda de alto valor; todos esses elementos concorreram para enriquecer o imaginário relalivo a tuna época, mas, ao mesmo tempo ser-viram de base para urn processo comparativo depreciador da cultura local. Nele se originam concepcoes estigmatizadoras da cultura da origem cabocla, vista como inferior, primitiva e Si r í i »*»ccp raso o sentido rebaixado "folclórica", tcndo o folclore, nesse caso, u de eultura primána, superficial c puramente lud.ca. Pode-se ainda citar, no campo dos confíitos dos signos da eultura amazónica, o que vem ocorrendo com a crescente abragéncia da televisáo na regiao. Tudo comecou a partir da implantacao da primeira emissora, a TV Marajoara nos primórdios da década de 60, cm Bělém do Para. A TV Marajoara tinha seu alcance operational prat.camente res-trito a essa cidade, mas pertencia a uma rede nacionál de informacáo - Emissoras Associadas. Na primeira lase, alem dos "enlatados" americanos, a programacáo era preenchida por atividades artísticas locais, e o jornalismo ahmentava-se, predominantemente, das inťormacóes da vida no Estado, que concedia tempo para que os fatos considerados mais importantes fossem analisados e tivessem seguimen-to até a conclusao. A instalacáo de equipamentos de video-teipe nas emissoras de rede provocou a primeira inversáo das perspeetivas de atividade e influéncia da televisáo. Progressivamente, foram sendo desativados os setores de producáo de programas locais e substituídos pela veiculacáo f-íravaria em "tape" cle atividades artísticas de fora da regiao, produzidas nos dois maiores centros brasileiros: Rio de Janeiro e Sao Paulo. 0 processo dá origem a uma inversáo ideológica na avaliacao do gosto artístico, privilegiando como melhor e superior, a programacáo veiculada pelo videoteipe. E é claro que cram programacóes de atracnte efei-to visual, contando com a participacáo de artistas nacional-mente celebrados e realizadas com vultosos recursos finan-ceiros advindos cla forca crescente cla publicidade. A lase seguinte da expansáo do alcance cla televisáo na Amazónia íbi dellagrada pela transmissao e recepcao via satelite. A concentracao do mercado do trabalho artístico televisivo no Rio e em Sao Paulo aumentou. Concenlrava-se nas duas metrópoles brasileiras a producáo artístico-cultural da televisáo, enquanto que se diversificava nacionalmente o consumo de programacáo veiculada. Isso trouxe como consequéncia tam-bém a concentracao de investimentos na producáo centralizadas de programas, resultando num acentuado aperfeicoamento da qualidade, reforc,ando com isso sua repereussäo estético-cultu-ral, ao lado da quase supressäo das produces regionais. Paralelamentc, na regiäo amazônica, a abrangencia de alcan-ce de transrnissäo de TV foi-se ampliando, scja pela maior potencia dos transniissores instalados, scja pelas pequenas estaeöes repetidoras de sinais que sc espalliarani por dezenas de cidades, seja pela multiplicacäo de antenas parabólicas nas mais distantes localidades e coniunidades isoladas. H o caso, por exemplo, da implantacäo, no periodo entre 1989-1990, de antenas parabólicas em várias coniunidades isoladas, no municipio de Obidos. Algumas dessas coniunidades, constituidas por negros refugiados desde as antigas lugas da escravidäo, rnantiveram-se nuni tradicional e considerável isolamento. 0 ťascínio inercnte äs iniagens do video, a dimensäo política do sen alcance social, a intensidade per-suasiva de seu poder de comunicacäo säo novos ľatores simbólicos que vém conflitando com os símbolos da cullura do hörnern natural da regiäo, que näo é legitimada nas pro-gramacöes, das quais é sistematicamente cxcluída. Além disso, diferentemente do rádio, que é pura oralidade, a televisäo impóe o silcncio ao espeelador, ao mesmo tempo cm que sua imagem redimensiona urna comunicacäo social antes basicamente oralizada. Por meio dessa linguagem de imagens a cidade penetra persuasivamenle no campo, no imaginário das pessoas (jue antes representava expressäo de integracäo com a vida. Por outro lado, cm conseqücncia da permanente atividade da consciéncia imageante, ativa esse mesmo imaginário, por meio de signos que revel am pad roes de vida inacessíveis ao hörnern da regiäo. Pode-se enumerar a título de exemplo: a sofisticaeäo de costumes, o requinte de padröes artisticos e materials, a gradual dependencia do con-sumismo, o choijue de diľerentes padröes de moralidade, etc. Uma espécie de outra natureza que cle näo pode preencher com os antigos signos do seu devaneio, nem povoar de mitos, nem mais sc sentir imenso diante dela. Da qual ele participa como espectador intcrditado. Um estado agônico c|ue entäo se dellagra no ämago de sua cultura, uma iissura aberta em sua compreensäo do mundo. rj. A dominante udturcd- a. Dominante cultural - O imaginário poetizante e estetizador. É possivel identificar-se na cultura amazönica um imaginário poetizante estetizador governando o sistema de funcöes culturais, tendo como suporte material a natureza e desen-volvendo-se por meio da vaga atitude contemplativa propria do hörnern da regiäo em sua imersäo no devaneio. Urn deva-neio que atua como ligacäo entre o real e o irreal, exatamen-te eomo naquele percurso sem palavras de retorno á vida, pura eaminhada imaginante empreendida por Orfeu ao res-gatar Euridiee da outra margem do eterno. Uma atitude (pie traea o eaminho poético entre o mundo silencioso dos deuces e o mundo dus homens. E por intermédio dessa espécie de sjumato existeneial que o hörnern teogönico da Amazönia resgata para seu mundo de rios e florestas o sentido original de uma poesia da existen-cia. Devaju'io (|ue é uma verdadeira meditaeäo ontológica. É como se esses tranalhadores aas aguas ou da terra que povoam a regiäo assumissem uma atitude tropicalmente pla-tönica. Como se eles reemplumassem a alma com as asas da reeordaeäo, revoassem na incansável busca dessc oceano da heleza universal das primeiras origens da floresta, dos rios, do sol, da Ina, do logo, de uma outra realidade, da heia exis-téncia numa terra-sem-males (Nocoquém, na lingua tupi), semelhante ao mundo modelar da idéia primeira e da beleza de que Platäo tanto falara. Um mar anjuetipal de heleza represado do outro lado da floresta, dos rios e do eterno. Lá onde estavam e estäo todas as coisas, antes de cairem pelo buraco que sc abriu ou abre no ecu, vindo formar aqui o mundo dos homens, como o expressa o mito da origem dos Kaiapó. Ou, como, por exemplo, como vem expresso no mito da criaeäo do mundo, pelos índios Maué, do vale dos rios Andirá e Maués, no Estado do Amazonas, documentado por Nunes Pereira: "0 primeiro mundo Deus levou para o céu. Os que ficaram, os "encantados", Sucuris, Jibóias — resolve-ram fazer um mundo para eles. Entáo fizeram o Mundo do corpo da propria irmä — Unhä-mangaru. Se ela fieasse com a face voltada para o céu, nunca eles morreriam. Como iicou com a face voltada para a terra, ela nos está chamando sem pre para sua companhia. Ela disse aos irmaos: - Voces tne fízeram terra: está bem. Eu vos chamarci, pois, sempře para mim"33. Enfim, é como se os caboclos da Amazonia, nesse convívio evanescente com a natureza por via do imaginärio, ľossem objetivando sua imaginacäo criadora por meio de uma poética da existencia, que se revcla cm todos os diversos e extensos subespacos eulturais epic constituem a Amazonia. 0 caminhar silencioso e devaneante do homem amazônico, mais exatamente, do caboclo, faz pensar no caminhar imagi-nante de Orfeu, naquele retorno do inferno, ao resgatar a amada para a vida, pela forca da poesia. Provavelmente aquele primeiro poeta estava imerso na liberdade poética do imaginário, no devaneio em (iue celebrava sua paixáo triun-fante. Tcndo de se manter no silencio das palavras, Orfeu näo podia näo-pensar. Nessa condicáo, toda a forca da poesia teria de permanecer (ensa, na forma devaneante, ponpie, para Orfeu, a poesia era sua propria existencia. Sentimento ardoroso, que era para ele o único clo, único Laco, Única forca superior capaz de manté-lo no dominio do que lbe dava a forca de ser-o-ser-poela o viver no permanente estado de poesia, que constituiu a vida de alguns seres desde sempře e para sempře. O que estaria, naquele instante, idealizando Orfeu? ľode-se conjecturar que idealizasse uma espécie de poesia imanente, feita de palavras sem o peso da materia. Uma poética da leve-za das palavras, do devaneio. Essa leveza essential da eria-cäo, exempliľicada da literatura, e em favor da qual argu-menta Italo Calvino considerando-a qualidade primordial do estético, na primeira das Seis propostas para o proximo milě-m'o". Leveza poética que Orfeu transportou entre as duas margens do eterno. Leveza que, tantos séculos após, segundo Calvino, poderá ser encontrada no milénio proximo, se para eles os homens forem capazes de levá-la. Iissa leveza (pie, num outro ängulo da mesma perspectiva e na forma de uma poética do imaginário, é a que vem sendo trazida ate nossos dias pela soeiedade amazôniea, no seu devaneio inundado de poesia. Sem ignorar a natureza visivel em torno e da qual näo duvidam, os homens näo a percebem por uma visao dire-ta, objetiva, pragmática, pesada. Mas indiretamente, como se aquele denso mundo de noresta e água se transíormasse num vitral de transparéneia pura, por meio do qual uma outra rea-lidade é contemplada. Busca de leveza imanente numa reali-dade compacta e poderosa. As Anhangas (almas de demônio) vagam sobre as ondas dos rios; o rosto fulgurante da Iara flu-tua ä flor das águas; a mac do vento voa; o boto é aquele que danca e seduz com docAira e se delta com suavidade no corpo da mulher desejada; a assustadora pororoca resulta de meni-nos fazendo diabruras sobre as ondas enfurecidas dos rios. Calvino, referindo-se ao romance de Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, diz que o autor, para mostrar o peso cla vid;) como decorrente de todas as formas de opres-sáo, revela "a intrincada rede de constricöes públicas e priva-das acaba por aprisionar cada existencia em suas malhas cada vez mais cerradas"3'. Antes que essas "constricöes publics c privadas" se tornassem um fardo para cla, a cultura amazôniea fez a sua alma dessa leveza essencial ao modo como o caboclo desejou representar para si e nele situar-se, esse mundo que é sua existencia. A cuHura de um povo é fonte inesgotável de inspiraeäo, de símbolos, de experiéncias, de trabalho acumulado, de beleza, de Utopias e "a preservaeäo da memoria coletiva por um grupo, ainda que seja pequeno é uma verdadeira tábua de salv acao para toda a comunidade". Sao reflexöes do poeta e ensaísta Octávio Paz, ao estudar a poesia deste fím de sécu-lo"\ E, ainda mais: "Por cima de cada cultura, também por baixo, há idéias, crencas e costumes, que säo comuns a todos os membros da soeiedade. É o fundo - espiritual, mental, afe-tivo - de cada povo; e dessa maneira é o fundamento das artes, especialmente da poesia"". Na verdade é o fundamento näo só da poesia como da funělo estética de um modo geral, o fundamento das significacöes de todos os símbolos. É por essa razäo que, tendo as artes o caráter de signos e 86 configurando-se a funcäo estética por meio de símbolos, ambas - estética e arte - tem sens significados compreendi-dos no ambitu da cultura. Representam uma totalidade eons-tituida por uma forma e por um eonteúdo e näo podem ser reduzidos parcialmente, seja ä forma aparente, sej a ao seu eonteúdo. Forma e eonteúdo nao pödem ser tornados isola-damente como valores-fetiches. Säo partes fundantes do objeto estético, cuja significayäo decorrc da tensäo permanente entre elas e da obra integrada com a cultura na qua] ela se insere e sobre a qual repercute. E onde as significances do objeto estético estäo potencializadas. A funcäo estética é um dos componentes da plurivalente relacäo da coletividade humana com o mundo . De tal sorte que a propria compreensäo que o grupo social tem do que seja o estético predetermina a criaeäo objetiva das obras que produz. E, alem disso, influencia no processo formal de sua reeepcäo fruidora social c individual. A consciéncia coletiva, no ponto de vista de Mukarowsky, parece como algo integra-do a coletividade conereta que é sua portadora'". Apresentando-se dividida em camadas ou classes, ou em diferentes espacos cultura is, a comunidade, tornáda no senti-do amplo por Mukarowsky, constrói uma consciéncia coletiva que tem a ver com a percepcao estética ligada a essa dife-renciacao sócio-cultural. No relacionamento dessa consciéncia coletiva com a realidade exterior, ela se torna impregna-da da visao do mundo constituída em cada camada ou grupo social, seja no sentido intragrupal e social, seja na relacäo entre grupos. É o que ocorre, no caso da Amazonia, com a sociedade urbana e rural, como tambétn com a sociedade interiorana nativa e os grupos de migrantes que se transferem para a regiäo. Quando sc fala aqui de uma dominante poética e estetizan-te da cultura amazónica, claro está (pie näo se fala de pro-du^ao de "poemas", isto é, de uma estrutura de palavras arti-culadas em relacöes de tensäo signiflcantes, nem tampouco de poesia como qualidade inerentc ao poema, como produ-cäo artística que se ma ni festa no ámbito da linguagem. 87 Fala-se do poético e, mais pieosamentě de uma poetiea como estado coletivo reinocentado. Fala-se de um conjun-to de relacôes culturais com o mundo, reguladas pelo poético que emana do devaneio do imaginano em liberdade e cuja mediacäo é feita por meio das simbol.zacoes estétieas configuradas na mitologia, na arte, na v.sual.dade amazcV nieas. Sendo assim, e sob o ängulo que reconheee uma atmosféra estetizante predominando em algumas socieda-des cujas relacôes com a natureza propiciam isso, é possi-vel se conceber uma poética do imaginano amazônico. Um poética que se revela näo somente nas criacôes dos diver^ sos campos da arte, mas que também estabelece a forma de uma ética da relacôes dos homens entre si e com a natureza. Uma poética em acäo que se instaura no cerne de uma cultura governada pela funcäo estética do imaginário. h- A funcäo estética - chave para a compreensäo do imaginário. A funcäo estética é urna funcäo que isola, universalizan-do. Neste sentido ela se assemelha ao procedimento da lin-guagem cinematográfica conhecido como detalhe signifi-cante, em que a camera focaliza urna determinada parte da realidade contida na cena, concentrando atencäo sobre ela. Destaque que acontece ao mesmo tempo em que o detalhe passa a ser o todo da informacäo, porque, sendo ampliado fotograficamente, passa a ocupar a lotalidade da tela. h ocupa a funcäo de primeiro nível na linguagem fíl-mica. 0 detalhe, entäo, converte-se em totalidade, após ter sido isolado, redimensionado e refuncionalizado em rela-cáo ao íodo. Deixa de ser urna parte da parte (isto é, urna parte da cena) para ser parte estrutural do todo (ou scja, do filme). Como, dialeticamente, cada fotograma contém o filme cm potencia, o detalhe torna-se urna forma de totalidade: urna parte que é o todo. Esse redimensionamento result a da liberdade do pensamento estético, que ocorre nas circunstáncias do livre jogo entre a imaginacäo e o entendimenfo, conforme Kant ao analisar o belo, na sua Crítica da Faculdadc de Julgaŕ*. O alargamento do racio-cínio kantiano é pcrtinente, lcvando-se em conta a abran-géncia da funcäo estética, e a intensa esteticidade que emana de realidades como a da cultura amazônica. "A funcäo estética é, pais, muito mais do que algo que ľlutua na superfície das coisas e do mundo • como por vezes se pensa. Ela intervém de modo importante na vida da socie-dade e do indivíduo, tomando parte na gestäo das rclac/les — näo apenas passiva, mas também ativa — entre o indivíduo e a sociedade por um lado, e a realidade em cujo centre se situa, por outro"40. Säo muitas as teorias que tcntam explicar a esse nc i a do esté-tico. Algumas, por exemplo, mostram o belo como transcendencia, algo (]uc se realiza num piano além do material, como a maniľcstacäo de um espírito universal. Outras enfa-tizam a subjetividade (pie, embora afirmando o estético como criaeäo da consciéncia, negam qualquer dependéncia do estético äs propriedades dos objetos. E, ainda mais, há aque-las segundo as quais a realidade conteria a propria beleza, cm decorréncia de qualidadcs inerentes ao objeto representado, como a simetria, a proporcäo, o ritmo, "o numero de ouro", a grandeza, a medida. Einalmente, há aquelas que allrmam ser o valor estético algo decorrente do eonteúdo humano-social implícito nos objetos produzidos pelo hörnern, concep-cäo que procura näo vincular o valor estético exclusivamcn-te ao espírito ou aos objetos. 0 estético, no entanto, aparece em todas as teorias como uma realidade geradora, a seu modo, de uma relacäo peculiar que se processa nos indivíduos enquanto seres sociais. Dessa maneira, só será possível ao estético adquirir sentido, no ärnbito da relacäo entre os homens, com base na cultura. F^ortjue o valor estético resulta de uma relacäo do sensível que impregna a forma de contato do hörnern com a realidade, no conjunto de sua existencia como ser social. Conscqüentemente, a funcäo estética ocupa espaco j)iivile giado näo apenas na vida individual, como na de toda urna comunidade, e sua abrangéncia será maior do que a da arte propriamente dita. Nao ha tenomeno que possa ser unieamenle estético c nem fenomeno que seja permanente ou radicalmente näo-esteti-n 'oTrto? Jí nUida distin^ä0 ^ arte (objeto estético) e c^e o e rr1 °bjeto)' A ^existéncia de limits rigidos na mnre IPermite grande mobilidade verd^ W da exne-, \na°-est^ compreendem o vasto espa-7 h—. Humberto Eeo analisa este teitia realidade:omVeÄ os signiHem i flSlC° da substaneia de que säo fei" nificantes- o niv i V nWel da natur^a diferenciál dos sig" vários significaZ si*niflcantes denotados; o nível dos Mva psicolócicn, e!Jnotados- 0 nivel dos sistemas de expec-remetem: e a to de * e cientiflc°s a que os signos me sistema de relacöes ^ nWeis estabeleee-se como que um nweis fossem\lennWerUtUraÍS homologas> co™ se todos os geral que a tochw t 1S' e 0 sao> eom base num só código condicionados fJf1^"41- Mas todos esses níveis estäo ^ expressa e esS^^08 pela cuhura penso ao devaneio Pr°CeSS0, Ela atua num ambiente que reza amazönica oťerece Pr°PlCÍado Pela realidade que a natu-da regiäo esse irn/'° mem da terra. Para o näo-natu-também rundamentadof esla eivado de estereótipos, uma tornu, diferente d **** realidade> mas que expressani Amazónia,elesaparecemC°nCebMa' Na literatura legada ä exploradores em geral n teXt°S escritos Por naturalises, torios de lisealizaeäoeZ relatorios de viagem ou nos rela-söes como: impenetrabilir^^^o, por meio de expres-nhecido no mato adentrn k da regiäo> lemor« do desC°~ ní> verde, paraíso em eri ^ terras-do-sem-fim, infer-lilhlríntiea orografia Sem densidade verde da floresta, ,Tg,ao inóspita, exótiea l T C°nolaco^ que a considerate re#äo se relaciona com I, da dvili^acäo, o hörnern da rente de uma forma distint ,rťalldade natural que lhe é ap* nado tH'1,)s sentidos, atento aqUdeS' ° h°mem segue ßo ° 3 tudo' sensível aos odores, äs luzes, aos sons; as estrelas, as margens, as nuvens, aos ven-tos; ás cores, aos brilhos, á epiderme dos rios; ao tempo e ao mistério das coisas. Estabelece com a realidade exterior uma relacáo guiada pelo sensivel, pelo essencial aparcnte, pela forma exterior como contcúdo exprcssivo do objeto estetrza-do, nas circunstancias em que "uma mensagem, sem pretender ser obra de arte (complexo sistema em que as funcoes estéticas se realizam em todos os nívcis), já aparece onenta-da para a funcao estética"". Mukarowsky chama atencao para o fato de que há também uma proporcáo diferente diante do estético nas diferentes culturas. "Assim, por exemplo, a runcáo estética do ato de comer é evidentemente mais forte na Franta que cm nosso Pais; a funcao estética do vestuário no nosso meio urbano e mais forte nas mulheres que nos homens, e, no entanto, essa diferenca náo se faz sentir, por vezeš, no meio rural em rela-9ao aos trajes regionais."" Ainda argumentando em favor da ampla e abrangente presenca do estético, afírma: "A natureza por si propria é um fenómeno extra-artístico enquanto uao é transformada pela acáo do homem movido de aía esta-tico. Apesar disso, a paisagcm pode produzir o mesmo eleito que uma obra de arte"". Nas relacóes dos homens com o mundo, a cnfatizacao da fun^áo estética é dada segundo peculiaridades culturais e espaeo-temporais, que assumem as mais diversas caractens-fes de uma situacao para outra ou de um lugar para outro. Uma cidade como Paris, por exemplo, desperta profunda sen-sa<;ao estetizante e provoca a prevaléncia da tuncáo este íca na coletividade, em muito maior grau do que outras cida< es de igual porte ou estrutura. 0 imaginário social sobre aiis vem sendo cultivado por meio de aspectos que acentuaiain, na convivéncia plurisecular com a cidade, os ^"^los uma pereně esteticidade que está presente na plasticida< t < cenários an,uitetónicos, no teatro de seres imaginanos transngurados pelo imaginário, sejam históncos ou sej Kterários, que percorrem as ruas, as margens do !>ena, qu nabitam palácios, ocultam-se nas casas, ou vagam nas ig ^ •ías. Fstá também presente na atmosféra cnada pela ciu. tpma do cinema e do teatro; na surrealidade dos como mcsclando arte, históna e cotidiano; n- ematizacoes poéticas. MafFesoli lembra que ha corres-□ondéncia baudelaireana, participate mágica porque é esta comunháo com a natureza da eidade que vai produzir, poueo a pouco, esta ambiéncia estética que, volens nolens, eu sou levado a partilhar com os outros"" A penumbra do invcrno, as noite longas, 0 claro-escuro sao também elementos que ťavorecem essa espécie de forma visí-vel de devaneio, algo que, também aí se aproxima do sfumáto, enquanto elcmento propieiador da emergencia deste tipo de irnaginário com funcao estética e poetizante. Pode-se dizer que há, no Sena, na ilha de Saint Louis, na Torre de Nesle, nas torres e subterráneos de Notre Dame, na Bastille, em Mont mart re, em Saint Germain-dés-Prés, no Louvre, etc., verdadeiras encantarias parisienses. [sto é, lugares onde habitam os encantados de uma singular mitopoética, e que convertem Paris numa eidade a urn so tempo real e imaginá-ria, seja gracas aos meus subterráneos, lugares de antigos pesadelos, seja nas margens mitologizadas do Sena. Sao incontáveis os elementos que nutrem esse realimaginário de Paris: o claro-escuro das ruas estreitas da Cite, as caves de delicias dos vinhos, o mistério velado pelas malvissimas con i nas nas janelas. Com a transparéncia cintilante de todos esses ángulos, lapi-da-se o irnaginário parisiense — poético c j)oetizante — e se estabelece uma peculiar relacao das pessoas com a cida-de, por via privilegiada do sensivel, num ambiente em que o irnaginário da fun^áo estetizante triunfa sobre a celebrada e normativa racionalidade da cultura francesa. Dai por que Paris se torna o paraiso do flaneur, dos espacos ahertos e dos interiores. Walter Benjamin constata (|ue, por intermédio de Baudelaire "Paris torna-se objeto de j)oesia lirica""'. Assim, para eada pessoa que por ela passa, a eidade se torna objeto de eonsagracáo estética do irnaginário, pura delícia do olhar. Milharcs de pessoas já experimentaram essa sensacáo ao eontemplarern a Cidade Luz. No entanto, há um momento especíneo que pode ser considerado simbólico da interpretacao do imaginário parisiense com o imaginário amazônico. Foi naquele longínquo 12 de abril de 1613, quando alguns indios da Amazónia, trazidos pclo padres capuchinhos, can-tando, daneando, vestidos com suas tangas, adornados de pluma-gens, agitando na mäo seus maracás, para sérem rece-bidos pelo Rei Henri IV, caminharam pclo fauborg Saint-Honoré e cntraram no Louvre. 0 que teriam pensado aqueles Tupinambás vindos da floresta, ao contemplar o rei e a sua corte, ao passarem peius jardins e palácios, tudo täo "irreal" e inimaginável para elesľ Ao mesmo tempo, o que teriam imaginado o rei e a corte prescnte de táo estranhas criaturas, quase desnudas, vindas de urna regiäo (|ue para muitos pode-ria ser o proprio território da fantasia? Na soeiedade amazôniea, é pelos sentidos atentos ä natureza magnífíca e exuberante, que o envolve, que o hörnern se afir-ma no mundo objetivo e é por meio deles que aproľunda o conhecimento de si mesmo. Essa ľorma de vivéncia, por sua vez, desenvolve e ativa sua sensibilidadc estética. Os objetos säo percebidos na plenitude de sna ľorma concreto-sensível, forma de uniäo do individuu com a realidade total da vida, numa experiéncia individual que se socializa pela rnitologia, pela criacäo artística e pela visualidade. Fxperiéncia sensorial que é essencial ä vida amazôniea, pois representa quali-dade complementar ä expressäo dos sentimentos e idéias, concorrendo para criar urna unidade cultural no seio de urna soeiedade geograílcamente dispersa. Esse comportamento vai satisfazendo as necessidades mais íntimas do espírito e alar-gando suas potencialidades, n um processo cm que os homens seguem evoluindo, renovando-se, transformando-se. c. A vocac/ao mitológica do imaginário Verdadeiramente, a experiéncia estética rej)rcsenta urna forma sui generis de experiéncia humana. Urna experiéncia íntima, ampla e profunda, rica de sensibilidadc e emocäo, que teste munha urna vivéncia singular c que revela urna capacidade intensa de criacäo de lormas. Urna experiéncia por dentro, acima e superadora do cotidiano, que é marcada por vaga c contemplativa atitude de prazer em face da realidade. Na Amazonia seus mitos, suas invencöes no ämbito da visua-lidade, sua produeäo artistica säo verdades de crenca eoletiva, säo objetos estéticos legitimados socialmente, cujos signifiea-dos reformám a poetizaeäo da cultura da qual säo originados. A propria cultura amazônica os legitima e os institui enquan-to fantasias aceitas como verdades. Assim, nesse mundo, os hotnens, por meio da cultura, passam a usufruir a confianca de estar em seu mundo, expressando uma linguagem poética que vem diretamente da alma, que faz a alma sc extravasal" como uma fonte incessante, que permitc a essa alma nativa se des-cobrir em um mundo que é seu e no qual funda a compreen-säo da vida e da natureza nas quais ela está inserida. 0 imaginário amazônico tem vocacäo alegórica. Busca a esséneia por meio da aparéncia, numa atitude que laz lem-brar as reflexöes de Gilbert Durand, a propósito da relacäo entre imaginário e conheeimento: "O imaginário apareceu-nos, ao longo deste estudo, como a marca de uma vocacäo antológica"". Há, nas alegorias produzidas pelo imaginário na cultura amazônica, uma permanente tentativa de com-preender o hörnern, o amor, a vida, a morte, o trabalho e a natureza. Para compreender-se a Amazônia e a experiéncia humana nela acumulada, seu humanismo, deve-se, portanto, levar em conta seu imaginário social. Todo verdadeiro humanismo deve ŕundar-se além das conquistas da ciéncia. Porque: "Há urna faculdade do possível que é necessário estudar por meios diferentes da introspeceao bergsoniana (por exemplo), sempre suspeiía de regressäo"'". I. essa faculdade do possível que liga o devaneio ao poema, que liga a cultura ä poesia. Na realidade amazônica o mundo físico lem limites sfumatos, fundidos ou coníundidos com o supra-real, daí por que nela hornens e deuses caminham juntos pela floresta e juntos navegam sobre os rios. Situam-se no impreciso limite entre aquilo que é e aquilo cjue poderia ser, nesse sfumato poetizante que interpenetra o real e o imaginário. "Em tais concepeôes, o maravilhoso se deľinia por ?4 sua atmosféra abjetiva: podia-se fazer uma mistura entre a Virgem e os Santos, as fadas, les lutins, os espíritos, os i'an-tasmas, os encantamentos, os autömatos e as máquinas, mesmo os elementos verdadeiramente reais (geralmente dos autömatos hidráulicos), que confundiam o espírito por sen caráter extraordinário e seu esplendor."49 As producöes da mitologia regional mantém também a con-vivéncia entre o maravilhoso pagao e o maravilhoso eristäo, ä semelhanca do que oeorre n'CAs Lusiadas, do épico portu-gués Luis de Camöes, obra que se tornou um dos componen-tes básicos na formacäo da cultura brasileira. De certa maneira, é o sfiimato entre o real e o surreal na verdade his-tórica poetizada que constitui o maravilhoso épico, ele-mcnto prcsente na rnaioria das epopéias e que estabelece o confronto entre esses dois mundos postos em articulacäo. Porque "os deuses däo existéncia concreta e subjetiva äs for-cas afirmativamente substanciais", e "ä relacäo ideal verdadeiramente poética" da epopéia e esta "identidade de ho-mens e deuses", que une no mesmo ser (deus), a essencia da forca cósmica com um caráter""'. Essa identidade entre deuses e hornens f'az parte da cultura amazönica, conferindo existencia substancial a uma realidade monumental e plastica, que articula o conjunto de i'uncöes, organizando-as sob o império da dominante estética. Na introdueäo de Figures mytiques et visage de Voeuvre (Figuras Miticas c Rosto da Obra), Gilbert Durand, analisan-do a relacäo entre mito e obra de arte, levanta a seguinte (juestäo: "Contrariamente ao epie ensina toda uma psicologia, ao menos bicentenäria, näo há um corte entre cenários sig-nificativos das antigas mitologias e o gerenciamento moderno das narrativas culturais: literatura, belas-artes, ideologias e histórias..."'•' Permanece nessa relacäo muito mais do tpie sc tem procurado acreditar, persiste uma "continuidade entre o imaginário mítico e a positividade histórica"'"'. A propria ciéncia, na iluminante ])erce|)cäo de Bachelard, certilicou-se de (jue a razäo cientiflca também pressente e eonduz a ver-dades, buscando-as na ordern imensa dos souhos e da cons-ciéncia poética. Pode-se dizer que o caboclo - espécie de Hesiodo tropical -no exercício de sua teogonia cotidiana, ao valorizar esponta-neamente esse mundo imaginal cheio de representacoes, parece acreditar no realismo primordial das imagens. Para o caboclo, plantador e pescador de símbolos, a imagem parece estar constituída de uma forca propria, criadora de uma rea-lidade instauradora de novos mundos, capaz de ultrapassar o simples campo de escombros da memoria. O amor, por exemplo, pode estar expresso pela Tambatajá, uma planta que bro-tou no lugar onde um amoroso índio macuxi entcrrou sua india bem-amada; também é o amor um golílnho encantado, o Boto, incorrigível sedutor, que ora aparece sob a forma humana e vestido de branco, ora volta ao rio sob a forma de animal; pode ainda ser a aparicáo fatal de um rosto femini-no ä Hor das águas profundas do rio, a Uiara, ser que atrai os jovens fascinados por ela, para as águas profundas do amor e da mořte. Quer dizer, incontáveis imagens, como a do amor, por exemplo, váo se instalando no vasto mundo em derredor, tornando-o significante e sensível e aparente. Aos encantados no mundo amazönico foi reservado um locus proprio: as encantarias, espécie de limbo onde as entidades dessa diversificada teogonia estariam reunidas. Segundo Napoleäo Figueiredo, os encantados cultuados pelas regiöes populäres "säo entidades do mundo sobrenatural da rciigio-sidade popular amazonica, que habitant a floresta e o Fundo dos rios e que protegem, näo somente os homens, como tarn-hem as comunidades em que os mesmos vivem; venerados sob as formas mais diversas garantem a prosperidade, Saude, felicidade a quem as reverenda'"'1. As encantarias, lugar onde moram os encantados - incluindo ai também aqueles que nao sáo objeto de culto religioso - estariam localizadas aeima das nuvens e abaixo do ecu, como também nas flores-tas e no fundo dos rios. Embora sob uma nomenclatura indi-gena que perdura até hoje, nesse "panteäo caboclo, muitas dessas entidades podem ser obscurecidas através de um termo genérico muito apropriado: sáo os encantados"54. Ao longo da história social da Amazonia, esses encantados foram-se constituindo numa espécie de vetor mitológico que se destaca estética mentě e que insere no sistema do universo cultural amazónico como elemento que a um só tempo cxpli-ca e encobre a realidade. Foram eles compondo, ora em maior, ora cm menor intensi-dade, a propria imagem do homem e suas circunstáncias de trocas com a vida. Foram rcvclando as relacóes sociais por meio dessas imagens simbólieas. Foram unificando regional-mente — apesar das distáncias e solidóes - uma concepcáo de mundo e de vida, em que o maravilhoso provoca o sfii-mato, interligando real e surreal. Foram construindo, por via do imaginário, o império da dominantě estética na dinámica dessa cultura. Uma poética que emana do compaitilhamento do mesmo espaco de experiencia, numa singular cadcia de subjetividades, que iníluencia um estilo de vida, cm que o sensível e a forma aparente sáo instáncias privilegiadas e no qual predomina a ambiguidade do sistema de expectativas de recepcao (]ue caracteriza o estético. O estético aparece aí como princípio uniflcador, pois "é próprio da aistesis repou-sar sobre uma experiencia compartilhada"". No mundo amazónico, essa experiencia oriunda de um imaginário formador veio historieamente sendo impregnada no sentido da magia, da crenca, do caráter do belo, da epifania. Todos participam de uma espécie de convivéncia partilhada: ocupam lugar privilegiado na producáo cultural, cspccial-mente artística o evidencia, seja na de caráter dito popular, seja na de caráter considerado crudito, na realidade ribciri-nha ou rural, e mesmo na cidade. Uma convivéncia partilhada, "uniáo orgiástica", quando ocorre algo semelhante ao que a "mística erótica o evidencia, a fusáo com o grande todo ou a comunháo com a natureza é uma constante do orgiasmo social"56. E, ainda pode ser acrcsccntado a respeito do universo como totalidade que "...o cosmo náo é cocrcntc; o caos c o aleatório também o compóem. A vida social, alem das diversas legitimacóes e racionalizacócs com (pie costumamos orná-la, é atravessada de um extremo ao outro por este aleatório, esta causalidade"'''. Sáo reilexňes adequadas aos aspec-tos da cultura amazónica, na compreensáo de seus mitos, orgiasticaniente encarnados de alegria, humor, desejo, amor, ódio e paixäo. Modalidades de uma fantasia incorporada na producäo artístiea da cultura. A natureza está guardada pelo Curupira, entidade sobrenatural que aparece na forma de um menino de pés voltados para trás; o inhambu, pássaro de longo e penetrante assovio, revoa anunciando a má sortě para quem anda por perto; o Poromina-Minare, índio qUc migra para a cidade nas asas de um pássaro grande e que, entre outras peripécias, exibe seu falus dcscomunal; as Anhangas - almas de demonios — que habitam as águas e a selva, infernizam a vida das pobrcs criaturas que caem sob sua maldieäo; o Jurupari, que é o proprio demónio, assom-bra os que se atravessam em suas jornadas malignas; a Boiúna ou cobra-grande é um animal mitico que se transfor-ma em navio iluminado, possui podereš sobrenaturais, sur-preende e espanta os navegantes em noites escuras ou tor-mentosas; o Boto, (jue é na verdadc um belo rapaz, encanta-do no animal e que representa a sedueäo, o poder mágico da sexualidade; a Uiara, mulher cuja beleza se revela ä Hor das águas, atraindo os mocos com seu encantamento, fazendo-os mergulhar no rio em sua busca. Assim, a rcvelacäo do real ocorre por meio de uma convergencia de sensibilidades, num campo em que o sfumato interliga o real e o surreal, propi-ciando a emergéncia dessa poética do imaginário. Provavel-mente, a prój)ria identidade diversa da cultura amazonica, a intersubjetividade que a percorre como a correnteza de um rio, está marcada por situates em que "a realidade cotidia-na é experimentada como a de urn mundo subjctivo"',,,, nas relacöes dos homens com a sua realidade. Essa rcvelacáo vein garantindo o evidenciamento da funcäo estética no Ambito tlas várias atitudes do natural da terra diante da vida. Vem sendo a centelha da "intuicäo", a "alavanca metodologiea", de que fa 1 a Maffesoli''', pois é certo que "o conhecimcnto näo se limita á ciéncia". Essa alavanca metodologiea, que é a intuicäo, torna-se via privilegiada para sc comprcender rea-lidades como a da cultura, na qual a intuicäo parccc ser a forma de perceber as situacöes, idealizadas ou näo, dessa existéncia descontinuamente compartilhada, que valoriza a intuicäo como caminho ontológico para o desvelamento do mundo. (J desvelamento de urn mundo encantado estetica-mente na cultura. 1.4- A foriMAfyLö dus d/)l4ÜHAKt& a. Estímulos á eonsciéncia imaginante 0 estudo do univcrso milológico produzido pela realidade imaginária, o univcrso dos encantados dos rios e das matas, tem sido um dos ángulos mais fecund os para relacionar, compreender e explicar, na Amazonia, a relacao dos liomens entre si e com a natureza. Regiäo de silencios, recortada pcla emaranhada variedade dos rios na paisagem verde da flores-1a, a Amazónia torna-se um fertilíssimo campo de germina-cäo para as producöes do imaginário do hörnern, na fruicáo, no eompartilhamento, na intcrvcncäo ou na explicacao siin-bólica de sua realidade. A "eonsciéncia imaginante"'" do hörnern diante dessa realidade vive em estado permanentemente operatório. A relacáo entre o hörnern e a natureza se faz de modo familiar e, ao mesmo tempo, perpassada de estranhamento. Estranha-mento no sentido brechtiano, como procedimento estético que ele incorporou a eneenacáo teatral, na qual estáo envol-vidos no mesmo espaco os que estranham (aqueles que per-cebem algo de novo, novas iníbrmacdes na realidade envol-vente, sem se deixar levar pela redundáncia monótona do déjá vu), e o minulo estranho (isto é, a realidade percebida ambiguamente, como permanente novidade, que revela pela forma as cintilaedes de seu conteúdo). Uma relacao que a todos envolve num estado cenico permanente de tensöes sig-niílcantes. Uma relacao de permanente descoberta diante das coisas, que impede que a familiarizacäo gerada pelo hábit o inihn essa voluptuosa e permanente percepcao da beleza nelas existentes. Desenvolve-se aí uma percepcao estética (|ue se objetiva em form as que apelam aos sentidos. Muitas sáo as formas naturais carregadas de esteticidade, que atraem e retem a atencáo em si mesmas, sej a pela con figura-cáo estável de formas e cores, presentes nos rios e matas, sej a pelos sons da natureza, sej a pela rit mica coreografia de pás-saros e peixes. Um cxemplo das inúmeras situacöes nas quais é possível se perceber uma ordern estética e, ao mesmo tempo, urna esti-mulacäo ao imaginário por meio das formas imantadas da beleza atraindo as atencöes do olhar, nesse dualismo da con-vivéncia versus estranhamento, pode ser dado pelo espetá-culo do pouso das garcas na colina em frente ä eidade de Monte Alegre, no Médio Amazonas paraense. Por situar-se numa ärea elevada em relacäo ao nivel do rio, situaeäo rara nas localidades ribeirinhas da Amazônia, a eidade permite que se possa contemplar, em frente, o braco do Amazonas, que banha a eidade; em seguida, o conjunto de pequenas ilbas j)lanas e Verdes; mais ao longe, o proprio rio Amazonas; e, ainda mais distante, a outra margem do grande rio confun-dindo-se com a linha do horizonte. Todos os dias, ao cair da tarde, milhares de garcas de alvas penas, que vem revoando de todas as partes da regiäo, encenam e reencenarn o espetá-culo do "pouso das garcas" na colina em frente ä eidade. As pessoas que se reúnem para contemplar aquele espetáculo encantam-se com os acasos de beleza plastica que se väo for-mando no céu e com o belo efeito Visual que se vai produzin-do, na medida em que a verde colina vai sendo coberta pelas brancas penas dos pássaros que pousam. É uma contcmpla^äo prazerosa e gratuita, pura delicia de ver aquelas formas de beleza fazendo-se e desfazendo-se no céu e na colina. Outro cxemplo é o da piracema — momento em que peixes de várias espécies buseam, instintivamente, as nascentes dos rios para a desova. Passam aos milhares, contra a correnteza, saltando sobre corredeiras, um poueo aeima do nivel das águas, como se fossem corpos de baile, numa simétrica coreografia em busca das nascentes dos rios. Ou, ainda para citar mais um excmplo, nas incontáveis tonalidades de verde, na textúra de folhas e ílores, no efeito plástico produzido por árvores que pareeem pinturas no mural em contraluz dos horizontes. Roger Caillois percebeu na natureza uma ordenaeäo rcsultan-te de formas produzidas por "acidente"'1. list es aeidentes estétieos, além de tornarem a natureza um materiál propício ao devaneio e ä criaeäo artística, säo tam-bém, eles mesmos, portadores de qualidades formais cuja 100 aparéncia lhes confere esteticidade. Sao, ao mesmo tempo, meios e materials da natureza, possibilidades autonomas do estético, uma vez que podem rcunir por acidente, cm si rnes-mos, formas que despertam o sentimento estético de fruieäo. Uma esteticidade que, na Amazonia, aeontece também moti-vada pelo devaneio, no "ritmo de vida fracionada e múl-tipla, indefinidamente enraizada na possibilidade de uma evasäo na imensidao amazonica"62. Hssa permutaeäo aeidental de formas da natureza, que produz incessantemente um accident estético, tem hoje, gracas ao desenvolvimento cientíílco e teenológico, seus novos carnpos de aplicacao nessa outra natureza eriada pelo hörnern, em que säo produzidos ec|uivalentes acidentes esté-ticos (vide a computacao gráfica, os museus permutacionais, a composicao musical computadorizada, etc). Para o caboclo, o vale amazónico näo se apresenta "imperturbavelmente identico a si mesmo", como se arrisca cm caracterizá-lo Via-na Moog", c nem apresenta a "monotonia do sublime" assi-nalada por Mario de Andrade, em sua obra de viagens O Turista Aprcndiz: "0 Amazonas prova decisivamente que a monotonia é um dos elementos mais grandiosos do sublime"'1. Mas é o proprio Mario de Andrade que, na mesma obra de viagem apaixonada pela paisagem amazonica, reforca o sentido do desmedido imaginal: "A foz do Amazonas é uma dessas grandezas täo grandiosas que ultrapassam as percep-cöes llsiológicas do hörnern"65. No que diz respeito ä monotonia, o visitante e o turista, no contato cireunstancial com a terra, podem ter essa impressao. Mas o nativo da regiäo, esse, pelo incessante diálogo com o meio, vai percebendo as sutilezas diferenciadoras, as peculiaridades tipificadoras, o lugar onde se instala a diferenca no que pode parecer igual. Ao mesmo tempo, ao processar essa leitura reeriadora da rea-lidade, vai instaurando uma realidade ideal. Uma rcalidade ideal, nascida no devaneio por onde o maginário se expande e o qual menos do que ensimesmamento é busca do outro, é silenciosa expressao dialogal, ultrapassamento da solidäo. Näo é devaneio para si. P devaneio para o outro. Devaneio que precisa ser comunicado, cpie completa sen mundo por meio da cultura. Mundo diante do qual cle também |)assa a 101 scntir-se grande, uma vez que o compreende como um todo, o recria, o torna habitado. "Num mundo que nasce dele, o homem pode tornar-se tudo."66 A Amazonia parece ser um grande signo modulado pelo tempo. Preocupacáo permanente, o tempo parece ocupar o lugar do próprio espaco. Traduz uma forma de cxisténcia profunda ligada ao sentido de origem pereně das eoisas. Para via jar, para plantar, para pescar e coletar, para o nascer e o morrer, 0 tempo serve de referéncia, enquanto que o espaco se torna difuso. 0 homem sente-se situado em um espaco, do qual tem a idéia, mas nao a mcdida. Contrariamente, o tempo delimita, serve de referéncia e integra todas as eoisas. E enquanto o avanco da economia de mercado, que vem alterando as estruturas sociais e provocando a expulsáo do homem das areas rurais, que foram secularmentc sen habitat, nao destruir esses heideggerianos "caminhos que nao levam a nenhum lugar" (por onde segue o pensamento e as atitudes do ser devaneante na pura delícia das eoisas), os produtos culturais desse homem continuaráo encontrando uma relacáo funcional com a sociedade. Nao apenas isso, mas ocupando funcao relevante nela. "No Amazonas, em geral, sucede isto: o observador errante que lbe percorre a bacia em busca de variados aspectos sente, ao cabo de cen-tenas de milhas, a impressao de circular em um itinerário fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias ou bar-reiras ou ilhas, e as mesmas florestas e igapós estirando-se a perder de vista pelos horizontes vazios; o observador imóvel que lhe estacione as margens, sobressalteia-se, intermitentemente, diante de transfigura^oes inopinadas. Os cenários invariáveis no espaco transmudam-se no tempo. Diante do homem errante, a natureza é estável; e aos olhos do homem sedenteário que planeja submeté-la á estabilidade das culturas, aparece espantosamente revolta e volúvel, surpreendendo-o, assaltando-o por vezeš, quase sempře afugentando-o e espavorindo-o."'*'' Nas interpretaebes da Amazonia, em que convivem em harmonia o caráter cientííico, o tom imj)ressionista e as observances sobre o cot id ia no, com muita freqíiéncia transparece, wz sob a ótica de quern contempla, uma espéeie de maravilha-mento em face do que é, ou parece ser, desmedidamente grande, ou belo, ou forte. E a questäo aponta para a no^äo de sublime, apresentada por Kant, na Critica do Juizo: "Denominamos sublime o que é pura e simplesmente grande". "0 fato pelo qual alguma eoisa seja uma grandeza [quantum] pode ser reeonbeeido a partir da eoisa ela-mcsma, sem modos de comparacäo com outras (...)"''". Segundo Kant, a determina^ao subjetiva dos objetos da natureza, de sua grandeza, cstá impregnada de uma atitude segundo a ordern estética, pois "toda avaliacäo da grandeza dos objetos da natureza é uma definic, äo de ordern estética (isto é, subjetivamente e näo objetivamente detcrminada)"1'. A Amazönia é percebida por quem a contempla, como uma grandeza pura: é grande, é enorme, é terra-do-scm-fim. Sua conccp^äo cstá associada geralmente a outros qualificativos: rica, incomparavel, bela, misteriosa, inferno, paraíso. Algo que, embora proximo, cstá distantc, como um outro mundo. Locus do dcvaneio, cujas medidas fisicas dcsaparecem e cujos contornos sc tornam sfumatos, gramas a um livre pacto entre imaginário c a realidade. Assimila-se sensivelmente, mais que numericamente ou cientificamente, ao meio de uma grandeza sem contornos, cujo valor reside exatamente ncssa forma imaginal de grandeza. Idéia de grandeza que internalize uma vaga infinidadc de valorcs contidos ncssa realidade cjue o imaginário transfigura. Essa imensidäo das 1crras-do-scm-fim parece dar á imaginacao a idéia de incapacidade de representá-la como um todo delimi-tado, assirn como estabelece uma relacäo de próximo-distante (visualizável e ao mesmo tempo inalcancável plenamentc). Essas condicöes säo instauradoras de um resplendor aurático que envolve a idéia de Amazónia. 0 proprio homem da terra, ao penetrar no emaranhado dos rios - que se interligam, se estreitam, sc alargam, mudam de cores e profuudidades, exi-bem e escondem perigos — dessc mundo que parece näo ter Inn, se dá conta do real enquanto uma vaga forma de imensidäo que se confunde com o imaginal. Aprecnde a realidade amazónica por meio da aparéncia formal e sensivcl, que funciona sob roß a moldura da dominante poético-estetizante do imaginário que a auratiza. "Eldorado para uns, inferno verde para outros; paraíso para os que a veern eomo objeto de estudos, tortura para quantos a tomam como objeto de eonquista ou ambicäo, a Amazönia näo tern sido outra coisa, como rcalidade historic ca, social e economica, senäo o agigantado cenário dc uma das mais ingentes experiéncias tropicais do hörnern."m É claro que a percepc^o dessa forma grandiosa de aparéncia significante se tornou possível gracas ä formaeäo de uma espécie de cultura do imaginário pré-figuradora, constitutiva e aproximativa, e que está presente náo apenas no viver do caboclo, mas também nas mais sintéticas explicates cienti-ficas: "Ela é um baixo plato, formando imenso anfiteatro entre o Planalto Central Brasileiro, o Planalto Guiano e as vertentes orientals dos Andes"71. Orlando Valverde referc-se ai ä Amazönia como anfiteatro. É nitida a tendéncia estéti-zante, valorizante da dimensäo sensível do objeto analisado. Raimundo Moraes também "estetizou" deste modo a planície e publieou o volume intitulado Anfiteatro Amazonico. 0 anfiteatro, desde os antigos gregos é o espaco onde as pes-soas estäo reunidas para ver o imaginário objetivado na rcalidade, por meio da arte. Um locus que uric o imaginante e o mundo imaginal. É o lugar onde o imaginário se expressa por meio de símbolos estéticos coneretamente propostos a defla-grar significances, num livre jogo real e irreal. A associac.äo da Amazönia com anfiteatro provoca uma cadeia de signifi-cacöes que náo é casual; que certamente ocorre pelo Fato de tratar-se de uma regiäo que é recebida sob constante apelo do estético, palco onde se desenrola o espetáculo de uma espéeie de "liccáo acontecendo". Há, portanto, uma constante fertilizacáo do imaginário aurá-tico, mesmo nos trabalhos científicos mais atuais, brotando nos intervalos da precisäo objetiva dos dados. A grandeza, a monumentalidade, o absoluto, a unicidade säo adejetivos -parämetros que aparecem naturalmente nas reilexöes. Como se a Amazonia estimulasse sobre si mesma uma refle-xao imaginante. Sáo multiplas revelacöes dessa espécie de 104 imanencia do sublime, inspiradas pela natureza, que impreg-nam todos os setores do conhccimcnto, quando sc aplicam ao estudo dessa tcrra-sem-malcs ou tcrra-do-sem-fim. b. Assimilacäo da idéia de real-irreal Muitos foram os fatores que enriqucceram a imagem real-ima-ginária pela qual a Amazônia é reeebida. Ao longo dos primei-ros séculos do processo de desenvolvimento brasileiro c mesmo neste século até a década de 70, a Amazônia permane-ceu na condicao difusa de lugar remoto, desconhecido e impe-netrável. Por eondi^ôcs geográficas, pela diliculdade de aces-so, por ligacoes com a Európa, cla se foi constituindo numa espécie de segredo que teceu o invólucro de urna postura ima-ginal diante dela. Pode-se lembrar aproximativamente o con-eeito de Simmel a respeito do segredo: "(...) o segredo c um momento de individualizacím de primeira importäneia, e com este duplo papel típico - das relacöes sociais ľortemente per-sonalizadas - autorizam e exigem o segredo numa larga medi-da, e ao contrario, isso engendra e amplia esta diľerenciacäo"". Envoi vida numa cireunstancial condicao equivalente a do segredo, a regiäo foi gerando cogitacôes cm torno dela. "A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civi-lizacao distante."" Urna impressao de um modo geral vaga, difusa, propiciadora do devaneio, advinda näo apenas das dis-táncias geográficas indeílnidas, como também decorrentes de riquezas, de eldo-rados supostos ou constatados. No presente, a mina de ouro de Serra Pelada (cuja explora^äo serviria, segundo os gover-nos militares para saldar a dívida externa brasileira e relirar o pais da dependéncia finaneeira externa) ou a montanha de minério de Carajás (18 bilhôes de toneladas de reserva ca-pazes de abastecer o mereado internacionál por 400 anos) servem para conílnnar as idealiza<;öes e multiplicá-las. Duas expressôes, largamente difundidas, caracterizam cssa perple xidade diante do segredo c do mistério que envolveram, e num certo sentido ainda cnvolvem, a Amazônia: "paraíso tropical" e "inferno verde". Nada mais alegórico: inferno e paraíso. Ou tudo, ou nada. Pormas de totalidade: paraíso, 10$ interno. Sempře o todo imedível. 0 todo produzido pělo imaginário ardente ativado e ativador. Uma tendencia para o maravilhoso proprio de uma poética do épico, que situa a regiäo dentro da ótica da monumentalidade plastica propria da emocäo e do estado imaginal que funde o mito na realidade histórica e constitui caráter estetizador nas epopeias. É importante ter sempre em vista que, na Amazônia, rio e floresta constituem tracos individualizadores que abrigam dois tipos antropogenéticos vinculados äs atividades provenientes das relacöes com a floresta e o rio: o trabalho nas águas e o trabalho na terra. Atividades motivadoras do devaneio. Também importa lcmbrar que uma das marcantes caracteristi-cas políticas e geográtlcas de sua história tem sido a distribui-näo dispersa do hörnern, dos grupos e dos núcleos populacio-nais. Apesar dessa ocupacäo populacional dispersa, mas abrangente, houve historicamente uma espécie de socializacäo geográfica, um partilhamento do mesmo chäo, um comparti-Ihamento de emocöes diante da natureza. Como se toda essa grandeza e extensäo viesse atravessada por urna funcäo miti-ca que a unificasse e lhe conferisse identidade, por meio dessa surpreendente interferencia unificadora da funcäo mitica na realidade de que lala Maffesoli74. Interferencia unificadora que permite o sentimento profundo de uma vaga participa^äo social de sentimento comum, em que a grandeza próxima-dis-tante dos rios e ílorestas serve de elemento mediador de uma outra relacäo mais ampla com o maravilhoso, cuja conexäo é dada pelas criacöes do imaginário. Foi-se formando uma espécie de fraternidade cósmica, no sentido de que o hörnern de qualquer lugar da Amazônia sente-se ligado ä regiäo como um todo, á sua soeiedade, a um além-de-tudo que est á sob meu olhar, por via desse universo imaginal estetizador e povoado de formas estetizadas. Como se estivesse identificado sob a aeäo dessa funcäo mitica transversal e transubstanciadora do mundo dado em urn outro idealizado, em que a existencia se realiza num piano estetizado superior e de remotas e recorren-tes origens. Urn cosmo significante nascido no deslumbra-mento devaneante do hörnern, na convivéncia com ventos, estrelas, águas, matas, chuvas, tempos concretos, vagas distán-cias, encantamentos e desencantamentos do mundo. Desde os 106 tempos harmônicos em que "os naturais da regiäo considera-vam a terra como parte indissociávcl de suas existéneias (...)"''. 0 que também sc percebc, no lipo de convivéncia história do hörnern com a Amazônia, é que diante da presenca mais do que real de rios e llorestas, mesmo mantendo com florestas e os rios täo estreita relacäo de vida e trabalho, a dimensäo do cotidiano comportou sempre a leveza do eléreo, a sutileza de cncontrar maravilhas nas coisas. Isso vem permitindo ä vida cultural amazonica a incorporacäo sutil e constante do sen-tido da imensidäo única, mistcriosa e auratizadora e, ao mesmo tempo, ricamente signiílcante, numa relacäo estetiza-da täo dominante, que muitas vezeš se converte numa ética de relacöes sociais. Uma ética que decorre da sensibilidade das vivéncias comuns ou pulsacóes de coexisténcia, reflexo da penetrante presenca do imaginário coin ľuncäo estético-poetizante no cotidiano da vida social. É sob diversas condicóes propiciadoras que o natural da Amazônia cria um mundo pelo qual sc cria como ser amazónico. Urna dessas condicóes é a de sua solidäo contempla-tiva. Uma solidäo desejosa de comunicacjio e que busca ultrapassar as circunstäncias que a envolvem ou propiciam. Solidäo significativa e signiHcante, iluminada de sinais do outro e para o outro. Säo tcstemunhos desse lipo de vi venčia os caboclos que pcrcorrcm os rios amazônicos, cm cmbar-cacóes de portes e destinos diversos, navegando ein noites escuríssimas, quando cada um desses homens se sente numa espécie de envolvimento cósmico, diante do universo e de si mesmo. A escuridäo obseurece todos os contornos e horizontes. A navegacäo é norteada pela posi^äo dos astros no céu, ou por alguns sinais identificativos percebidos nas margens: urna casa iluminada por lamparinas, um aglo-merado de casas de madeira sobre palafitas conectadas ao rio por um trapiche, a localizacäo estratégica de uma ilha, o ponto de ľuga de ángulos ľormados pela copa de urna árvore grande e a estrela ďalva, etc. As noites eseuras diľicultam a visibilidade e transľormam os rios em perigosos caminhos para (juem por eles navega, 107 principalmente durante as tempestades - frcquentes nos gran-des rios. Quando alguma embarcacäo segue viagem levada pelas velas ou pelo vento ou pelos pequenos motores, e comum que os tripulantes emitam, de tempo em tempo, palavras ou eurtas frases musicalmente marcadas, fendendo o sileneio, na melopeia de uma saudacäo no eseuro, dando sinais da presence humana nas margens do rio. Ato eontinuo, ao longo daque-las margens de rio, brilha na extremidade da ponte em frente äs easas, ou mesmo nas janelas, a chama de alguma eandeia. Progressivamente väo surgindo outras luzes que väo multipli-cando os pontos de luz, eomo se uma constelacäo de solidarie-dade fosse brilhando em ambas as margens dos rios estreitos ou numa so margem, quando säo de largos rios. Tudo vai aconte-cendo no mesmo ritmo em que as palavras ou frases väo bro-tando eomo se fossem chamas invisiveis na escura e silenciosa solidäo. Repetidas palavras ou frases eurtas väo se dcsdobran-do naquela melopeia que se expande no ar da noite, na mesma progressäo das luzes que se väo aeendendo. Säo os moradores das margens dos rios que, numa eorrente de afeti-vidade, procuram ajudar os navegantes a seguir o rumo eerto, dando-lhes maior seguranea ou simplesmente querem mani-lestar estar vivos, seres pertencentes a urn mesmo universo soeial. Nessas Horas, quase näo hä diferencas entre o eeu e as äguas, as margens e a floresta. Entre o tempo e a eternidade. Cada chama de luz torna-se palavra ardente, nesse diälogo que aeontece na solidäo. E tudo fica cheio de imagens, eomo se a imaginaeäo explodisse eomo fogos de artificio. I a surrealidade de que fala Bachelard, que faz brotar das pro-lundezas do ser urn poetico que tern sentido ontologico. Em meio ao imenso sileneio que tudo envolve, esta surrealidade vai despertando realidades na realidade. Cria novos modos de ver a realidade objetiva, eomo se ela cstivesse tambem conver-tida em uma realidade imaginal. Eaz emergir o inesperado poetizante na paisagem. Como, por exemplo, na lenda que envolve a eidade de Abaetetuba - eidade situada ä margem do rio Tocantins - que aparece na cren^a popular como sendo a provisöria aparencia da verdadeira eidade, impregnada de beleza e harmonia social, que existiria sob a forma encantada na ilha da Paeoea, em frente ä eidade hoje existente. 108 Assim, o horném cria uma nova natureza, enquanto se eria como seu habitante. Mergulhando em seu minulo para ultra-passá-lo, percebc mistérios nas profundezas das águas ou na superfície. Um exemplo disso é o fenómeno da pororoca (trés volumosas e violentas ondas que percorrem alguns rios, em algumas épocas do ano, que avancam da íbz para a nascen-te, ťazcndo nauťragar embarcacoes e alagando as margcns por onde vai passando. Muitas eidades tiveram ou tem sido "devoradas" pela pororoea, que vai provocando o desmoro-namento progressivo das ruas mais próximas das margens, obrigando, muitas vezeš, a transferéncia da populacäo para novo núcleo urbano, como aconteceu, por exemplo, com Säo Domingos do Capim, no Pará. No olhar da populacäo ribeiri-nha, as ondas da pororoca säo corcéis indomáveis cavalga-dos por trés meninos negros. Incansável doador de sentido, cm um mundo insaciável de sentido, assim se foi constituindo o hörnern amazönico. Constituindo-se em um modo de ser (pie redcscobre e trans-vive a existéncia sempře dentro de si. A cultura de cada pais ou de eada povo tern sua maneira propria de realizar de forma original a experiéncia universal da vida, näo só no conjunto das diferentes atitudcs do indi-viduo ou do grupo, como no ambito das circunstáncias humanas que os envolvem. Situacöcs essas nas quais, mesmo em condicoes de isolamento, como no caso da Amazónia até os anos 70, sob a acäo da transvcrsalidade penetrante da funcäo mitica, relacionam funcionalmente a experiéncia individual com essa totalidadc (pie constitui a realizacäo plena da experiéncia humana. Até mesmo na Amazónia, que representa urn contexto em que a prcsenca de crencas e costumes indígenas é muito evidente, a visäo epic a maior parle da populacäo rural e das pequenas cida des tem do mundo apresenta-se unificada por um repertório do imaginário revelado pela mitologia, pela visualidade estctizada ou pela cria^ao artistica, (pie säo evidéncias de uma cultura configurada por experiéncias humanas plena-mente realizadas, tendo como dinámica o imaginário estéti-co-poctizante na expressáo cultural. 10<) Todas as histórias dos povos tém um comeco ľabuloso como analisa Giambatista Vico, na parte relativa "ao saber poético, na obra La science nouvelle (A Ciéneia Nova)"'. Algumas des-sas histórias, como é o caso da história amazônica, ainda estäo mergulhadas nesse estado de eterno comeco, conviven-do ainda os homens com seres que habitam o outro lado do mundo visível. Constata-se a existencia de urna evanescente lógica poética, de um povo ainda guiado pela memoria, pela palavra oralizada, pelo maravilhamento diante da realidade cotidiana. Näo se trata aqui de urna "antiguidade antiga", mas de urna "antiguidade atual", ou melhor, de urna "atuali-/.acäo de atualidadc" na qual o que rege a vida da cultura é o pensamento poético. Escreve Vico que, "segundo os primei-ros homens, a poesia foi primeiro sublime, c nem a filosofia, nem as artes poéticas e erítieas que surgiram mais tarde, näo puderam superá-la, nem mesmo igualá-la"7'. Na Amazônia as pessoas ainda véem seus deuses, convivem com seus mitos, personificam suas idéias e as coisas que admi-ram. A vida social ainda permanece impregnada do espírito da infancia, no sentido de encantar-se com a expli-cacäo poetiza-da e alegórica das coisas. Procuram explicar o que näo conhe-cem, descobrindo o mundo pelo estranha-mento, alimentando o desejo de conhecer e desvendar o sen-tido das coisas cm seu redor. Explicam os ľilhos ilegítimos pela paternidade do boto; os meandros que na floresta fa-zem os homens se perderem pela acäo do eurupira; as tem-pestades pela reacäo enraivecida da mäe-do-vento, etc". Torque näo somente eles imaginavam (jue as causas de to-das as coisas personiíicavam suas próprias idéias íias coisas que eles admiravam."78 A vida social articula-se cm torno de urna linguagem poética anterior aos tempos his-tóricos, que llui täo naturalmente como os iluxos que tém as águas de um regato. Sem recender ä vulgaridade, essa linguagem tem uma sublimidade simples e de ľácil compreensäo, fazendo lembrar que "a primeira poesia foi uma faculdade natural desses antigos homens que éram conduzidos pelos 110 sentidos, pela imaginacäo c pela ignoräncia das causas daqui-lo que eles näo podiam compreender"79. Na vida amazönica a mitologia reaparece como a linguagem propria da fabula que ilui como produto de uma Faculdade natural, levada pelos sentidos, pela imaginacäo e pela desco-berta das coisas. Nesse procedimento de uma verdadeira metafisica poética o impossível torna-se possível, o inerível apresenta-se crivel, o sobrenatural resulta em natural. Quer dizer, um estado poético que evola do devaneio de livre expansäo do imaginário. Um estado envolvente, espécie de devaneio cósmico, segundo expressäo de Bachelard para analisar o devaneio propício ä poesia"". Sob esse estado é que o hörnern da Amazonia vai criando e habitando sen mundo, eonstruindo uma realidade condizente com seu desejo, como se vivesse no processo de uma poética em aeäo. Uma poética operada pelo sentido imaginal que confere ä cultura uma leveza que se vai tornando cada vez mais insustentável, atingi-da pelas alteracoes que vém mudando a soeiedade e a nature-za amazönica, principalmente a partirdo ínicio da década de 70. Com a forca de ininterrupta correnteza no leito do grande rio das relacöes sociais, (pie o hörnern da Amazónia foi eonstruindo uma profunda forma de compreensao da vida que permitiu (ate recentemente) uma peculiar unidade, urn equi-librio da vida e da cultura, ao longo dos 5 milhöes knť que integram a regiao. Uma vida que historicamente desdobrou-se cm v.árias épocas: "Assim, há a idade da droga do sertäo, do descimento do índio, da borracha, do plantar pra comer, do plantar pra vender, da grilagem, da Kita pela terra, da expansäo agropecuária, da violéncia do capital""'. A partir do im'cio da década de 70, no con junto das crises brasileiras agravadas ou criadas durante o periodo da ditadu-ra militar iniciado em 1964, (pie dominou vinte e um anos da história recente do Brasil, muitas mudancas ocorreram e ace-leraram urn processo de alteracoes em curso na Amazonia: os equivocos das políticas públicas para a regiao, decididas fora do concurso de seu líderes e das populacöes regionais; o con-ceito e(juivocado de "terra vazia", despovoando ideologica-mente a regiäo, por ignorar a presenca dos habitantes da /// řloresta; o desumanismo de uma atonita política de migracäo interregional e interna, no primeiro caso motivando conflitos no eampo e, no segundo, transferindo a crise para a cidade; a problemática vinda de trabalhadorcs de outras regiöes, sem adaptacäo cultural e sem reais oportunidades e garantias de trabalho; a implantacäo conflituosa de grandes projetos agropecuários, hidrelétricos e de mineracäo, visto que supri-mem as ťormas de vida e trabalho anteriores e expulsam os habitantes das terras que secularmente ocuparam; a desinte-gracao do meio do ensino de Primeiro e Segundo Graus; a informacäo subordinada a grandes redes nacionais de corau-nicacäo, sem praticamente nenhuma geracäo de programas com base na cultura local; o desequilíbrio provocado pela migracäo interna do campo para a cidade; a condenacäo dis-farcada das tribos indígenas ao extermínio; a criacäo de uma Zona Franca em Manaus e a instalacäo de um pólo de indús-trias montadoras de produtos de indústrias estrangeiras, sem qualquer vinculacäo com as peculiaridades regionais e seus produtos. Ao analisar esse problema do desenvolvimento do Pstado e suas repcrcussöes sociais e económicas, Violeta Loureiro esdarecc que o "primeiro aspecto que se quer acen-tuar diz rcspeito ä questäo do padräo de vida das populacöes amazönicas que, sob a acäo do modelo de desenvolvimento atual, vem decaindo gradativamente; de uma condicäo original de vida frugal, simples e rústica, o hörnern amazönico se ve transplantado para uma situacäo de miséria urbana""2. A desestruturacäo rápida e quase scmpre violenta do mundo rural e ribeirinho em curso na Amazonia, que é o espaco social privilegiado dessa forma de cultura cm que se instala o imaginário propiciador do poético, e a transformacäo da so-ciedadc amazönica em sociedade predominantemente urbana tcnderiam a provocar um reordenamento das funcöes da cultura, hierarquizando-as também numa ordern diferente da-quela que até hoje a constituia? E a poética do imaginário, ainda hoje viva na cultura da Amazonia, estará definitiva-mente afetada por essas questöes? A devastacäo da floresta constitui-se nurn dos mais graves prenúncios de modificacäo nesse ethos cultural. Robert 11Z Harison, estudando a simbologia da íloresta no imaginário ocidental, constata que a propria tradicäo crista da cultura ocidental tem propiciado uma forma de hostilidade ä flores-ta, vendo nela simbologias de perigos, de perdicao, de breu das almas. Segundo Harison, "pode-se acentuar cíne o início da Divina Comédia contém, talvez, a primeira ocorréncia literária tle um motivo que se tornaria, cm seguida, um arquétipo: o metlo da íloresta"'". Conccpcôcs desse tipo foram transportatlas pela colonizacao européia para o Brasil, propiciando uma radical mudanca na maneira simples, afe-tiva, prazerosa com que a íloresta era encaratla pelos natu-rais. A íloresta foi pouco a pouco, em sermöes, poemas, tex-tt)s didáticos, identificada com a bestialidade, a queda, a perdicao, a desordem bruta. Também essas coneepc.Öes transparecem nas estratégias tle construcao tlas cidades construídas no periodo colonial. As ruas se estreitam, fecham e protegem a cidade da mata, quantlo para cla se dirigem, ou quando com ela limitám — e se alargam e abrem quando se aproximam dos rios. A Biblia está cheia de uma simbologia que revela temores da natureza. É exemplar o episótlio tle Moisés obrigando o sen povo a queimar os bosques sagratlos dos cultos pagäos. Os próprios eremitas buscam na Íloresta um lugar de purgacao. Foi da Íloresta que veio a madeira para a preparaeäo tla cruz onde foi sacrificado Jesus Cristt). E, retornando-se ä reľlexäo de Harison, podemos destacar que: "A floresta obscura näo constitui um refúgio contra a injustica da lei, mas represents a alegória do pecado eristao em geral"'". Desde o fim tla década tle 60, tem-se assistido na Amazonia a uma progressiva quebra tla "bela harmonia" das relaeöes dos homens entre si e com a natureza, para lembrar a mar-cante expressao de Hegel, em sua Estética, identifícando a ruptúra de passagem do pensa mento mítico para a logica filosófica e racional, na cultura grega. No entanto, apesar da rapidez e da radicalidade tlessa mudanca, muitas regiöes da Amazonia, como, |)or exemplo, o Marajó, o Metl it) Amazonas, t) Baixt) Tocantins, nt) caso tlo Pará, a maior parcela do Psiado do Amapá, de Rorainia e tlo Acre, vivcm ainda no campo cultunil represcntativo da predominäncia dcssa prä-tica do devaneio. 0 Estado de Rondönia, entretanto, ja cs-taria quase todo eomprometido, diante da incideneia do pro-eesso de devastacäo das matas pelas madeireiras e da inten-sa migracao de pessoas vindas do Sul do Brasil. Os primeiros mantem-se, ainda, como exemplos de uma cultura marcada pela dominante de um imaginärio poetico, estetizador. 114 NOTAS BIBLIOGRÄFICAS 1 CAMÖES, Luiz Vaz de. Rimas. Obras completas. Rio de Janeiro, Companhia Aguilar, 1963, p. 270. 2 SHELLEY, Percy Bysshe. Defense de la poesie. Paris, La üeliranle, 1980, p, 11. (LA.) 3 SHELLEY, Percy Bysshe, op. eil., 1980, p. 15. 4 STEVENSON, Charles. Qu'est-ce qu'un poeme? Esthetique et poetique. Org. par Gennele, Gerard. Paris, Seuil, 1992, p.157. (T.A.) 5 Cite par STEVENSON, Charles, op. eil., 1992, p. 159. 6 STEVENSON, Charles, op. cit., 1992, p. 164. 7 STEVENSON, Charles, op. cit., 1992, p. 198. 8 KR ISTEVA, Julia. I m revolution de la language poetique. Paris, Seuil, 1974, p. Gl 3. (T.A.) 9 KR ISTEVA, Julia, op. cit., 1974, p. 613. 10 KRISTEVA, Julia, op. cit., 1974, p. 613. 11 MUKAROWSKY, Jan. A obra poetica conio um conjunto de valores. Eseritos sobre estetica c semiötica da arte. Lisboa, Estampa, 1981, p.169. 12 JAKOBSON, Roman. La dominante. Huit questions de poetique. Paris, Seuil, 1977, p. 80. (T.A.) 13 JAKOBSON, Roman, op. cit., 1977, p. 80. 14 Revistci da Universidade federal do Para, iv 1973, p. 10. 15 NUNES, Benedito. Revista da Universidade Federal do Para. 1973, p. 9. 115 16 DA CUNHA, Euclides, in Inferno Verde (Prefácio) de Rangel, Alberto. Tonis, Typografia Arrauettlia, 1927, p.12. 17 DA CUNHA, Ľuelides, op. cit., 1927, p. 21. 18 DA CUNHA, Ľuelides, op. cit., 1927, p.21. 19 MALFESOLl, Michael. La tranfiguration du politique. Paris, Grasset, 1992, p. 23. (T.A.) 20 M0RĽ1RA, Eidorfe. Amazônia - Conceito e Paisagem. Rio de Janeiro, Agencia da SPVEA, 1960, p. 9. 21 BENJAMIN, Walter. Berits francais. Trad. Jose Lino Grünnewald, et. alli. Paris, Gallimard, 1991, Os Pcnsadores. SP, Ahril, 1980, p. 9. 22 MAFFESOLI, Michael. Les temps des tribus. Paris, Biblio, 1991, p. 20. 23 OLIVEIRA, Jose Coutinho de. Folclore Amazônico. Beiern, Graf. Sä o Jose, 1951, p. 10. 24 PERE1RA, Nunes. Moronguetä - Um Decameron Indigena. Rio de Janeiro, Civilizacäo Brasileira, 1967, p. 463. 25 PERLIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 464. 26 PLRL1RA, Nunes, op. cit., 1967, p. 481. 27 BOSI, Alfredo. História Coneisa da Literatúra. Säo Paulo, Cultrix, 1991, p. 398. 28 BOSI, Alfredo, op. cit., 1991, p. 400. 29 BOSI, Alfredo, oj), eil., 1991, p. 418. iO BOSI, Alfredo, op. cit., 1991, p. 418. 31 KANT, Emmanuel. Critique de la faculté. Trad. A.J.J Delamarre. Paris, Gallimard, 1985, p. 148. 32 BOSI, Alfredo. Dialetica da Colonizagäo. Säo Paulo, Companhia da Letras, 1992, p. 38. 33 PEREIRA, Nuncs, op. cit., 1967, p. 480. 34 CALVINO, Kalo. Seis Propostas Para o Pröximo Milenio. Säo Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 15. (T.A.) 35 CALVINO, Italo, op. cit., 1991, p. 19. 36 PAZ, Octävio. La otra voz. Barcelona, Seix Barrai, 1990, p. 73. (T.A.) 37 PAZ, Octävio, op. cit., 1980, p. 73. 38 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 36. 39 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 146. 40 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 38. 41 ECO, Umberto. A Estratura Ausente. Perspectiva, 1971, p. 35. 42 ECO, Umberto, op. cit., 1971, p. 55. 43 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 24. 44 MUKAROWSKY, Jan. op. cit., 1981, p. 33. 45 MAFFESOLI, Michael, op. cit., 1992, p. 258. 46 BENJAMIN, Walter. Paris, capitalv du XlXemc siege, in op. cit., 1991, p. 301. 47 DURAND, Gilbert. Les estruetures anthropologiques de Vimaginaire. Paris, Dunod, 1994. As Estruturas Antropo-ldgicas do Imaginärio. Lisboa, Presenc.a, 1989. 48 DURAND, Gilbert, op. cit., 1994, p. 16. 11/ 49 SAURIAU, Etienne. Vocabulaire ďesthétique. Paris, Puf, 1990, p. 999. 50 Citation de Hegel par SAURIAU, Etienne, op. cit., 1990, p. 677. 51 DURAND, Gilbert. Figures mythiques et visage de l'oeiirrv. Paris, Berg International, 1979, p. 11. (T.A.) 52 DURAND, Gilbert, op. cit., 1979, p. 11. 53 F1GUE1RED0, Napoleäo. Ás Plantas e as Encantados da Cidade Grande. Note 2. Bělém, Biblioteca do Museu Ernüio Goeldi, 1988. Mimeogr. 54 SALLES, Vicente. A Música e o Tempo no Grao-Parú. Bělém, Conselho Estadual de Cultura, 1990, p. 24. 55 MAEFESOLI, Michael. 0 Paradigma Estctico, in Revista clu SPHAN, Rio de Janeiro, (Secretaria do Patrimönio Histórico e Artístico Nacionál), Vol. 21, p. 115/116. 56 MAFFESOLI, Michael. Lombre de Dionysos. Trad. Aluízio Ramos Trinta. Paris, Biblio, 1991. A Sombra de Dioniso, Rj, Graad, 1985, p. 63. 57 MAFFESOLI, Michael, op. cit., 1991, p. 65 58 .IAUSS, U.R.. Pour une esfhétique de la reception. Paris. Gallimard, 1978, p. 292. 59 MAFFESOLI, Michael. 0 Paradigma Estético, in op. cit., p. 113. 60 SARTRE, Jean-Paul. Vimaginaire. Paris, Folio, 1986, p. 21. 61 CAILLOIS, Roger. Esthétique généralisée. Paris, Gallimard, 1976, p. 29. 62 GRENAND, Francoise et Pierre. Lidentitc' insaciablc - Les caboelos amazoniens. Etudes Rurales. Paris, Editions de 118 LEcole de Hauls Etudes en Seienses Sociales, 1990, p. 35. (T.A.) 63 MOOG, Viana. Ciclo do Onto Negro. Porto Alegre, Livraria Globo, 1936, p. 27. 64 AN DRA DE, Mario de. O Turista Aprendiz. Säo Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 61. 65 ANDRADE, Mario, op. cit., 1977, p. 61. 66 Cité sen reference par PUEL, Gaston, et rcproduit par Bachelard dans La poétique de reverie, Paris, Quadridge/Puf, 1967, p. 9. 67 DA CUNHA, Euclides. Á Margem da História. Sáo Paulo, Lello-Brasileira, 1967, p. 23. 68 KANT, Emmanuel, op. cit., 1985, p. 186. 69 KANT, Emmanuel, op. cit., 1985, p. 191. 70 SALLES, Vicente, op. cit., 1990, p. 30. 71 VALVERDE, Orlando. A Amazonia e o Meio Ambiente. listudos e Problemas Amazónicos. Belem, Seduc/Idesp, 1989, p. 58. 72 S1MMEL, Georges. Seeret et socictés secretes. Trad. Sabine Cornille, et Philippe Ivernel. Paris, Circe, 1991, p. 123. 73 DA CUNHA, Euclides, op. cit., 1967, p. 20. 74 MAEEESOLI, Michael. Les temps des tribus. Paris, Biblio, 1991, p. 39. 75 LOUREIRO, Violeta. Amazonia - Estado Hörnern Natureza. Belem, Cejup, 1992, p. 11. 76 VICO, Giambatista. La science nouvelle. Trad. Christine Trivulzio. Paris, Gallimard, 1993, p. 121. (T.A.) 77 VICO, Giambatista, op. cit., 1993, p. 136. 78 VICO, Giambatista, op. cit., 1993, j). 131. 79 VICO, Giambatista, op. cit., 1993, p. 131, 80 BACHELARD, Gaston. La poétique de ia reverie. Paris, Quadridge/Puf, 1960, p. 152. 81 1ANN1, Octávio. A Luta Pela Terra. Pctrópolis, Vozes, 1978, p. 230. 82 LOUREIRO, Violeta. op. cit., 1992, p. 336. 83 HARISON, Robert. Fôrets. Trad. Florence Naugrette Paris, Flammarion, 1992, p. 130. (T.A.) 84 HARISON, Robert, op. cit., 1992, p. 129. 1Z0 z./. A intuäJidAÁes (UMjhz.ÔKÍab Há, dentre os elementos formadorcs da visualidade amazôni-ca e propiciadores de urna Funcäo estétiea, o gosto pela sime-tria. Em seu estudo Iísthctique c Sociológie, (Estética e Sociológia), Simmeljá realca a estreita relacao genética existente entre a simetria e a estetizac^äo. "No comeco de todos os motivos estétieos, há a simetria."1 E o que se pereebe como aspecto com})onente e constitutivo da visualidade amazôni-ca construída na eultura. Encontra-se nela o gosto e a expressäo de urna simetria que muitas vezes traduz a delimi-taeäo entre campos gcométrieos simpliílcados, como na cera-mica e nos brinquedos populäres ou nos limites de espacos outre as tonalidades pictoriais relacionados em tensäo harmonica, como se pode observar na pintura naif, na ceramica marajoara e tapajônica; ou, ainda, na ľachada das casas e na pintura signiíicante dos barcos. 0 interessante é que, em todos os casos, as próprias coisas — í'achadas de casas resi-denciais ou de comércio, barcos, vestuário tornam-se suportes de cores. Säo como espacos pictóricos a serem incansavelmente preenchidos por um procedimento e(juiva-lente áquele que marca a obsessäo de narrar em Homero, e que, nesta análise, poderemos por analógia denominar de horror ao vazio visual. Tudo se j)assa como se a natureza das coisas fosse sendo rcelaborada sob o prisnia de suas cores básicas. A impressäo que se tem é de que o homeni, diante da exuberaneia tropical, do seu teatro de cores, míma ansia de diferenca, buscasse a síntese, a reducäo ao essencial, ao elemento universal. Urna delieada operacäo de adorno epie parece constituir-se ornamento que materializa a fantasia. Longe de um estilo simplesmente decorativo, trata-se da con-ilguracäo de uma certa solenidade visual, que con fere a tudo umu vaga intemporalidade. E essa solenidade visual ocorre 12.1 sem que se perca a simplicidade cxpressiva resultante de urna atitude pela qual o homem rivaliza com o luxo visual osteň tado pela natureza. "Parece - como observa Raimundo Moraes - que há ainda um sentido druístico do sacerdotc celta, na remota visäo panteista e adoradora da floresta das Gálias, guiando e iluminando o homem amazônico."; Assim, ao longo do tempo, sobre cssa natureza lida pelo eaboclo como um livro do mundo, progressivamente foi sendo acres-centada urna visualidade, como iluminuras do imaginário cm suas sucessivas páginas do cotidiano. Procuraremos dcscrever e interpretar alguns aspectos desse livro amazônieo lido pelo eaboclo no decorrer de sens exer-cícios espirituais de contemplacäo diária. Em seguida, seräo estudados alguns exemplos dos acréscimos constitutivos de contribuicäo do homem a essa visualidade - algumas das iluminuras do imaginário inseritas na cultura amazônica. a. A paisagem mágica A paisagem amazônica, composta de rios, floresta e deva-ncio, é contemplada pelo eaboclo como urna dupla realidade: imediata e mediata. A imediata, de ťuncäo material, lógica, objetiva. A mediata, de funcäo mágica, encantatória, estéti-ca. A superposicäo dessas duas realidades se dá ä semelhan 9a do que acontece com um vitral atravessado pela luz: ora o olhar se fixa nas cores e formas; ora na propria luz que os atravessa; ora, simultaneamente nos dois. Na interpretácie e interdependéncia entre a paisagem imediata e mediata atua o devaneio. Um devaneio que estabelece os contornos do sfu-mato estetizante e poetizador da visualidade. Dessa maneira. o homem contempla urna realidade imediata iluminácia pela realidade mediata. "Se a duracäo já náo é o dado imediato da substancia ontológica, se o tempo já náo é a condicäo a priori de todos os fenômenos em geral - urna vez que o símbo lo Ihe escapa -, apenas resta atribuir ao espaco o ser sense rium geral da funcäo fantástica."' 0 olhar näo se confina no <|ue vé. 0 olhar, através do que vé, vé o que näo vé. [sto c 1ZZ contempla uma realidade visual que ultrapassa os scntidos práticos e penetra numa outra margem do real. Tudo se passa como naquela espéeie de manifestacäo da consciéncia de maravilhamento de que fala Bachelard, em La poétique de la reverie*. (Poética do Devaneio) Essa outra margem em que aporta o imaginário, (jue em outra realidade, pertencente ao eampo literário, Ibi pereebida, ontológiea e poeticamente, pelo romancista brasileiro Guimaräes Rosa, no expressivo eonto A terceira margem do r i o. Uma das mais belas incorporacôes da paisagem amazônica na cul tura, por via da expressäo simbólica de uma obra lite-rária, é realizada por Daleídio Jurandir romancista que entroniza a paisagem amazônica das eidades emolduradas pela paisagem, na literatura brasileira moderna, por meio de um conjunto de romances telúricos que constituem o ciclo do romance do Extremo Norte. No romance Marajó, ao longo do andamento sinfônico e sufocante da paixäo de Missunga por Alaíde, a paisagem, alem da magia, erotiza-se , conťunde-sc, enrosca-se libidinosa eom a "eunhantä" Alaíde - o arisco objeto do desejo de Missunga — e dilui-se espermosamente aos olhos desse "voyer" caboelo do Marajó. 'Alaíde, debaixo duns eajueiros meninos que comecam a dar Hor, eoloeava-se, ora de frente ora de eostas, no tronco do cajueiro mais alto. Desíblhava e mordia as flores do cajueiro nuni desleixo de cunhä mesmo nova. Pulava, se enganehava no tronco, ro^ando-se toda para firmar a perná no galho mais baixo e vergar o ramo mais llexível até o chao de folhas. De vez em quando, um ai: mordida de formiga. Com o ramo que balan-cava cla ľazia adeus a Missunga e soltava um riso. Colada ao tronco, enganchada no galho, meio sumida entre as tblhas, balancando o ramo, Alaíde parecia possuída j)elo cajueiro. I.evou-a uma noite para o igarapé. As íblhas pingavam luar como sereno. A maré vinha vagarosa do rio, parecia descer na lua cheia. Irouxera Alaíde, como uma lllha das águas lnancas, os cahelos de prata, o corpo de j)eixe, o cheiro de aninga.'"' Assim, em face de uma experiencia desse nível, o caboelo vai íbrmando sua paisagem e sua eullura, ampliando e eulminando u processo de eria^ao. Um processo cultural 1Z$ sem que se perca a simplicidade expressiva resultante de urna atitude pela qual o homem rivaliza com o luxo visual osteň-tado pela natureza. "Parece - como observa Raimundo Moraes - que há ainda um sentido druístico do saeerdotc celta, na remota visäo panteista e adoradora da floresta das Gálias, guiando e iluminando o homem amazônico."' Assim, ao longo do tempo, sobre essa natureza lida pel o caboclo como um livro do mundo, progressivamente foi sendo acres -centada urna visualidade, como iluminuras do imaginário em suas sucessivas páginas do cotidiano. Procuraremos descrever e interpretar alguns aspeetos desse livro amazônico lido pelo caboclo no decorrer de seus exer-cícios espirituais de contemplacäo diária. Em seguida, seräo estudados alguns exemplos dos acréscimos constitutivos dc contribui^äo do homem a essa visualidade - algunias das iluminuras do imaginário inscritas na cultura amazônica. a. A paisagem mágica A paisagem amazônica, composta de rios, iloresta e deva-neio, é contemplada pelo caboclo como urna dupla realidade; imediata e mediata. A imediata, de funelo material, lógica. objetiva. A mediata, de funelo mágica, encantatória, estéti-ca. A superposicäo dessas duas rcalidades se dá ä semellnin ca do que acontece com um vitral atravessado pela luz: ora o olhar se fixa nas cores e formas; ora na propria luz que os atravessa; ora, simultaneamente nos dois. Na interpretacäo c interdependéncia entre a paisagem imediata e mediata atua o devaneio. Um devaneio que estabelece os contornos do sfu-maío estetizante e poetizador da visualidade. Dessa mancira. o homem contempla urna realidade imediata iluminada pela realidade mediata. "Se a duracäo já näo é o dado imediato da substancia ontológiea, se o tempo já näo é a condicao a priori de todos os fenômenos em geral - urna vez que o símbo lo lhe escapa -, apenas resta atribuir ao espaco o ser settso rium geral da funcäo í'antástica."1 0 olhar näo se confina no que ve. 0 olhar, através do que ve, ve o que näo vč. Isto c. 1ZZ contempla uma realidade visual que ultrapassa os sentidos práticos e penetra numa outra margem do real. Tudo se passa como naquela espécie de manifestacäo da consciéncia de maravilhamento de que fala Bachelard, cm La poétique de la reverie*. (Poetka do Devaneio) Essa outra margem em que aporta o imaginário, que cm outra realidade, pertencente ao campo literário, foi percebida, ontológica e poeticamente, pelo romancista brasileiro Guimaracs Rosa, no expressive conto A terceira margem do rio. Uma das mais belas incorporates da paisagem amazönica na cultura, por via da expressao simbólica de uma obra lite-rária, é realizada por Dalcídio Jurandir - romancista que entroniza a paisagem amazönica das cidades emolduradas pela paisagem, na literatura brasileira moderna, por meio dc um conjunto dc romances telúricos que constituem o ciclo do romance do Pxtremo Norte. No romance Marajó, ao longo do andamento sinfönico e suťocantc da paixäo de Missunga por Alaíde, a paisagem, alem da magia, erotiza-se , coníunde-se, enrosca-se libidinosa com a "eunhanta" Alaíde - o arisco objeto do desejo de Missunga - e dilui-se espermosamente aos olhos desse "voyer" caboclo do Marajó. "Alaíde, debaixo duns cajueiros meninos que come^am a dar Hor, colocava-se, ora de frente ora de costas, no tronco do cajueiro mais alto. Desťolhava e mordia as ílorcs do cajueiro num desleixo de cunhä mesmo nova. Pulava, se enganchava no tronco, rocjando-se toda para firmar a perná no galho mais baixo e vergar o ramo mais flexível até o chäo de folhas. De vez em quando, um ai: mordida de ibrmiga. Com o ramo que balan-<^ava ela fazia adeus a Missunga c soltava um riso. Colada ao tronco, enganchada no galho, meio sumida entre as íblhas, balancando o ramo, Alaíde parecia possuída pelo cajueiro. Levou-a uma noite para o igarapé. As íblhas pingavam luar como sereno. A maré vinna vagarosa do rio, parecia descer na lua cheia. Trouxera Alaíde, como uma ťilha das águas brancas, os cabelos de prata, o corpo de peixe, o chciro de aninga.'"' Assim, em face de uma experiéncia desse nível, o caboclo vai formando sua paisagem e sua cultura, ampliando e culminando o processo de cria^äo. Um processo cultural rzß intenso, que realca cosmicamente o hörnern no meio no qua! ele se vai ambientando, permutando e superando. Sao moda-lidades de trocas coletivas com as circunstáncias teluricas, expressivas de um comportamento geográfico insaciável, eivado de experiéncias, de enriquecimento, de sacrifices, de heroísmos e capitulacöes, ao longo do que o hörnern amazö-nico foi imprimindo os padröes de sua afetividade, de sua visäo de mundo, na constituicäo da sua cultura paralelamen-te ä de sua paisagem. Essa "civilizacäo vegetal" de que lala Berta Ribeiro, especialista em etnologia indigena - arte, arte-sanato e tecnologia, na obra Artesanato indigena, por que e para quem?*' Consideramos que as eriacöes do espírito do horném caboclo, na organizaeäo de seu espaco ideal, ainda se constituem criacöes governadas pela funcao fantástica e que essa funcäo sc configura como estetizadora. Todavia, tal näo ocorre desliga-do de uma prática. Analisando a questäo do espaco como forma a priori do fantástico, Durand afirma que: "Näo só a funcao fantástica participa na elaboracäo da conscičncia teó-rica, como também... näo desempenha na prática o simples papel de refúgio afetivo, ela é bem uma auxiliar da aeäo"'. Dessa maneira, na persistente duraeäo até os dias atuais de uma espécie de imaginaeäo das origens, também na cultura amazönica "a alvorada de toda a criagäo do espírito huma-no, teórica ou prática, é governada pela funcao fantástica"". Vivendo dentro de um espaco , o hörnern tem com cle uma relacäo permanente de trocas. Na Amazónia, esse espaco físi-co está preenchido pelos rios e pela floresta. E uma geogra fia do esplendorda tropicalidade, da qual emana o sentido do sublime, do imedido, da exuberáncia cósmica. Talvez nenhum outro conjunto hidrobotánico possa ultrapassá-lo, Nenhum outro encarna, simboliza, e exprime com maior diversidade, as raras reservas da primitividade insubstituível do planeta. 0 ensaísta paraense Eidorfe Moreira, estudando eonceitualmente a regiäo e sua paisagem afirma: "A Amazónia — já se disse — é um anfiteatro. E a disposicäo de seu relcvo conílrma isso, devendo-se apenas acrescentar (pic se trata, no caso, de um anfiteatro muito irregular, näo só 1Z4- pcla forma incompleta e exeessivamente alongada, como lambém pela posieáo assimětrica do Amazonas, relativamen-te ao conjunto'"'. O imenso c solené anfiteatro amazónieo é constituído pelo rio, pela várzea, pela terra firmě e pelo planalto. Aqui se fará uma breve reílexáo sobre essas partes construtivas, simplifi-eando-se para rio, várzea e floresta ■ esta eompreendendo, cm sentido alargado, a area de terra firmě e o planalto. b. Os rios Os rios na Amazonia eonstituem uma realidade labiríntica e assumem uma importáncia fisiográfica e humana excepcio-nais. 0 rio é o fator dominantě nessa estrutura fisiográfica e humana, conferindo um ethos e um ritmo á vida regional. Dele dependem a vida e a mořte, a fertilidade e a caréncia, a formayao e destruicáo de terras, a inundacáo e a seca, a cir-eulacáo humana e de bens simbólicos, a política e a ccono-mia, o comércio e a sociabilidade. 0 rio está cm tudo. "0 rio, uma cobra de prata, se desenrolava na sombra e ia urrar na baía. A curicaca deslizava no visgo da cobra de prata, a maré enchendo trazia o bafo áspero do mato podře e de bichos.""' Esse conjunto de rios forma uma bacia de 4.778.374 km de cursos ďágua (Conselho Nacionál de Geografa), constituin-do o sistema arterial e venoso da Amazónia. Os "furos" sáo simples bracos de rio sem naseentes próprias. Hles ramificam-se interminavelmente, entrelacam-sc, produzem verdadeiras teias, na media em que neles desembocam vários igarapés (palavra de origem tupi signitlcando caminho de canoa). Como há permanente formacáo de ilhas, coroas ou bancos de areia, os rios, os furos, vao modiflcando sen curso e o canal de navegabilidade, formando-se verdadeiros labirintos que alongam as viagens, eriam sucessivas "novidades" no percur-so, exigem o conhecimento de iniciados para percorre-los com seguranca. Referindo-se a esse considerável conjunto fluvial, Agassis - citado por Eidorfe Moreira in Amazonia o conceito c a paisagcm — reconhecc a sua incomparável e TZj Singular presenca na terra: "Tudo o que se ouve contar, tudo o que se lé sobre a grandeza do Amazonas e sens tributaries é insuFiciente para dar uma idéia da imensidáo do con jun t o. É preciso navegar mescs inteiros nessa bacia gigantesca para compreender até que ponto é extraordinário aí o predomínio da água sobre a terra. Esse labirinto líquido c bem mais inn oceano de água doce, cortado c dividido pela terra, do que uma rede fluvial"". 0 rio é tudo. "0 rio fumacava no silén-cio da madrugada", diz Dalcidio Jurandir". Ele está intitna-mente ligado ä cultura e ä sua cxpressäo simbólica. E sempře visto como um caminho, quer dizer, lugar por onde as pes-soas, de čerta maneira, andam. 0 índio diz que o igarnpé (pequeno curso d'água) é um caminho de canoa. Dai sua associaeäo natural com a estráda e a rua. "0 rio é a ma", diz com objetividade épica, Raimundo Moraesl2b. "Esse rio é nossa rua", reafirma Raul Bopp, já numa poeticidade cénica e de sentimento coletivo, no pema-dramático Cobra NoraW. "Esse rio é minha rua", expressam em forma lírica c sub jet i-vadora, numa espécie de intertextualidade cultural Ruy Barata e Paulo André, a importáncia do rio na vida regional, em música popular na base do ritmo do carimbó, nativo da regiao". Sao rios que tern, portanto, scu curso d'água lluin-do na literatura amazônica de várias épocas. 0 poeta amazo-nense Thiago de Mello fala do Estado do Amazonas como Patria das águas. A obra 0 Rio Comanda a Vida, do historia-dor Leandro Tocantins, expressa com clareza essa profunda relacáo, sobretudo do rio Amazonas, com a vida regional. Governando o labiríntico sistema orográfico, como a ran ha no centro de uma teia, o Amazonas é um ator de incansáveis metamorfoses. Prestigiador da realidade, cle transfigura, hip-notiza, solapa, restaura, faz aparecer e reaparecerem ilhas. esconde embarcacöes encantadas na manga de sua casaca de ondas, devora cidades, alimenta populacöes, guarda cm suas profundezas ricas encantarias habitadas pelos botos, uiaras, anhangas, boiúnas, cobras-norato. Nesse rio mar naseču a história desí a selva escura e o mcio do caminho a eneruzilhadď* Sobre ele viaja o eaboelo observando, estudando a natureza, conhecendo os sinais da chuva, da tempestade, do vento, da calmaria, dos dias e das noites. Guiando-se pelas mares, os homens tern, no regime de suas aguas, os relogios regulado-res da vida. "Nao ha hora para as refeicoes porque dependem da mare; a hora de deitar e levantar muitas vezes acompanha a vazante ou a enchente; as noticias chegam porque a enehente traz; quando os rios secam e suas margens lama-cent as se descobrem, e uma lauta mesa que se estcnde: movi-mcnta-se o exercito dos maraquains, os caranguejos pas-seiam no mangal e as aves amigas dos mariscos la estao pon-tuais, a postos."15 Assim o rio participa de tudo, desde as ori-gens, desde sempre, reHetindo e incorporando Venturas e desventuras, as idas e vindas, as interpenetracoes ludicas entre a realidade e o imaginario do eaboelo. Rio, pao liquido, andar em proeissao de espumas alimento de lendas, poesia — piracema de dnsias, preamares, silabas 16 Pelas margens dos rios ha os extensos e plasticos aningais, verdadeiros tapetes de aguapes que se estendem Hutuantes, ondeando ao movimento provocado pelas aves aquaticas e os eardumes de peixes. Os eardumes de pratiqueiras (peixes semelhantes as tainhas), por exemplo, sao de uma grandc beleza quando se alastram pelos rios (podendo atingir, segundo erenca nativa, varios (luilometros de extensao). Idas avaneam, elas saltam, elas mudam conjuntamente de dire-eao, provocando um fervilhamento nas aguas, iazendo ecoar urn rumor semelhante ao das ondas que se cjuebram sueessi-vamente nas praias. As aguas encrespam-se como epidemics arrepiadas de Trio ou medo. Vez por outra, pardos mergullines executam voos curvilineos, solenes, antes de flecharem mer-gulhando em busca de algum peixe. Em seguida, emer-gem siibitos, como jatos vivos de um chat'ariz, ascendeni voando com o peixe ainda tremulo no bico. E reconquistam o azul ate novo mergulho. Pelas margens dos rios, estcndcm-se alvas praias, comumcnte com parte de sua superficie coberta ])or uma vcgctacao rasteira extremamente ver^ lugares de pouso, eleitos por várias avcs cm busc anga|s -da, pois ali proliferam - na parte lamacenta dos rrw -() siris, sararás, caranguejos. Dentre as avcs, cabe faze aos guarás. Eles sao de uma rica e flamejante plumag ^ QS mclho-carmim. Quando ainda estao pequenos, ornam-se como carvao. Mas, quando crescem, suas penas ^ s0bre como brasas vivas, recobrindo-lhes o corpo equilibra ^ pernas longas e delieadas, o que lhes confere um p gante como o das garcas. i rio é a dos Outra iluminura a enriquecer a paisagem cio 11 e sC mururés. O poeta paraense Ruy Barata se reeon ie ^ irmana com eles: "Esse rio é minha run / Minna e tu' ente re". Suas folhas sao espessas e se espalmam horizon a ^ á superíície das águas. Essas ninfeáceas tem raizes to se entrela^am sob as águas, formando uma firme ^s como se fossem verdadeiras ilhas vegetais flutuan es. ^ "Uhas de mururés" sáo denominadas pelos caboc ^ periantás ou marapatás. Elas vagam á Hor das aguas c (^ ^ na enehente e na vazante, como se um pedaco amJ5"/. )laSi mata, escondendo, muitas cobras, jacarés, garcas c ^a rj.cJ que delas fazem ninho ou pouso itinerante. I oc t ^ ,is também que alguém que navegue em igarites u /irvorcS) canoas de tábuas ou escavadas a fogo em troncos c < • ic aoroveitando a amarre sua eanoa nessas ilhotas peregrinab, nando displicentemente em sua terra de posse, ^ sua e dos insetos répteis - solitário babitante como * ^ aventureiros de todas as terras rcais ou ima^|n;lU^.' , expressáo que designa essa atitude é "ir de bVbllltl '^^^^ an "bubuiar" é verbo que expressa a acáo de seguir u ua sabor das águas do rio. [mpossivel seria nao lembrar a Vltórta-régtaĚ » £ ninfeáceas e a grande flor aquatica da regiao. suas verdes chegam a medir 1,8 m de diametro. A I o. su . . logada como a maior da America, com 30 cm i constituida por uma profusao de pétalas, cujas «..^« matizando progressivamente da manha para a tzf quando o dia nasce, váo passando au róseo até ä tarde e do róseo chegam ao quase rubro, quando a noitc tomba. Durante a noite seguinte, tornam-se brancas para, a partir do nascer do sol, recomecarem o cielo cromático. As vitórias-régias estendem-se como tapetes, principalmente nos lagos (ju enseadas, muitas vezes escondendo jacarés sob suas ľolhas, reeditando a imagem mítica dos perigos que se ocul-tarn dialeticamente na beleza. Carlos Zílio, artista plástico e doutor cm história da arte pela Sorbonne, analisando na história da arte urn momento que pudesse ter uma importáncia particular de cotejo com a arte na Amazônia, escolheu a obra de Claude Monet como vetor de análise. Hm seu texto, "Cláudio Monet e a Amazônia", cle explica quais as questôes que puderam aproximar suas refle-xoes entre Monet e a cultura amazônica, considerando-se, cm ambos, o papel da água, do tempo e da origem. Porque Montet, embora sem ter conhecido a Amazônia, fez da água um elemento fundamental de sua producáo pictórica. E, ainda mais, por ter escolhido as ninfeáceas como modelo pri-vilegiado, sabendo-se que as vitórias-régias e os mururés pertencem a essa mesma família. "A água foi o elemento que introduziu Monet na pintura. Sua aprendizagem com Bodin no Porto do Havre foi fundamental para suas descobertas sobre a relacäo com a luz, que prosseguiria cm Londres, mais precisamente no Tämisa, logo dcpois em Paris, no seu barco-atelier e, flnalmente, no lago do seu jardim cm Giverny. Do mar ao lago, passando pelo rio, Monet e o impressionismo pintam diante do passar da água..."" Um impressionismo que, na verdadc, é uma das marcas da atitude estética que liga os ho mens ä sua paisagem. Há um realismo fluido, próprio do impressionismo, na estéti-za<;äo da paisagem na cultura amazônica. Uma visualizacäo a céu aberto, inconvencional, rica de sensibilidade e guiada pelo sensível. Percebe-se uma submissáo ä realidade sensorial estimulada pela plasticidade de uma paisagem a ecu aberto. A visualidade vem guiada pelo devancio que a ali-menta poeticamente. Encontram-se os rellcxos disso na arte naif regional, como na fachada das casas ou nos barcos rzj? uma expressiva melange optique na qual prevalecem o enl^!/i_ go das cores puras, eliminando-se as tonalidades inteim rias. Os amplos e vagos contornos da relacäo enlre o Cc ^ e a paisagcm se atenuam no sfumato propieiador de u "atmosféra" que converte essa melange optique no esj < contínuo entre o cotidiano c o mistério. Um sentimente) c ^ mico marca cssa visualidade impregnada de rios e ílores <- » da natureza incorporada ä cultura. "Abriu a janela. Nao c madrugada, era o luar. Sourc dormia embalada pelo vc ^ pela voz da baía, num leito de mangueiras... llavia de pas muito tempo para se libertar da morte de Guíta. Ela ficav solta na terra, seiva e siléncio subindo nas plantas selvagen. Os cabelos inocentes de Alaide ficariam verdes entre as pa mas e os mururés. Os miriis moles se desfaziam nas maos e a como para agradá-la... Andava pela terceira rua cle Soure. mangueiras lhe ofereciam uma paz de orvalho, e resma sl derramava das frutas verdes e das folhas. Hm ordem na rua, pesadas de sossego e mangas. Com que maternidade, com qu forca dc criacäo a terra as sustentava e as deixava ao mar, na rua da pequena cidade marajoara... Os galos cantavain. Pelas margens dos rios a presenca de uma vegetacjio varia a e luxuriante, os ramos das árvores se entrela^am forman o um painel compacto do qual emergem os ramos espalmac os das palmeiras, de onde pendem cipós enrodilhados ou ívres no ar. Em meio a esse cenário brotam casas pequenas médias, com jiraus (estrados de varas sobre forquilhas era v a das no eháo, onde se constroem casas de madeira protegi as da água e da umidade, onde se guardam panelas, pratos, utensílios em geral), tendo pendurado nas paredes panen os, vasos de plantas como se formassem diminutos jardins sus^ pensos. As casas mais modestas e menos separadas da ma a em torno, em vez de ponte, tém o porto eonstruido por escuros caules de árvores (miritizeiros) estendidos no tyuco. De modo geral, säo casas simples de madeira, de duas aguas, de piso elevado por causa das variacôcs da mare, de tabuas pintadas de cores primárias, cobertas de palba. Muitas vezeš, sáo construídas sobre troncos de madeira, na forma de casa llutuantes, ade(,uadíssimas a variacóes sensíveis do nivel co nos. A easa, easa-bareo, Hutua e aeompanha o desloeamento 1$0 da linha das margens que, durante as enchentes säo afasta-das para a terra firme em até centenas de metros, em virtude do estravasamento das águas. "A presence do artesäo na variedade do colorido espontáneo e natural, nos diversos tipos de solucöes, no emprego de cores fortes, de diferentes niodelos dos väos de abertura das portas, das janelas, dos tclhados, ou dos enfeites no topo da cumeeira. Grandes varandas de dia, ä noite säo fechadas com sanefas como nos barcos, transfbrmando-se em saläo, c ai temos o espaco mudando de flnalidade, o que é muito comum c promove a identificaeäo casa/barco", como descreve o arquiteto Severino Porto, pesquisador da arquitetura regional e nati-va". Ainda no mesmo texto, ampliando sua reflexäo, afirma (|uc "...para o hörnern do interior é täo importante absorver esses conhecimentos transmitidos de gerac,äo em geraeäo c que näo constam nos livros, quanto a necessidade nas cida-des do hörnern ler, eserever, tirar cursos e diplomas"20. Se na alma do rio estäo as encantarias - o lugar habitado pelos encantados; se nas margens estäo as casas, as várzeas, os pássaros, as palmeiras - o mural da mata ou da íloresta; sc na epidemie dos rios navegam os barcos; no corpo dos rios circulam os peixes. Como outras tatuagens do imaginário na pele das águas, elcs avancam, mergulham, bóiam, nadám em ángulos, isolados ou em cardumes, povoando em espéeies e números impossíveis de contar os milhares de rios. As tai-nhas andam sempře em bandos, em cardumes. Säo sabo-rosas e, por isso, tém grande cotae;äo no mercado. Nas águas salgadas, seus grandes inimigos sáo os tubaröes. A aproximacím ou penetraeäo desses grandes peixes provoca uma verdadeira cxplosäo conhecida como "estrondo das tainhas", mima alusáo ao "estrondo da boiada" dos hois no campo. Afora a coreografia alucinada do "estrondo" - quando as águas se tornám ruidosas e agitadas em larga extensäo - os cardumes passam tranqüilos, indicando sua passagem pelo fervilhar das águas e pelos subitos saltos de alguns peixes fóra ďágua que väo acontecendo imprevistamente. Há, portanto, peixes que saltam no ar como solistas de um corpo de baile. Mas há também peixes que invadem outro elcmenlo: a terra. Säo os tamuatás. Quando eles precisam atravessar de um curso ďágua a outro, através de uma faixa de terrcno seeo, procedem de maneira efícaz e solidana. U cardume poe-se a marchar, um peixe á frente do outro, des-lizando organizados. 0 chefe-da-fila, que lidera a travessia no terreno seeo, vai expelindo um viscosidade que e por de segregada, que besunta o solo e o torna escorregadio, a tun de que os seus companheiros possam vir escorregando mclhor na travessia. Quando esgota seu estoque de visco lubrificador, ele retroage para ocupar o ultimo lugar na fila, passando a usufruir o deslizamento garantido pelo que ficou em seu lugar. E assim, sucessivamente, avancam até alcanca-rem, pelo solo seeo, o outro curso ďágua pretendido. 0 no eorre sempře. É um rio herecliteano, que muda tudo, d«gasta, aereseenta, passa. 0 imaginário é que lhe impöe ln'rmnnéncia por meio de suas ancoras culturais. Já, por sua f7\a ílore^> liga-se a Paménides: nela o hörnern busca bilidade e constáncia. Mas nem por isso abdica da con-,nPlacäo imaginal impregnada de beleza. Porque "qualquer n :(; d° hom^ Pode ser aeomPanhada děla (da funcäo esté-Pri' * ?Ual(l^r coisa pode vir a ser a sua portadora-. cultuM nte Cm rea|i^des como a da Amazónia, marcada que fbi ohme POr Um modo P°ético de Pcnsar cc'uivalcnle a0 1 >s«Vado por Vico, nos povos mais antigos. C. A n oresta "...o sentido ave"turas cavaleirc E,a foi ° esPaV» c,k'íín Plira as is, assim como é o espaco iradas as imagens do " í: a í,uc' a'nť*a» Sí~,() encon_ ;'<ř" í,('N-S'fí<'Na/arT SUn\0s ~ com°. Por exemplo, a ima- sín,Dóiicos como i ,.,f'r'S' A ílores^» foi o refugio dos amores ,r'Máo e holdu ou do Tambatajá - símbolo do amor cterno na mitologia dos índios macuxi de Roraima, na Amazonia brasilo-guianesa. li que o hörnern näo suporta a solidäo absoluta. Mesmo o deserto, mesmo a flo-resta, näo säo lugares de absoluta solidäo. "Segundo os im vadores, o tenia da fuga dos amantes na floresta resulta numa visäo idíliea, uma fuga voluntária na Utopia Silvestře do deserto do amor."" Na Amazonia, as idéias gerais e prc-conceituosas sobre a floresta tem oseilado entre uma concep-9äo paradisíaea e uma identificaeäo com o reino das Irevas. Eden ou Hades. Mas sempře uma concepeao que tem caráter transcendental. Nisso, cla se lilia a uma longa tradicäo que remonta a conccpcöcs muito remotas. Entre os Ccllas, por cxcmplo, a natureza assumiu a dimensäo de santuário natural. Na India, densamente poctica, c para a floresta que os sannyäsa sc recolhem, ä semclhanca do (pie fazem os asectas budistas. Cabcleira da terra, caminho do visível para o invi-sível, a floresta recobre o espaco do imaginário, o incons-eiente da natureza. As árvores säo exemplo da vitalidade da terra, da mořte que näo morre, pois se regencra sempře, da ponte (pic liga o chäo ao ecu. Conto pensa M. Eliade, uma árvore, "se é carregada de forcas sagradas, é porque é vertical, porque perde suas folhas c as recupera c porque, por con-seqiiěncia, cla se regenera: cla morre e renasec inúmcras vezeš"24. As árvores revelam uma simbologia teocéntrica, crescem para o alto, eonfíguram nuvens Verdes com suas folhagens, apontam para o inflnito onde algumas erencas instalam o reino de Dens. Hlas enterram suas raizes no solo de onde retiram água para a circulaeäo vital da seiva; o Iron-co rcaliza a libertaeäo da terra e uma invasáo no ar com sens galhos e centenas de folhas; as raíz.cs convivem com a escu ridäo, o siléncio c os répteis, enquanto que as folhagens com os pássaros. A árvore articula todas as diversidades que compöem a unidade da vida. De čerta maneira, encerra a mítica idéia da árvore do mundo como cixo da terra, o (pie, por extensäo associativa, como um arquétipo, Faz girar cm torno de si a ideologia de delesa da Amazónia como vital para o mundo, pulmäo da terra. No final do século XX a llorcsta amazónica representa para os povos, mctalbricarncntc, a grande árvore do mundo, o grande cixo capaz de susten-tar a vida no planeta e cuja destruicao provocaria uma catástrofe cósmica. r33 A densa e magnífica cobertura ílorcstal da Amazônia cobre uma extensäo de 4.161.482 m2, correspondendo a 48,87% da superfície total do Brasil. Numa visäo perpendicular como dos pássaros, ou de quem revoa de aviäo, ou, ainda, no vôo da imaginacäo, a visäo da ľloresta amazônica c de cromatismo espantoso no qual realcam a renda branca das praias, os alvos labirintos, os espumosos rios, os reflexos metalicos nos lagos e läminas ďágua, as intermináveis nuances do verde. Predomina a massa verdc-escura que se estende e se confunde com a linha do horizonte. Por toda parte, mesmo na perspectiva horizontal dos rios e dos bar-rancos, tudo o que sempře se vé é a mata, o verde sempře cada vez mais verde, como numa composicäo plastica de vastos murais. 0 romancista Benedito Monteiro, no romance Verde Vagomundo, captou bem esse cromatismo: "Do céu, p oss i vel mentě na mesma altu r a por onde agora voa-vam os pássaros, eu sabia, por experiéncia propria, o que cnxergava. E mais acima ainda, onde os aviöes passavam, eu tinha visto na véspera, sem comeco nem lim, coberta de verde, recortada de curvas submergindo nas águas disper-sas, a imensa planície. Verde! Milhares de tons Verdes: verde-cinza, verde-mar, verde-mata, verde-cháo, verde-terra, verde-barro, verdc-eurva, verde-reta, verde-plano, verde-margem, verde-campo, verde-capim, verde-azul, verde-luz, verde-planície, verde-planura, verde-verdura, verde-sombra, verde-ouro, verde-prata, verde-vazio, verde-vago mundo, verde-espaco, verde-amanhä, verde-tarde, verde-réstia de luz, verde-mancha de nuvens, verde-quase, verde-lugar-de-ro^ado, verde-caminho, verde-senda-estrci-ta, verde-estrada, verde-perto-de-casa, verde água, verde-árvore, verdc-lago, verde-algo, verde-rio, verde-cerea, verde-divisa, verde-limite, verde-horizonte, verde-verde, verde-distáncia. Principalmente: verde-distáncia..."25 A floresta amazônica é heteróclita. Náo tem a homogenei-dade das florestas temperadas. E muito cerrada, compacta e com muitos andares defínidos de folhagens, que semelha a uma estrutura de acumulac;áo Hörestal. Um verdadciro mos-truário vegetal, seja na várzea, seja na terra-firme. Elemento básico tia constituicao da paisagem, fator geográfico c 1W potencial cconömico, cla absorvc c gira era torno do hörnern, chegando a imprimir uma especie de estilo de vida e cultura: do seringueiro trabalhando coin a borracha; do balalciro, com a balata; do castanheiro, com a castanha; do guaranazeiro, com o guaranä; do rocciro, com a roea, etc. A f'uncao estetica estä relacionada com a coletividade por meio da cultura. Sendo assim, c na relacao entre a coletividade e o mundo que deveremos buscar a emergencia dessa importantc l'uncäo. Estä ccrto Mukarowsky quando, ao analisar a beleza da paisagem, afirma: "A natureza, por si propria, e urn fenomcno extra-artistico enquanto näo e transformada pela acao do hörnern movido de a la estetico. Apesar disso, a paisagem pode produzir o mesmo efeito que uma obra de arte"26. Em sua qualidade dinarni-ca, a f'uncao estetica mantem uma relacäo distintiva na organizacjio da vida na Amazönia. Alem de ter estabele-cido uma especificidade entre a cultura urbana e a rural-ribeirinha, marcou lambem a dif'erenca em face do pro-cesso de migraeäo. Sendo expressäo de uma sociedade ribeirinha e peculiar, e possivel que a desestruturaeäo da sociedade amazönica, que ao longo de tantas decadas gerou essa cultura estetizante, venha a compromcte-la definitivamente. Perdendo as caracteristicas que a leva-ram a privilegiar a f'uncao poetica, tendera, como eonsc-qiiencia, a desestruturar essa modalidade rara de expressäo cultural ainda persistente na Amazonia. Deve-se, e claro, compreender que e uma desestruturaeäo estrutura-dora de novas relacocs, nas cjuais, provavelmcnte, a domi-näncia do sistema cultural deverä ser outra no processo de reversäo semiötica, assumindo a f'uncao estetica a conditio de f'ator coadjuvante. Diante da paisagem - como unidade significante da natureza capaz de impregnar a alma de uma emotividade espon-tänea - o homem da Amazonia, o caboclo, cxperimcnla urn estado de sensibilidade atlorada, que se confunde com urn estado poetico. E a forca de uma paisagem entronizada na alma amazönica, e que a realimenta liricamente. ^35 d. O olhar Em texto intitulado A qucstäo regional c a producäo cultural, Kenan de Freitas, mestre em sociológia e estudioso do desenvolvimento regional da Amazônia, percebe que "... uma paisagcm muito comum - que é uma paisagem nova a partir de 1938 na Amazônia - é a juta brilhando sob o sol nos varais. Essa nova visualidadc vai scndo gradualmente incor-porada á producäo dc artistas plasticos. Essa nova plast icida-dc tern uma presenca muito marcante na vida regional"". Esse rcalce dado ao detalhe paisagistico da "juta brilhando sob o sol nos varais", acrescentando um brilho novo entre os inumeros brilhos em torno - o raio de sol na água, nas folhas molhadas, na pintura dos barcos, etc. - é uma obscrvacao cxpressiva para realcar a importáncia que o ato de olhar tern na regiäo. Nada brilha para si mesmo. 0 que brilha, brilha para o outro. Brilha para o olhar. 0 olhar, acäo de ver pclo órgäo da visäo, c essencial para a percepcäo das qualidades plásticas do mundo exterior. Embora o olhar interior, acäo de ver por forca do imaginário, ultrapasse a superficie dessa plasticidade, penetrando em suas sucessivas camadas de realidades criadas pclo indivíduo, vendo o que está além do alcance do olho, como na visionária visäo de Tirésias e de todos os videntes. Na tragédia Édipo-Rci, de Sóľocles, na qual Edipo (que tern olhos sadios) "näo vé" a realidadc cir-eundante, enquanto que o oráculo Tirésias (que é ccgo) "vé" o presente e o ťuturo, o que é claro c o que é obseuro, mais do que todos. É uma obra densa do sentido do olhar e do ver, do olhar interior c do olhar aberto para o mundo. Do olhar capa/ de descobrir o mistério nas coisas. Hm toda a sua arquitetura cénica, o olhar é o signo articulador da acäo, seja de forma direta ou indireta. (Édipo) "A alegria rcina em seu olhar."'" (Coro) "Artemis, eu te conclamo! E tu, Febo, o arqueirol Tríplice muralha contra a morte, revelai-vos a mens olhos!"''' (Édipo) "Ó Tirésias, tu que sabes tudo, as verdades revcladas e as verdades interditadas, as coisas do ecu e da terra, tens olhos sáo cegos, mas tu sabes de que tragédia cste pais é prisioneiro. Nos näo vislumbramos salvacäo para cle a näo ser em ti, mestre, em ti somente.""' (Tirésias) "Já que tu i$6 me fizeste ser cego, eu te clirei: tu que tens teus olhos, näo ves em que abismo tombas, nem onde tu habitas, nem com quem compartilhas a vida."" (Corifeu) "Ó paixäo terrível de ver, a mais terrível que já encontrei em meu caminho."" (Edipo) "E o que eu poderia Fazer para ver somente aquilo que me fbsse agratlávelľ"" (Coriľeu) "Muito mais do (|iie viver cego, melhor seria näo vivcr."" O olhar é a fonte de observacáo, pereebe os aspectos delica-dos e diferenciais das coisas, estabelecc vias do gosto e do julgamento. Vai pereebendo o efeito nas obras de arte e em tudo, daquilo que lhe aparece como brilhante e eheio de inte-resse, percorrendo a superfície das coisas. Pereebe e consagra a glória do sensível. Intui a paisagem com síntese e consagra a vibraeäo do minuto. Renfirmando aquilo que Bachelard expressou em A Poctiva do Devaneio: O olhar č um principio cósmico'\ 0 olho é um descobridor de mundos. Dedicando algurnas páginas de sua filopoética do devaneio a esse terna, Bachelard recupera a idéia de vários autores a res-peito do olhar: "Söhre o sol, Copérnico, esse reformatio!" da astronómia, esereve: 'Alguns o chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito (do mundo), out ros ainda o seti Reitor*. Trimegisto chama-o Deus visível. A 'Electra', de Sófocles, denomina-o onividente. Assim, os planelas giram ao redor de um Olho de Luz, e nao tle um corpo que os atrai pesadamente"5". Em poucas obras literárias íuntlamentais da cultura ocidental, o sentido do olhar ílca táo tlensamente acentuado, como em íidipo Rvi, de Sófocles. Essa tragédia, exemplár para Aristoteles, é uma liturgia do olhar. 0 rei Edipo tem olhos, mas näo vé. Tirésias, o vidente, aquelc que vé o tjue ninguém potle ver, é cego. Quando Edipo descobre a verdade e passa a ver o que näo via, Iura os olhos com os grampos que lhe prendiam o manto aos ombros e ílca cego. Ver, portantt), nao significa apenas ter olhos. Signifíca "olhar". 0 olhar que näo está diretamente relacionado com o olho. Mas com o sentido de perceber, de compreender, de abrir os sentidos. At) mesmo tempo revela que, alem do olhar, há vários olhares. Há t) olhar físico e o olhar da intuicäo. O olhar da intuicäo descobre o que está imanente nas coisas. O que vem submcrso na realidade. 0 seu mistério. "Parece, entáo, que o mundo contemplado percorre uma escala de cla-re/.a quando a consciéneia de ver é consciéneia de ver grande e consciéneia de ver belo."J/ 0 caboclo amazónico, na sua jornada diária, seja na ca^a, seja na pesca, seja nas viagens, vive a docura obcecante do olhar. "Olhar" que lhe é necessário por tudo e para tudo. Para reconhecer o caminho, para observar o tempo, para prevenir as safras, para proteger as viagens, para guiar-se na eseuri-däo, para escolher o lugar da pesca, para distinguir a via das estrelas, para refazer o caminho de volta. "O olho é um pro-duto da história reproduzido pela educa^áo."J" Pelo olhar vai aprendendo a realidade. Pelo olhar vai alcanyando o cora^áo das coisas. Uma trajetória do olhar tornando-se um ato de leitura do seu mundo. A leitura das páginas de um mundo adornadas pelas iluminuras do imaginário. "Spengler havia íalado de "paisagem" cultural para marcar o ponto onde uma eultura se torna uma segunda natureza da alma."1'' Por mcio da leitura de seu mundo, o caboclo o vai ajustando a sua medida e a seu proveito. 0 imaginário instrumentaliza a eultura nessa qualidade c medida. Instaura nele um sentido. E vai conhecendo a realidade também de forma elíptica, indi-reta, como no movimento em "E" do cavalo, no jogo do xadrez. Por esse movimento, alem do 3U salto para o lado da realidade, seu percurso de conhecimento se faz labiríntico, como quem sonda, perseruta, iludc, caminha pelo alternativo, pelo (jue surpreende, pelo inesperado. Assim, no salto para a 3" margem, vai anulando a opacidade e a transparén-cia dos objetos, por mcio de atitudes impregnadas de con-templacao c devaneio, que real^am a zona de sfiímato entre o hörnern e a existéncia. E importanle a ontológica valorizacao cultural do olhar, na Ai' azónia, visto que revela a estreita rela^ao entre " interior e o exterior. 0 olhar, como janela da alma que também introverte, na alma, a paisagem recobrindo-a de uma capa de afe-tividadc. 0 olhar fascina, seduz, mata, encanta, aterra, con-íunde, fulmina, penetra, torna o invisível visível. O olhar revela a contemplacao do que contempla, no modo como dimensiona o contemplado a medida do contemplador. Mas e, ao mesmo tempo, um olhar "distaneiador", que estranha a realidade, vendo nela algo alem do que ela e, tornando-se um olhar de criac.ao capaz de desenearnar realidades na realidade, de pereeber os seres que ha em eada ser e nas coisas. e. 0 maravilhamento llá uma afinidade entre o hörnern e a natureza ciue pode variar de intensidade, de lugar, de época, mas se constitui num vetor que dimensiona essa relacäo. Diante dessa forma de relacao plurissignitleante do hörnern com a natureza, é possível fazer-sc uma aplicacäo da essertiva de Mal'fesoli eoncernente ao vetor que reúne os grupos de afinidades ele-tivas: cria-se uma espécie de ambiance qffeetuelle, propicia-dora de uma espontänea íelicidade1". A idenlificacao com a paisagem pro})icia uma natural aderéneia física e moral ä terra. Conseqüentemente, a paisagem complementa a perso-nalidade atendendo äs intimas necessidades do indivíduo. E como uma janela para o ser e para o ser. Olhando por ela, o hörnern sente-se harmonizado näo só com o mundo, mas consigo mesmo. Ha um expressivo exemplo disso na cena 111 do quarto ato do Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, quando Cyrano apela ä memoria afetiva da terra por meio da lembranca da paisagem emoeional dos gascons, para reaeen-der neles o ardor da coragem, da luta, du heroismo: Escutae, Gascocs! Näo é, so!) o seus dedos 0 pifano da guerra, é a Hanta dos silvedos; A trompa já näo é de intrepidos guerreiros; E' a Hanta do pastor, a a vena dos eahreiros! Escutae! E' a eharneea, o valle, o matagal; E', sob o gorro alegre, o mořeno zagal! E' a verde amenidade! As noutes da Dordonha! Escutae-a, Gascöes! E* a terra da Gasconha! (Todas as frontes estäo inelinadas; todos os olhos devaneiam; - enxugam-se lágrimas furtivas nas margens e nas abas dos capotes.) CARBON, baixo a Cyrano Ah! Fázel-os chorar! CYRANO Mas de saudade calma: E' mais nobre que a ibme, e tem por sédc a alma. A tortura alojou-sc urn pouco mais acima E sobe ao coracäo: que tem que elle se opprima? CARBON Desperta-se a ternura e some-se a eoragem. CYRANO, que fez, signal ao tambor para se approxi-mar. Que importa? Esses heroes de subito reagem Söhre si mesmos! Basta... (Faz um gesto : o tambor rufa.) Todos, acorrendo äs armas - 0 que é? - Que temos? CYRANO, sorrindo N ad a! (A Carbon.) Ves? Bastou-lhes ouvir urn toque de chamada. E aldeia, sonho, lar, penas, saudade, amor, Se do pifano vem, dissipa-os o tambor!" Trata-se da superposicäo entre o objetivo e o subjetivo, gera-dora de urna atmosféra propria que substanciou a teória romantica alemä, o Stimmung, visto por Simmel como "modo particular de unidade" e (pie Maffesoli compreendeu como unicité, isto é, a coeréncia de elementos de espeeificidades próprias e mantidas em oposicöes. Citando La tragédie de la culture (A Tragédia da Cultura)42, Maffesoli diz em "A Transfiguracäo do Politico" que "o Stimmung da paisagem permite designar, segundo o hörnern, islo que nao constitui nada de singular em si, nem mesmo adere, em muitos casos, a qualquer singular facilidade, mas que, no entanto, represen-ta o geral onde se encontram todas estas particularidades"". 14-0 E profundamente enriquecedora a relacäo que resulta deste movimento entre o objetivo c o subjetivo, como sc eonstata no "trajeto antropológico" [trajeí anthropologique) preconi-zado por Gilbert Durand, naquilo em que esse movimento entre o subjetivo c o objetivo propicia o surgimento de par-ticularidades individuais. A paisagem individualizada, "afeti-vizada" constitui o insubstituível fator de eufória em todas as viagens de volta. A paisagem predileta reintegrada pelo olhar no horizonte da alma. Porque essa necessidade de presenca da paisagem para o hörnern, do "estar ai", da prevalcncia da contemplacao sensível, é que reveste a paisagem de uma sensaeäo de prazer paeificador, pela cjual revoa o pássaro do devaneio. É quando se eria um "claro-cscuro induzido pela ambivalencia cmocional e as contradicöes que Ihe säo ine-rentes"". Para o caboclo, o hörnern do lugar, a paisagem que o envol-ve como cenario de inn anfileatro completa, estende e liberta sua personalidade. Sobre esse tenia da identificacao do hörnern com a paisagem, há uma vasta documentacao lite-rária. Em Daleidio Jurandir, por exemplo, há um fragmentu de narraeäo ilustrativo disso, no romance Marajó: "A terra Ihe transmitia uma espécie de estupidez amorosa e invencí-vel, lama gostosa na alma, o hálito de Alaíde, calor, frutas raehadas no cháo. Por que viera da cidade para aquele torpor? A solidáo derramava-se dentro dele como um poco sem fundo. Por que as imagens da iníaneia, do desalento, daque-la fartura que seu pai lhe dera, até as imagens da morte? Pensava tirar as visagens confusas, o medo, a quebradeira da solidäo, ficando horas de molho no igarapé, chupando taperebá, fazendo, de espingarda no ombro, imaginárias cacadas. Qu brincando com Alaíde. E voltava com uma nova pergunta: isto, afinal, näo é eonsiderar-se feliz?"" Dianie da paisagem ele sc maravilha, mim distanciamento (|ue estra-nha tudo e encontra outras dimensöes simbólicas em ludo. No canto XIII da OcUsscia, para confortar Odisseu e tranqüi-lizá-lo no retorno a ítaca, (piando o coracäo do herói se apertava em dúvidas e inseguranca, Aténa - deusa de olhos verdes-mar invoca e exibe-lhe a paisagem de sua profunda aflnidade: "De minha parte, jamais tive duvidas; sabia em men corac^ao que havias de voltar após perder todos os companheiros; nao quis, é claro, entrar em luta com Posidao, irmao de mcu pai, que te guardava rancor no peito, irado por lhe teres cegado o iilho dileto. Eia, porém, vou-te mostrar o solo de Itaca, para te assegurares. Aí está o porto de Fórcis, o Velho do Mar; ali, na eabeqa da enseada, a oliveira de longas fólhas; perto dela, a amena gruta brumosa, consagrada as ninťas a quem cha-mam náiades; é a eaverna abobadada onde costumavas i molar ás ninfas hecatombes perfeitas; aqucle é o monte Nérito, coberto de mata. Assim dizendo, a deusa dissipou a névoa e a terra aparcceu; o divino Odisseu atribulado alegrou-se, feliz de estar em sua terra e beijou o solo dador de espelta. Ato continue), orou ás ninťas, estendendo as maos"4": No reino da natureza amazónica, para o caboclo, eada coisa é nao-é. No ser de cada coisa há uma outra coisa, uma outra razáo, uma nova imagem. Cada elemento da paisagem é apreendido como uma revelacáo cosmogónica, tem sua his-tória de origens, e tem um destino alem de suas cireunstán-cias. Há uma neeessidade ontológica insaciável. O mundo íísico exige uma explicacáo imaginal. E o caminho para isso tem conotacdes estétieas, na medida em que tudo parece vir impregnado de uma espécie de "aparéncia esscncial". Uma aparéncia que se converte em esséncia. O rio, a lloresta, o ar, sáo formas que abrigam conteúdos aparentes de beleza, traduzidos por signos que constituent configuracoes dessa modalidade de maravilhamento. 0 maravilhamento traduz uma atitude reveladora de admira-cáo sincera, pura, nascida na surpresa ou na percepeáo de algo que ultrapassa o real. Algo como uma espécie de ori-gem, um destino, uma segunda realidade, nos elementos da natureza cireundante. É uma atitude eufórica do espirito, na qua) a beleza se pde de acordo com uma espécie de Irescor da alma. Ao mesmo tempo é uma atitude de inconformismo, de distanciamento, de ultrapassamento. O caboclo parece nao crer que a natureza em torno, organizada csteticatncntc em paisagem, seja apenas matéria orgánica. Parcce estar certo de que há alguma eoisa inerente nela dando-lhe um novo e originál sentido, retirando-a da monotonia, conferindo-lhe um sentimento, uma nova beleza e uma intensa vida. Encantado com a natureza, o caboclo, o homem amazónico, vai tornan-do-a encantada e admirável. Como as obras de a rte, a paisagem recebe uma forma de poténcia, uma energia que cativa e apraz o espectador. Com isso, o homem vai imprimindo sua marea determinante nessa paisagem, que, embora lbe pare ca bela, se torna mais bela ainda e distinta do mundo físico cotidiano. Ultrapassando o patamar sensível dos sentidos, o homem eonstrói as suas paisagens modelando, eenarizando a realidade no seu devaneio, geografízando seus sonhos. Sonhador da paisagem, para usar uma expressao de lavor bachelardiano, tem nessa paisagem um pressuposto de sua vida e a condicáo ambiental de sua cultura. Embora vivendo um cotidiano exigente de praticidade - como pescador, canoeiro, coletador de castanha, plantador, extrator de sementes e outros produtos -, a sua paisagem ideál está sem pre confrontada com as contigéncias rotineiras da paisagem física. A Matintaperera pode assobiar na roca, o Curupira poderá brotar por trus de uma castanheira, o Poromina-minare pode passar voando nas asas de um jaburu. Mesmo á flor das águas, quando alguém se inclina para verillcar se o peixe Foi fisgado, pode eontemplar "imaginalmente" o emer-gir do rosto misterioso da Uiara. Ou, en-tao, nalgum momen-to de qualquer viagem, no colo da vela grande da canoa, pode sentar-se cansada a Mae-do-vento. A natureza ideál interpenctra se com a natureza física, dentro de uma atmos fera própria do sfumato e do maravilhoso, mim najeto que se torna o "reflexo ou ampliacáo da segunda, razáo por que a diferenca entre ambos é neste caso apenas de gratis ou de dimensao" (Eidorfe Moreira, Obras reunidas, Vol. III, p. 14'?)". Sao estados geradores de atitudes culturais que evidenciam a funcáo estética, próprias da vida amazónica, que permitem á cultura tornar-se uma unidade em meio á dispersao e á gran-deza da paisagem. E que, teoricamente, permitem uma apli-cacáo livre e extensiva do ponto de vista de Maffesoli, quando aflrma, nas adverténcias metódicas da obra. A transfigu-racáo do político, que "numerosos sao os que nao hesitam mais cm analisar a sociedade de um ponto de vista estético, os que destacam as emocöes comuns e sobre sua eficácia"48, f. A visualidade ritual O marabaixo, o sairé e o marambiré säo algumas das mani-festacöes ritualizadas que compöem a vasta e diversa visua-lizaeäo poética da Amazonia. Säo essas formas de criacöes que se foram constituindo em ängulos de uma história cultural estetizada, significativos vetores de apelo e atracäo do sensível. Säo exemplificacöes de uma história cultural na quaI há uma impregnacäo poética, nestes casos cenicamente marcada por sua qualidade de dancas de celebracäo. Essas manifestacöes, reunindo a linguagem da poesia, da música, da danca, ultrapassam o significado autönomo de cada uma dessas linguagens, para constituírem uma linguagem propria na qual a esteticidade entra como importantíssimo vetor de articulaeäo. Verdadeiro reencontro de uma unidade primeira, criaeäo que se eria por meio do seu proprio eriador, desde as origens e nas várias histórias eulturais, a danca ritual ultra-passa a si mesma como unidade temporal para rcligar o visí-vel e o invisível, aquilo que está dentro e fóra de um tempo. Seja a danca de David diante da Area da Alianca, seja a danc,a que transporta ascencionalmente ao mundo dos espíritos, sejam as dancas amorosas ou do sol dos índios americanos, seja a danca fúnebre da China, seja nas dancas das expres-soes dogmáticas do Egito antigo, seja a danca de possessäo do Vodu haitiano, sejam as dancas cósmicas da India, como nas ritualizacöes do marabaixo, do sairé e do marambiré, há uma íusao religiosa mística, erotica, emotiva, mágica e esté-tica. Tudo é mobilizado em torno de uma dominante mági-co-religiosa, é claro, mas ostentando em nível imediato a funcäo estética, já que será pela forma de atracäo do sensível que, ä semelhanca dos signos autönomos do formalismo russo, atraem c concentram a atencáo sobre sua forma: o corpo, o rosto, os olhos, os lábios, os bracos, as pernas, a voz. o movimento, o ritmo, o canto. A influéncia negra ou indígena dos rituais amazónieos impregna da profunda 1+4 dramaticidade do sou signiflcado, oriundo nas cultures de onde se originaram e de seu profundo misticismo. As expressöes do marabaixo, do sairé e do marambiré säo criacöes exprcssivas de uma poética cultural, que encontra equivaléncias ou correspondéncias cm outros campos artísti-cos. No campo literário, por exemplo, há nos poemas de Homero, quando relaeionados runcionalmente com a cul-tura grega. Säo imagens de uma "idade poética" ainda ani-mada por "esta visäo lúdica que anima, cm profundidade, a estética cotidiana"49. Acompanhando extensivamentc as reflexöes desse pensador da cultura, pode-se di/.er que nes-sas manifestacôes "há o intenso prazer estético ou seu livre uso na vida cotidiana, no imaginário grupal, em todos as ŕu-sôes pontuais do que já fálei: musicais, esportivas, religio-sas, e que í'azem desia vida uma obra de arte"''0. Säo expressöes que permitem consolidar a idéia de parlicipa-cäo comum, do estar juntos, de constituir-se uma ampla embora dispersa comunidade, reforeada nesse contato pela seducäo das amplas identidades evidenciadas pelo visual c o sensível. A participacäo comum permite "o sair de si, a pul-säo gregária, o desejo de viscosidade, é obra de uma "ética da estética'"'1... Essas manifestacöes asseguram o ultrapassamen-to do universo dos interesses imediatos ou das materialidades, privilegiando a contcmplacäo repousante do sensível, que a si mesma alimenta e de si mesma se compraz. Compondo a j);n-sagem cultural, passam a constituir um cenário emocional que situa a sociedade cm urn mesmo palco, na mesma cena, reunida por uma ampla solidariedade social que advém do sentimento estético vivido em comum e se incorpora na história: um estético que termina por se configurar numa ética. z. z. O Savrl É manifestacáo de caráter religioso e artístico que tem seu locus principal em Alter do Cháo, distrito de Santarém -município localizado na conlluéncia de dois grandes rios, o Amazonas e o Tapajós, na microrregiáo do Médiu Amazonas paraense, distando 710 km em linha reta da capital do Estado, tendo uma populacáo de aproximadamente 272.605 habitan-tes, segundo o Censo Demográťico de IBGE, 1980-90. Santarém é município rico cm atividades culturais, nas seguintes modalidades: boi-bumbá, cruzador tupi, carimbó, camelu, desfeiteira, lundu, comédia de pássaros, pastorinhas ou autos de natal, quadrilhas, sayré, etc. liste ultimo tendo uma signifkacao sociocultural mais rica, alem do caráter mobilizador de várias formas de expressáo artística que se cxpandem em torno dele. As raizes do Sayré estao íineadas na tradigáo indígena. O processo de ampliacáo do seu alcance e modificacoes do ritual de origem dcveu-se á acáo dos padres catequistas que atuaram na area. Como fa to cultural, já aparece registrado nos códices do padre Joáo Daniel (1722-1776), Tešouro des-coberto no ho Amazonas, 3" capítulo, 2:' parte, referindo-se á iransíormacáo dos cantos do Sayré em cánticos devotos. Constituído inicialmente por meninos e meninas, com o tempo se viu invadido pelos adultos. "0 objeto simbólico Sayré sempře vem ornado com fitas de diversas cores, belas plumagens em vermelho e branco, alem de espelhos e outros adornos... É um semicírculo de madeira de urn metro e qua-renta centímetros de diámetro, contendo dentro dois meno-res, colocados um a par do outro, sobre diámetro maior. Da uniáo dos dois parte um raio, do grande que excede a circun-feréncia, formando uma cruz. Os menores também tem o seu raio perpendicular ao diámetro comum, rematados em cruz; estes arcos sáo envolvidos por fitas e enfeitados corn espelhi-nhos, doces, frutas, etc. Este instrumentu, inventado pelos missionários para perpetuar e firmar mais a religiáo cut re os índios, tem uma significacao bíblica. 0 Sayré perpetua o dilúvio e as třes pessoas da Santíssima Trindade, creio eu e assim explico: o areo significa a area de Noe; os espelhos, a luz; os biscoitos e frutas, a abundáncia que havia na mesma area; as třes eruzes, sendo a superior niaior, as tres pessoas da SS. Trindade, e mn só Deus verdadeiro, representado pela cruz niaior e mais clevacla..." desereve Barbosa Rodrigues, numa busca de significances alegóricas" Náo sáo bem claras as fundamenta^óes clessa exegese simbólica ensaiada por Barbosa Rodrigues, mas nao deixa de ser muito interessante. 0 médio Amazonas paraense, onde Ilea situado Alter do Chao, é uma area na qual, durante o inverno, quando as copiosas ehuvas contain com a coincidéncia do degelo dos Andes, um verdadeiro dilúvio se abate sobre essa regiáo. A infinidade de barcos de todas as modalidades e earregamen-tos que ílutuam nesse mundo de água, as águas inundando as terras das margens, cobrindo-as em grandes extensoes, o sentido regenerador que decorre da terra fertilizada pelas águas servem como complemento do quadro evocador, que talvez ten ha provocado esse despertar alegórico na exegese do Areo do Sayré leita por Barbosa Rodrigues. A Procissáo do Sayré tem um desenrolar muito simples. Os personagens que a constituem percorrem algumas mas do distrito de Alter do Cháo, até entrarem na pequena praca, á beira do rio e da praia, para depositarem o areo e a i mágem de Sáo Torné, que também vem pintada nas bandeiras ergui-das ao vento. Á (rente um menino - pelo menos essa é a tra-dieáo - agita no ar uma bandeira branca de aproximada-niente 1,80 m, onde está pintada ou bordada, no centro de uma grande cruz vermelha, a imagem de Sáo Torné. Prctende, com esse gesto, afastar os maus espíritos. lim seguida, cami nham os músieos, um tocando tambor e outro uma llauta rústica sernelhante a um pí faro. lan seguida vem carregado o Mastro do Sayré, vendo-se, na parte de cima, a imagem de Sáo Torné. Ao lado do grupo que leva o mastro, caminham o Juiz e a Juíza da festa. Devern estar vestidos de bianco ou de azul e vermelho. Os outros participantes trajam calcas risca-das ou braneas e eamisa de variadas cores. Encerrando com destaque a procissáo, vem trés mulheres trazendo o Areo do Sayré. Usam saias braneas de algodáo e camisas do mesmo H7 pano, enfeitadas de rendas e grandes decotcs. Trazcm, geral-mente, penteado alto, com pcntes dc tartaruga c flores no cabclo. Em cada mao vcm urn lenco branco. Muitas vczes estao descalcas. As mulheres do Sayre scguram o Arco da seguinte maneira: a primeira scgura a extremidade csquerda; a scgunda, a direita e a terceira, pelo ccntro e atras de todas, scgura a extremidade da fita vermelha presa na cruz que encima o Arco. As duas, que seguram nos lados, ondulani a peca a altura do rosto, enquanto que a terceira, que segue atras, segurando a fita, movimenta-se para frente e para Iras, numa oscilacao de ondas sobre o rio. As tres mulheres do Sayre lideram o canto, que e uma melo-peia de poucas variacoes, semelhante as ladainhas de quase toda a Amazonia, enquanto que os acompanhantes respondent regularmente, o recitativo. A procissao entra na praca e se aproxima do lugar onde sera colocado o Mastro. Cantam as mulheres: Minha mae, minha mdezinha, que riea mae tenho eu, estava nas dnsias da morte, eu cantei, ela viveu... Respondent, em cow, os acompanhantes: Pela graca de Sao Tome. Vela graca de Sao Tome. Cantam as mulheres: 0 meu peito e urn ninho e um ninho, sim senhor, nele existe um passarinho que vive a can tar de amor, lite. Uessa maneira o Mastro c fixado no local cscolhido, proximo da capela onde tlcara exposta a imagem do santo. 0 ceri-monial passa a decorrer em sua volia. 14.8 Cantam as mulheres: Bonita mulher é Santa Maria e Jesus Men i no é Undo como ela! Os acompanhantes: Oh! Santa Maria, Santa Maria, nos céus e na terra, bendita seja! Cantam as mulkeres: Do ecu veto a cruz sagrada que há de salvor nossas almas. Lite. Ojuiz e ajuiza, que sdo os patronos da festa, däo golpes sim-bólicos no mastro, em torno do qual a ccrimonia con-tinua a decorrer. Cantam as mulheres: Eu canto este Sayré em louvor a Säo Tome. Os acompanhantes: Eu canto este Sayré em louvor a Sdo Torné, Etc. Inicialmente ligada á festa de N.S' da Saude, iniciada no dia 28 de dezembro, encerrava sua parte religiosa no dia (> de Janeiro e a do Sayré no dia seguinte, com a derruba do mastro, que tinha sido erguido no inieio da celchracao, e a var-ricäo da festa. A varricao consistia na cecuiara, que é um lauto almoco de comidas tipicas, em mesa adornada de fru-tos e Hores, sobre alvissima toalha rendada. For volta de 1943, os padres norte-americanos, atuando na regiäo, por considerarem o Sayré como uma espécic de idolatria, agiram no sentido de terminar com a feslividade. Foi mais um capi-tulo a se integrar na história dos conflitos simbólicos da Igreja e a cultura nativa, considerada por esta como primitiva, herética ou idolátrica. A lestividade só foi revivida a partir de 1973, em outra data, 22 de junho. 0 Sayré é, dentro da Amazónia, um desses casus put issignifi-cativos de interpenetraeäo da paisagem fisica com a cultural, na qual a funcao estética se evidencia. Nao apenas porque 0 Sayré reafirma o sentimentu de unidade do grupo, realimen-ta a auto-estima e o sentimento que esse grupo tem de um viver em comum, eomo porque mobiliza a uniáo de todos em torno de uma expressao de crenca e beleza - uma forma de aparéncia que tem papel fundamental no acontecinicntn. 0 Sayré motiva a populacáo, congrcga em torno de si uma série de manifestaeoes de cunho artistieo que compóem a festividade, torna o belo distrito de Alter do Chao um vitral artistieo atravessado pela luz da tradicáo popular. A maior parte dos participantes assume o papel de espcctadores que organizam suas festas particulares nos barcos alugados para transportá-los até o local. Este é, também, um aspecto cons-titutivo da j)aisagem do Sayré. No rio em frente e cm torno á coroa de areia que aflora nas águas csverdeadas, várias dezenas de embarcacoes transformam-se cm palco de músi-ea e festa, criando um ambiente de intensa vibracáo da sen-sibilidade. "Nessa perspectiva 'formista' para lembrar a precisa reflexáo de Maffesoli sobre comunidadcs emocionais a eomunidade vai se caracterizar menos por um projeto (pro-jectum), voltado para o futuro, do que pela efctuacao in (tetu da pulsáo de estar-junto"',!. A verdade é que nenlumi habitante da regiáo, nenhum visitantc que por li tetdia pas-ado na época da celebracáo é capaz de se referir a Alter do Chao sem mencionar o Sayré, no contexto do cenário de águas verdes do Tapajós que alimenta a enseada em frente, [jelo grande lago que fica á direita da vila adornado de praias alvíssimas, pela ilhota longitudinal de areia que a Hora como um peixe no rio em frente ao distrito. As cores, os eánticos e as etapas rituais do Sayré sáo constituidores da paisagem de Alter do Chao. Ao mesmo tempo sáo, também, formas formantes da paisagem emocional tapajdnica c eom-ponentes dessa necessidade universal de identificacao onto-lógiea do homem. z.j. O Marami?ír& Criacäo cspontánea na vida cultural da comunidade do Pacoval, no município de Alenquer - localizado na margem esquerda do rio Amazonas, na microrregiäo do Medio Amazonas paraense — o marambiré é urna expressäo de mar-cante beleza visual, rcligiosidadc c arte. Constitui-se nuín clo entre OS membros da comunidade, expressäo de sabedoria e maniľestacäo de refínada sensibilidade. "0 Marambiré nasceu do sofrirnento do povo negro", revela Bena, moradora do Pacoval, de voz de täo belo timbre que se destaca nos cantos do Marambiré. "0 Marambiré é danca religiosa que nem lala nadá sobre negócio, só ľala cm Deus e Santo" (Joaquim Carolino, morador do Pacoval e membro do Marambiré). Alenquer situa-se ä margem do estreito de Alenquer (antigo rio Surubiú) e dista 701 km cm linha rela da capital do Estado. A populacäo era de 5G.G31 habitantes, aproximada-mente, cm 1990''. A viagem pelos rios do município é bas-tante pitoresca, pois, ao longo do itinerário, tem-se a oportu-nidade de encontrar verdadeiros jardins de vitórias-régias, a mais bela e mitifieada Hor aquáliea da Amazônia. Por terra, através de urna estráda de 3 5 km, pode-se chegar ä Cidade ou Morada dos Deuses, urna surpreendente "cidade de pedras", no meio da mata ílorestal, descoberta pelo pesquisador inglés Michel Douglas, em 1950. 0 poeta e jornalista alenqucrense Aido Arraes reivindica para si a autoria da dcnominacäo do lugar: "... o nome Cidade dos Deuses (bi colocado por mim nessa mesma época, quando exercia o cargo de Diretor da Imprensa Oficial do Município e redator do jornal 0 Alctiqucrcnsť". Iissa imi)ressionante Ibrmacäo rochosa, con-siderada urna das mais belas do Brasil, que surpreende o visita nte no meio da floresta, acentua atmosféra de mistério, sagrado e emergente mágia da regiäo. É urna area cogitada como objeto de protecäo ambiental por sua Ibrmacäo geoló-gica semelhante a urna cidade de templos, coluna-tas e con-juntos arquitetônicos, pelas inscricoes rupestres e Hora e fauna que se distribuem no seu entorno. Säo inúmeras as manifestacôes de cultura no munieípio, dentre as quais podem-se destacar os grupos pastoris, o boi-bumbá, as comé-dias de pássaros, o batuque e o Marambiré. O Marambiré é por excelencia expressao cultural do antigo mocambo do Pacoval, constituído provavelmente pelos negros fugidos das fazendas de Santarém, e até hoje locali-zado ä margem do rio Curuá. Procurando um lugar seguro "...eles pararam aqui... entäo inventaram este cordäo do Marambiré que eles brincavam", diz José Santa Rita, morador e membro do grupo. Em todas as fontes, há referéncias äs o ti gens do Marambiré no Pacoval de Alenquer. Durante muitos anos esscs negros refugiados evitaram o contato com o bran-co e o caboclo, quer dizer, isolaram-se da miscigenacäo, pre-servando suas ereneas e um sistema de vida. Mantiverarn, com isso, urna duradoura integridade racial. Alcan^ados pela eatequese dos missionários católicos, seus habitantes absor-veram sinereticamente o cristianismo, aproximaram-se da eidade de Alenquer, espalhando-se em pequenos aldeiamen-tos, restando os negros mais velhos e suas famílias no vila-rejo do Pacoval. Ali é festejado Säo Bcnedito - o Santo Preto na época dos Santos Reis, durante a qual, os negros pro-movem as manifestacôes do reisado, da eongada e do marambiré, trazido e ensinado pelos "pretos velhos". 0 Marambiré é urna espécie de ritual religioso e danca dra-mática de grande formalidade, com ritmo bem mareado por instrumentos como: caixas, chocalhos, pandeiros, violäo, viola, rabeca, reco-reco, caraeachá, etc. A danca se const i tu i um cotejo real ao qual se liga urna parte que representa a Embaixada. Presume-se que o Marambiré seja urna danca inspirada nos festejos da coroacäo dos Reis Magos. O Marambiré apresenta-se majestoso e solené, por grupos de in divíduos que dancam, produzindo riqueza de movimentos na execucäo dos passos. As cantigas sáo simples e belas, numa mistura de lingua africana, portuguesa e indígena,",''. Aido Arraes reproduz a versäo que considera a mais lógica sobre a origem da palavra Marambiré, como produto da siní plifícacäo, por economia da linguagem, da denominacäo do Bloco do tio do "Meram do Joäo Biré", talvcz o grupo folcló-rico mais bonito, vistoso, hem vcstido e alegre que se tem notícia. Nele, o cacador cantava: Foi tia Meram do Joäo Biré que inventou o Merambiré no Já lad o Pacoval... Mais adiante, no mesmo texto, transereve-se o testemunho de Theodósio Constantino Baptista Valente (Velho Dudu) que foi agente municipal de estatística, Juiz de Paz, funcionário publico, longevo de 97 anos propiciadores de grande expe-riěncia: "Filho (entrevista concedida a Aido Arraes), o nome Marambiré, com certeza, veio dessa brineadeira da vellia Meram, companheira do Joäo Biré, que foi um eurador aía-mado e um toeador de banjo sem igual. Tia Meram tinha um cordäo muito bonito e muito falado, só de negros do Pacoval, que parecia um cordäo de rezadores, diferentes dos blo-cos de pássaros, pastorinhas e bois-bumbás". (Idem, p.l 1). Segundo os informantes, a formaeäo original do termo teria sido "merambiré", modificando-se pelo uso, tornando-se "marambiré", hoje termo consagrado e definitivo do ritual. 0 Marambiré é uma espécie de "congada" amazônica, tradi cäo de comunidades negras espalhadas cm todo o Brasil, até o Rio Grande do Sul, com maior concentracäo, porém, cm Minas e Goiás. Há farta literatura. Ver o verbete Congadas, Congados, Congos, no Die. de L.C. Cascudo para ler informa-cäo sintética, mas bem fundamentada. 0 primeiro registro no Para, do meu conheeimento, deve-se a Francisco Cronje da Silveira, Inspetor Regional do IBGF no Para, verbete municí-pio de Alenquer, publicado na Encielopédia dos Munieipios Brasileiros, do IBGF, 1957, p. 267. Também registrou "Aiué" cm Faro e Oriximiná, em documento inédito, datado de 1950, feito especialmente para a Comissäo Nacionál de Folclore. Do "aiué" há registro mais antigo em Gurupá, de Manuel Buarque, 1920, e música de velho lundu utilizada pelo maestro José D. Brandäo na Rapsódia Paraense na /, cm 1907. Pesquisa mais ampla, com documentacäo musical v textos 153 poéticos, de Lygia Concei-cäo Leitäo Teixeira, Marambiré; o negro no folelore paraense, 1989, v. cle 103 p., expressäo do Pacoval, Alenquer. Para Vicente Salles, a palavra "Marambiré" soa como legiti-mamente africano, constituída de ma, prefixo plural no quimbundo, diantc de tcrmo bamba (clo quimbundo mbam-ba), donde bambaré ou bambaé, danca de tambor no Mara-nhäo, e mais especificamente a formacäo "bamba ô ariré", nos versos: Olha o Marambiré, ambirá, ambirá, bambamareré 0 gurupema maxi, olha o Marambiré, bambamareré (Paes Loureiro) ou Ambirá, ambirá, ambirá ambirá, bamba ô ariré E orupembaxi, olhe o marambiré, bamba ô Ariré (Lygia Teixeira). "Bamba ô ariré", como "bambamareré", tém sentido mítico ou religioso, associado ao panteäo dos voduns, tradicäo mina-gége presente no baixo Amazonas, talvez pela expan-sáo dos cultos aí'ros de Sao Luis e Belém, também presenter entre os negros do Caribe. Um detalhe de alta significac,äo e fundador do Marambiré é urna "espécie de tiara", que adorna a cabe^a de cada component e do grupo. Essa espécie de tiara será denominada. neste estudo, de Tiara do Marambiré. É urna peca cuja base circular envolve a cabe^a da testa ä nuca. Na regiao frontal ergue-se um triängulo nao-vazaclo, com o cateto basilar ocupando longitudinalmente a testa inteira. A superfície desse triängulo é preenchida po r tiras cle a ráme ou papelao. Essa parte triangular é toda recoberta, ä semelhanc,a do que acon-tece com a peca inteira, por minuciosa tecelagem ou dobra-dura de papel branco e colorido, geralmente verme-1ho e azul. Do ángulo superior do triängulo e de seus dois ängulos laterais de base, assim como da parte do círculo cjue cmvolve a nuca, a partir das extremidades da testa, pen dem íl tas coloridas. Essa tiara é simbólica e institui o Ma rami) ire. Alem de ser usada por todos, ela é colocada peio Rei e a Rainha do Congo - personagens principals da celebracáo - na fronte da ima gem de Sáo Benedito, santo (pie é festejado por sens devotos. Esse gesto instaura uma forma de humanidade no santo padroeiro. Torna-o, por esse proeedimento, urn personagem do Mararnbiré. A Tiara do Mararnbiré constituiu-se no elemento entroniza-dor no grupo cerimonial ou instrumento de cortesia, servin-do para demonstrar aíétividade e respeito para com as pes-soas estranhas ao lugar, na medida em que a estas é ofereci-do durante ou após a cerimónia. Nela está concentrado o drama de toda uma história de existéncias, da memória de seres que perderam a pátria e a liberdade sob o jugo trágico da eseravidáo. lila é um "símbolo guia" na busca de um tempo que se perdeu, do tempo convertido cm ilusáo. 0 tempo de um nunca-mais. A Tiara do Mararnbiré é um exemplo do "tempo comprimido" [temps comprimé) de Bachelard e Durand56. Como na célebre alegoria do doce "madaleine" (madalena) - consagrado símbolo do tempo concentrado, cm Proust ou na revelacáo poética do "escudo de Aquiles fabri-cado por Héphaestos, na Ukula de Homero, no qua! toda uma história humanizada se concentra. Vale a pena reler o texto de Proust em Os Caminhos de Swann: "E mal reconheci o gosto do pedaco de madalena molhado cm cha que minha tia me dava (ernbora ainda nao soubesse, e livesse de deixar para muito mais tarde tal averiguacao, por (|ue motivo aquela lembranca me tornava tao feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava o sen quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhao que dava para o jardim e que fora cons-truído para mens pais aos fundos da mesma (esse truncado trecho da casa que era só o que eu recordava alé entao); e, com a casa, a cidade toda, desde a manha á noite, por qual-quer tempo, a praca para onde me mandavam antes do almo-co, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo, li, como nesse divertimento japo-nés de mergulhar iiimia bacia de porcelana cheia ďágua pedacinhos de papel, até entäo indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se cobrem, se diferenciám, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninfcias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solides, saiu, cidade e jardins, da minha taca de chá"'1'. E, tam-bém, de grande e significativa beleza, o fragmcnto da Uiada, relatando o trabalho de Héphaestos: "Grande e macic,o, pri-meiro, fabrica o admirável escudo, com muito esmero, lan c.ando-lhe ä volta orla tríplice e clara, de imenso brilho. Nela o ferreiro engenhoso insculpiu a ampla terra e o mar vasto, o flrmamento, o sol claro e incansável, a lua redonda e as numerosas estrelas, que servem ao céu de coroa. Pôs nela as pléiades todas, Oriäo robutíssimo, as Iliades, e mais, ainda. a Ursa, também pelo nome de Carro chamada, a Ursa que gira num ponto somente, a Oriäo sempre espiando, e que entre todas é a única que näo se banha no oceano"58. Em primoro-so trabalho artesanal, Héphaestos vai forjando e concentran do nesse escudo todo o vasto tempo da história dos homens. "Duas cidades belíssimas de homens de eurta existencia grava, também.**59 "Ä volta da outra cidade se véem dois in i migos exércitos com reluzente armadura."'" "Um campo real, também, grava..."M "Representou uma vinha, também, carre-gada e belíssima; de ouro brilhante era a cepa e de viva cor negra os racimos, que sustentados se achavam por muitas estacas de prata."62 Há na cultura de lingua portuguesa um conecito, uma pala-vra que é uma revelacäo do tempo concentrado: saudade. Cruzamento entre o tempo e o espac^o, tempo perdido e reen-contrado, momento presente de auséncias, doc^ura amarga d a memória, a saudade é um triunfo do ser no corac,äo do näo-scr. De čerta maneira, o mesmo etbos que reaparece na Tiara do Marambiré, esse cocar do tempo concentrado que si mho liza o Marambiré do Pacoval. A Tiara do Marambiré faz do proximo o distante, na medida cm que o distante (representado pela história dos negros cm 15C terras africanas de origem, anteriores ao exilio) torna-se proximo. 0 momento presente da representaeáo é profundamen-te auratizado pela memória do passado remote Trata-se de uma síntese entre o passado e o presente, alcgorizacao da eterna busca do tempo perdido. Estudando a questáo dojogo dialétieo entre aura e alcgoria, Flávio Kothe explica (pie: "...nesse movimento auratizante de trazer o distanle para perto sempře está contido o seu reverso: o (pie está proximo se torna distante, e mesmo quem ouve se vé transportado para lugares e épocas distantes. O alegórico é, entao, o reverso do aurático. E isso náo enquanto duns categorias separa-das e antinómicas - como flea implieito em Benjamin - mas nuitia dialética unidade de pólos antitéticos"63. De čerta maneira o Marambiré torna-se, portanto, um acontecimento aurático-alegórieo, uma vez que a tradicáo retórica eonsagra como alegórico aquilo que representa coneretamente uma idéia, isto é, coneretiza uma abstracáo. Náo se trata de uma aura de poder, como a que emana da coroa, expressando nuances de poder social. Nem o earáter transcendente das auréolas das imagens de anjos e santos. A Tiara do Marambiré ilumina-se com a melaneólica aura do paraíso perdido. O paraíso reinstalado por todos cm suas origens, antes de alguma queda ou cativeiro. Ao longo de todo o seu ritual "cénico" itinerantc, na forma de um cortejo real do Rei e da Rainha do Congo c sens súdi-tos, vai sendo homenageado Sáo Benedito ao mesmo tempo em que se recorda a terra perdida. A hipótesc corrente é a de que seja uma reeria^áo dos festejos de coroacáo dos Reis Negros, celebrada pelos eseravos cm determinadas datas. A corcograíla é majestosa c solené, marcada por tempos preen-chidos por passos corcográílcos cnérgicos c de mar-cantc virtuosismo dos "solistas". A acáo dramática se desenrola na forma de completa integracáo entre "atores" ou membros dessa representacáo-celebrantc e os espectadores-participan-t(>s, que se dcslocam processionalmente a partir da capela de Sáo Benedito, onde tem início a representaváo, a partir da entronizacáo do santo ritual. A coroacáo do santo com a I iara do Marambiré resolve simbolicamente o problema c está ligada ao princípio mágico-rcligoso da acáo. É a "entrada". V7 Conta o Rei do Congo: Ora abra sua porta, queremos entrar Queremos vcr Sao Benedito que está no altar Etc. Coro: Sec uncle Aiuc, Secundc Olha o Congo Real pra vos mercé. Etc. A segunda parte constitui-se de urn percurso ritual istico pel a vila, quando há intervencao participante dos que acompa-nham. Este percurso, alem de estimular a solidariedade do grupo, visa a homenagear os mais velhos, já impossibilitados de atividades fora de casa. Cántico: Outro Cántico: Outro Cántico. Olha o Marambiré, ambirá, bambamareré 0 gurupema maxi, olha o Marambiré, bambamareré Etc. ľlantci na minha horta, oh! Tolinda Um pé de rosa branca, oh! Tolinda Ľ naseču eravo, naseču rosa, oh! Tolinda E flor de melancia, oh! Tolinda Etc. Maria, ainda em fragata nove meses a navegar Correndo em alto mar Atirou-se cm pecas e léguas Etc. Canta o Rei do Congo: "Oh! Rainha do Congo para onde vai? Responde a Rainha do Congo: "Eu vou pro rosdrio perd Mac de Dcus". Etc. tS8 A etapa seguinte, a "noite da iesta" - que é uma interrupciu) da caminhada quando chegam ao barracäo eomunitártio, marca o lado mais artístico no sentido coreográfico e predo-mínio do estétieo. Mantém-se aí a estrutura dialogal entre membros do Marambiré e espectadores-participantes. Canto: H oj c é noite d c Jest a Noite de m u it a alegria Etc. O eanto é para que as danias dancerrí em volta dos cavalhei-ros, passando de um a um. Canto das Danias da Rainha: Renia que reina que tonui a remar Raminho de ouro nas ondas do mar Etc. Coro: Aiue A iue Tiu uiricá Introduz-se, com isso, a danca do lundu ou lundum. 0 lun-dum, (pie é uma danca de pares soltos, apresentando tracos de erotismo nos movimentos, tern origem aľrieana, e consti-lui outro momento de expressiva coreografia nas cenas da Iesta. 'í? Canto: Se eu soubesse que tu vinhas Se eu soubesse que tu vinhas Mandava varrer a estráda Mandava varrer a estráda Pingava um pingo de eheiro Do sereno da niadruqada Estamos em forma, para marchar Vamos depressa, queremos eheqá Etc. No segundo dia, após nova rcuniäo de todos os participates, na parte da manhä, há urna sincrética celebracäo do Marambiré com a Missa católica. Em seguida, o Marambiré se dirige ä margem do rio Curuá cm ľrenle. Os participantes--atores - entram nas igarités - que sáo pequenos barcos de remo, como pirogas, feitos com tábuas ou cavados a fogo cm troncos de árvores - e väo se afastando. As igarités flutuam levando os personagens vestidos com suas roupas coloridas, que däo a impressäo de dezenas de periantäs - Uhas vegetais flutuantes que se despregam das margens lentamente se avancando para o meio do rio. Lá estäo o Rci c a Rainha do Congo, as damas e cavalheiros da "corte", os porta-estandar-tes e bandeiras, os músicos tocando seus instruments. Todos eantam um sofrido canto de despedida, como se cstivcssem partindo para o cativeiro: Se meu p art i r é ccrto Seu partir também será. S e a m in h a morte é čerta A tua vida sentirá Que estd cheqando a hora. Ao chegarem justamente ao meio do rio, os barcos organi-zam-sc formando uma linha longitudinal de cores, brilhos e canticos. Em seguida, silenciam a musica c os cantos. Enquanto isso, urn profundissimo silcncio, como sc ate a alma das coisas ficasse momentaneamente calada, paira sobre todos. E quando os participantes, de uma so vez, atiram na t€o água a Tiara do Marambiré, para demonstrar que o Marambiré (isto é, o povo negro) partiu para o eativeiro. A Tiara do Marambiré, que Irouxera o passado ate o preseule mitrado de nostalgia, quando instalado em torno da cabeca dos mem-bros da celebracao, ao ser atirado no rio, devolve, subitamen-te, o passado ao passado e o presente ao presente. A partir de entao, todos voltam para a margem onde a comunidade os espera, divertindo-se, festejando, eomo se estivessem "desin-vestidos" do drama, aliviados para a retomada do cotidiano. A Tiara do Marambiré, belo exemplo de tempo concent rado, pode ser vista como o sol (pie raiou, reinou e se pus no horizonte do imaginário de uma terra perdida. Uma aura que sacralizou com sen fulgor toda a encenaeao ritual, elevando-se a uma condicao densamente simbólica. Nela se desenvol-veu urn processo de identificacao proximo do que se apresen-ta na estétiea aristotélica. No entanto, abandonando a Tiara do Marambiré nas águas, propicia-se a quebra dessa aura, mini procedimento "cénico" (pie se assemelha ao que Brecht conceitua como o "distanciamento" ou estranhamento, em sua dramaturgia. Uma atitude crítica e desveladora de (pie aquilo Jbi uma encenaeao na qual todos f'oram atingidos por seu el'eito litúrgico e dramatico, mas nao perderam a ligae.au com a propria realidade. Urn singular processo de reversáo semiótica ou simbólica, categoria que entendemos explicar essas mudancas de estado signieo, e que senti explieitada e aplicada em outros momentos deste estudo. iff z.f. 0 Curio cU> OriKiMiínÁ É natural que numa regiäo na qual se estende a maior bacia hidrográfica do mundo, constituída pcla imensa calha do Amazonas e seus numerosos afluentes, com ccrca de 20.000 km de nos pcrmanentemente navegáveis, os rios atraíssem, imantados de interesse, as atencöes de todos, para as ma is diversas {undoes e finalidades. As águas penctram o mais profundo ser. Águas do fundo da terra, águas deslizando na pele da terra, águas caindo do céu. Águas que se subjetivi-zam. Que representam aquele "ser total" de que fala Bachelard: "Ela tem um corpo, uma alma, uma voz"64. A elas a vida amazônica está intimamente ligada, por ela circula sua vida, faz deslizar seus ritos cristáos, as procissôcs de Santos ou "círios", como a procissäo dos santos padroeiros é designida em grande parte da Amazônia. Säo os círios fluvi-ais. E o rio estabelece uma conciliadora relacao de signos opostos: as encantarias, onde morám os encantados - enti-dades pagäs dos cultos populäres caboclos e indígenas -estäo no lundo dos rios; os santos e anjos da igreja deslizam ä superfície. Os mitos constituent uma espécie de natureza barroca do rio (e seräo estudados mais adiante), cnquanto que a mitologia crista passa pela superfície, transitórios e em tránsito, como se pertencessem a uma outra realidade — a terra - onde desembarcam. Os círios lluviais na Amazonia constituent rituais de marcan te visualidade e se integram ä paisagem cultural da rcgiäo. Razöes de seguranca e praticidade concentram essas práticas em rios menores, furos e mesmos igarapés. Embora alguns sejam realizados em grandes rios como o Círio fluvial de N.S.' de Nazaré, em Belem do Pará, o Círio de Óbidos á N.S.J de SanťAna e o Círio de Oriximiná, dedicado a Santo Antonio. Este ultimo será analisado no campo significativo da visualidade, quando o grandioso da natureza se integra com a expressáo cultural, e ambos evidenciám e ampliam em primeiro piano a funcáo estética. /éTz Oriximiná • topônimo de procedéncia indígena que signifi-ea "macho da abelha" ou "lugar de muitas praias" řlca situada ä margem esquerda do rio Trombetas, no Médio Ama-zonas paraense. Lá podem ser observadas algumas mís-ticas manifest aeôes culturais. Há, inclusive, uma conhecida pelo nome de Encomendadores de Almas. Trata-se de um grupo de folia no estilo luso-brasileiro, quando pessoas invo-cam perdäo e piedade a Deus pelas almas condenadas, can-tando angustiantes lilanias, sob o acompanhamento de per-cussáo e algum instrumentu de corda. Eormado por seis a oito pessoas, que se reúnem as dez horas da noite de quarta-feira de trevas no cemitério, para "buscar as almas". lim seguida, tocando e cantando litanias peregrinam até altas horas da madrugada, após o que voltani ao cemitério para "devolver as almas". Na Jornada, parám por alguns instantes á frente das casas que previamente Ihes solicitaram isso, como parte constitutiva do ritual da Semana Santa. Ä frente da cada casa fazem soar a campainha, a matraca, e cantata. A matraca dá o toque lúgubre. É instrumento oriundo das cerimônias católicas da paixáo de Cristo, cujos sons seeos, pereutidos por tabuinhas ou argolas de f'erro, estabelecem urna atmosféra densamente místiea, Como retribuicäo, os membros do grupo recebem um eopo de bebida e, em alguns casos eomida tam-bém, deixados no peitoril das janelas, pelos moradores recolhidos em easa. Os rezadores väo vestidos com camisas roxas de mangas compridas, usam calcas braneas c tém a cabeea coberta por um capuz br anco também. Dessa nianei ra cobertos ficam impedidos de olhar para trás. Ľ urna espé-cie "do interdito do olhar para trás" na história cultural de tantos povos, corno, por exemplo, no retorno ritual de Orfeu do inferno, ao resgatar das trevas Eurídice, a bem-amada ou, na tradicäo bíbliea, a fuga de Sodoma a tiomorra, na hora da destruicäo. A cantoria é urna cantilena lúgubre, como um sombrio cantochäo: Acordai irmäo Somos os derotos de Nosso Senhor .Jesus Crislo Pedimos um Pai Nosso c urna Ave-Maria Pela morte e paixáo de Nosso Senhor Jesus Cristo /é) Pcdimos um Pai Nosso e uma Ave-Maria Pclas almas que estäo em pecado mortal Pcdimos urn Pai Nosso c uma Ave-Maria Pclas almas que estäo sobre as ondas do mar Etc. Registra-se aqui o episodic) da Encomendacäo das Almas, originalidade e mistério, no contexto da cultura amazönica como exemplo vivo de uma convivéncia com o ativado da populacao local. No entanto, a mais ativa forma de expres-säo cultural com implicates em Oriximiná é o Círio fluvial de Santo Antonio - o Círio de Oriximiná. Ele oeorrc sempře no primeiro de agosto e repercute em toda a regiäo. Como toda procissao fluvial, as embarcacoes de diferentes medidas eonstituem o elemento fundamental na participacao, no cor-tejo e deslocamento dos participantes. Há, entre o barco e a procissao, uma relacäo de causalidade que confere ao primeiro uma dimensao verdadeiramente emblemática, o que perm i-te assumir vários níveis de significacäo na estrutura do Círio, nos quais a visualidade tem papel fundamental. Sem propria mentě converterem-se em instrumentu mágico-religioso, os barcos tornam-se um instrumento mágico servindo ä religio-sidade e ao prestígio social. Participar com seu barco pode, cm alguns casos, significar o pagamenio de alguma promessa, por alguma "graca" recebida. Pode também representar uma atitude preventiva como garantia de protecäo a Futuras via gens, demonstraeäo de papéis na hicrarquia social da regiäo (segundo, por exemplo, o lugar ocupado no cortejo), coulu -macao do prestígio politico (alem do lugar ocupado pelo barco, o numero de convidados importantes a hordo), demonstraeäo de poder cconómico junto ä comunidade [o porte, a decoraeäo do barco, a qualidade das bebidas e conti das servidas), enflm, estabelecendo as diferencas sociais e determinando os lugares e camadas sociais a que o proprietary do barco e sua família pertencem. Santo Antonio é o Padroeiro do município, a entidade maior, cuja devoeäo e celebraeäo supera todas as outras lestividades do calendário religioso e eívico anual. De čerta maneira, o Padroeiro pareee muito mais "proximo" e "humanizado" do que Dens. Pelo menos é o que prcenche o imaginário da crenca, esperanca. iQ}- desejo, diálogo, generosidade, sustentáculo espiritual. É um santo ou uma santa com os quais as pessoas adquirem estrei-ta afetividade, reforcada pela solidária dimensäo de uma espécie de "companheirismo". 0 Padroeiro c uma santidadc que está ali, "habitando" o mesmo chäo, convivendo com as mesmas necessidades, teslemunliando as mesmas dores, capaz de entender o cidadäo comum, familiarizado com os costumes, sensível äs diminutas dores do cotidiano, solidário com as crises contextuais do município, pronto a resolver os problemas segundo o merecimento contido no apelo, dialo-gando nas ladainhas e ritos com a populacao, velando enquanto todos dorrnem, presente no imaginário e nos alt arcs familiäres, estampado nos calendários por todos os dias do ano, pacientemente aguardando os devotos em sua casa de siléncio e oraeäo, castigando (em casos cuja gravidade afete a uma ética geral) os que pecam gravemente contra os costumes, interferindo no processo eleitoral conforme a maior ou rnenor piedade dos candidatos (c o apoio disereto e confessional do vigário, scu preposto), depositário insuspeito de todas as esperancas. Na escala celestial é como sc o Padroeiro fosse o plebiscitário "prefeito" do município, eleito para um mandato intemporal. Como "santo protetor" é benevolente, como se os seus podereš estivessem sempře a servico dos cida-däos, todos seus protegidos. Näo inibeni a queda (muitas vezes voluntária...) no pecado ou no crro, como adultérios, crimes, roubos, calúnias, etc. 0 Padroeiro mereee, acima de tudo, o respeito, mas näo o medo. K um amigo confidente, diante e ao lado do qua] sentem seguranca. 0 medo vem de Deus. Por isso, faltar com respeito, desobedecer gravemente ao Padroeiro ou äs normas de conduta presumivelmente recomendadas por cle, (jucbrar promessa leita a cle, con-stituern falta grave capaz de punicäo. De čerta maneira, ccle-brar condignamente a festa do padroeiro signillca reverenciá-lo com oracöes e cultos, agradá-los com dádivas e cumpri-mentos de [)romessas, reconhecer a importáncia cla protecäo recebida, competir com a religiosidade de outros vizinhos ou "rivais", iniciar as criancas c os mais jovens no sen culto. A "promessa leita" ao Santo Padroeiro tem de ser cumprida. l.ssa promessa é dívida, como analisa o antropólogo, Isidoro ■ Alves, em tese de doutoramento com esse título: "Pagar uma promessa e cumprir com um compromisso prcviamente esta-belecido, primeiro por uma graca alcancada e, cm segundo lugar, porque no evento rcligioso a coletividade se cxpressa na devocao ao Santo Padroeiro". "Pode-se dizer a promessa na festa religiosa é uma manifestacao de uma individualida-de quc remete a um compromisso entre o devoto e o santo... pelo que podemos afirmar como uma ctica do compromisso, ou seja, um conjunto de valores morais definem as atitudes no pagamcnto de atos relacionados a compromissos assumi dos. Se de um lado o sistema opera segundo uma logica do compromisso, ou seja, por princípios organizados, de outro lado, essa logica só pode ser compreendida nos limites de uma ética do compromisso."'•'* Como funcáo da comunidade a festa do Padroeiro convoca o inleresse de todos. É uma forma coletiva de relacionamento (demonstrada pela presenca simbólica nos altares e nos lares) que tem uma fun^ao de dcspertar o cxercício do sentimento comum objetivamente posto, exibido á contemplacao de todos. Esse é um dos componentes estéticos dessas festivida-íles. A sua aparéncia da forma de uma cspiritualidade comum, que obedece a uma simetria cspiritual, mais para ser contemplada do que comprovada. Na contemplacao repousa a compreensao, uma vez que o exibir-se é um ato de "dal mostras" e demonstrar. Uma forma que exprime, pela aparéncia, o seu conteúdo. A contemplacao é a compreensao e a intcrpretacáo. 0 fundamental (e irnprescindível) é eslar pre-sente. Esse estar aí, estar em presenca, indispensável á expe-riéncia estética. A presenca de políticos, por exemplo, no Círio, demonstra isso. Náo importa tanto se cle é devoto con-victo, crente ou piedoso. Fundamental é que elc esteja ali, contemple e seja contemplado, participe dessa cerimónia de presencas própria da relacáo estética. Nada, como no caso da encenacao teatral, substitui ou explica ou desculpa a ausén-cia. A auséncia é falta irremediável, pois o acontecido é impossível de ser refeito. Como na relacáo estética, o náo eslar ali exelui a possibilidade de acontecer o fenómeno. Na relacáo estética a auséncia é o poderia ter sido que náo foi, pois nela nada pode ser depois de já ter sido. 1& O Círio de Santo Antonio é a overture de um instante de celebracao cósmica, da qual todos os elementos do universo par-ticipam de uma ou outra maneira. 0 cotidiano assume uma densidade pela qual tudo se torna objeto de uma erispacao contemplativa. Sao momentos semelhantes áquele da análise que faz MafTesoli da soeiedade pós-moderna, isto é, quando se acentua o que na soeiedade representa o "nos comunitá-rio" [nous communitaire). 0 autor de La transfiguration du politique (A Transfiguracao do Politico) conceitua a estetici-dade do nous communitaire de maneira muito íeeunda e com suficiente amplitude para que se possa transpor a sua refle-xáo a outras situacóes de vibracáo desse nous communitaire, e da importaneia que nesses momentos assume a aparéncia: "Há menos projecóes finalísticas do que intrqjecáo coletiva hic et nunc. É esta mesma que delimita a experiěncia estéti-ca que percebe o viver e dizer as coisas, as gentes, a nature-za mais próxima da existéneia cotidiana"66. A festa favorece a identificacao, a congregacao e a objet i va-cáo do sensível. 0 instante vibra e se liga a um sentimento de perenidade. Sáo rcdacóes fortaleeidas pela aparéncia, que estabelecem os liames de uma comunidade ritual, um modo de particularizar universalizando um momentu no tempo, conferindo ao momento da festa um caráter coletivo de signo. Um processo de estranhamento diante da regularidade dos dias e das noites, evidenciando essa forma de aparéncia reveladora de uma esséneia profundamente enraizada na culture. Mesmo ao longo de todo um calendário de eelebracóes particulares ou náo, quando a comunidade promove a festa do Padroeiro, ou de outra modalidade, "todas as atencóes se voltam para um aeonteeimento comum á eoletividade e a esse aeonteeimento todos se referem""'. 0 aeonteeimento assume os contornos objetivos de um signo em torno do tpial as sensibilidades se congregam. Uma densa carga de signifi-cacoes se concentra num determinado espa^o social, nimi momento de contemplacao emocionada. A festa plurivalente do olhar. Oriximiná está situada á margem esquerda do rio Irombetas, afluente do Amazonas. A paisagem á sua frente é de grande beleza, seja pelo alargamento do rio, seja pela moldura das margens de incontávcis verdcs, seja pelas palmeiras que se aldeiam e exibem, aeima das outras árvores, suas pal mas abertas como um rcsplendor. Vários rios pcquenos e turns constituem a trama fluvial teeida em torno da eidade, desta-cando-sc o rio Nhamundá - que deságua no Trombetas, n;i margem oposta em frente á eidade — eonsiderado um dos rios mais belos da Amazonia. A beleza do Nhamundá esíá na tonalidade ora azulada ora esverdeada de suas águas mansas e misteriosas, que apresentam tranquila navegabilidade eni sua maior parte, embora apresente, para o lado das nascen-tes, algumas cachoeiras que, se diflcultam a navegacáo, lhe aumentam a beleza. As margens acumulam variadas grada-coes do verde, vcndo-se conjuntos de árvores cujas formas náo se repetem, imprevistos descampados recobertos por capim e canarana, onde pousam garcas, arirambas, mergu-lhóes e outros belos pássaros, após coreografarem o ar com seus harmoniosos vóos. É num dos lagos fbrmados por esse rio que, segundo narrativas lendárias, habitavam as icamiabas - as Amazonas. As Icamiabas sáo as indias guer-rciras que até hoje cavalgam ainda na memória mítica da Amazonia. Luis da Cámara Cascudo registra, na sua Gco-grafia dos mitos brasileiros, que proximo ";i foz do Nhamundá, encontrou-as Francisco de Orellana, a 22 dejunho dc 1541. Frei Gaspar de Carvajal desenhou-as com as cores clás-sicas. No meio da indiada brónzea destacam-se dez ou doze mulheres que comhatem ferozmente. list as nwjeres sou muy blancas v alt as y tienen muy largo el cabello y entranzado y revuelto a la cabcza, y son muy nicm-brudas y andam desnudas en cuerpo, tapadas sus verguenzas, con sus arcos yflechas en las manos, haciendo tanta guerra como diez indios (informa o Trade, que perdeu um olho na batalha)"68. li possivel (pie tenha sido, ao lado da localiza^áo gcográílca, tambérn pela beleza paisagistica desse rio desaguando no Trombetas em frente á eidade, frequentemente escolhido para ser o lugar de partida do Cirio Fluvial de Oriximiná. Na preparacäo do cenário do Círio de Oriximiná, desde 1947 o artesäo Manoel Afonso da Silva, tentando embelezar ainda mais a procissäo fluvial, idealizou as chamadas barquinhas. A partir de enläo Fabricam-se por volta de 4.000 barquinhos de madeira flutuante, pintados com as cores do estandarte do santo. Cada barquinho leva uma vela acesa, dentro de um cone de papel transparente e colorido. Com isso a chama flea protegida do vento. "Trata-se de armaeäo de madeira, imitando uma barca, com medida e peso ideais para que llu-tuem, levando em seu interior um pequeno 'baläo' Feito de papel de seda ou de outro material leve, de cores variadas, com uma vela acesa dentro."1'' De acordo com a tábua de marés, da direcäo da correnteza do rio, da posicäo do vento, do lugar na margem de onde surgirá o cortejo lluvial, os artesáos com seus auxiliares vao espalhando os barquinhos com as velas acesas, pela superfíeie tranqüila do rio, em (rente ä cidade e no itinerário da procissäo. Pouco a poueo -como se urna constelacäo fosse sendo semeada nas águas -os barquinhos, com as respectivas velas acesas, väo sendo colocados sobre as águas. Progressivamente, esse largo rio que a cidade olha vai sendo adornado de milhares de chatnas flutuantes, enquanto a noite se deita com suavidade, acen-tuando o brilho nas águas, como se as luzes se fossem mul-tiplicando nos inumeráveis espelhos das ondas. Ao mesmo tempo em (pie se processa a "iluminacáo" do rio, a populacáo vai caminhando pelas ruas, dirigindo-se ao cais ä freute da cidade. "0 efeito visual assemclha-.se a uma cidade llutuantc, que vem se aproximando do porto de Oriximiná, trazendo, cm seu centro, a imagem do santo. Outras embarcacöes locais apresentam suas homenagens com arran-jos luminosos, ao lado da embarcaeäo que traz a imagem do santo, tentando superar uns aos outros, numa tradicional competicáo, que prémia os melhores e faz com que o esfbrco dos donos de embarcacöes se torné uma das principals atra-cöes de rara beleza do Círio Fluvial de Santo Antonio cm Oriximiná.""' Säo centenas de pessoas que se aproximam do cais com a fascinacao de olhar. Aproximam-se para ver, para estar diante do que Ihes dá esse vago prazer da contempla-Cäo da beleza. Todos desejam contemplar um espetáeulo mágico para des, que lhes desperta o sentimentu de heleza. o sentimento do encanto que se exaure no prazer da contem-placäo. Näo o mágico-religioso, propriamente. Mas o mágí-co-estético. As famílias que habitam na primeira rua paralela ao rio, lugar privilegiado para a contemplacáo do "espetá-culo", já convidaram parentes e amigos, já prepararam comi-das típicas, já reservaram a bebida e, como no privilégio dos camarotes dos teatros, aprontam-se para o momento epifánico. 0 momento epifánico inicia-se com a aparicäo das luzes do Círio, na outra margem do rio. É como se um sonho fosse brotando no solo da realidade. A noite escurecera. Aos olhos de todos - como se fosse uma aparicäo resplandecendo ao longe, perceptível aos sentidos alerta e abertos. As incontá-veis chamas nas águas, parecendo agora uma constelac^o pousada no rio, já formaram uma indivisa linha de chamas brilhantes entre o céu e as águas, o real e o imaginário, o tempo e a eternidade. Todos os olhos estäo ílxos naquela subita manifestacäo do imponderável, da espiritualidade irrompendo visível e luminosa. Näo há um sinal prévio de anunciacäo do Círio que vai aparecer. Todos os olhares estäo íixos no vago ponto difuso do horizonte, de onde pode aeon tecer o mistério. A contemplacäo torna-se um fim em si mesma. Os comentários, as observa^oes, os saudares, os aee-nos de cabeca se väo diminuindo. Há um respirar tenso e coletivo, como a respiracao do rio batido pelo vento na prea-mar. Pressente-se que algo especial vai acontecer. Má uma disponibilidade para o deslumbramento. De repente, como se de subito se abrissem os densos repos-teiros da noite, na outra margem do rio, surge o primeiro barco iluminado. Surge com o brilho da proľusäo de luzes que formám o seu resplendor. É o barco de maior porte, o mais esperado, o mais iluminado, pois é o barco-andor, isto é, aquele que conduz o Santo Padrociro. O caráter present a -tivo se completa com a aureola de logos de artifícios que sobem, riscam o escuro da noite com traces de luz, embara lham-se no ar, explodem em azul, em rubro, cm verde, cm jatos de tons c semitons, como um repuxo de luzes expa n dindo-se em jorros e manchas no ar da noite. As águas, bati-das pela brisa, emitem um levc ruido prolongado, como o 170 murmúrio de preces afogadas. Ä medida que o barco-andor avanca, outros barcos, também aureolados c entre os esplén-didos ľogos de artiľício, ampliam as dimensôes daquela opera fantástiea, estendendo ainda tnais o cortejo epilanico. Um barco após o outro e após o barco-andor avancam na minu-ciosa escuridäo, como se fossem a transfiguracäo da boiúna, a cobra-grande mítica, em navios iluminados. O segundo momento de vibraeäo e maravilhamento é quan-do o barco-andor, seguido pelos outros barcos, penetra no lago de luzes que os milhares de barquinhos iluminados For-rnaram no meio do rio. Aqueles barcos do Círio de Oriximiná, navegando pclo rio de chamas acesas, parecem vir do outro lado da noite e do eterno. Urna liturgia de mistérios se ins-taura, sob os olhos de todos os que assistem ä cena. Uma cerimônia de olhares, de exclamacöes, de ombros colados a ombros, uniflca toda a populacäo com os elos de urna emo-cäo compartilhada, Fascinada e ľascinante. Aqucle näo é o momento de pagar promessas, de entoar os salmos, de escan-dir as rezas, de abrandar os gestos. A única liturgia é a do olhar. Todos säo atraídos por aquelas Formas imantadas de beleza clareando o rio, que navegam, que se alternam, que fazem curvas, que passam de um a outro lado sobrc a pele cm chamas das águas, na escuridäo de urna noite que con-funde o céu e o rio numa única realidade mágica. Urna rea-lidade que se abre äs iluminacöes de ťormas exteriores da beleza, provindas das camadas da alma e da cullura. Quando as evolucôes dos barcos iluminados que eonslituem o Círio de Oriximiná já Fora m suficicntes, os barcos mano-bram para aporlar na cidade, a fim de que o Círio desembar que. A partir daí, dilui-se a epiľania e passa a ter início a procissäo nos moldes tradicionais, de caráter mágico-rcligioso e näo mais de sentido mágico-estético. Passa a ser movida pela crenca, näo sendo mais propriamente |>ara ser contemplada, mas participada. P é esse sentido de participacäo (jue leva as pessoas a se tornarem constituidoras do cortejo antes ľorma do pelos barcos. Organizam-se as alas, entoam-se cánticos, desdobram-se as rezas. 0 olhar deixa de ser o sentido privi-legiado. Sai-se do estético para a crenca. De čerta maneira, 171 um corte que se aproxima do apagar das luzes de um palco e a saída do publico para a rua. No momenta em que o Círio desembarca, operacionaliza-se a reconversáo simbolica do quiasmo. Na etapa do círio fluvial, o estético estava no "alto", enquanto que o mágico-religioso se situava no "baixo". Na etapa do círio nas ruas, opera-se a reconversáo simbolica, passando o mágico-religioso para o alto, enquanto que o estético se reconverte no baixo. No momenta da reconversáo simbolica, que é um fato cultural, opera-se a quebra da aura, verdadeiro corte ontológico, desencantamento do mundo. Propomos a denominaeäo de conversao scmiotica a essa passagem de mudanca de qualidade signica, decorrente do cruzamento e inversäo das iuncöcs situadas no alto e no baixo de um determinado fenomeno cultural e fruto do movimento dialético de rearranjo das funcöes, em decorren-cia da mudanca de dominante no contexto cultural. Um brusco estranhamento que nas artes, por exemplo, anula o estado epifánico e ahre espaco a domináncia de uma outra funcáo. Por outro lado, o ťenómeno da epiťanizacao também é um processo de conversao semiótica. A quebra da aura, por exemplo, é outro caso de conversao. Observa-se, por exemplo, operar-se essa modalidade de reversáo no interior mesmo de certas obras, como naquelas pinturas de Michelangelo, nas quais uma parte do quadro permanece como esboco, e o olhar percorre o quadro do campo da rea-lizacáo para o campo do procedimento ou da realidade do esboco. Nas criacöes escultóricas do autor da Pictá, como a série Psclarcs, esculpidas para o túmulo de Jules II, observa-se esse fenómeno semiótico, na medida cm que as formas humanas estáo presas á pedra bruta e, ao mesmo tempo, revelam angustiante esforco por libertar-se dela. Sáo obras ditas "inacabadas" que adquirem estatuto de "obras acaba-das". 0 mesmo também acontece em algumas esculturas aparentemente incompletas, de Rodin, por exemplo, quando as máos ou o rosto parecem querer despregar-se da pedra. Sáo princípios de realidade que exclamam: estou aqui! No percurso da parte pintada ou esculpida para o esboco da tela ou á pedra informe, dá-se um momento de reversáo simbó-lico dentro da propria obra. r/z Ainda trés breves remarques a respeito de fatores que concor-rem ao evidencimento no alto da funcäo estética no Cirio de Oriximiná: a simbologia do navio iluminado, a pereepcäo do duplo espaco mítico e a emergéncia da dominante estétiea. A lenda da Boiúna, a eobra-grande transformando.se em navio iluminado a percorrer os rios da Amazonia nas densas noites escuras, é uma das mais belas e significativas lendas amazônicas e será analisada no capitulo referente a esse terna. A Boiúna espanta, aterroriza e faseina o eaboelo, con-vertida em navio iluminado que apareee, inesperadamente, pelas noites eseuras, na curva de algum rio, desapareeendo da mesma forma misteriosa momentos após. Observando-se o Círio de Oriximiná e, ao mesmo tempo, ouvindo-se os relatos dos moradores do lugar, pode-se perce-ber a estesia predominante na atracäo que referida procissäo exeree nas pessoas e inferir a semelhanca subjaeente com a transfiguracao da boiúna. O Círio fluvial é conio se fosse a visível e segura manifestacäo da lenda diante de todos. Näo se está diante de urn "milagre", mas diante do "mágieo", do len-dário visível, cujos efeitos de maravilhamento assemelham-se aos de uma contemplacäo de algo sobrenatural, no vago mis-tério do elaro-eseuro, do sfumato. A intensidade do momento elide qualquer necessidade explieativa. Bašta o transe do olhar. Urn segundo aspecto que se pretende remarear é o da dupla dimensäo evidenciada pela imagem do rio: a superficie como espaco cristäo e a profundeza como locus pagäo. torno reco-nheee Baehelard: "Assim: a água, por seus reflexos, dupliea o mundo, dupliea as eoisas"... "Onde está o real: no eéu ou no fundo das águas?."71 No entanto, a forca simbóliea do rio é t ant a (pie, naqucle easo, há uma (ransl "iguracáo, uma conver-säo semiótica que submete o imaginário cristäo ao pagäo: o Círio fluvial é a Boiúna convertida em navio iluminado. O (pie está no fundo (a boiúna) transflgurando o que está na superficie. Até porque, os "desencantamentos" säo urna espé-cie de vir á superficie das coisas. Nesse caso, um vir ä superficie que aprofunda, pois é quando o mito mergulha mais em sou mistério, na dialética das reconversôes. Pode-se remarcar, ainda, um terceiro aspecto que é o da domináncia da funcáo estética. Aquele instante epifanico acontece com a emergéncia do esplendor do sensível, da pre-domináncia do caráter auto-expressivo na forma, da viva explosäo das emocôes comuns. 0 Círio fluvial de Oriximiná passa aos olhos de todos como um objeto estético múltiplo, corcográfico (já que os barcos executam diversos movimen-tos rearranjando a cena) e dentro da tcmporalidadc própria, por exemplo, da danca. É um símbolo sensorial proposto a uma contemplacäo aberta, universal, e que repercute na consciéncia da populacáo como forma formante. É "caracte-rística signifieante da ľuncäo estética - segundo Mukarowsky - o prazer que provoca"". Setu enveredar pela análise do "instante" como categoria metafísica, seja em Bergson que vé no instante somente uma abstraeäo sem nenhuma realidade, ou M. Ruphel que acredi-ta nela a verdadeira realidade do tempo; ou do instante como um absoluto, segundo a visáo de Einstein, empreendida por Bachelard na obra Ľintuition de ľinstant, apreciaremos o que este epistemólogo e estéta comprcende por uma dimen-sao do "instante", que é o que ele denomina de "instante poé-lico". Segundo Bachelard: "0 instante poético é entäo neces-sariamentc complexo: ele transporta, prova - apela, consola - cle é surpreendente e familiar"". Embora Bachelard aplique sua reflexáo ao momento criador do poeta, é possível obter nela inferéncias capazes de aplica^áo mais alargada, como a que se pode fazer a fenômenos momentáneos de revelaeáo emocional por meio de formas estetizadas, semelhante ao que ocorre no Círio de Oriximiná. Essa proeissäo fluvial é tam-bém um momento revelador desse "instante poético" [instant poétique) no qual se dá a emergéncia momentánea da funcáo estética dominante, ultrapassando a condicáo de procedi-mento mágico-religioso. Esta condicáo só é assumida domina ntetncntc, após a conversáo semiótica que se opera com o děsem ba rque da proeissäo, que passa a percorrer as ruas da eidade. Diante do Círio fluvial, os espectadores sáo tomados de um momento de pureza de pereepeáo, por meio da qual descobrem e se comprazem com a bcleza das coisas. As pes-soas sentem-se capazes de distinguir, na pele envolvente das coisas, uma ordem estética mobilizadora da via sentimental e espiritual, em decorréncia do choque sensível que a orga-nizacäo formal daquele "instante epifanico" permite. Naquele momento näo contam as promessas lei(as, os compromissos, as práticas utilitárias do rituál, mas o prazer cle olhar, Ir raiňssemcnt decorrente cle uma feeunda admiraeao. V5 z.j. Os barcos Há, na visualidade amazônica, um gosto pela simetria, que se traduz, dentre outros aspectos, em limites de espacos entre tonalidadcs relacionadas ä tensáo harmonica, alem do geo-metrismo sintetizador c gráfico perceptível nos procedimen-tos estéticos. Estudando a relacáo cntrc a estética c a sociológia, Simmcl afirma que: "Na origern de todos os motivos estétieos há a simetria. Se se deseja acrescentar as coisas idéias, sentidos, harmonia, é necessário, primeiro, dar-lhes uma forma simétrica, equilibrar as partes do todo, ordená-las proporcionalmente em torno de um centro. Ľ a maneira mais rápida, mais sensível, mais imediata de tornar sensível essa potencia formadora do humano"". As próprias coisas -fachadas de casas, bares, placas, bandeiras, cerámiea, etc. -alem da motivacáo simetrizante, tornam-se suporte de cores. Säo como espacos pictóricos a sérem preenchidos. Procede-se a reelaboracao da natureza por mcio das cores básicas, como se o homem, diante da exubcráncia tropical, do seu leatro de cores, em sua tipicidade, buscasse a síntese, a redu-cáo ao essencial, ao elemento universal. Em texlo intitulado A visualidade amazônica, incluído entre outros de diferentes autores, na coletanea As arícs visuais na Amazônia, o artista plástico e arquiteto Osmar Pinheiro Jr., alem de ressaltar nas fachadas e outras paredes onde há paisagens pintadas rcvelando resíduos académicos e percebcndo a revela^ao de um refinamento no aprendizado de uma tradicäo de cor que, segundo cle, "remonta as práticas da arte plumária indígena", escrevc: "As organizacôes cromálicas que informam os pin-tores de fachadas e embarcacôes oriundas da tradicäo mest i-ca, de admirávc! rigor c inteligencia c que cstäo presentes também na geometria de papel de seda dos papagaios, rabio-las (pipas) revclam as conduces particularcs de urna outra ordem, em que näo ex iste mereado de arte, em que o suporte da obra é a casa, o barco, o boteco, o papagaio (pipa), o brinquedo, o instrumento de trabalho. Onde o artista säo todos e os mestres, alguns que a populacäo conhece pelo nome" Desde as epopeias dos tempos heröicos e miticos, as embarcaeöes - conio ainda acontece na vida e na visualidade ama-zönica - tem um papel essencial na vida dos homens. IIa belas passagens da Odisseia - poema homerico da Grecia antiga narrando a viagem de retorno de Ulisses ao reino de Itaea, apds sua participacäo na Guerra de Tröia - eni que o barco e a dominante articuladora da acäo, como em todo o itinerärio do poema. F., mais ainda, ao longo de toda a nar-rativa, as embarcaeöes, como "escuro barco", "cöncavo barco", "barco ligeiro" vao conduzindo o destino de Ulisses, como palavra significante navegando no mar desse poema. Virgilio, tambem, na epopeia lincida, na quäl sc narram as aventuras miticas que resultaram na fundacäo de Koma por Eneias, confere äs embarcaeöes um papel fundamental. Nela, homens simples, heröis e deuses tem nos barcos seu ponto de referencia. Hä uma expressiva narrativa de Eneias ä namora-da Dido, reacendendo nela "vivo amor, os sentidos ja hä tnuito arrefecidos e o cora^äo desacostumado de amor""', onde o barco articula, como em toda a estrutura do longo poema, o movimento ondular da narrativa. E o que sc obser-va, por exemplo, no l.ivro IV, quando Eneias abandona Dido, a infortunada fenicia, que se suicida enquanto que o barco de Eneias - como se fosse a pröpria vida de Dido, de velas enfunadas, afastando sobre as ondas - se perde e sonie nos azuis do horizonte. Ou, entäo, no Livro V, quando ainda em alto mar, na busca das costas da antiga Hesperia (Itälia) ocor-rem os jogos e combates simulados, e os enfrentamentos do destino que espreita os barcos nos designios oceänicos dos deuses. Dante tambem näo llcou imune ä sedueäo da imagem do barco, no seu vasto mural poetico da cultura medieval. No inicio do Canto I do Purgatbrio, na Divina Comedia, no per-curso ascensional iniciado no Inferno em direcäo do Paraiso. Invocando as Musas, o poeta contempla as quatro estrelas do Polo Sul e canta: A singrar melhor dcjua eis o batel do meu engenho segue, a veia inflada, deixando atrds o pclago cruel. '77 E, pais, direi da parte separada na qua! a esséncia humana se depura, por mereeer o céu, dignißcada". N'Os Lusíadas, a sonora epica da expansäo maritima portu-guesa, Camöes inicia a acäo dentro de um barco: Já no largo Oceano navegavam, As inquietas ondas apartando; Os vent os bra n da men t e res p ir a v am, Das naus as velas eôncavas inchando; Da branca e scum a os m a res s e m Ostrava m Cobertos, onde as proas väo cortando As marítimas águas consagradas, Que do gado de Próteu säo cortadas, Quando os Deuses no Olimpo luminoso, Onde o governo está da humana gente, Se ajuntam em consílio glorioso, Sobre as cousas futuras do Oriente. Pisando o cristalino céu fermoso, Vém pela Via-Láctea, juntamente Convocadas da parte de Tonantc, Pelo noto gentil do Velho Atlante79. Na obra l.a littérature européene et la Moycn Age latin, E. R. Curtius, estudando algumas exprcssöcs metafóricas que per-correm o tecido bistórico da literatura ocidental, afirma que: "0 poeta converte-se em marujo, seu espírito ou sua obra tor-nan-se barco" Numa interpretacäo alargada com base nessa assertiva, pode-se dizer que, assim como o espírito de navega-dor navega no poeta, o espírito do poeta aporta no navegador. Cria um ethos poetizante em tipos sociais como o pescador, o navegador da Amazônia, num contato estetizador da nature-za, na atmosféra poética gerada pelo sfumato do devaneio. Nenhuma das citadas epopéias e nem as civilizacôcs que elas simbolizam, provavelmente, teriam sido possíveis, sem a existencia das embarcacöes em versos celebradas. A referencia a 178 esses exemplos resulta de que, também co mo ncles, as embarcacoes dos rios da Amazónia vém tripuladas de homens e deuses, história c sonho, trabalho e unto. H alego-rizam inúmeros aspectos essenciais de uma forma de vida social, económica e cultural. É que, desde a Antiguidade, é grande a relacáo entre o ato de criar um poema como sendo uma viagem, uma travcssia. Seja a dclirantc travessia como a de Rimbaud, no O Barco Ěbrio, seja a trágica shakespearea-na em A tempestade, seja a definitiva travessia de Gil Vicente no No Auto da barca do invemo, seja no emblematico Navio Fantasma de Wagner. Foi num barco que navegaram para o reino da alegoria, o curopeu e india, no romance Iracema de José de Alencar, urn dos romances de referenda da Literatura Brasileira. Conectivo entre o homem e a vida amazónica, as embarcacoes, especialmente no Para, reprcsentam admiravelmente a circulacao integradora de bens e servicos adequados a uma terra entrccortada de rios. "Canoas, igarités, montarias e bar-cas foram, durante muito tempo, o principal meio de locomo-cáo tanto para os homens amazonicos, como para aqueles que, com objetivos de desbravar e conquistar, percorreram a regiáo em várias dirccoes."'"' Sua tipologia é variadissima, fruto de sutil íntegra^áo entre řungáo, uso e Rnalidade. Há os barcos de passageiros, há os harcos de pesca, há os harcos de lazer. Há as igarités cavadas em troncos de árvores, agilissi-mas e curvas, como se formassem, com aquele (pie ela tiave-ga, a híbrida figura mítica de homem peixe. Conforme a diversidade dos rios, encontram-se os marabaenses (originá-rios de Marabá, verdadeiros "submarinos", que, á semclhan-ca dos mitológicos botos, quando atravessam as corredeiras, sáo capazes de quase mergulhar aqui, boiar mais adiante, desviar-se de uma pedra, apoiar-se noutra, para seguir sempře em frcnte); encontram-sc as vigilengas, leves, arrojadas, familiarizadas corn os mansos igarapés e, ao mesmo tempo, com o mar turbulento; encontram-se as barcarenas, de vela grande e bujarrona, adequadissirnas para enlrentar as altas ondas da baia do Marajó e a eontracosta oceanica dess;i mítica barrcira do mar, com sua estrutura bojuda e larga em consequéncia do espayoso porao leito para a lartura de hois >79 transplantados para o corte. E, para citar mais um exemplo, há os regatöes - pequenos navios do comércio varejista, navegando e ncgociando ao longo dos rios e cidades ribeiri-nhas, como supermercados flutuantes. Neles, ä semelhanca das casas de aviamento, existiam e existem a moradia do paträo e a dos empregados, hierarquicamente distribuídas, tornando essas embarcacöes uma espécie de microcosmo da vida amazönica, tanto na distin^ao de catcgorias e classes, como nas atividades de trocas simbólicas. Os barcos constituem um elemento de grande forca na visua-lidade amazönica. Observa Raymundo Moraes com acuidade, em Na Planície Amazönica: "Os defuntos väo á cova embar-cados, embarcados vao os noivos, os padeiros, as procissoes, os ca^adores, os comerciantes, os trabalhadores, os eleitores, os namorados, os músicos"80. Sáo verdadeiros centros de convivéncia cultural flutuantes, servindo de espaco denso de trocas simbólicas durante as viagens diárias, instrumentos de ligac^äo entrc as cidades e as comunidades isoladas, clo com a capital do Estado. Isso é natural. "0 rio e seu ciclo de águas é incorporado como dimensäo fundamental na vida das comunidades ribeirinhas da Amazónia", atestam Rosa Aeevedo e Edna Castro, na obra Negros do Trombetas."" Por esse motivo, as embarcacöes, nessa rcgiao mapeada de rios. assumem as mais diferentes funcöes: de sobrevivencia, transporte e lazcr. Em meio a isso, a luncäo estética adquire real ode ter sido a motivacao para que o índio desferisse a flecha de seu imaginário no rumo dos alvos sempře insondáveis das explieaeöes da origem primeira dos homens e do mundo. iß} É possívcl que a contemplacäo devaneante se j a urna das atitudes do caboclo, do homem amazônico, propiciadoras de um ethos proprio em sua eulíura, genese dessa teogonia do cotidiano que vai povoando de deuses e niitos os rios e a floresta. Um povoamento de seres com os quais os homens convivem sol) a dominancia de um sentimento estetizador que tece a teia dessa cultura, fator de coesäo social e condicionador de comportamentos. Uma estética que "englobe, mas também se estenda ao conjunto da existencia social"'. Uma esteticidade ampliada, que näo revela a existencia de nocöes do que seja o estético. Mas de uma inte-gracäo de valores aparentemente distintos, cm que essa esteticidade e o comportamento moral, por exemplo, se achám ligados. IVlos sentidos o homem também se aflrma no mundo objeti vo, como também aproľunda o conhecimcnto de si mesmo e, com isso, desenvolve a sensibilidade estética. A realidade, por cssa via, é percebida sem uma significacäo utilitária dire-ta c nela säo desvelados os mot i vos de expressao da esséncia do proprio homem. Pelo desenvolvimento da sensibilidade estética, pode-se pereeber, por meio da forma concrcta sen-sivel dos objctos, o conteúdo humano que elcs expressam. É uma relacäo que se estabelece näo só pcla sensibilidade, mas lambem por um sentido intelectual e afetivo. Esse conteúdo humano e afetivo é uma marca essencial na relacäo estética decorrente disso. A contemplacäo é condicäo incrente ä presenca determinante da relacäo estctizadora. As coisas säo percebidas na modalidade de urna alegria interior e prazer espiritual, como "uma corrente de sensibilidade cotidiana" equivalente ao que estuda Umberto fco a respeito dos pro-blcmas da estética na cultura medieval'. As duas atividades de trabalho que marearam tradicional-mente a sociedade amazônica, pode-se retomar estc tema para efeito demonstrativo, säo a pesca e o extrativismo agrícola. Tanto o pescador como o agricultor propendem ä contemplatividade e ao devaneio, seja pelas longas c pacien-tes jornadas de trabalho, seja pelas contingcncias da vida ribeirinha. Má um mundo a f>erder de vista á sua freute, envolvendo-o corn uma natureza da qua! devcm scr extraídas näo só a subsisténcia, como a explicacao dc tudo: desdc os pequenos acidentes de cada dia, ale as verdades eternas como explicacao do comcco de tudo. 0 devaneio contemplativo sempře lb i a linha ineonsutil que ligou o caboclo amazônico do barranco - ä beira do rio - äs estre-Ias. Uma espécie de cordäo umbilical ligando o scu ser imagi-nal e o grande útero cósmico do universe Para o nativo da Amazônia, a contemplacao é um estado de sua existencia. 0 princípio e o Hm de suas relacôes com a vida cotidiana e a raiz de suas peculiaridades de expressäo. Hvidentementc que näo é urna contemplacao de caráter teo-logal ou místico, mas uma contemplacao que é a extensäo de sua humanidade e geradora de humanismu. H urna contemplacao que estabelece equilíbrio de limite c grandeza do homem com a natureza. Diante dessa natureza magnífica e desmedida, cle a dimensiona segundo as medidas de humanidade. Confere ä natureza urna dime nsäo espiritua 1, povoando-a de mitos, recobrindo-a de supersticôes, des-tacando-lhe urna emotividade sensível, tornando-a lugar do ser, materializando nela sua criatividade, ultrapassando sua contingéncia na medida em que laz dela um lugar de transcendencia. Assim, o caboclo se reconhece nessa natureza e amplia sna realidade, eliminando as barreiras com o ilimitado do imaginário. Näo se trala de urna contemplacao de teólogos e místicos. Näo signilica um caminho para Deus (construído no estudo das questóes referentes ao conhe-cimento da divindade e seus atributos ou de relacôes com o mundo, com os homens e com a verdade religiosa), como no primeiro caso; näo é urna forma de convivéncia com a puri-licacäo, o misticismo e a transcendencia dos santos e dos doutores místicos (pelo que se proeura atingir o estado cs-lático de uniäo direta com a divindade), como no segundo caso. Trata-se de urna contemplacao devaneante, propicia-dora de repousante lensäo criadora, que se liga mais äs ati-tudes dos poetas e íllósoľos. Predomina, no entanto, urna reflexäo que se exprime por meio de Formas sensíveis, valo-rizadoras das formas de aparéncia, o que é urna peculiarida-de inerente ä atitude estética. Urna contemplacao que é um exercicio cultural e, ao mesmo tempo, poetizanle, no sentido de uma ampla poiesis coletiva e de sentido alargado. Ii, de certa maneira, uma contemplacäo opera! iva, ato e estado, paradoxo ou dialetica que aciona urn processo que näo e apenas de quem contempla como reeepcao estetica, mas de quern contempla eriando. Ou, de quem contempla agindo na busca de eneontrar o sentido oculto nas coisas. Como o pescador (|ue contempla e pesca. Como o plantador que contempla e planta. Uma contemplacäo expansiva por meio dos seres e das coisas, aproximacäo amorosa e, dialetica-mente, estranhamento ante esse mundo que e urn veiculo de sentimento tanto quanto de qualidadcs intelectuais. 0 prazer que disso decorre näo advem da descoberta da verdade e nem do encontro com Deus. E o amor ä natureza, ä vida que a orienta. Urn prazer que se constitui e oricnta. Urn prazer que sc constitui c explica pelo ethos do prazer estetico: urn prazer sensivel que se distingue dos prazeres ligados äs neees-sidades organicas e, tambem, da ordern de prazeres que provem de sensacöes auditivas c visuais e suas condicöes de agrado como tal. Trata-se de uma forma de prazer que sepa-ra o hörnern amazönico e, ao mesmo tempo, o mantem co-existindo com sua vida pratica. Que c uma especie "de uma intuicäo lirica do sentimento", como teoriza Umberto Eeo, ao comentar as ideias de Baumgarten, em e probleme esthetique ehe/ Thomas d'Aquin (0 Problema Etieo cm Säo Thomas de Aquino)4. Urn prazer de contemplacäo operativa, mas desin-teressada, equivalente äquilo que afirma Kant em sua obra sohre o julgamento do gosto, na medida em que, justiflcada pela gratuidade, resulta de um livre jogo entre a imaginaeäo e (j entcndimento. Säo convergencias do choque sensivel resultante da relacäo do caboclo com a natureza magnifica que o envolve. Nesse momento-continuo, todo o ser do caboclo se faz presente, eatalizando uma intensa atividade intelec-tual na qual triunfa urn sentimento de vago e mobilizante prazer. E urn sentimento peculiar de admiracäo, cuja fecun-didade empresta a tudo uma ardorosa significayäo. A natureza e foule de signos em permanente circulacäo. Permilc, como no caso da Amazonia, a criacäo de uma verdadeira tcogonia do colidiano estctizada pelo imaginärio, que Ihe atribui uma configuracäo formal expressiva e signitlcantc. tß6 Já ílcou hem claro após Mukarovsky, por exemplo, "que a liincäo estética ocupa um campo de acäo muito mais amplo que a arte propriamente elita"". Segundo suas idéias, os linii-tes da funcäo estética säo indemarcáveis unicamente pela realidade, variando entre as pessoas, as culturas e as camadas sociais. Ultrapassando o espaco da aparéncia penetra pro-fundamente na vida social podendo, muitas vezeš, influir num proprio entrelacamento da vida social, tornando-se um eompoiiente ľormanle e vitalista do comportamento humano. E como tal que se pode perceber na eiiltura amazôniea, a dominäncia da funcäo estética do imaginário, que é objeto de demonstracao neste estudo. Galton Bachelard observa em sua Poétique de la reverie (Poética do Dcvancio) (]ue: "Em seu devatieio solitário, o sonhador de devaneios cósmieos é o verdadeiro sujeito do verbo contemplar, a primeira testemunha do poder de con-templacäo"''. Hie reeonhece essa forma especial de pcrcepcäo por ele designada de "ante-pereeptiva" Mas, ao tempo em (jue "habita" o mundo penetrado por sua contemplacäo deva-neante, essa comunicaeäo de sonhador "carece de dištancia", dessa dištancia que assinala o mundo pereebido, o mundo fragmentado pelas pereepedes'. Dcvaneando ä beira dos rios, acocorado ä soleira da porta de sua morada, debrucado no peitoril dajanela, ľutnando no trapiclie ou á eabeea da ponte era ("rente ás águas, navegando após as fainas da pesca, o caboclo devaneia diante do rio e da floresta, desenvolvendo audaeiosas person i fteacdes estétieas, convive com os sonhos, repousa no tempo sem pressa nesse mundo sonliado. Um mundo que cle constrói em repouso, após as jornadas da pesca ou da lavoura, exatamente quando cessam as tarefas do trabalho, diante desse mundo ľísico (pie cle já encontrou construido. Balan^ando-se na rede que herdou do índio, o caboclo reťaz o universo em sua imaginaeáo emoeionada. 0 caboclo também eria sens mitos lialancando-se na rede. Reťaz o seu mundo a partir do breve movimento dessa estrutura de leveza rendada e suspensa no ar. Näo medita propriamente sobtv a bcleza. lile produz beleza. Uma beleza que nasce nas brumas do sfumato de um devaneio (pie apaga os contornos entre o real c o imaginário, (pic atua conto fator iß/ de pocticidade, incorporando o estético no contexto de seus fenómenos sociais. Um contexto no qual "a paisagem pode produzir o mesmo efeito de uma obra de arte"", seja pelo que exibe de visível, seja pelo que a cla acrcsccntaram as ilumi-nuras do imaginário. Pela atitude contemplativa o caboclo se deixa absorver no devaneio prolongado, denotando uma aparéncia exterior de quietude e imobilidade. Náo se trata, embora exteriormente se assemelhe, de uma atitude mística. Na contemplaeáo mís-tica a atividade dos sentidos é abolida, enquanto que, na contemplaeáo estetica é essencial o cnvolvimento dos sentidos. Ao mesmo tempo, o conhecimento resultante dessa atitude náo tem a objetividade e clareza do conhecimento rational. 0 homem amazónico, assumindo, sob vagos con-tornos do sfumato do devaneio, a atitude de contemplaeáo estetica, elc se projeta no objeto de sua contemplaeáo, reeriando-o segundo a imagem do seu imaginário, construin-do uma espécie dc conhecimento interior. Na verdade, pode-se dizer que cle experimenta a prática dc um "trajeto antro-pológico" concebido por Gilbert Durand. "Para tal, preci-samos nos colocar deliberadamente no que chamamos de trajeto antropológico, ou seja, a ineessante troca (pic existe ao nível do imaginário entre as pulsoes subjetivas que emanem do meio cósmico e social.'"' Diantc das intimacóes da subjeti-vidade dc uma existéneia acontecendo em meio a uma natu-reza magníílca, o caboclo responde subjetivamente com a construcáo de um mundo imaginal profundamente estéti-zado, no qual as barreiras entre o visível e o imaginal estáo qucbradas pela interpenetracáo de pl anos de contornos eva-nescentes. Psse comportamento é de extrema riqueza, pois liberta o espírito, joga com as formas, revela admiracáo c náo apresenta preocupa^óes de tempo e espaco. Ubscrva-se, na cultura amazónica, o rcsultado de uma atitude de admiracáo do homem diante da natureza magnífi-ca cm torno. A presen^a do homem diante de algo que elc sente como elevado e superior. Suas interpretacoes da natureza tem caráter de elevacáo, de criac/io de um mundo scnsível no piano teogonico e mais perfeito, de investimento iy8 de mitologias que acenluam o senlido da funcäo estética tjue, por sen tunio, é lainhéni uma forma de elevacäo. Uma elevacäo mais sentida do que de lato racionalizácia, cujas formas elementares estao profundamente subjetivadas, epie evo-lui para uma atitude coletiva alem das individualidades, cria (por meio de uma cadeia de subjetividades) esse peculiar modo "universal" de esteticidade que é proprio da cultura amazônica. Uma espécie de visio esthétique, nos moldes em que foi percebida por Säo Thomas d'Aquino na cultura medieval, na linha de um raciocínio guiado pela nocao do carater essencial da visäo cntre os predicados da beleza, c que "consiste justamente nesta maneira de discernir a forma no sensível, visto que pelo eieito mesmo desta apreensäo do sentido a luz do ser penetra o intelecto"1". Ela se desdobra em uma forma de ideal coletivo de onde emana uma espécie de espontänea pedagogia do gosto. Uma educacao estética nos moldes daquilo que foi concebido por Schiller, isto é, como um processo de educacao da sensibilidade. A mitologia amazônica edonistica, amorosa, heróica, revela o entusiasnio das relacôes do hörnern com a natureza. Uma admiracao que é componente motivador do ethos da cultura. Seja no sentido de urn arrebatamento, semelhante ao epic aparece no Tratado do Sublime atribuído a Longin ou segundo se deprcende corno admiracao e respeito no Crítica do Juizo, de Kant, no que sc refere ao sublime. A admiracao como produto de urna emocäo que transforma a relacäo e a qualidade da vivéncia do caboclo, do hörnern arnazônico. A contemplacao do rio, da eurva do horizonte líquido, da lloresta, da chuva e do sol, do dia e da noite, traduz-se numa densidade emocional intensa, dando urna colaboraeäo de entusiasmo, de encantamento diante da natureza, evidenciando seu sentido interior. Todavia, o resultado näo é totalmente idéntico ao estado de alma romántico, no qua! a natureza objetiva o sentimento, na medida em que o sentimente) subjetiviza a natureza. Na cultura amazônica ocorre o distanciamento que permite a natureza ser percebida como lugar de criacäo e na qual, á semelhanca das anligas cosmologias, o mundo é recriado e povoado pela cultura sob o predomínio formal no qual se evidencia a emocäo sensível. Urna emocäo que se torna coletiva, nem tanto porque todos os que a produzem ■ vivain em uma só coletividade próxima no espaco, mas indi-vidualidades dispersas que partilham da mesma rcalidade. Uma simpalia generalizada dos que desfrutam a mesma rcalidade comum, um destino comum de est ar juntos. Algo como o einfühlung dos románticos alemäes, constituidor de uma comunidade de ser e de sentir. Um jogo de estados afe-tivos (|ue emana da vivéncia instauradora de uma compreen-säo intelectual englobante da rcalidade amazonica. Uma vivéncia intelecto-emotiva que identifica os dois "eus": o do caboclo e o que se atribui ä natureza contemplada. É, portan-to, o einfühlung, o dado imediato na relacáo de conhecimen-to que o hörnern amazönico constrói de sua rcalidade. Todavia, como a firma Victor Bash no sen Essai critique sur 1'esthétique de Kuní (Ensaio Crítico Söhre a Estética de Kant)", dentro do Ambito das particularidades da contempla-cäo estética há que "a ligaeäo entre a i magern e a idéia se eneontra numa saída do 'claro-escuro' psíquico, em que tudo, sabendo confusamentě que a ligacao entre a imagem e a idéia é inadequada, nós nos emprestamos ä ilusäo de que a imagem e a idéia se íundem, nós animamos o inanimado, nós emprestamos á natureza nossa personalidade". Esse- elaro-escuro que marca o limite vago em (pie se apura o jogo entre a imaginacáo e o entendimento, na estetizacao da cultura amazonica, e reafirma-se, como um motivo recor-rente é o (jue se está designando pelo termo sfunmto. E a zona de indefinicao e interpenetracao entre os pianos do real e do imaginário, que permite a emergéncia e a livre expan-sáo do devaneio, do pensamento errante, da exteriorizacao formal da emocao. Algo como no piano físico-gcográfico pode ser observado no fcnómeno do encontro das águas, por exemplo: seja o encontro entre o rio Amazonas e o Tapajós, cm freute a eidade de Santarém, quando as águas amarela-das de um se interpenetram nas águas esverdeadas do outro; seja o do rio Negro com o Amazonas, quando as águas escu-ras de um, se fundem nas águas amareladas de outro. Entre os rios, a faixa de interseecáo é indefinida, misturando-se difusamente duas realidades, sem uma rígida delimitacáo. Como no sfumuto do devaneio. Um fcnómeno que, no piano 200 cultural, pode ser equivalente ao que R.L. Wagner observou no maravilhoso bretao: "A hunianidade sc duplica de um outro mundo que vive á margem do nosso, mas do (jiial os membros atravessatn, por interfaces continuas, as aventuras dos cavalhciros e suas damas (...) e mesmo chega ao ponto em que näo sabemos mais estabelccer uma linha de demar-cacao entre a natureza humana e a outra"12. Por essa atitude imaginante o horném amazónico (cuja alma, como de um artista, c aberta ao mundo) se comunica com a natureza de uma forma total, sem as delimitates classifieatórias, sent i n-do-a como um todo, como um cosmo integrado pelo senti-mento. E a imaginacáo, nessa forma de relacáo entre sujcito e objeto, se enriquece e sc expressa na aeäo eriadora de mitos, de visualidades, de Fontes de criaeao artística insaciá-vel c estétizante. Entäo, diante de uma realidade que ultrapassa as possibilida-des imediatas oferecidas pelo real, o caboclo foi eriando seus mitos, como uma espécie de visualidade do maravilhoso, revcladora de um frescor da alma e pureza de coracao, á semelhanca do "saber dos povos antigos"", de Vico, ou dos tempos imemoriais teogónicos e épicos da tirécia antiga. a. A paisagem mítica su{)crposta a paisagem natural 0 mundo dos rios e da llorcsta é o interior. Para quem está na capital, o mundo rural é todo o mundo do interior. Para quem está nas cidades do interior, o interior é propriamente a parte rural. No entanto, distinguindo-sc da capital do Estado, cle é, segundo Isidoro Alves, "uma categoria situacional, nos termos de um conjunto de relacoes que säo de ordern económica, social, ritual, etc. Se o caboclo é por exceléncia um 'hörnern do interior', pode-se deduzir que é uma categoria social con-gruente com aquela"". É, entáo, nesse universu do interior (jue os mitos habitant e se tornám narrativas, isto é, lendas. Nele é que o rio e a llorcsta těm caráter constitutivo. "0 lugar da crráncia", como interpreta Maria Lucia Medeiros: "Esse mundo mágico que desliza á flor das águas obrigou, á época de sua ocupacáo ou da formaeao das cidades, conquistadores, sonhadores, doutores e aventureiros que, á sombra da magnitude de sua opulencia, idealizaram uma ponte no infinite, a ligacáo entre dois mundos opostos, díspares, ineonciliáveisw,\ () rio permite atitudes de estranhamento propiciadoras á emergencia de outras realidadcs eoexistentes. 0 verbo emer-gir eon fere ao rio a signiílcacáo de lugar de onde as eoisas aparecem. É das águas que se emerge. Mesmo o ser é das águas placentárias que evém á vida. Bachelardianamente, pode-se dizer que o rio é o lugar onde a água é água por excelencia. 0 rio é de água. 0 rio está vestido eom a pele das águas, mas também a sua carne e sua alma sáo de água. Seu corpo é de água. 0 que nele está mergulhado participii de uma uniáo cósmica. 0 rio nasec num olho ďágua. Significa que o olhar desse olho é líquido. É o olhar das nascentes, o mais antigo olhar, o olhar das origens e de onde o rio nasce. 0 olhar desse olho é a água corrente no ser do rio. Sendo assim, o rio é um grande olho que olha o céu e que também nos olha. Mas também é um olho que olhamos enquanto ele nos olha. Espelho de água. Má, por trás de todo olhar, uma alma. Diz-se que os olhos sáo as janelas da alma. Por detrás do olhar do rio há um mundo de signos, seres, mistérios. Assim, por detrás do rio -que é olho olhado que nos olha - há um mundo de mitos, lendas, encantarias. 0 rio torna-se, portanto, como uma coisa viva da qual tudo pode vir, como de tudo o que é vivo, de tudo o que tem vida. Do mesmo modo como atrás do olhar está a consciéncia e o inconsciente, atrás do olho do rio, nas suas profundezas, estáo as suas mil e uma noites imaginárias que encantam e aterram. Um jogo que faz uma constante nesses mitos: atraem e aterrorizam. A floresta nasce de uma semeňte que brota no útero da terra. Uma floresta é também uma plantacáo de símbolos. Há, na regiáo amazónica, um emaranhado de símbolos, a comecar pela simbologia propria da íloresta de todos os homens, result ado do sonho de sair de si á procura do "outro que somos nós ainda, numa expressáo dialética do próprio ser"1". 2.0Z A floresta esconde olhos que espreitam, que perscrutam, que vigiam. A 11 o rest a nao tem um só olho. Lies säo ineontáveis. E näo säo sews' olhos, säo olhos que nela se escondem. As folhas escondem olhos. Olhares vagam por entre os (roneos de giganteseas árvores. Os escuros escondem olhos. Säo, por-tanto, multidöes de olhos espalhados nas inflnitas faces nhs-teriosas da floresta. Mesmo no easo do lieu de plaisauee, do locus amoenus, das llorestas geladas, da paisagem ideal, a floresta tem sido um lugar de onde o mistério, o desconheci-do, o imaginário espreitam com mil olhos. Nela repousam, caminham e vagam santos e visagens. Dela evola sempře uma atmosféra de mistério: "A aurora, apareeendo por entre as altas árvores longínquas, expeliu a noite estrelada com o seu cortejo de terrores vagos e de alucinacöes cruéis"'7. b. Correnteza ou interlúdio mítico ou relacäo exempli-ficatória de mitos Säo inúmeros os mitos que povoam as eneantarias amazóni-cas. Há o Anhangá, que é um veado (pie assombra; há a Caipora, eaboclinha de grande eahelcira que chega a enco-brir-lhe o sexo de amante eiumenta; há o Lobisomem, que geralmente é um hörnern que se transforma em po reo; há a Boiúna, cobra-grande que se transforma em navio ilumina-do; há as Amazonas, mulheres guerreiras que eavalgam pela sclva e recebem os guerreiros braneos em orgiástieas noites de amor e de luar; há o Uirapuru que só pode ser morto com um lipo de cera de vela do altar onde foi realizada a missa do galo; há o Muiraquitä, pedra verde, amuletu esculpido na forma de um sapo, raro amuletu de amor das Amazonas; há a Ipupiara, a mae-ďágua indígena, transformada na lara de longos eabelos e voz maviosa; há o Curupira, mäe-do-mato, e génio tutelar da floresta; há o Jurupari, demónio, espírito mau e grande legislador; há a Kerpi-manha, a máe ou a ori-gem do sonho; há o Mayua, ser misterioso de onde provém todo o mal; há o Tupana, espéeie de deus, ente desconheeido que troveja e mostra sua furia pelo raio eapaz de earbonizar florestas e homens; há o Boto, da família dos golfinhos que se transforma em um moco belo e sedutor, espéeie de Don Juan das águas; há o Poromina-Minare, personálem amoral, de imenso falus, que transmigra da ťloresta para a cidade, numa viagem eheia de aeidentes; há Rudá, o deus do amor; há a Tambatajá, simbolo do amor eterno, nascida na eova de um índio e da india maeuxi que se amaram profundamente; há o sol nascendo, tornando-se moco valenle e eonvivendo com os membros da tribo, antes de subir para o céu e meter-se nas nuvens; há a lua, que era mulher, irmá do sol, com quern deitava todas as noites; há Baíra, capaz de manipular o mundo a sen interesse, roubando o logo para o bem de sua gente; há o vagalume engravidando a filha de Baíra; há a filha de Baíra com quem todo mundo fornieava; há o nascer da noite nos cantos de um pássaro; as mulheres engravida-das por animais; os fornicadores incontinentes e os adultos metamorfoseando-se em sapos-cururus; há, ainda, as cunhantás que se transformam em raiz da priprioca cujo aroma enfeitica todo mundo; há o Paitunaré agradando as mulheres e levando-as para a rede onde juntám seus corpos; há o Unari, um deus vagabundu, sujo, fedorento, que eomia caca quase crua misturada com terra, com o carváo e a cinza das fogueiras; há o malicioso Sapo Taró-bequé, ardiloso, repetindo que o que mata as pessoas é o medo; há as erian-cas que se metamorfoseiam, como o menino filho de Ualipera, alimentado de água e mel, pintado de barro verme-lho, e que, por ter dancado com uma mulher menstruada, desde esse dia, suou sangue, morreu e se transformou em sete-estrelo; há o laueaná, um grande sedutor, que inventou uma espéeie de flauta de Pá, de dupla earreira de tubos, de onde extrai melodias que atraem e seduzem as mulheres; há Maeunaíma, que se transforma em macaco, em quati, em cobra, cm lagartixa, em tudo, para alcan^ar e ser engolido por um sexo de mulher pendente — como um fruto maduro — de uma árvore. lišta relacáo mítica - na modalidade de um interlúdio narra-tivo e exemplificativo - é apenas uma indica^áo temática da populosa teogonia amazóniea. Čada relato lendário particular desses mitos constitui fator indicativo dessa domi-náncia poética do imaginário. Uma estétieidade que deeorre Z04 de qualidades Formais próprias a esscs mitos, cujo significa-do deriva das significacöes contidas na cid Iura amazönica. Uma poeticidade de signos-mitos enraizados em significacöes presentes na eoletividade amazönica que, como toda significacäo estétiea, vem "earacterizada pelo que há de comum nos estados subjetivos da consciéncia evocados pol o obra-coisa nos membros de determinada eoletividade""1. Aqui se Faz uma relacäo de earáter associativo entre o mito ama-zönico como criacäo e o signo ou objeto-estetico autönomo de Mukarovsky, na medida em cpie, tambeni segundo esse simiólogo e pensador da arte, "a funcäo estétiea ocupa um campo de aeäo muito mais amplo que a arte propriamente dita"1". No rio c na Floresta predominam os mitos que enriquecem de significados, tantas vezes intraduzíveis, a cultura amazönica. Compartilha-se aqui da idéia de Gilbert Durand de que "assim, o termo mito recobre (...) quer o mito propriamente dito, quer dizer, a narrativa cpie legitima tal e qua! ľé religio-sa ou mágica, a lenda e as suas intimacöes explicativas, o conto populär ou as narrativas romanescas", o que está de acordo com o pensamento de J. P. Bayard, em ilistoirc des Icgcnds (História das Lendas)'". Üs mitos amazönicos säo numerosos, säo diversos, säo de diferentes categorias. Dentro dos horizontes desta análise seräo vistos alguns, {)rovenien-tes do rio e da floresta, sem que esta eseolha signifique (pial quer idéia de superioridade de uns sobre outros. A eseolha decorre unicamente das motivacöes estéticas de abrangencia regional que acentua sua importäncia como portadores das (jualidades da cultura amazönica aqui estudadas. Säo extremamente variáveis os limites da funcäo estétiea, como também o säo as suas dominantes. 0 campo destas reflexöes estäo circunscritos ao que se considera a funcäo estetizadora de uma poétiea do imaginário como dominante. Na impossibilidade circunstancial de interpretar numerosos exemplos, Foram escolhidos t res mitos que expressam de dilérentes maneiras a temätica eondulora deste estudo: o Boto, a Boiúna e o Poromina-minare. zo5 3-z. O ^Boto ou o esplendor do amor de roupa branca ou o amor de per-diq&o que também salva M/TO DA ORIGEM DOS BOTOS (Co ní a da por Paquiri) Uma mulher era casada, mas tinha um namorado: o maeho da Anta, porque qostava do membro dele. E estava sempře deitaudo com bichos. O marido só desconfiava. Ela fa z i a m u i (os b e ij u s. E quando o marido nao estava, ia á beira do rio e cantava e assoviava, bem no lugar onde a Anta saía ďágua. Cauim apó arérehú E a Anta responďia. FUFUFUFi! O macho da Anta saía ďágua; Comia e ia deitar-se com a mulher. O marido só desconfiava. Um dia cle disse aos companheiros: — Vamos mat ar a Anta? - Vamos. Fizeram muitos beijus. E foram ao lugar onde a Anta morava. E ehamaram: Cauim apó arérehú. A Anta saiu ďágua. Os homens saíram detrás dos paus e a mataram. Partiram o bicho cm pedagos. E puseram tudo no moquém. Quando já estavam assados, levaram uns pedacos para a namorada da Anta. - Está aqui um pedaco de carne de porquinho que te trouse-mos. A mulher disse que ndo queria. O marido dela e sens eompanheiros comeram toda a came do macho da Anta. No outro dia a mulher convidou o marido para tomar banho. A mulher ia na freute carrecjando o Jllhinho que era dela e da Anta. 0 hörnern putou n'iigua. A mulher, com a crianca, tambcm, perguntando: — Eu mergulho? 0 marido disse: — Mcrgulha. A mulher mergulhou com o jllhinho. Demorou, debaixo ďágua. E boiou depots no meio do rio. Ela e o jllho tinham virado Boto. O hörnern voltou para casa soziuho. For isso o sexo da fěmea-do-Boto é como o da mulher e o membro do Boto é como o da Anta macho21. a. O sobrenatural natural A convivéncia com o sobrenatural č um dos tracos comuns da vida amazónica. Hstudando a comunidade de Itá, o anlropólo-go Charles Wagley exemplifica essa convivéneia: "Santo Antonio e Sao Benedito, cujas imagens ocupam o altar-mor da igreja matriz, chegaram mesmo a ser vislos á noite eaminhan do pelas ruas. t) pai de Juea contou-lhe ter avistado os dois santos passeando eerta noite sob as mangueiras da rua prinei-pal; usavam hábit os de monge e dirigiam-se á igreja, onde os viu entrar. Uma luz acendeu-se no interior e em seguida a igreja voltou äs escuras". A aceitaeáo espontánea de episódios como esse, reílexo de uma es])éeie de aeeitaeáo de dois mun-dos entrelaeados no cotidiano, representa um dos suportes psi-cológicos de eompreensäo de relatos verdadeiros eomo o do Boto, o grande amante insaeiável das mulheres ribcirinhas. Em sua obra No Estuário Ama/.ónico, dorn Antonio de Airneida Lustosa documenta um dos conceitos de eomo o zo/ Boto e lido na regiao, que serve para ilustrar tambem o seu carater e uma certa sirnpatia do ribeirinho com relacao a ele: - E o Boto e inimigo do homem? Ndo senhor. Quando uma canoa se alaga, o que nos salva e o Boto. Ele ndo deixa nenhum peixe chegar para comer gente23. Tambem se acredita que o Boto seja a encarnacao do espiri-to protetor dos peixes. 0 Boio e um mamifero cetaceo, da familia dos platanistideos e delfinideos, marinhos e de agua doee, que pode alcan^ar mais de dois metros de comprimento e diametro aproximado de 70 em. Corresponde, nas aguas doces, ao golfinho ou del-fim do mar. Das seis espeeies conhecidas, ties pertencem a bacia Amazonica. Destaeam-se o Boto-preto e o vermelho. O Boto-preto e lido como o que protege. 0 Boto-vermelho e o Don Juan das aguas, sedutor de moeas donzelas e mulheres easadas. Sendo seres eneantados, podem se transtbrmar, em um momento de epiľania humana, em belos rapazes vestidos de braneo e grandes sedutores. Nessa nova e eventual condic.äo, o imico sinal identifieador que guardam é um buraco no meio da eabeea, por onde respiram com eerto Riido. "Esse del lim levanta, nas lonjuras do rio-mar, o renomé clássico de sua estirpc. 0 delfím é símbolo lúgubre. Desde a Antiguidade ássiea ele é dedieado a Venus e apareee, roncando de cio, junlo ä deusa res|)lendente."',', 0 Boto é um encantado da metamorfose por excelencia, expansao de uma espéeie de extase dionisíaco, que deixa as mulheres fóra de si mesmas, fazendo-as esquecer todas as normas para seguir somente o impulso ardoroso desse ser de puro gozo, de amor sem ontem nem amanhä. Esse at o puro de prazer que em si mesmo se eneerra, que é forma e conteúdo de si mesmo e que se estrutura esteticamente como mito. Momento de personificacäo da alegória do 208 amor. "A personificacáo é um momentu de alegoria" (...) "Seu ser é ser signo.""1 Os Botos costumam seguir dc pcrto as embarcacoes, fazendo um ruído como qucm rcspira cansado de tanto nadar, apro-ximam-sc das embarcacoes atraídos polo logo, nadando cm movimentos ondulares á pele das águas, lembrando os movi-mentos rítmicos humanos da cupula. 0 Boto — epifanizado era rapaz vestido de bianco —pode surgir em uma festa de danca, sem que ninguém o conheca ou o tenha convidado. Destaca-se pela habilidade na danca e pelas manciras elegantes como se apresenta vestido. lile pode, de outra maneira, aparecer no quarto e deitar-se na rede com a mulher que pretende seduzir e a mar. Pode tam-bém engravidar as mulheres que, estando menstruadas (ou enluadas, segundo a palavra da linguagem caboela de ori-gem indígena), o tiverem olhado de perto, sej a do tombadi-lho de um barco, sej a de algum lugar á beira do rio. Se dessa ligacáo nascer um filbo - filho dc Boto - a motal reguladora dos costumes da família altera seu julgamento c, ao invés das condenacoes e punicoes habituais em casus como esse (de filhos antes do casamento) ou sem o concur-so do marido, ba a compreensáo c a aceitacao do ato, como algo sobren a tura 1-natural. Segundo Isidoro Alves, "o mundo dos caruanas, botos, oia-ras, visagens, etc. (...) é um mundo de mediaeóes, que cons-troem hierarquias resultantes de valores atribuídos aos domínios da acao, formas de interveneao, regras de evita cao e de compromissos assumidos". Mais adiantc, "náo há dúvida de que o boto estabelece uma ordem dc mediacao entre natureza e cultura cjue aponta para a conjuncáo dos sexos, regras sociais a sérem cumpridas e procedimentos esj)erados"-"'. Pssa mediacao permite náo apenas a uniáo cósmica, como situaeóes de hybris caj)azes até mesmo dc fortes alteracoes éticas, sobretudo no que diz respeito á crenca numa segunda natureza das coisas e na violacáo dc interditos. zoj? b. Os interditos violados 0 primeiro intcrdito que a lenda do Boto transgride diz res-peito á consumacäo da cópula entrc humanos e animais. Há tanibém urna profunda difcrenca quando se trata de uniäo homem x fémea-do-boto, da uniäo do Boto-feito-rapaz x mulher. No primeiro caso, dá-se a cópula sem que haja a transfiguracäo. Considerando que a fémea-do-boto lem o se-xo semelhante ao da mulher, o caboclo, segundo relatos orais que testemunham o fato, copularia com cla nas praias ä bei-ra do rio, para depois matá-la. Segundo esses relatos corren-tes no interior do Estado, a preferencia do caboclo por essa relacáo decorreria do fato de que o sexo da fémea-do-boto tem uma conformacäo muscular interna que se contrai re-petidas vczes durante a cópula, provocando a intensificac.äo do prazer. É possível que essa peculiaridade signifique uma espéeie de inconsciente justificativa para a relacáo sexual epic, em condicôes normais, é interditada. Essa explicacäo também pode ter concorrido para o prestígio do sexo da fémea-do-boto (a "boceta da bota") como amuleto propicia-dor de seducäo e venturas sexuais. Rica metafora, pois a parte funciona com a significacäo do todo. Após consumada a cópula, a fémea-do-boto é geralmente moria ou, no caso deja est ar agonizante após os embates da pesca, sua morte é consumada. Essa morte repóe uma reacäo homem X animal: quern mata é aquele que teve a relacao sexual; náo há envolvimcnto amoroso anterior, (pier dizer, näo há um processo de elevacäo do animal ä conditio humana; sua animalidade permanece, isto é, na condicäo de golfínho-fémea é que ela é objeto de prazer; muitas vezes será repartida em postas para servir de alimento, embora o caboclo normalmcnte recuse comer carne de boto; näo se torna objeto de devaneio, mas eonereta atragäo de ordem da libido; näo interfere na moral familiar ou de grupo; mantóm a submissäo da fémea-do-boto, atribuída ä condicäo da mulher; lem um destino trágico, visto que é sempře morta por aquele a quem ela só deu prazer. E, portanto, urna morte ritual, uma morte sacrificial. Com isso, há o impedimento zro inconseiente de urna possível gestacáo, na idéia de que ela possa ter sido íéeundada. No caso da relaeáo Boto x mulher, conflgura-se a lenda que faz desse terna sua narrativa. A relaeáo é atenuada pela mascara, isto é, o Boto (cuja forma de del ti m vem carregada de erotizacao desde a cultura grega, pois a conformidade de sua cabeca é associada á glande fálica huniana) nao se apre-senta como animal, mas como homem. Um belo rapaz, extremamente sedutor, vindo do outro lado do mundo visí-vel. Nessas cireunstáncias a mulher (que se mantém como elemento passivo) nao comete uma violacáo de interdito (cópula ser-humano X animal), mas uma atitude considerada normal: relaeáo amorosa entre seres humanos. Claro que o poder de seducáo do Boto advém de sua sobrenaturalidade, mas esta ainda nao é neeessariamente do conhecimento da mulher. A mulher entrega-se amorosamente ao Boto porque foi seduzida por cle sob figura humana. Mesmo durante a relaeáo, o Boto continua como rapaz. For outro lado, quan-do o Boto engravida alguma mulher pelo olhar, isto é, quan-do ele, mesmo como delťim, olha de perto alguma mulher mens-truada — cnluada — existe o mistério, mas nao propria-mente a violacáo de um interdito, pois inexiste relaeáo físi-ca. No entanto, no ámbito da vida no interior da Amazónia, o aparecimento de um desconhecido acende a imaginacáo, pela possibilidade de ser um moeo encantado. Fsse lato permite a deducáo de que, mesmo sob a aparěncia humana, pela crenca de que o rapaz seja um ser estranho, um possível Boto ou uma idealizacáo esperada indica que, também nes-ses casos, se pode falar em violacáo de interdito. Uma violacáo que tem resultados opostos: se o rapaz/Boto é surpreendido como amante, sofrerá mořte ritual, no caso de nao conseguir fugir; mas a mulher receberá o perdáo por sua culpa, pois terá agido sob a forea de um eneantamento. I: neeessário que o homem mate o Boto para que se reins laure o reinado desse horném sobre as duas realidades: a natural e a sobrenatural. A identidade se desvela, quebra-se 277 o mundo de aparěncias, reaparece a natureza animal momentaneamente velada. Operacionaliza-se a conversäo semiótica no quiasmo: na forma animal subsiste uma essén-cia humana; na forma humana subsiste uma esséneia animal. Como o Actéon, analisado por Robert Harrison, "nos somos forcados a admitir que as formas do mundo säo transitórias, ilusórias e reversíveis"". Um outro interdito rompido pela lenda refere-se ao periodo de fecundidade da mul her. A eiěncia constata que o periodo em que a fecundaqäo é impossível é o menstrual. No entan-to, é exatamente nesse periodo que o Boto também feeunda suas mulheres. Quer dizer, uma hybrir múltipla. Em As Estruturas Antropológicas do Imaginário, Gilbert Durand acentua que "este tabu imperialista tem um caráter m a is ginccológico do que sexual: näo só na maior parte dos povos as relates sexuais säo interditadas no periodo das regras, como também é interdito permaneeer proximo de uma mulher regrada""'. No entanto, em conseqiiéncia do clima, nos j)aíses tropicais, os ciclos agríeolas de vitalizacäo da terra estäo ligados profundamente aos ciclos lunares. Gilbert Durand acrescenta que "nos países tropicais c cquatoriais o sol é sobretudo nefasto ä germinacáo e ä vegetacäo. Todavia, apcsar deste imperativo climático, a crenya no poder ľerti-lizante da lua se limita, apenas, aos países quentes, o que indica que a tônica do isomorfismo é posta mais no esquema rítmico que no utilitarismo agrícola". Os indígenas e mesmo o caboclo amazônico costumam dizer da mulher, no periodo menstrual, que ela está enluada. Opera-se a í urna espécie de epiľania da lua e, evidentemente, de seu sentido de fecundidade. "Donde a sobredeterminac;äo feminina e quase menstrual da agricultura. Ciclos menstru-ais, fecundidade lunar, maternidade terrestre vôni eriar uma constelacäo agrícola ciclicamentc sobredeterminada." Por outro lado, a lua morre para, horas depois, renascer. E morte que näo morre. É queda que sc levanta. Ainda é oportuno remarcar urna outra violacäo de interdito, já antecipada em outro contexto: é a que está relacionada 2/2 com o filho-de-Boto. A crianca que nasee de mulher soltcira ou dc casada sem o concurso do marido, sendo reconhecida e aceita como filho-de-Boto, quebra um clo da rigida estrutura moral de punicäo da mulher, que ocorreria em situaeöes equivalentes passadas entre seres humanos e sobrevěm o perdäo. Ou, pelo mcnos, a aeeitaeäo natural do fato sobre-natural. Em sua Geografie, dos Mitos BrasUeiros, Luis da Cämara Cascudo reproduz um registro de Umberto Peregrino a esse respeito: "E a crendicc na gula amorosa, na liberdadc lúbri-ca do boto continua muito viva, a ter toda a forca. 0 Dr. Gete Jansen me refere o caso recentc de uma mulher (pie, levan-do o filho num servico medico, quando lhe pcrguntaram o nome do pai, para o competente registro, respondeu com absoluta conviccjio: "Näo tem, näo senhor, é filho-de-Boto" — A mulher era casada, tinha outros filhos cuja paternidade atribuia pacificamente ao marido, mas aquele teimava cm dar como filho-de-Boto. — Este "é filho-de-Boto, eu sei" -Näo houve quem a demovesse, o registro foi (cito ä sua reve-lia"29 (p. 142). 0 filho-do-Boto, portanto, qucbra o interdito da mulher solteira ter filhos ou, da casada, té-los sem o concurso do marido. Trata-se, portanto, de uma queda näo punida. Lemos ainda em Gilbert Durand (pie "a simbolizaeäo feminóide da queda näo parece tcr sido primitivamente escolhida senäo por razöes de fisiologia ginecológica e näo por razöes sexuais. Houve ein cerlas culturas um deslocamento do fcnómeno menstrual para eonsidcracöes de moral sexual"30. 0 Boto lecunda a mulher na época de sua menstruaeäo. De čerta maneira a(pii se mantém o estigma da queda observada nas antigas mitologias e na Bíblia, e estudadas por Durand, no ämbito dos "símbolos catamorfos", como a terceira grande epifania do imaginário da angústia humana. Aqui se observa ser a marca da animalidade na mulher. Aquilo que estabeleee a cópula sob a impureza do sangue menstrual, no sentido literal e figurado da condicäo baixa c animal da mulher. Ao mesmo tempo, num processo inverso, evidencia-se uma condicäo humana e alta do Boto, enquanto animal. Para este 2/3 e uma ascensäo. Para cla uma queda. Uma queda näo puni-da, mas perdoada. Pia näo e expulsa do Paraiso. Polo contrario, incxiste punicäo, pois o (lino foi concebido sem pecado, pois foi cm condicäo de encantamento. Mesmo sem que a noticia tenha sido trazida por algum anjo de anun-cia^äo. Mas o Boto, por sua vez, tambem näo abandona o fllho que gerou. Quando algum fllho-de-Boto morrc afogado no rio, diz-sc que partiu ao encontro do pai. Ainda mais: quando as mulheres gravidas viajam, sobretudo em pequenas embarca-cöes, e säo seguidas pelos delfins, comenta-se que eles viriam das encantarias em busca de seu fllho. c. Signos e sinais Ha ricas nuances no processo de transformacao do Boto em homem. Urn quiasmo resultante do cruzamento entre o "alto" e o "baixo". 0 Boto, na ordem natural, e o "baixo", enquan-to animal, que se torna "alto" quando se transforma em homem. Ii se rebaixa novamente no ato de sua reconversao a condicao animal. Por outro lado, na dimensao mitica, ele e o "alto", enquanto animal encantado, e "baixo", enquanto homem transgressor, sofrendo uma irremediavel queda puni-tiva, em consequencia da transgressao, em um momento em que estava no "alto". E, de certa maneira, um hcroi tragico. E punido pelo ato de ter estado no "alto", e seu castigo c proporcional aqucla altura. 0 castigo de ser um hibrido, urn violador da ordem natural, um sobrenatural/humano. Em sua natureza hibrida esta sua culpa. Na sua grandeza esta sua queda. Para o Boto nao ha o perdao, pois e seu destino ser punido. Sua gloria esta no momento de sua degradacao: o amor. Quando e surpreendido e perseguido, acovarda-se, jamais enfrenta seus adversarios, foge para atirar-se de volta ao rio. Retorna, assim, a condicao animal. Quebra-se o encanto. I)egrada-se. Pode ser morto. Mas, ao mesmo tempo, salva a mulher que amou. "Todo grande pcrsonagem e uma 2*4 uniäo de contrarius: ele c o alto cuja grandcza está na bai-xcza, ou é o alto que eai e readquire grandeza na queda, on cntäo é o baixo que se eleva e se most ia grandioso apesar dos pesares. Quanto maior sua desgraca, tanto maior sua grandeza."" O Boto é uma uniäo de eontrários. É o "baixo" que se eleva para tornar-se "baixo". Näo é pcrseguido por ser um golfinho, mas por ser hörnern. Como hörnern reeebe a lei moral dos homens. Mas, como peixe, o resultado de sua passagem pela condieao humana — o amor — é perdoado na mulher. Nunca foi morto enquanto hörnern. Sempře o é como animal, (pie aparece morto, mesmo que tenha sido ferido de mořte sob a forma humana de um Don Juan das águas. Será uma espécie de "ambivaléncia — Cronos — Tánatos, da pulsäo e do destine) mortal" de que fala Durand? Herói dominante do sistema narrativo da lenda, o Boto, na sua passagem da água para a terra, experirnenta o percurso da conversäo semiótica. Na água é um animal encantado com toda uma ordern simbólica na cultura. Em terra é hörnern por-tador de um outro campo de significances. Em terra assume a forma de moco de branco, que é sua forma de aparéncia. Pura aparéncia, exterioridade plastica do amor personiilcado, que é, täo-somente, a imagem do amor. Aparencia e estesia. Näo há registro de suas falas, de suas reflexöes, de suas dúvidas, de sua interioridade. E uma visäo que eunipre um destino: amar. Na sua aparéncia está sua esséneia. Transformado em rapaz sedutor, de olhos negros, brilhantes e enfeiticadores, guarda, apenas, como todos os heróis transfígurados, um sinal identi-fieador. Urn sinal persistente de sua condicäo delfíniana de animal, na aparéncia humana. Um orifício original, sernelhan-te ao da glande, na cabeca erotizada do Boto enquanto delflm, índice da condieao animal que permanece no hörnern em que ele se transforma. 0 orifício da cabeca do Botu, que permanece na cabeca do rapaz, é um sinal de "realismo mágieo" nessa figura de herói amoroso. O sinal identilleador tem longa história nos relatos míticos ou literários. É a marca da mimese. Z15 "Os leitores da Odisséia lembram a bem preparácia c emo-cionante cena do canto XIX, na qual a velha arna Euricléia reconhece Ulisses, que regressa ä sua casa, c de quem tinha sido nutriz, por uma cicatriz na coxa."" Homero, mestre do eťeito de retardamento próprio do épico, valoriza este momento que prepara o futuro reconhecimento coletivo do herói que volta para assumir sua realeza. 0 mesmo destaque ao sinal de reconhecimento é dado por Sóíbcles na tragédia Édipo Rei, na qual sua identifiea^äo como filho de Laio acontece em conseqiiéncia de uma cicatriz no tornozelo. resultante de um ferimento ocorrido na infáncia. Deve-se, no entanto, destacar que, se em Ulisses e Édipo é a marca do real que identifica, no Boto, o que identifica é a marca do "realismo mágieo", uma vez que aí náo denota a indicacao da realidade no ficcional, mas da surrealidade no real. E o sinal do encantado. É por essa razao que, na forma humana, o Boto sempře usa um chapéu cobrindo sua cabeca. Um objeto, índice do real, para encobrir o sinal da surrealidade. 0 Boto, entáo, é sempře um belo rapaz de olhos negros, brilhantes, enfeiticadores e vestido de branco. Encanta por sua aparéncia. Há qualquer eoisa de magia do luar na bran eura dessa roupa. Sabe-se, por exemplo, de políticos que se vestem de branco para bencficiar-se, junto ás mulhcres do interior, do ideal de fascínio e elegáneia generalizada pela imagem do Boto. Joáo Luis dos Reis, um tradicional politico de Abaetetuba, cidade sede de importante município da rcgiáo do baixo Tocantins, no Estado do Para, dá seu teste munho pessoal: "Muitos políticos se vestiam sempře de branco para impressionar o eleitorado feminino. Usávamos tam-bém, escondido no bolso, um olho de boto, para atrair a ateneáo das mocas. E seus respectivos votos, é claro!" E que o olho do Boto, metafora do Boto, é considerado amuletu propiciador de seducáo masculina. Usar um olho de boto significa tornar-se irresistível ás mulheres. Alem dos políticos, os donos de regatáo beneficiavam-se com a imagem do Boto. Especialmente quanto á elegáneia carismática da roupa branca. 0 regatäo é um barco, por meio do qual se desenvolve um sistema de comércio fluvial que já teve importáncia fundamental na Amazonia, antes do advente) das estradas e das novas estratégias de mereado. Percorrendo as cidades do interior, parando em vilas ou casas isoladas ao longo dos rios, esse bareo-armazém leva as novidades da eidade grande para o interior da Amazonia, atuando como uma espécie de centro de eonvivéneia cultural flutuante. Säo meios de informaeäo, veieulos de troeas simbólieas, elos na vasta e dispersa distribuicäo geográfíca humana regional. Em suas curias temporadas em cada porto, o dono do regatäo aproveita essa oportunidade como lazer, já que seus contatos comerciais säo relativamente simples no ajuste de compromissos de ncgócios, sobrando-lhc tempo ao trato social. Trajado sempře de bianco, passeando pela eidade em dias e horários em que todos trabalham (inclusive sens empregados de bordo), conversando sobre novidades entre bebidas ä mesa dos bares ou mercearias locais; jogando cartas ou bilhar, tocando violäo on cantando pelas altas noites da eidade, desfrutando amores fortuitos e passageiros, o dono de regatäo passou a ter sua imagem associada ä do Boto no imaginário feminino das cidades. lira comum o comentario de (jue usavam um olho de boto. Há uma interessante nuance simbólica da roupa branca. Ä medida que o comércio de um determinado regatäo prospěni, a qualidade do linlio bianco da roupa de seu proprietário também se aprimora. Um signo estetico indicador e distintivo do nível economico e social. d. Eros e Tánatos - uma erotologia trágica A lenda do Boto, portanto, está cercada de uma ampla este-lizacáo. A comecar pela beleza. 0 Boto é apresentado como uma forca de beleza capaz de atrair sobre si a contemplacäo. "Ida mordeu o sorriso, aceitou silenciosa e dancou. No meio do chorinho - a flauta era lina c rebulideira, o soallio cheio de altos e baixos, paxiúba e acapu - a primeira lembranca foi Parieatuba, o olhar daquele bomem - se cle subisse do rio ziy e apareccsse, credo! só mesmo como boto que vira 111090 bonito e vem desencaminhar moca."J1 É que o Boto adora as i'estas e as dancas. Mesmo nas encantarias do fundo dos rios onde mora, promove suas festas, dando a impressao de que o rio tem uma iluminacao submersa, de onde emergen] rui-dos de dancas animadas. 0 olho e o olhar sáo outros signos de grande tensao estc-tizante na lenda. 0 olhar e o ser-olhado. A poténcia do olhar. 0 olho do Boto é tido como poderoso amuleto de seducao. "Este simbolismo do Talismá e do Totem, essencial-mente vicariante, quer dizer, procedendo por escolha de uma parte que vale pelo toclo, é um meio de acao sobre a neces-sidade temporal ainda mais adequado que os processos auti-Irásicos de que esbocamos o modo de atuacao", segundo Durand, nas Estruturas Antropológieas do Imaginário. É um simbolismo de caráter metaiorico (a parte pelo todo) dos talismás, que também está presente no prestigio do sexo da fémea-do-Boto, já mencionado, e que garante que a podero-sa capacidade de prazer sexual pode transferir-se ao usuá rio. Alias, segundo Dalcídio Jurandir, torna-se um simbolo cósmico: "0 sol era um olho de boto vermelhando nas águas crescentes"'-'. Alem disso, embora com menos poténcia do oclo com a floresta. No entanto, diferentemente do ^'ografo, e mais proximo dos antigos filósofos, a segunda dimensáo que ele atribui á natureza nao é científica, mas ontológica e transcendental. Isto é, cm busca de significances, o reconhecimento de um lado sobrenatural, a reve-lacáo de seres divinizados. A empatia lhe pcrmite a expan-sao da sensibilidade estética. 0 estranhamento cria a neces-sidade explicativa. Mas esta é metafísica e teogónica, produ-to do imaginário triunfante e náo da razáo objetivadora. O caboclo observa, analisa, conhece, destaca, valoriza, sente, fmmaniza, estetiza, em sua relacáo geográfico-ontológica com a vida. Vive, corn a paisagem, uma relacáo de comple-mentariedade. Ele possui esse espírito gcográflco por meio do qual, segundo Eidorfe Moreira: "A vida torna-se mais rica e expressiva quando apreciada em termos panorámicos, isto é, quando vista e analisada geograficamente. É como paisagem que cla adquire a sua mais alia forma de expressáo, de grandeza e de unidade, pois somente assim podemos abran-ger, no seu harmonioso deíerminismo, o acordo universal das coisas e dos seres"56. Náo se deseja aqui "dcsnaturalizar" a natureza e nem atri-buir-lhe uma nocáo idílica do relacionamento do caboclo e do índio com a natureza amazóniea. Má uma outra dimensáo desse relacionamento que ocorre do dia-a-dia do trabalho e da sobrevivéncia, geradora de situates e conhecimento de earater prático, que constitui um dos ángulos fundamentais da vida na Amazonia. H uma dimensáo |)rofusamente es-tudada e náo constitui objeto děste estudo. A preoeupacáo que orienta estas rellcxoes é a de eaptar, na relacáo do horném com a natureza da Amazónia, a configuracáo cultural dessa "paisagem ideal" cm seu cotidiano. li. K. Curtius observa que: "Com Momero, comcca a transli-guracáo do mundo, da terra e do horném. Tudo está impreg-nado de forcas divinas"". Má uma co-participacáo entre a natureza e o mundo divino. A natureza é atetivizada e se torna amável: uma cabana, um bosque de árvores alias (pre-dominando as palmeiras e outras árvores írutíferas), um iga-rapé, uma beira de rio. Má, tanto na Hinda eomo na Odisscia, inúmeros casos de uma paisagem ideal, da natureza amena. Curtius recolhe, por exemplo, este fragmentu da Odisséia, apresentando a gruta mágiea de ítaca (13,102): "Na eabeca do porto Ilea uma oliveira frondosa e junto dela uma gruta amena, cheia de sombras, eonsagradas ás n in fas conhecidas pelo nome de náiades. Dentro se encontram erateras e án-foras de pedra, e ali as abelhas constroem suas colméias; acham-se, também, altos teares de pedra, onde as ninfas te-cem mantos tintos com a purpura do mar, uma maravilha. Minám ali fontes perenes. As entradas sáo duas. Por uma, descem os hornens; a outra, voltada para o sol, é divina; por cla náo entrain homens, pois é a passagem dos imortais"'"". Má também, na Literatura Amazóniea, expressivos exemplos de natureza amável ou paysage ideal. No romance O Missionário, de Ingles de Sou/a, onde há des-eri^óes catedralescas da natureza da Amazónia, há um exemplo: "A tarde eslava muito fresca. A viracáo, vinda do Amazonas, acentuava-se, enrugando a face- do Cinuuná cm pecjuenas Z3S vagas de prata e fazendo oscilar a humilde embarcacäo de pesca. As ärvores da beirada balancavam-se graciosamente sobre as ribanceiras em saudacöes eorteses aos atrevidos naulas que visitavam aquelas paragens despovoadas. As eigarras e OS tananäs, sentindo avizinhar-se a noite, canta vam em notas melancblieas as saudades da vida efemera que se desprendia do minguado corpinho. 0 unieorne denuncia-va a sua presenca nas värzeas da beira do rio, cortando o ar com as vibracöes da voz sonora e potente, acordando o jabu-ru meditativo e tristonho na sua roupagem negra. Araras de torna-viagem enchiam o ecu com a gritaria estridente (pie ia penler-sc, num rumor longinquo e monotono, nos taperebäs da serra, e cruzavam-se com os papagaios sertancjos voaudo alto, e em bandos compactes; governando o impulso do voo com o staccato do canto arquejado. No meio dos gapös a saracura e o galo-d'ägua gemiam urn dueto amoroso, com o acompanhamento da orquestra desenxabida das lontras que vinham gozar do ultimo calor do sol morrente; e no capinzal da beira os cururus enfatuados e bulhentos assustavam as timidas rolas aninhadas na espessura da canarana, no aconchego da folhagem macia, (pie se punha a dar gritozi-nhos allitos, cedendo ä fascinaeäo irresistivel. Com a despe-dida do dia, as eigarras grasnavam. (...) I'rutos maduros se desprendiam das ärvores ribeirinhas, caindo na ägua com urn ruido sonoro que provocava uma avancada geral das tar-tarugas l'amintas, nadando entre as äguas. Enormes pirarucus vinham, por sua vez, graves e solenes, gozar a fresca da tarde, aspirando com delicia e em grandes rabanadas a brisa do Amazonas. 0 sol jä sc escondia por tras da serra, des-prendendo uma luz suave coada at raves das clareiras, dou-rando as cristalizacöes das rochas, e resvalando sobre a toa-lha do rio, salientava as cabecas silenciosas dos grandes jaca-res imbveis, como tocos de pan, perdidos na correnteza, e cujos olhos ardentes c ferozes cravavam-se na montaria com llxidez de man agouro. A canon avancava lentamente"'". Urn outro exemplo pode ser encontrado no romance Marajö, de Dalcidio Jurandir: "Aquele igarape era escuro, igual po^o de cobra-grande. Curvavam-se os acaizeiros na beirada como para malar a sede ou espiar o que ha via de mislério na maré. Lom bos de tabatinga, nas margens, rachavam-se quase soltos. Aquele ingazeiro grande, com as raízes sollando da lerra, como chifres de algum monstro enterrado, deixaria ouvir de manhä o ruído de sen tombo. O sol mordia a água que se arrepiava toda, reverberando. Ä sombra dos matos, que se espalhava no igarapé, Missunga olhava a mataria grossa de onde saltavam japiins A natureza amazóniea contém elementos objetivados que nela sáo ineorporados pela cultura local, estruturando cultu-ralmenle a imagem peculiar de sua paisagem. Por meio de sua aparéncia, o caboclo tem necessidade de encontrar uma ordern profunda de valores, suscitados pela experiéncia sub-jetiva que estimulam e provocam, em nossa sensibilidade c entendimento. O conhecimento racional näo é a única forma de reger as relacöes do hörnern com seu mundo. Sua ca-pacidade de conhecé lo também se vale da imaginaeäo, da sensibilidade, do impulso do imaginärio. Lie näo busca encontrar leis universais nem distintivas de seu luncionamen-to, estrutura e composicäo. Busca uma coexisténcia afetivi-zada. Suprir as suas necessidades materials e, ao mesmo tempo, espiriluais, numa relacäo ambiental que é condicio-nadora de sua vida. A řloresta Ihe é objeto de estímulos, vetor de experiéncia e fonte de inspiracao; garante-lhe a sobrevi-véncia e um sistema peculiar de manutencäo; permite-lhe a sensaeäo de durabilidade e seguranea. Atua permanen-temente sobre ela näo só em sua maneira de viver, como em sua propria pcrsonalidade. Agente de um trajego antropo-l(')gieo durandiano, o caboclo é um signo vivo e vivente dessa realidade natural e ambiental. Suas relacöes com o cosmo advém dessa relacäo ampliada que tern com a natureza em torno e sua paisagem. Uma lloresta (pie é a linha de interseccäo entre o real e o imaginärio, do olhar material e do sfiimato do devaneio. Uma espécie de objetivaeäo do inconsciente. "O hörnern habita nesses recantos da mala envolta na solidäo de mil nuances Verdes. Verde o tapetě, verde as cortinas Verdes as umbelas, verdes as guirlandas. verde a paisagem'"1. Z37 O devaneio evola-se da solidáo. A solidáo contemplativa do caboclo diante de sua natureza franjada pelo rio e pelo infi-nito. His uma das raízes de sua alma que sonha. "Em seu devaneio solitário, o sonhador de dcvaneios cósmicos é o verdadeiro sujeito do verbo contemplar, a primeira testemu-nha do poder da contemplacao."62 A floresta se torna de uma irrealidade enearnada, uma unidade de beleza e imaginacáo. Apresenta-se como paisagem real e imaginária, vista em funcáo da racionalidade e em funcao de sensibilidade, o que explica esse estado de poeticidade ou de estetizaqáo da floresta, ou mesmo da natureza, constitutive) da cultura amazó-nica. Teatro de signos. Estética relacao entre os mitos e a paisagem na qual eles habitant e da qual fazem parte. Os mitos incorporarn a paisagem sem a qual eles nao teriam existéncia, espaco e tempo. Impossível os mitos da floresta amazónica fóra de sua paisagem: suas terras-do-sem-fim, suas árvores colossais, sua heterogeneidade, seu jogo de luz e sombra, sua densa variedade de verdes. Essa paisagem preludia e configura a experiéncia mítica de seu povo. Todo mito revela uma paisagem, na medida em que toda paisagem incorpora atributos míticos. Isto náo significa pensar que a floresta signiflque um vazio demográflco, como algu-mas vezeš foi erroneamente entendida por alguns estu-diosos da regiáo e, principalmente, pelas políticas públicas estaduais e federais, a partir da década de 60. 0 periodo da ditadura iniciada com o golpe militar de abril de 64, ale-gando mot i vos de seguranca nacionál, a necessidade de abertura de mercados de consumo, de expansáo dos merca-dos de trabalho, de aproveitamento do potenciál mineral e madeireiro, de descoberta de novas terras para investimen-to dos capitals do Sul do Pais, fundamentou-se em alicerces ideológicos, dentre os quais a idéia de que a Amazonia era uma terra despovoada foi um dos mais evidentes. "Assim, a ocupacáo da Amazonia teve sempře 2 vetores: o económi-co - alianca e apoio ao capital; e o geopolítico - defesa da Ironteira e ocupacáo do "vazio demográflco", pelo desloca-mento de migrantes procedentes de outros pontos do pais, por atracáo do desenvolvimento para as íronteiras e espa-cos interiores da Amazónia."" z$8 b. Terra, tempo, devaneio e erotizacäo A terra, em toda sua história, sempre tbi hahitada por índios e também por extratores, colonos, garimpciros, seringueiros, castanheiros, os povos da lloresta. Constituem-se personagens protagonistas da história soeial da terra. Ressalta-se aqui o trajeto antropológieo da relacáo entre esses habitantcs da lloresta e ela mesnia. Trata-se, portanto, no caso deste estudo, de uma análise que, por sua natureza, já parte do reconhecimen-to de uma sociedade, de uma humanidade presente e convi-vendo na lloresta e com ela. Além disso, busca-se uma inter-pretaeäo da ľuncäo estétizante e poeti/.ante do imagiuario, como a dominante cultura que marca esse trajeto. 0 tempo cultural na Amazônia que está sendo analisado e um tempo de poetas, de baiás, de videntes, de nativos da terra, de trahalhadores da gleba, de homens simples, em relacáo harmoniosa com sua natureza, que lem na ľuncäo esté-tica vetor de sociahilidade. A vida como acäo e contemplacäo. A presenca de uma espécie de sensibilizacäo dos sen-tidos dianie da lloresta c do rio, o presente näo se resumin do no presente e nem o agora no agora. 0 poético na Forma do maravilhoso convivendo com índios e caboclos, como no cotidiano de todas as sociedades das origens. Con fronta ndo-se com uma cohort u ra vegetal magnífica, a mais extensa, luxuriante e densa do gloho, colorida pelas inumeráveis variedades de Verdes, onde os detalhes se con-fundem diante de uma perspectiva caracterizada por sua monumentalidade, e cujo conhecimento advém mediatizado pela aparéncia das coisas, o caboclo, o homem amazónico, íbi produzindo, ao longo de sna história esse diversiľicado povoamento mítico. fírn numerosos exemplos, esses relatos míticos säo mareados por uma erotizacäo, ora insaciável, ora burlesca, mas sempre estetizada. Ilá a história de Ifiteroengueca, dos índios Uitoto, em cujo sexo entra a Minhoca-Grande, quando lliteroen-gueca estava cochilando de pernas abertas; Baíra, mini tempo em (juc só havia homens, transformou vi'irios peixcs - jandiás - em mulheres e, ä noite, quando foram deitar com elas, Viram que o arambá (sexo feminino) delas era diferente do arambá das grandes fémeas, e gostaram; o Vaga-lume, depois de ter saído com a filha de Baíra para cacar, divide a caca com os companheiros, e se deita com cla, e acha que ela tem um sexo, um arambá, muito apetitoso; a Velha que apa-nhava castanbas no mato, após ter engolido, por engano, um ovo de cobra, toda vez que sentava no cháo e abria as per-nas, de seu sexo saía uma cobra para, cm seguida, entrar de novo, até que os netos da Velha mat aram a cobra, fato que acarretou a mořte dela também; Tanavu, o grande malvado, viu Čerta vez um rapaz (Ipérobc-agá) esfregando cm scu sexo várias pedras até sentir gozo. Resolvcu malinar com cle e molhou as pedras cm molho de pimenta. Quando o rapaz, noutra ocasiáo, voltou a esfregar as pedras no membro, sen-tiu dores horríveis e seu membro a arder e a inchar até Hear deformado; noutra ocasiáo, Anhanga-Porantim e a mulher, planejando matar Tanavu, deitaram-se na rede c enquanto eonversavam uniam seus corpus, ťalavam baixinho c conti-nuavam a unir seus corpos; a velha Těbuí morava sozinha e os rapazes, mesmo os casados, todo tempo iam deitar com ela. Até que um dia, Anhanga-Piä pensou em acabar com aquilo e, antes de deitar com a velha, esfregou, no seu membro, algumas iormigas merepetec e lllhos de aranha. 0 membro de Anhanga-Piá foi crescendo e engrossando dentro da concha de Velha, até que rebentou as entranhas dela; o caca-dor Derobe-u deitou com uma mulher da tribo inimiga dos Cauaina-Parintintin, que morava sozinha. Quando acabou, jógou um punhado de cabelo do sexo dela na fogueira sob sua rede. A lumaca que evolou a embebedou e enlouqueceu; por artificios do cabelo do sexo de sua sogra, Xingui (o moco) foi transportado ä lua e äs estrelas, virando urn passu-rinho. Uma bonita moca o prendeu e, quando se deitou para dormir, o agasalhou contra os peitos. 0 Xingui calou-sc, transformou-se num rapaz e uniu seu corpo com o dela mui-tas vezes, durante toda a noite. P assim acontcceu muitas e muitas vezes; Macunaima é um fornicador täo invetcrado, (jiie pode sei lido como um pansexual, semelhante a Poromina-Minare. Enfim, esles exemplos säo alguns frag-mentos ilustrativos livres, recolhidos e miniaturizados. 24-0 escolhidos na ohni de Nunes Pereira, Moronguetá — um deca-merao indigena. c. Rapsódia clo nascimento do herói 80 — 0 Velho desceu ligeiro, quando chegou dentro da canoa já eneontrou sua fllha gente, sua barriga já era grande, já tinha dentro seu íllho. 81—0 Velho, contam, remou logo para easa, quando chegou ao porto disse para cla: 82 - Minha íl 1 ha, vamos já para casa, tcni lá comi-da para tu eomeres. 83 — Quando a moca acabou de comcr, sono grande se pegou nela, acordou somente no sol do outro dia, disse: 84 — Paíca, sonhei porcáo de coisas bonitas, sáo mes-mo bonitas, vou contá-las para ti. 85 - Sonhei que estc íllho que tenho dentro de mim eu o ti ve em cima de uma grande sena. 86 - Corpo dele era transparente, preto seu eabelo, veio falando: 87 - Quando eu o tive, os animais vieram para junto dele alegrá-lo. 88 ■ Anoiteceu, meu filho tinha lome, mens peitos estavam secos, ele ehorava. 89 - Nesse momenío, um bando de bei ja-ílores, eom outro bando de borboletas trouxeram mel de flor, deram para ele. 90 - Ele calou-se logo, seu rosto alegrou-se, os ani mais o labiam de alegria. (...) 93 - Quis ir para junto dele, os animais náo me dei-xaram passar, gritei por meu íllho. 94 - Aí mesmo entäo vi o bando de borboletas suspendé-lo no ar, vir para o meu lado. 95 - Quando chegaram junto de mim peguei nele, sobre mim pousaram as borboletas. 96 - Nesse momento os animais me cerearam, puse-ram-se em pé eneostados em mim para lambé-lo. 2.41 97 - Eu senti ciúme de meu filho, levantei-o na altu-ra de minha cabeca, o peso dos animais me derrubou, meu filho ficou suspenso nas asas das borboletas. 98 - Aqui eu aeordei, ainda julguei verdadeiro meu sonho, olhei para toda parte para provoear meu filho. (...) 105 - 0 Velho, depois de ouvir o sonho de sua Ei 1ha, Foi sondar por meio de sua pajelan^a. (...) 109 - Sono grande agarrou-se nele, dormiu. 110 - Pelo meio da noite, eontam, todo animal da ter-ra acordou alegre, em sua alegria eantava bonito. 111 - Barulho eomo de vento se ouvia também no ecu. 112 — Era, contam, pássaros que andavam procuran-do aquele que tinha nascido. 113 — Já de manhá cedo, contam, o velho acordou-se espantado de ouvir barulho grande, perguntou aos animais: 114 — Que entäo se passa no meio de nós? 115 — Todos respondcram. 116 — Nasceu Poromina-Minare, dono da terra, dono do céu."M d. Uma contraditória jornada de altos e baixos Poromina-Minare é lenda criada e rccriada pelos indios da area do Rio Negro e seus aľluentcs, no Estado do Amazonas. Ľssa regiäo sempře exerceu forte atracäo nos viajantcs, aven-tureiros, missionários, etnólogos, antropólogos, cientistas, doutorcs, governantes. E urna área de grande extensäo, com uma imensa riqueza natural e geográfica, correspondcndo a urna das ma is fascinantes areas culturais do Brasil. Herói de origcm divina, Poromina-Minare é personagem dominante de narrativas (jue aparecem c rcaparecem ein várias tribos da regiäo, alterando os personagens de scgun-do papel c o desdobramenlo do relato. Neste estudo sera 2essoas dormem, cla desce do alto enviada por lupaná e entra no coracáo delas no momento em que a alma está viajando, penuaneccndo até que cla volte e essas pessoas despcrtcm. Sáo os sonhos noturnos, porque a Kerpi-Manha desce nos últimos raios das estrelas. Quando a alma está de volta, encontra no coracáo apenas um rccado de Tupana c esquece ludo o que viu na viagem. Se, por acaso, Tupana näo tiver mandado nenhum reeado, entäo a alma pode lembraro que viu enquanto vagon ao léu. No Estado do Amazonas diz-se que quem desce enviada por lupaná é uma jovem sem pernas. Ela desliza pelos caminhos do arco-íris, no raio das estrelas, para alimentär os sonhos diurnos. A cultura amazónica constitui-se num amplo vitral mítico. Nele, as lendas de amor — líricas ou eróticas, ingénuas ou maliciosas, simples ou artimanhosas, felizes ou trágicas -brilham de modo especial, atravessadas por uma luz de este-ticidade, cercadas pela moldura de um devaneio aureolado pelo imaginário. Dentic essas numerosas narrativas simbóli-cas do amor, estudar-sc-ao duas, nao só por sua rica signifl-cacao, como por sua exemplaridade no campo děste estudo. ^57 A lay Oj ou a morte no espelho do amor Poueas rcgioes do mundo guardam urna relaeäo com sous rios e uma dependcncia tao grande deles como a Amazonia. É a "Patria das Águas", como a ela sc re fere o poeta amazo-nense Thiago de Mcllo. 0 rio dcsgasta e cnriquece a regia o. É o mcio de circulacäo econômica privilegiado, assim como dos bens simbólicos. Só a presenca constitutiva de sua pai-sagem, daquele que é o maior rio do mundo em volume do água, o rio Amazonas (com 6.750 km de extensäo, multipli-cando-se cm 1.100 grandes alluentes e uma rede incontável de pequenos subaOucntes, descarregando sem ccssar no nun entre 160.000 a 200.000 nť de água por segundo), já é um fator impressionantc. Essa vazäo incessante, equivalente a l/'S de todos os rios do mundo, transportando uma carga de sedimentos por volta de 3 milhöes de toneladas por dia, pode ser tomada como um indicativo desse mundo de águas que caracteriza a regiäo. No entanto, as ramificacöes líquidas epic a bacia amazônica apresenta culminam cm compor esse quadra característico no qual os rios representam os caminhos da vida na regiäo. "Tudo o que se ouve contar, tudo o que se 16 sobre a grandeza do Amazonas e seus tributários é insufi-ciente para dar uma idéia da imensidäo do seu conjunto. É preciso navegar meses inteiros nessa bacia gigantesca para comprcender até que pontu é extraordinário aí o predomínio da água sobre a terra. Esse laboratóriu líquido é bem mais um oceano de água doce, cortado e dividido pela terra, do que uma rede fluvial.""1' Bachelard, nimi estudo sobre a imaginacáo material, no que diz respeito äs águas e aos sonhos, assinala a supremacia da água doce como abrigo de mitologias, imagens de repouso e deva-neio, despertando o sentimentu de que cla é a água mítica por excelencia. Quando se pensa na fonte de tudo, pensa-se sempře numa fonte de água doce. 0 sal é a aspereza da água. A docu- z58 ra da agua e a agua doce. "A agua doce scmpre ha do ser, na imaginacao dos homens, utna agua privilegiada."81 A rclacao do homem da Amazonia, do caboclo, com os rios e uma rclacao dirclarncnlc sensfvel. Nao e uma rclacao memorialise dc hislorias conladas num tempo passado. Suas hislorias, mcsmo envolvendo densa mitologia, sao hislorias presentificadas. Elas estao ali. Seu inconsciente e um inconscientc presentificado. "E menus profundo que esse incons-ciente que sonha em torno de experiencias comuns e que continua nos sonhos da noite os interminaveis deva-neios do dia.""'! O inconsciente do caboclo nao conta historias vividas em terras distantes, como quern viaja pelo mar. Ele conta historias "convividas" ou que poderao ser vividas. Narrar = acontecer = viver. Banhado pelas aguas duces caidas ahundantemente do ecu na forma de chuva, hanhando-se nas duces aguas dos rios a sua frente, o caboclo recebe diretametite das aguas suas licoes e q alimcnto de sens sonhos. E nao e de estranhar-se que nas aguas desses rios, do abrigo profundo de suas encan-tarias, ela faca emergir em meio a tantas lendas, prodigiosas lendas de amor. E nesse vasto repertorio fluvial foi escolhida a lenda da lara como exemplificativa desse repertorio simbo-lico e lendario sobre o tenia do amor. Uma lenda que sao muitas — E a Uiara? — Uiara'/ — Sim, tambvm ado conhece? — Que e a Uiara, entonces? — Uma jorcm, de cabelos compridos, que aparece uos laqos'". A lara ou Uiara - Mae-d'Agua - vive nas encantarias do fundo dos rios. Ela atrai os mocos e os fascina, mostrando- lhcs seu rosto belíssimo ä flór das águas e deixando submer-sa a cauda de peixe. Para seduzi-los, faz promessas de todos os géneros. Para aumentar o estado de encantamento, canta belas melodias com voz maviosa. Convida-os a ir com el a para o fundo das águas do rio - onde se localiza a encanta-ria - sob a promessa de urna eterna bem-aventuranca em seu palácio onde a vida é de urna felicidade sem-fim. Quern river visto seu rosto urna única vez jamais poderá esquecé-lo. Pôde até, no primeiro momento, resistir-lhc aos encantos por medo ou preeaucäo. No entanto, mais cedo ou mais tarde aeabará por se atirar no rio em sua busca, levado pelo desejo ardoro-so de juntar seu corpo ao dela. Vicente Salles considera que lara é o modelo da mais perfei-ta convergéncia cultural na mítica amazônica: lara, Sereia, Ondina, Loreley, Mäe-d'Água, lemanjá. É, verdadeiramente, urna síntese"1. Mulher tcntadora, apresenta-se com um rosto europeu e recorre á mágia do canto. É pelo canto que cla se anuncia ao navegante ou ao morador da beira do rio. Por trás dos cantos da lara, há um scnsualismo de irresistível atracäo fatal dos jovens, sobre os quais recai sua predilecäo. Raimundo Moraes, fllia a lara äs leituras de Hörnern feitas pelos Portugueses colonizadores. Assim ele apresenta esse mito: "Metade mulher, metade peixe, lindos cabelos eompri-dos, busto cheio, eauda de escamas multicores, a formosa ninfa vive nas margens dos igarapés, nas bordas dos lagos, nos taludes dos rios, seduzindo os tapuios, encantando-os e earregando-os para o fundo. Sempre que desaparece um ra-paz, perdido ou morto, atribui-se a desgrae.a aos ardis apai-xonados da lara. Em forma de lontra, no perlil de garca, sob as penas da cigána, surpreende o imprudente e leva-o para os sens domínios, lá nos pélagos profundos, onde os palá-cios de coral, rccobertos de ouro, cravejados de safiras, en-feitados de algas, fazem as delícias dos que se deixam con-duzir por aquela traicoeira deidade""''. A genealógia simbólica da lara na história das culturas é muito numerosa. Certamente essa genealógia veio na ba gagem cultural do colonizador portugués que entrelacou ? (h) essas narratives coin a lenda nativa já existente. Üs ani-niais fabulosos, as sereias, as tágides, os monströs marinhos, as lendas do mar já estavam integrados á tradicäo portuguesa. A epopéia Os Lusíadas está povoada de todas essas maravilhosas eriaeöes do imaginário. Se em Portugal era a Sereia, na Espanha era a Siréna, na Alemanha era Loreley, na Grécia eram as Nereidas, na Amazonia era a Máe-ďÁgua. 0 canto, atribuído a todas essas deidades, em todos os casos, é um imä fatal de seducáo, sendo necessá-rio algum artifício para fugir a essa atracáo. Orfeu ajuda os Argonautas para poderem passar livres das sereias. Nuni dos mais expressivos episódios da Odisséia, Ulisses faz-se amarrar ao mastro da embarcaešo para passar ineólume ao seu canto. 0 colonizador porlugués conhecia as Mouras encantadas. A Moura é uma rnulher de canto maravilhoso, dona de um dote de tesouros que oferecem a quem delas se aproximar por amor. E longa sua cabelcira e sua beleza estonteante. Sua voz enfeitica. E foi com essa forma cpie o portugués colonizador configurou, provavelmente, as narratives da Mäe-do-Rio (pie escutou dos nativos da terra. Seu simbolismo é o da seducáo mortal. Imagem da auto-destrui^äo do desejo e da perversäo mortal da seducáo. O canto e o rosto se aliam luimii eonvergéncia irresistível do amor que destrói. "A Iara (pie mora mini palácio no fundo dos rios é uma tradicäo dos brancos c que vicejou rapida mentě no cenário barbaro colonial. 0 baräo de Santana Neri {Folklore Brasilien, Paris, 1889, p. 44/152), falando das laras, descreve uma mulher branca, de olhos Verdes e cabeleira loura, em ambas as versöes do Pará e Amazonas... Demais, é preciso notár a beleza fisica da lata, seus méto-dos de sedueäo, a forma de sua residéncia submersa denunciam um elemento alienigena que conduziu o mito e o espalhou sob as águas do setentriäo brasileiro.Sua ori-ginalidade está em olerecer amor, tesouros e palácios äque-les a quern pretendc seduzir. Cámara Cascudo indaga sobre a possivel contribuicäo do negro ä lenda da Iara. Lembra as sereias africanas, a Kianda. ou, entäo, no olimpo da teogonia negra, a llgura todo poderosa de Osun, orixä dos lagos, lagoas, rios e charcos, zQ que e mulher de dois poderosos deuses: Saponan, deus aa variola e, ainda, de Xango, o rei do raio. Tambem ressalta a hgtira semelhante a sereia que e a de lemanjä, deusa das ■aguas. Esta deusa e muito cultuada no Brasil: Bahia, Rio « Janeiro e Parä. No entanto, no entender do düstre fblclo-nsta as Mäes-d'Ägua afrieanas tern sua liturgia propria, Seu" lRMs d<-'dicados e seus devotos, que näo lernbram em n;lfla a lara arnazoniea, predominantemente europeia. ^-oncorda, nesse aspecto, que a lara representa uma convergence cultural, eomo e a ideia de Vicente Salles ja anterior-mente mencionada. n m*sicaJ°ga na cultura arnazoniea urn significative papel. P^aro Uirapuru, quando canta, sileneia toda a florcsla. 1),)lllza os animais, sob o prodigio desse canto. Das praias ^stantes clareadas pela lua ä beira dos rios e lagos soam I™*0*' We atraem as pessoas imantadas pelo sen fascinio sem uS' SC Perdem- £ a Presenca de uma especie de musica ^meihante ä que os harpistas celticos tocavam em sen ins-rumento: le mode du sommeil (acalanto). Esse modo corres-ponae ao que na müsica grega arcaica era denominado de ,tama dolen^ e funebre. Le mode du sommeil e a müsica com que os deuses fazem dormir magicamente os seres. A "turgia crista ve na musica urn caminho para a meditacao, (la on,Vao sileneiosa, da elevacäo da alma. Urn caminho ascensional para Deus. Quer dizer, a müsica aparece, nesses aspectos, eomo um caminho magico-religioso para urn outro lado do real. Uma passagem para o sobrcnatural e, ao mesnio tempo, por uma via estetizadora. Assim c a iuneiw com que aparece na cultura arnazoniea. A longa cabeleira da lara e penteada pelas ondas. A propria lara e apresentada eomo se estivesse penteando, no espe-Iho das äguas, sua longa e esverdeada cabeleira. A lua erescente, tambem e dito, pentcia as ondas do rio. De certa mantara, a lua pentcia os belos cabelos da lara entrelaca dos nas ondas do rio. Esse entrelacamcnto da cabeleira da lara com a "cabeleira das ondas" do rio hem demonstra o sentido de epifanizagäo das äguas que a lara representa. As äguas do rio nela sc personiiicam e se niostram eomo z. mostra-se eomo expressäo do espírito e portador de d|na atmosféra espiritualizada. Os tracos evanescentes e fugi- s ( a neleza säo elementos de sua atracäo irresistível. Ojosto da Iara, enťim, é urna síntese admirável de relacôes rev iT*5 C Unia Síntcsc de uma lcnda dc a,ma indí^na eiada num rosto europeizado. Iara: Mae d'Água dos indi-8«ias, Sereia e Moura dos Portugueses, Nereida dos gregos, na dos espanhóis. Mas também Yemanjá dos africanos. ™tp assoeiacäo com a Herrych dos sudaneses, Zar dos dos áírui forca do seu desejo. E foram morar nas bandas da Serra da Lua, do outro lado do rio Tucutu, onde viviam uns parcntes dele. P nunca se separaram. Se cle ia pescar, eta ia também. Se cla ia banhar-se, ele ia também. Se cle ia cacar. cla ia também. 2/2 Se ele ia para a roqa, cla la também. Nove meses depois a india sentiu que ia scr nide. Assim, á hora cm que o sol de verdo obrigava toda a gente (e mesmo os animais) a repousar na sombra, cla se encami-nhou para a beira do rio Tucutu. E lá onde enconírou um chdo bem limpo, debaixo das ramas do ingá-i, páriu um menino. O corpo dele era engeihado como a pele e roxo como a tinta do jenipapo. E, enquanto mirava a crianca com tristeza e lne ia íirando as peleš do corpinho, viu que nem mexia os bracos e nem mexia as pernas. Sentou-se, por isso, junto á água e nela mergulhou tres vezeš. E trěs vezeš Ihe deu leves pahnadas nas costas e nas pernas para a animar. Mas a crianca nem se mexeu e nem chorou, h arquejava. todo o seu corpo tremia. A mulher tentou levantar-se. Doíam-lhe os quadris e suas pernas ndo Ihe sustentavam o corpo. Entdo gritou, gritou, gritou. li parecia que o vento dos campos, soprando sobre as serras e os rios, ndo deixaria nunca, nunca, que alguem a ouvisse. Mas as mulheres e os eurumins que vinham banhar-se a ouviram. E foram ao rumo daqueles gritos. A india estava ali. Tinha um menino morto nos bracos. E ndo podia levantar-se. Um dos eurumins foi chamar o companheiro da india. Vieram muitos homens com ele. Uma das vclhas, chamando out ras, havia cochichado: — Essa näo respeitou os conselhos que lne deram quando enluou pela primeira vez. E a zanga dos pais dela a ensaruou. O homem tirou a erianca dos bracos da companheira e a entregou ä velha que estava eoehichando. Levantou-a da beira do rio e a levou para casa. Ela ehorava baixinho e pediu que Ihe devolvessem o jilho. E assim continuou, deituda na rede que teeera. Num canto da maloca as vclhas estavam passando urucu e carajuru no cadaver da erianca. No dia seguinte as mesmas vclhas embrulharam aquelc cadaver numa estcira. E o enterraram no campo, pouco distante da maloca, sob urn tapirizinho que elas mesmas levantaram. No outro dia veio do lado inglés u m velho pajé. Dancou c canton, até ä noite, cm redor da rede da india. Soprou fumaca de cigarro sobre o corpo dela. Bateufolha tins suas pernas, nos seus bracos c quadris. E voltou para o lado inglŕs, dizendo que a mulher, noutro dia, se levantaria sozinha. A mulher, porcm, nunca mais pôde andar. Entäo (como nos primeiros dias em que umbos tinham comc-cado a viver juntos) o homem passou a levar a paralitica por t od a a parte. Se ia cacar, levava a mulher também. Se ia pescar, levava a mulher também. Se ia para a roca, levava a mulher também. z/4. Um dia saíram pelo campo comendo mangaba e minúci. O hörnern a levava äs castas. 0 sol foi embora. Veio a lua. Veio a sal. Depois veto a lua. E assim aconteceu durante muitos dins. Muita gentejá andava ä procura deles. Andava daqui, andava dali, no rastra do pcréqueté do hörnern. E só depois de muitos, muitos dias, encontraram a area, as Jlechas e o peréquétc do hörnern, a tanga, a panan-panan, as brincos e as pulseiras da india. Mas, ao redar dessas coisas, encontraram tambcm moitas de um tajá, de um verde hrilhante, que näo canheciam. Do corpo da india e da campanheira teria nascido aquela planta, cujus folhas, na página inferior, mostravam uma folha semelhante a um sexo de mulher'0'. A lciiílíi da Tambatajá rc-produz na Amazonia o percurso dos grandes amorosos. 0 amor da extrema dedicacao, lírico por sua origem e trágico cm seu destino. Poucas hislórias de grandes amores contém, num relalo tao breve, a densidade de poe-sia e espiritualidade como dessa lenda taulipangue. A mensa-gem 1'undanle dessa história de amor est á expressa na frase: "h nunca se separavam". ľambatajá é a lenda do amor impossível de ser superado: seja na vida, seja na morte. Símbolo admirá-wv\ da uniao de eontrários que o amor representa. A coineiden-tia contrariorum nesse mito é transeendente. Hla pulsa durante a existencia e após a morte. Uma uniäo transcendental que se realiza nesta e noutra es f era do eterno. Reencarna para sempře na natureza, como na serena filosofia místico-religiosa xintoísta. 0 índio e a india personagens dessa história de amor tornam-se natureza. Ultrapassando o antagonisme) vida/morte permanece o amor. Contrariando o sentido irremediável de separa^äo que é a morte, eles permanecem unidos na forma vegetal. "Do corpo da india e do companheiro teria nascido aquela planta, cujas folhas, na página inferior, mostravam uma outra folha semelhante a um sexo de mulher."1" 2-75 O índio taulipangue c a india maeuxi fogcm para a Serra da Lua. E, a partir daí, nunca mais se separaram. Como no pró-prio senlido mítico do amor, um nao existe sem o outro. Um é o ser do outro. Cada qual deles é o outro de si mesmo. Excluir essa uniáo é anulá-los. 0 ser de cada um deles é o de sérem dois. Mais do que Orfeu e Eurídice, mais do que Tristáo e Isolda, mais do que Romeu e Julieta, os amantes indígenas dessa lenda amazónica encarnam o amor eterno. Nao só o amor eterno, mas o amor que se cterniza. É verdadc que todos os amores imortais, para sérem eternos, precisam morrer. A mořte é a separacao trágica que rnantém a crispacáo da auséncia. De čerta maneira, o (rágico da mořte nos grandes amores é que - por representar o fim daquilo que ncles é entendido como infinito - ela desnuda a fragili-dade do que é sentido como indestrutível. Uma das frases que expressam essa expectativa de percnidade do amor é: íc amarei para sempře. Orfeu, inconforrnado com a mořte cle Eurídice, desce ao inferno para salvar a amada da mořte, mas nao consegue pleno sucesso nesse rcsgate. Na etapa final do retorno, contrariando a norma estabelecida no rcino das sombras, olha para tras e a contempla, provocando, com isso, que sua amada se desfizesse cm bruma. Para os índios amantes reincarnados na Tambatajá, a mořte nao é mořte que mata, mas encantamento - o mesmo que o romancista (Gui-maraes Rosa disse da mořte de um de seus personagens. Por que eles nao morrem: transfiguram-se e passam a renascer sucessivamenle incorporados, fundidos no mítico vegetal. Pode-se até dizer que eles se tornám indissoluvelmente uni-dos após a mořte, porque sua dualidade/separada torna-se uma dualidade/una. Passam a ser índio e india, amante e amada numa única e pereně germinacao do amor. Uma germinacao que nao cessa, uma gestacao consumatória, pois c algo que está sempře vindo a luz na multiplicacáo do vegetal. Uma coisa viva. Mas nao sem antes constituir um para-doxo: essa mořte que c mortal, porque os mata, é a mesma que os faz viver de uma vida imortal. Passam a ser uma planta interminavelmente a nascer em sucessivo rebrotar. Exatamente como numa gestacao consumalória - um sempře vir a luz. Ncssa cireunstáncia dc total integracáo, z76 Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar; Näo tenho, logo, mats que desejar, Pois em mini tenho a parte desejada. E o vivo e puro amor tie que sou feito, Como a materia simples busea a forma""". Le-se, em Gilbert Durand que: "... o termo mito recobre (...) a lenda e as suas intimacôes explicativas, o conto popular ou as narrativas romanescas""". Legitimacäo da pcrenidade do amor, a Tambatajá é também uma verdadeira ética amorosa. Coincidentia opositorum (coin-cidéncia de opostos), reconciliacäo transcendente do dualismo homem/mulher, ela revela uma concentrada idcalizaeao do amor. Uma idealizacao normativa idealizada, expressa por meio de uma plastieidade sensível, sem propria-mente manda mentos ou sentencas. 0 amor aparece como motivacäo superior de uma vida, capaz de orientar e reger toda uma existencia e sua transflguracáo após a morte. É a lenda do amor que näo morre, que violenta a hybris natural quando transubstan-cia o humano em vegetal a fim de que cle näo moria, pereni-zando sua vida por um incessante nascer de novo, um vir incessantemente ä luz. Esse amor näo elimina o (jue eada um ser é para si, mesmo que a dištancia que separa os amantes seja por cle suprimida, até que sejam reunidos em uma sínte-se da coineidentia opositorum que é o próprio da Tambatajá. Intermediary por excelencia, evola uma atmosféra platônica com estatuto de intermediário [statut ďintermédiaire): "ele näo c nem mortal nem imortal, nem indigente nem opulento, nem ignorante nem sábio; é um 'meio' epie jiarticipa desses contra rios, sem se confundir com nenhum deles"1"'. A Tambatajá representa para a cultura arnazoniea o que Eros foi para a paideia grega: a encarnacäo pedagógica e programática do amor, unidade transcendental de todos os contrários, acordo de diferencas, diversidades numa unidade de equilíl)rio inquieto. Mas a Tambatajá é também uma unidade erótica: o índiee da presenca do homem e da ^77 mulher é dado pela semelhanca que a pequena folha de tom róseo, situada na parte inferior da folha maior, tern com um sexo de mulher; por outro lado, o talo que se localiza bem no ponto de interseeeao dessas folhas reprcsentaria o sexo masculino. De certa maneira, "pareee (pie produz qualquei coisa dessa maneira, lá onde se compreende a relaeäo erotica como a síntese de urna relaeäo cm si sensual e de uma relaeäo em si afetiva. A rcuniäo das duas, ao nivel da cons ciencia do vivido, representa entäo a unidade da qual elas sc originam, a maneira de ser intima, jamais dividida em si, que nos chamamos exatamente amor"""'. 0 amor é que dá forma de existencia aos indígenas da Tambatajá. A determi nacäo de suas vidas é plenamente unitária. Só conjugam um verbo totalizante: amar — e sempre na primeira pessoa do plural do presente do indicative): Nás amamos. 0 amor lhes é fundamento de existencia c transcendencia. Um amor que vence a morte. Näo é o amor de 0Telia que as águas profundas levaram; näo é o amor obstinado de Orfeu que as trevas eternas exilaram; näo é o amor rebel -de de Romeu e .Julieta que a morte separou. Esse é um amor da unidade absoluta, coincidentia opositorum seja na vida, seja na morte, seja entre a vida e a morte. E nunca se separavam. Se ele i a pescar, e la i a também. Se ela ia banhar-se, ele ia também. Se ele ia eaear, ela ia também. Se ele ia para a roga, ela ia também"'7. Os índios amorosos da Tambatajá constituem o universo por eles mesmos criado. 0 índio taulipangue ama a india macuxi. que também o ama e, como tal, inclucm-sc anibos no campo universal do amor. Näo é propriamente um amor cósmieo, mas um amor ľeito cosmo. Quer dizer, cria-se urna circulari-dade na qual as diversidades se rednem como unidade. Nada existe ŕbra deles. Sua eternidade resulta de sua unidade como ato de amor. Um amor que näo significa a conti nuidade da espécie, pois o filho é natimorto. 0 que se cteníiza nesse amor é o proprio amor convertido cm natureza. z/S A lenda näo assinala a hclcza dos amantes. Ela fala somente do amor. Revela sua dualidade constitutiva e seu obstinado exercicio do bem. Após a morte do filho, a india macuxi ficou com cic nos bracos, näo pôde mais levantar-se, pois estava ensaruada, isto é, com mana negativo. Entao a dimensäo do amor sacrificial numa cspéeie de liturgia do amor dedicado inicia: A inulhcr, porém, nunca mais pôde andar. Entao, (como nos primeiros dias em que umbos tinham comeeado a viver juntos) o homem passou a levar a paralitica par toda parte. Se ia cacar, levava a mulher também. Se ia para a pesca, levava a mulher também'"". Tudo se resume numa vida de dedicacäo sacrillcial do amor pelo amor. Um amor altruista, pleno dessa forca vital que, flesde Platäo, se conceitua no amor. Aqueles indios estavam sós no mundo. Mas é urna solidäo näo solitária, pois que está completa de tudo aquilo que a plenifíca: o amor. Näo é urna individualidade no vazio cla existencia. Mas, sirn, urna indivi-dualidadc totalizada pela existencia. 0 amor emancipado de sua natureza erótica e, ao mesmo tempo, crotizado. Urna uniäo da qual foram eles mesmos que nasceram como dualidade una. Um amor que, como a planta Tambaíajá é mortal porque morre, mas, ao mesmo tempo, c imortal porque conti-nua renascendo. Partieipa, portanto, de urna prodigiosa hybris: é humano porque morte; é divino porque renasce. Guarda em si o mais prof undo sentido contraditorial: é um amor mortal que näo morre. Ou, entäo, como os grandes union's, cle morre para ser eterno, visto que cle só se eterniza porque morre. Ulisscs, de Homero, passa pela prova do inferno para eternizar seu amor; Pnéas também tem, nos versos de Virgílio, sua temporada no inferno; o poeta Danie, cle mesmo, guiado por Virgílio na campanha ascensional ao encontro de Beatriz, desce os círeulos infernais; Orfeu tem de descer ao inferno para reencontrar o seu amor eternizado. É urna apro-ximayäo contrastiva que a tradicäo ocidental de influéncia órflca c sáfica consolidou entre o amor e a morte, numa permanente coincident ia opositorum, que o dolce stil nuovo c a renascenca eufemizaram na expressäo doux-amer. De čerta z/ý maneira, a lenda taulipangue/macuxi filia-se a cssa cadeia de signifícacóes da doce-amarga sintese de amor e morte. A Tambatajá é como a alma dupla e una do amor, objetivada, transfigurada em natureza banhada pela funcáo estética. "Do corpo da india e do eompanheiro teria nascido aquela planta, cujas iolhas, na página inferior, mostravam uma outra flor semelhante a urn sexo de mulher". A partir daí, de uma tambatajá naseerá outra, naseerá outra, nascerá outra. Uma gestapo consumatória da eternidade desse amor, que se faz eter-no a partir de uma sucessáo interminávcl de vidas efémeras. Como já foi visto antes, a tambatajá náo produz a sinibolo-gia da continuidade da espéeie. A eontinuidade que ela sugere e a do amor. A imagem da coesao interna do cosmo, nao eomo forma intermediária entre deuses e homens, mas entre a natureza e a cultura. Náo como tertius comparantis, mas como coincidcntia opositorum. A narrativa dessa lenda é a de urn amor ccgo poetizado. Essa forma de amor tem longa história nas culturas, remontando aos "órficos", passando por Platáo, para consolidar-se na teologia da renascenca, de onde lancou seus polens em toda a cultura ocidental. Giordano Bruno ehegou a distinguir até mesmo nove espécies de cegueira amorosa. 0 amor é cego porque está acima do entendimento da razáo. Vé nas "trevas" aquilo que a luz dissipa nos olhos, para relembrar a desdita de Orfeu. Mas o amor, em Tambatajá, náo resulta em desmedida volúpia, ou rebeldia incontrolável, ou mesmo heroísmo enlouquecido. É urn cego amor dedicado e fiel. Sem erotismo ou volúpia, ele é a bistória de um desejo de felicidade. Assim o registrou o compositor paraense Waldemar Henrique, numa celcbrada cancáo: "Tambatajá me faz feliz / Assim o índio diz á sua macuxi". Encontrar na vida essa alegria luminosa do amor. Uma alegria superior como uma cegueira, que náo vé nada fora do que seja o amor. E um amor presente guiado pela imaginacáo e pelo espirito. Sua alma sáo seus olhos. Na lenda da Tambatajá náo há referéncias á beleza físiea dos amantes. Eles se amam, eis tudo. E no se amarem tanto está sua z8o beleza. Náo se trata de um amor solitário cle eupido. É amor de macho-e-fémea reunidos. A esséncia de um amor pleno tle seres. Um amor entre. Amor que věnce a mořte, iludindo-se sob uma outra forma — a de uma bela planta sexuada. Há inúmeras figuracoes do amor, desde os tempos teogonicos da Grécia: um menino de asas, com areo e flecha; um eupido de olhos vendados; uma grande ťorca que regc o instinto de deuses, homens e animais; uma flor mística, como no clássico Romance da Rosa; uma doce mul her transformada em anjo, como dolec stil nuovo (doce estilo novo); uma forma ctérea de sobrenaturalidadc, da qual Beatriz de Dante é o mais celebrado exemplo; uma forma humanizada e sensível, como Laura, de Petrarca; como a propria luz dos anjos ou rara luz do olhar; como uma bela rnulher desnuda, segundo a arte alema; um deus adulto, como na Franta; imagem de aspecto bizarro e demoníaco, como entre os italianos; uma planta onde estao os amantes reunidos, como na Tambatajá. A originalidade da Tambatajá está no fato de que náo é a representacáo do amor por meio de figuras isoladas do horném ou da rnulher. É a reuniáo dos dois - macho/fémea -em uma coisa única, expressáo justa da coincidentia opo-sitorum que o amor representa. 281 NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 HAMU, Denise Cardoso et Posey, Darrel A. A Ciéncia dos Mébéngobre: alternativas contra a destruicäo (texto para exposicäo). Bělém, Museu Emílio Goeldi, 1987. 2 MAFFESOLI, Michael. La contemplation du monde (F.A.K Paris, Grasset, 1993, p. 69. 3 FCO, Umberto, le probléme esthétique chez Thomas d'Aquin. Trad. Maurice Javion, . Paris, Puť, 1993, p. 24. 4 FCO, Umberto, op. cit., 1993, p. 14. 5 MUKAROWSKY, Jan. Estudos Söhre Estética e Semiótica da Arte. Lisboa, Estampa, 1981, p. 22. 6 Paris, Quadridge/Puf, 1960, p. 149. 7 Paris, Quadridge/Puf, 1960, p. 167. 8 MUKAROWSKY, Jan, op. cit, 1981, p. 33. 9 DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de l'imaginaire. Paris, Dunod, 1994. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Trad. Ileider Coutinho, Lisboa Presenca, 1989, p. 29. 10 ECO, Umberto, op. cit., 1993, p. 75. 11 Cite par Souriau, Etienne, dans Vocabulaire d'esthetique. Paris Put", 1990, p. 642. 12 Cite par Harf-Lancner, H., dans Les fees au Moyen Age. Paris, Librairic Llororé Champion, 1984, p. 412. 13 La science nouvelie. Paris, Gallimard, 1993, p. 130. 14 Promessa é Divida. Tese de doutoramento (Mimeogr.). Rio de Janeiro, ÜFRJ/Museu Nacionál, 1993, p. 187. 15 Texto apresentado na Sorbonne. (Mimeogr.) Semminaire: Nouvelles DAilleurs, 25 e 26.5.1993. 16 MEDEIROS, Maria Lucia, op. cit., 1993. 17 SOUSA, Ingles de. 0 Missionärio. Säo Paulo, Ätica, 1987, p. 138. 18 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 22. 19 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 22. 20 DURAND, Gilbert, op. cit., 1994, p. 411. 21 PEREIRA, Nunes. Moronguetä - Um Decameron Indjgena. Rio de Janeiro, Civilizacäo Brasileira, 1967, p. 612/622. 22 Uma Comunidade Amazöniea. Säo Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977, p. 217. 23 Para, Conselho Estadual de Cultura, 1976, p. 124. 24 CASCUDO, Luis da Cämara. Geografia dos Mitos lirasilciros. Säo Paulo, Melboramcntos, 1983, p. 136. 29 PAZ, Octävio. La otra vol. Barcelona, Seix Barrai, 1990, p. 16. 26 Promessa e Divido, op. cit., 1993, |). 191. 27 HARISON. l'orets. Trad. llorence Naugrette, (I.A.), Paris, Berg International, 1992, j). 52. 28 DURAND, Gilbert, op. cit., 1994, p. 119. 29 CASCUDO, Luis da Cämara, op. cit., 1992, p. 142. 10 DURAND, Gilbert, op. cit., 1994, p. 126/127. 31 KOTHE, Elävio. 0 Heröi. Säo Paulo, Ätica, 1985, p. 1 l. 32 AUERBACH E. Mimese. Trad. Cornelius Hein Paris Galimmard, 1968, Mimesis. Trad. George B. Sperber) Sl. Cultura,1971, p. 1. 33 JURANDIR, Daleidio. Marajö: romance Rio de Janeiro, Cätedra, 1978, p. 328. 34 JURANDIR, Daleidio, op. cit., 1978, p. 271. 35 JURANDIR, Daleidio, op. cit., 1978, p. 69. 36 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 394. 37 MAFFESOLl, Michael, op. eil., 1991, p. 125. 38 CASCUDO, Luis da Cämara, op. cit., 1983, p. 128. 39 BACHELARD, Gaston. L 'cau et Jcs reves. Paris, Librairie Jose Corti, 1985, p. 92. 40 GUSDORF, Georges. Mythe et Metaphisique (T.A.) Paris. Flammarion, 1984, p. 69/70. 41 GUSDORF, Georges, op. cit., p. 68. 42 ECO, Umberto. A Estrutura Ausente. Säo Paulo. Perspectiva, 1971, p. 55. 43 SÄ, Olga de. A Escritura de Clurice Lispector. Petröpolis, Voz.es, 1979, p. 170. 44 MORAES, Raymundo. Na Planicie Amazönica. Rio de Janeiro, Conquista, 1938, p. 77. 45 MORAES, Raymundo, op. cit., 1938, p. 78/79. 46 ECO, Umberto, op. cit., 1993, p. 134. 47 AQUIN, Thomas d\ cite par Eeo, Umberto, in op. cit., 1993, p. 118. 2£f 48 BACHELARD, Gasion, op. cit, 1985, p, 173. 49 JURAND1R, Dalcidio, op. cit, 1978, p. 299. 50 CASCUDO, Luis da Camara, op. cit., 1983, p. 129. 51 D0NTEV1LLE. La mythologie frangaise. Paris, Payot, 1948, p. 105. 52 MAGALHÄES, Couto de. 0 Seivagem. Rio de Janeiro, Tipografia da Rcforma, 1876, p. 130. 53 JURANDIR, Dalcidio, op. cit., 1978, p. 271. 54 DURAND, Gilbert, op. cit., 1994, p. 364/369. 55 MORE1RA, Eidorfe. Obras Reunidas. Beiern, Conselho Estadual de Cultura, 1989, vol. 2, p. 13. 56 MOREIRA, Eidorfe, op. cit., 1989, p. 14. 57 CURTIUS, E. R. La litterature et la Mayen Age latin Trad. Jean Brejoux, (T.A.) Paris, Press-Pockt, 1956, p. 304. 58 CURTIUS, E.R. op. cit., 1956, p. 305. 59 SOUSA, Ingles de. 0 Missionärio. Sau Paulo, Ätica, 1987, p. 131/132. 60 JURANDIR, Dalcidio, op. cit., 1978, p. 18- 61 MORAES, Ray mundo de, op. cit., 1938, p. 19. 62 BACHELARD, Gaston. La poetique de la reverie. Paris, Quadridgc/Puf, 1960. A Poetica do Devaneio Trad. A. P. Oanesi Säo Paulo, Martins Pontes, 1988, p. 167. 63 LOURELRO, Violeta. Amazönla Estado Hörnern Natureza. Beiern, Cejup, 1992, p. 69. z8$ 64 AMORIM, Brandäo de. In Antologia do Folclore Brasileiro Org. L. da Cämara Cascudo, Säo Paulo, Marlins, 1965, p. 107/108/109. 65 PEREIRA, Nuncs, op. cit., 1967, p. 232-250. 66 PEREIRA, Nuncs, op. eil., 1967, p. 333. 67 PEREIRA, Nunes, op. eil., 1967, p. 678. 68 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 679. 69 CAEVINO, Italo. Seis Propostas Para o Pröximo Milenio. Säo Paulo, Companhia de Letras, 1991, p. 16/17. 70 ALECRIM, Otacilio, citado sein referencia por Pereira Nunes, in Moronguetä, op. cit., 1967, p. 357. 71 Citation de PEREIRA, Nunes, op. cit, 1967, p. 357. 72 KOTHE, Elävio. 0 Herdt. Säo Paulo, Ätica, 1985, p. 46. 73 DURAND, Gilbert, op. cit, 1994, p. 48/51. 74 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 244. 75 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 245. 76 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 248. 77 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 248/249. 78 EESS1NG, Laocoon Trad. Courtin. (T.A) Paris, Hermans,1990, p. 51. 79 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 658. 80 AGASSIS, Eouis. Voyage au Bresil Trad. Felix Vogeli, (I.A.) Paris, Hachette, 1869, p. 260. 81 BACHELARD, Gaston, op. cit., 1942, p. 179. 82 BACHELARD, Gaston, op. cit., 1942. p. 174. 83 BASTOS, Abguar. Safra. Rio de Janeiro, Conquista, 1937, ]). 194. 84 SALLES, Vicente. 0 Negro no Para. Beiern, SECDET/MEC, 1988, j). 192. 85 MORAES, Raymundo, op. cit, 1938, p. 76. 86 NERY, Santana. Folklore Brasilien. Paris, 1889. Cite par CASCUBO, Cämara, Geograßa dos Mitos Brasileiros. Säo Paulo, Melhoramentos, 1983, p. 131. 87 BACHELARD, Gaston, op. cit., 1942, p. 99. 88 Cite par BACHELARD, Gaston, in L'eau et les reves, op. cit., 1942, p. 98. 89 BACHELARD, Gaston, op. cit., 1942, p. 98. 90 BACHELARD, Gaston, op. cit., 1942, p. 45. 91 BAUDELAIRE. Les jleurs du mal, in Oeuvres Completes. Paris, Seuil, 1968, p. 56. 92 Cite par MAFFESOLI, Michael. Paris, Biblio/Plon, 1990, p. 193, SHELLING: Vest le point de coincidence du reel et de 1'ideal". 93 OLIVEIRA, Ana Claudia de. Fala Gestual. Säo Paulo, Perspectiva, 1992, p. 140. 94 BARTH ES, Roland. Mythologies. Paris, Seuil, 1957, p. 70. 95 MUKAROWSKY, Jan. op. cit., 1981, p. 23. 96 MUKAROWSKY, Jan. op. cit., 1981, p. 106/107. 97 SIMMEL, Georges. La signification esthetique du visage. La tragedie de la culture. (T.A.) Paris, Rivage, 1988, p. 140. z8y 98 SIMMEL, Georges, op. cit.., 1988, p. 141. PPRF1RA Nunes clans 99 Cite sans reference de page par I i.ki.mn , Moronguetä, op. cit., 1967, p. 147. 100 Au creux des apparences. Paris, Biblio, l"0' P 101 PEREIRA, Nunes, op. cit., 1967, p. 70/71/72. 102 PERE1RA, Nunes, op. cit., 1967, p. 72. rompletas. Ri° 103 CAMÖES, Luiz Vaz de. Rimas, in Obras de Janeiro, Aguilar, 1963, p. 131. 104 DURAND, Gilbert, op. cit., 1994, p. 411. (TA) Paris, 105 DROZ, Genevieve. Les mythes platoniquei Seuil, 1992, p. 54. (Trad Sabine 106 SIMMEL, Georges. Philosophie de Vamour i ^ n6 Cornille, et Philippe Wernel Paris, Rivage pochc, 107 PERE1RA, Nunes, op. cit., 1967, p. 70. 108 PERE1RA, Nunes, op. cit., 1978, p. 72. z8S arret es AUjiÁMtíU rtwzM h fior cLl term ť cLh culture O colonizador, na Amazonia, pisou com pes duros. 0 tcmor dos indígenas bárbaros e da floresta, que orientou todo um processo de relacöcs com a terra, rcpercutiu na propria estra-tégia de organizacäo urbanistica, cujas ruas sc abrcm para os rios e sc cstrcitam cm ruelas ou fecham nos limites corn a sclva. Recebidos com rcservas e hostilidadc ein razäo da má fama de violéncia que os precedia, os Portugueses valeram-se de missöes de apaziguamento. Ficou célebre a rebeldia dos indígenas da ilha do Marajó, cuja pacificacäo teve o concur-so da figúra intclectual e missionária mais importante na colónia, o pe. Antonio Vieira. A presuncao de riquczas na imensa regiäo fez com que, ä época da expulsäo dos jesuítas decretada pelo Marques de Pombai, as terras lossem distri-buidas entre os "contemplados", poucas familias cleitas que passaram a formal a privilegiada oligarquia proprietária da ilha. "A nossa história é, por conseguinte, a história do mode-lo curopeu de cultura transplantado para a Amazônia (...)."' Uma história de imposicöes culturais ora violentas, ora per-suasivas, fruto de um caldeamento étnico de tal sorte que nada "é essencialmente indígena, africano ou curopeu na Amazônia, nos dias atuais. Tudo é experiéncia de vida de seus habitantes'^. Pstruturando-se sob a fusäo sincrética de tracos indígenas com europeus e africanos, foi no ritmo das relacoes soeiais que as características culturais da Amazônia sc foram for-mando, integrada a urna nova organizacäo social e de tra-balho. (J indio foi sendo incorporado eonflitualmente a essa nova sociedade cm dccorréncia das reacoes cjue opunha ao processo destribalizador de que era vítima. Pvidentemente, o lado mais fraco era o do indio, submetido a um processo interminável, duradouro c divcrsificado dc extermínio, que se estende ale os dias atuais. Foram dizimadas tribos iuteiras, sobrevivendo aquelas que se embrenharam na Horesta. A implantacáo do modelu europeu ocorreu sob cireunstán-cias arbitrárias, seja pela mesticagem social e cultural, seja pela desculturacáo, seja pela submissäo ao trabalho no pro-cesso eseravocrata. A Lingua Geral - que íbi uma estrategia de fusäo de línguas indígenas empreendida pelos missioná-rios para facilitar a caíequese, o acesso c a comunieacao com os diferentes povos tribais - tornou-se um elo fundamental. Essa Lingua Geral passou a ser a lingua adotada pelos mamelucos e Portugueses, em suas relacöes pessoais c familiäres. Essa linguagem comum, controlada pelos misio-nários, pode ter sido elemento idcntillcador das diferencas entre as sociedades tribais dispersas, propiciadora da forma-yäo de uma identidade nos elementos indígenas fundadorcs da cultura amazönica. Guiada predominaniernente pela ideologia lusa, a incorporaeäo dos novos valores pelos indios näo sc tleu de forma gradual de assimilayäo c apropriaeäo. Na verdade foi um processo conflituoso cm funcäo do (jual desapareceram rapidamente várias sociedades tribais, sendo seus componentes restantes absorvidos pelos centros coloniais. A temática mítica ou ritualística de encantados, entes sobrenaturais, visagens säo tidos como de origem tupi, que representou uma oeupaeäo cultural muito forte, ao lado de outras de grande significaeäo. Eduardo Galväo explica: "Uma resposta ao problema (alvez se possa encontrar no processo de aldeiamento, posto cm prática pelos missionários empenhados na catequese do gentio. A Fundacäo dos aldeiamentos resullou perderam as sociedades indígenas sua organizaeäo tribal. Lcvas de indios foram transportadas para as aldeias das missöes, onde a vida pas-sava a ser regulada por norrnas estabelecidas pelos missionários e onde se lalava e ensinava a lingua geral, uma forma modificada de tupi-guarani"1. No entanto, apesar da grande significaeäo das contribuicöcs indígenas que constituem um et hos peculiar ä cultura amazönica, foram as idéias e institui-cöes lusas modiflcadas pelas circunstancias locais que orien-laram o complexo processo integrador. 0 grande percentual de rnäo-de-obra indígena foi absorvido pela sociedade colonial portuguesa. Para os trabalhos de coleta do scrtäo, para o trabalho escra-vo, o índio foi descido, submisso e escravizado. Quer dizer: urna absorcäo com rcbaixamento. De donos da terra passam a escravos dos novos donos. Com isso, a sua cultura também é submetida a um proccsso de tblclorizacäo c rcbaixamento, naquilo cm que o folclore é tido como expressäo primitiva, bruta, antiga. Isso fez com que a cultura amazönica histori-camente, ao lado disso, sc fosse dcscnvolvendo como disso-näncia, uma contracultura ante os padröes culturais e con-ceituais dominantes. P foi a mesticagem resultante do cons-tante c intensive) contato entre as populacoes indigenas c os Portugueses que permitiu a fusao de tracos da cultura portuguesa com a indígena, passando a sua sintesc sincrctica resultante a constituir a cultura mameluca nasccnte c básica para formar o que se entende por cultura amazonica. Assim, na Amazonia, "com sen ambiente tipico de chuvas c llorcs-tas e seu magnifico sistema entrelacado de vias fluviais, mais do que qualquer outra regiao, persist in a heranca indígena de Brasil"1. Idcntificam-sc no proccsso cultural cm formacao como contribuieäo indígena a culinária, a mitologia, os rituais mágicos, a tcogonia dos encantos, os processos de cac,a c pesca, uma forma peculiar interativa de rclacao com a natureza, os meios de transporte, uma eficiente medicína natural, grande variedade de drogas do scrtäo, uma condicäo existencial de devaneio eontemplativo, uma poctica do coti-diano, enlim. "Tanto da parte indígena, como do negro, veri-fica-se a perda continua c irreversivel de valores originais, permuta e aeeitaeäo de novos padröes na vida social como na cultura. Os dois grupos sc diluem gradual mentě, já que näo podem conservar a integridade propria de etnias minori-tárias no contexto que promove a homogeneizaeäo. Tudo será esmagado pela cscravidao. Os tracos lundamcntais, no curso da convergence, fusáo ou amalgáma - mecanismos que possibilitam o amplo sincretismo no Brasil - podem sei detectados como aceleradores da mudanca, a dinämica peculiar (pie modilica o modclo cultural imposto: principalmente por meio do exame de sens elementos constitutivos, como z?7 a lingua, religiäo, musice e danca, literatura oral, usos e costumes, etc. (...) Forcados a integrar a nossa cultura, isto é, a cultura do hranco, índios e ncgros, ao agircm como bran-cos, trouxeram urna contribuicäo especial e possibilitaram a geracao, entre nós, do modelo regional, que se amplia e com-pöe o modelo nacionál.",J Vicente Salles reconhece a possibilidade de se fixar no final do século XVIII o marco de quando se complete o ciclo gera-dor de um modelo nacionál brasileiro de cultura. Ao mesmo tempo, considera que houve urn retardamcnto de mais de urn século na implantacäo do modelo europeu no conjunto for-mador da cultura amazönica. Supöe que esse prolongamento de uma situaeäo colonial extemporänea ao conjunto nacionál - mas eompreensível ante o isolamento da Amazonia com relacäo a outra parte do pais - tenha esquentado o cal-deiräo de violéncias que mais tarde explodiu nas reacöes netivistas dos cabanos, em 1835. "Esta é a dala (pre marca a complete desorganizecäo do estilo de vida colonial que per-sistie na província, segundo o entigo pedräo, apesar da pro-clamacjio de 15 de agosto de 1823, dala da Adesäo do Pará ä independéncia do Bresil. Pelo menos politicamente, a Cabanagem deu ä Amazonia a sua autonomia, integrando-se ao mesmo tempo na comunidade bresileire. Marca, cm definitivo, a aceitacao do modelo nacionál de culture."" Criendo o seu eminente peisagístico c espiritual, o hörnern amazonico lb i criendo todo urn modo de vida que vem sendo transmitido de grupo a grupo, de gera^äo a geraeäo. Säo ins-lituicöes religiöses, econömicas, costumes, comportamentos, mitologies, crietividede artistica, pedröes de gosto. Foi cons-truindo, enfim, uma cultura com es peculieridades e o poder de todas as cultures, isto é, a de determiner o comportamen-to dos indivíduos ou dos grupos. Um sistema geral a que se vincularam, numa relacäo dialétice de funcionelidede de dominencie, todos os espeetos de vide, mesmo os mais iso-ledos. F é nesse eampo de relacocs (pie se integre e criaeäo artistica, seje no ámbito do arteseneto, seje no cempo das artes em geral, e onde decorrem suas significacöes mais profundes. Ume verdedeire paideia näo codificada, presente no scntido formador dessa cultura de integracím do hörnern com sua realidade prática c simbólica, como ideal pedagógico capaz de Form a r o adulto na vida amazônica c no mundo. C) projeto portugués de expandir a Fč e ampliar o Império na Amazônia, ä semelhanca do que ocorreu cm outras rcgiôes brasileiras, í o i urna espécie de causa determinante de passar por cima da cultura nativa on comprimi-la. Ocupar as almas enquanto se ocupava a terra. A mesma cruz cpie abria os bracos anunciando a liberdade, Fechava os pulsos da opressäo. A guerra dos símbolos se deflagrou silenciosa, mas täo vio-lenta quanto a dos arcabuzes c dos canhocs. A aeulturacäo dos povos indígenas, propondo-se como adaptacím tecnoló-giea e espiritual, na verdade iniciava um antigo processo de dominacím já testemunhado na história de outros povos. Imensas terras se descortinavam ä cobica. 0 saque predató-rio, observável ainda hoje sob outras estratégias de desenvol-vimento é instalado. "Onde predomina o capital comercial, imj)lanta-se por toda parte um sistema de saque, e sen desen-volvimento, que é o mesmo nos j)ovos comerciais da antigui-dade e nos tempos modernos, se acha diretamente relaciona-do com os despojos pela violcncia, com a pirataria maritima, corn o roubo dos eseravos e com a submissäo; assim sucedeu cm Cartago e cm Ronia, e mais tarde entre os venezianos, os Portugueses, os holandescs, etc."' No modelo de exploracím aplieado ä Amazônia, as origens coloniais representaram sempre urna arcaizacäo das rela-côes sociais e de trabalho, massacre, escravidäo e extermí-nio do homem da terra, violcncia nas mudancas das rela-cóes sociais, předacím e morte. De čerta maneira, esses t ratios permaneceram cm maior ou menor intensidade na história amazônica, alcancando na atualidade dimensöes igualmente danosas e trágicas. Os Tupis, na Amazônia, semelhante aos Incas, no Peru e aos Aztecas, no Mexico, (oraní brutalizados pela necessidade dos doniinadores e seu cotidiano Foi violentado e submetido a um retrocesso cm direcäo ä barbaric. Uma espécie de "barbarizacao ecológica e populacional" que passou a ser urna constante na história dos projetos de desenvolviinento aplieados á regiao. z?3 Alfredo Bosi ressalt ^ cwnccito de barbarizacáo, J)ílra aPHeacáo ao ten^T^ que tcm espedal ÍntCI'CSSC S1>ira cm gt,ra, Qd řormacao económico-social bra- ocorreu na Amaz™'^ VáIÍd° para a comPreensáo do cluc lamenta] rulo d-.nT ^ A CUltUra ,etrada é rigorosamente raros casus de . azo a mom'lidade vertical, a náo ser geral. 0 domini3Pa nhamento (iue coníírmam a regra como divisor deÁa aIfabeto' reservado a poucos, serve lar- 0 cotidian i S 3 cultura ofícial e a vi(,a P°Í3U" ziu sob o limiarCd!WniaI:P0I,u,arscorganizouescreprodu-condicčes de ' - i eSCnUl' 9^ A cnacáo popular dispós de hoje, retrosoe r "se: a) ()u cm espacos ilhados vistos ouna ťronteir lmCntC' C°m° arcaizantcs ou 'ústicos; b) t()s da arte eur ^ CQrtos códigos eruditos ou semi-erudi-sacra, Por exemp7o"'< mÚSÍCa' nas festas e na imaginária A n''velacao de toda 9 folclore, foi um Producáo cultural das regiócs, como P3rtir do enu í).í(Kesso (luc se foi construindo, de início a esté«cas encontradament° nCSSa cateŠoria das atividades mento nessa cat ■ 1 ^ rtgiao c% cm seguida, pclo nivela-mcsnio as que.se^-3 ^ pro(,uVao dc outra naturcza, an,ropológieo " J"ia,s,m,)í),iz;'ram cm um durandiano trajeto rebatimento do 6 ^ Conversao em cultura popular. O c'xo hori/oMi J tMX° tcmP°ral verticalizante do folclore, no ''^^íoai esneci'div * i consigo uma •' «a cultura popular, carregou contradicoes Um^ ^ índefíni?óes» vazios explicativos, camente por numer C°nceito de f°ld°re, adotado prati-inúmeras derivae~ ° CX')rcssivo clc esludiosos, produziu <*m (pre o vineula'm I!V' T^" a inoVÍ,?3°. na Proporcáo costumes a exnr • ~ lra(Jlc,«nalismo, ao tradicional, nos d°. a vidá province ^V"? PaSSad° 30 qual t>st" Vincula" V* se denomina de fSlm< ° r°,c,orc aqui se reIi^a ao "a vdá rural muixTS *™ C°,C,ÍVa' a qual SL> eXprime nos Ela se PY, CS (,LK> nas massas industrials e urba- de costumes " ^,ÍV;" por todas as modalidades e o um s, írecprentementc muito antigos, algumas vezeš cau t me í ^ «rossciras- ™s sa?° a P*P™ ve d ( (,° TKT° (k> ',ťssoas as executam os vwdaduros ane.s desta cadcia tradicionaP que constitui o elementu constante da vida nacionál considerada no seu conjunto."'J E nessa 1 in ha que o grego Tansanias aparece como urn precursor, por seu registru dos relatos auténticos, rium vasto paincl descritivo da Grécia antiga. Atualmente, o campo abrangido pelo folclore é vasto e reúne o estudo de várias form as de expressao e costumes tradicionais liga-dos; a um determinado contexto do passado. Como uma espccie de producäo coletiva, revelando o ethos de um grupo social, semelhando ser o produto de uma autoria indeterminada ou coletiva — numa difícil tarda socioiógica de justificacao de autoria coletiva na invencao que é propria da arte, qualidade que se tern como propria da indivi-dualidade. "0 folclore nao é, como se imagina, a simples colec,äo de pequenos fa tos desaparecidos e mais ou menos curiosos ou divertidos: é uma eiéncia sintética que se ocupa especialmente dus eamponeses e da vida rural, e daquilo que subsiste da vida rural, e do que disso subsiste nos meios industrials e urbanos."'" No entanto, é necessário eompren-der-se que algumas formas artísticas da cultura amazónica, mesmo originárias de fontes perdidas na memoria coletiva, assumiram característieas de uma arte regional, de arte popular, capazes de manter suas significacoes mesmo trans-feridas para outros contextos socioculturais. Embora muitas vezes motivadas em modelos de origem folclórica, sao obras artísticas recentes, expressao de individualidades, de autoria reconhecida, apresentadas ao publico como obras autönomas expressando suas próprias significacoes. 0 carimbó é um exemplo de arte musical popular da Amazonia. "Alinha-se o carimbó entre os bailados populates sem enredo verbal (...) que se cstende por toda a zona atlán-tica do Pará, o Saigado, com ineidéneia ainda no Mara jó e no Baixo Amazonas."" A palavra carimbó designa o instru mento que é um tambur feito de um tronco escavado, tendo em uma das aberturas um couro ou pele de animal. 0 toca-dor senta-se sobre cle na hora de pereuti-lo. A danca do carimbó é uma espécie de bailado popular sem enredo verbal e nem signiflcacao dramat ica. A músiea é de um rit mu envolvente e a linha melódiea, apesar de sua intensa vibracao, transpareee também numa envolvente nostalgia. Vicente Sallcs considcra que o caráter arcaico de vocal iza-c,ao no canto do carimbó é signiťicativo componente para deílni-lo como canto de "trabalho e lazer do caboclo". 0 carimbó, no trajeto antropológico das origens folelóricas á expressao dc cultura popular, revela uma complexa conver-sáo semiótica, equivalentc ao que ocorreu com o samba c o baiíío, no idéntico trajeto do folclórico ao popular no Rio de Janeiro e no Nordeste brasileiro. De čerta maneira, trata-sc de um processo dc urbanizacao, de passagem de uma situa-cáo cultural á outra. "Esta dualidadc náo depende da passagem duma forma de arte de um grupo a outro. Mas, nessa passagem, cle muda de signiflcacao."" É claro que nessa pas-sagem, implicando a transposicáo de signos artísticos de um estrato social para outro, há uma mudan^a de sentido, E mesmo passando a ser uma arte de natureza diferentc do fol-clore, embora nele imbricada, sáo represcntacócs do senti-mento individua] que expressam represcntacócs coletivas, com as quais o gosto popular se afeicoa com naturalidadc. Pode-se verificar esse fenómcno, alem do carimbó, em alguns exemplos como o Boi Tinga, o Pássaro Junino, o Boi de Parintins e artesanato artístico dos brinquedos de miriti, objetos de inlerpretaeao neste capítulo. a- 0 teatro da surrealidade Há nas manifestaeôes do imaginário amazônico uma cons-tante poetizacäo que é diferente da razäo discursiva, assu-mindo formas livrcs de expressäo. Um imaginário que faz nascer na realidade em í rente, paralelamente äs eonquistas Práticas e teóricas cotidianas, um universo de acordo com os sonhos. Verdadeiras constelacôes de imagens que näo eessam de se objetivar em í'ormas livres destinadas ä contemplacäo, coadjuvadas por fa tores de jogo, de evasäo, de equilíbrio psi-quico, de liberacäo de energias. Sáo criacôes ás quais se pode-ria aplicar aproximativamente, principalmente no easo das artes e da mitologia, a reflexäo de Paul Valery a respeito da Poesia, isto é, "o que é dado ao poeta de simular, de reprodu-zir, de inventár, se ele cré que do mundo (pie lhe é imposto naseerá o universo (jue ele sonha"". Nota-se nessas manifes ta^ôes estetizantes urna espécic de passagem do atual ao virtual. O imaginário se objetiva e coletiviza numa forma que, como tal, se oferece á contemplacäo. Torna-sc um teatro do imaginário cm acäo. Kevela "o poder de ir além do que nos é ofertado pelos scntidos"". Näo é intencäo deste estudo rcssaltar os outros signifícados que uma imagern contcm cm suas várias carnadas de signifícacäo. 0 (jue se deseja aqui é evidenciar o seu caráter estetizante poetizador na dimcnsäo da cultura. Nas criacôes objctivadoras do imaginário amazônico das criacôes artísticas, há um acordo cntrc o real e o ])ossível, (jue c a propria dialética constitutiva da arte. Um estado de poesia epiíaniza o devaneio mediador cntrc o homem e sua realidade. Significa um estado que possibilita, cm meio ás cir-eunstáncias tantas vezes difíceis de trabalho ou sohreviven-cia, a frequencia das idealizacôes poetizantes. tria-se urna realidade complementar sob as mais diversas con figu racôes, constituindo-se no amplo painel das raízes da criacäo artística popular na rcgiäo. Sáo vínculos sutis (jue väo sendo 2^7 estabelecidos entre cssas duas realidades - a visívcl c a virtual - em que o possível assume uma realidade paralela complementar do proprio cotidiano. Uma realidade de cren-ca virtual ou uma realidade virtual de crenca, vivida por pes-soas que vivem sob eonstante apelo de um pragmatismo exi-gente de seu dia-a-dia. Aceitam com deleite a ilusäo de realidade nessas formas de criacäo, sentem neeessidade delas, tanto que as produzem e eonservam. Esse eoméreio entre o real e o possível acontece de maneira espontänca, numa aeei-tacäo também espontänea de seus múltiplos sentidos. ü ficcional, o fantástieo, o devaneio säo pontos integrantes das manifestaeöes do espírito do hörnern. Näo há notícias de que haja alguma sociedade eonstituída por pessoas cujo espírito näo manifeste a inexisténeia dessas qualidades impregnantes de seu espírito. Ľ nem de um a grupa mento humano que näo faca da realidade o lugar de present i ficacäo do sonho, da idealizacäo, do imaginário, muitas vezes com efeito mais real do que a propria realidade. Um fantástieo eomponente do eotidiano, que tcve nos surrealistas os seus mais ardorosos e militantes intérpretes. 0 imaginário coexis-tente ä vida cotidiana ou assumindo delírios criativos, nos quais a presenca de urna visívcl surrealidade constitui fato-res determinantes no que concerne ä sua artisticidade. O banal sc transfigura pela contaminaeäo da surrealidade do imaginário, como se observa em manifestaeöes artísticas nativas da Amazônia como o Boi Tiriga, o Pássaro Junino, o Boi de Parintins e o artesanato artístico dos brinquedos de miriti. Sobretudo nos t res primeiros casos c a surrealidade que os impregna de uma espécie de crispaeäo estética contemplativa, uma sensaeäo circunstancial de maravilha mento suscitado no que há de comum no cotidiano. A estética do surrealismo ofercce ángulos muito apropriados ä pcrcepcao da producäo artística de tradicäo popular na Amazônia. Isso porque o surrealismo propöe uma nova maneira de produzir e de sentir a producäo artística. Segundo os surrealistas, é pela sensacäo que se dá a passagem para o maravilhoso. A superposicím do imaginário no deflagra a cintilacäo do maravilhoso c faz com (|ue a populacäo vibre com o Boi Tinga, se emocione com o Pássaro Junirio, chcgue ;io paroxismo diante do Boi de Parintins, Há um alargamen-to do alcance do estético capaz de abranger tanlo as produces populäres como essas, como também objetos, pedras, vegetais, paisagens, cidades, etc., considerados port adores do maravilhoso. Urn maravilboso que, na visäo dos surrealistas, c a propria essencia da beleza. Nessa coneeituaeäo profunda, enraizada uuma profunda psicologia, epic aceita o riso, o sar-casmo, a polémica on a glória do sublime, a estétiea surrealista tenia constituir-se também numa ctica. 0 poélico é a energia ascensional da manifestacím artistica pcla (pial sc ultrapassa a "vulgaridade do realismo racional". A imagem entendida como luz, de certa maneira retoma um conceito importante da estétiea lomista c do sentido de epifania, que sao conceitos que estäo na base das reflexöes fundamentais deste estudo. A realidadc c o sonho se fundem nesse modo surrealista na cultura amazônica, no processo de ascensäo poética objetivada, principalmente, na criacáo artística. Sabe-se, pela semiótica, que "a mensagem assume uma ľun-cäo estétiea quando sc apresenta estruturada de modo ambí-guo e surge como auto-reflexiva, isto é, quando pretende atrair a atcncäo do destinatário principalmente para a forma dela mesma, mensagem"1''. Mas a rctencäo da atcneäo no objeto estético, a duraeäo da contemplacäo estétiea, pode-se afirmar, resulta de urna intervencäo do imaginário. Algo como o kantiano acordo entre a imaginacím e o enten-dimen-to. P nesse campo (jue, pela surpresa desse acordo, se cria urna condicäo de eredibilidade, de verossimilhanca, de virtualida-de. Pntre iníbrmacäo e redundancia, pondo em jogo vários níveis de realidadc, salientando a participacäo do imaginário legitimador, o Boi Tinga apresenta-se como um verdadeiro clip imaginário no con junto das artes amazónicas. b. A criacäo cénica e ritual de um teatro de rua A regiäo do Saigado paraense é uma area cultural de grande riqucza, entendendo-se a cultura como a íisionomia intclectual, artística e moral de um povo, ao longo de sua história. Ncla podem ser encontradas prátieas que resultam em criacáo de formas artísticas de grande beleza e originalidadc. Uma des-sas manifestacčes, o carimbó, tornou-se um verdadeiro sím-bolo do Estado como expressáo tipiflcadora da identidarie regional. Mém do carimbó, que tem no município de Marapanim seu locus privilegiado, há o Boi Tinga, em Sáo Caetano de Odivelas. 0 Boi dinga é uma danca dramat ica sem enredo verbal predetermined©, de coreografia livre, expressáo coletiva de arte, constituindo-se numa das mais originais formas de criacáo popular na Amazonia. Em município vizinho, Vigia, destaca-se o património arquitetónio, evidenciado pela igreja Madre de Deus, com sua original ala de colunas e a pintura do teto e o grande retábulo da sacristia. E também uma regiao marcada pela cultura da pesca artesanal que impregna de signos próprios o ethos e as linguagens da regiao, onde o carimbó, denominado de zimba, representa a criacáo musical mais conhecida. 0 Boi Tinga está dentro da categoria geral do Boi-bumbá ou Bumba-meu-boi, folguedo próprio da "época junina", a qual compreende um conjunto de manifestacoes artísticas de tra-aicáo e contexto popular. Na obra Uma Viagem ao Amazonas, Sanches de Frias1" apresenta a hipótese de uma origem africana para essa expressáo artística que é o Boi-bumbá. Considera que é uma encenacáo ritualizada equiva-lente ao culto do Boi Ápis no Egito antigo, com a inclusao ritual da imola^áo do boi. Sanches de Frias conjectura que essa espécie de venera^áo c culto popularizado pelo animal tem origem africana, em consequéncia de ter sido inexpli-eavelmente poupado por uma epidemia que dizimou todas as outras espécies de animais. Vicente Sailes que interpreta o papel exercido pela cultura negra na formacáo da cultura amazónica, reconhece a origem negra do Boi-bumbá: "Em meados do século passado, certos traces característicos desse lolguedo, na Amazónia, já se achavam estabilizados, ou qui-ca eristalizados, tais como: ser um folguedo de eseravos, rea-lizar-se na quadra junina, apoiar-se numa vanguarda aguer-rida, a malta de capoeiras"17 . 300 O Boi Tinga, que inaugura uma nova modalidade no género, embora lenha relacäo circunstancial com o boi de origem negra, apresenta uma característica bem original em sua estrutura, desde sua origem recente e determinada. Foi cria-do em Säo Caetano de Odivelas, município da regiäo do Saigado paraense, localizado a 104 km da capital. A eidade é banhada pelo rio Mojuin, e o município tem co mo principát atividade econômica a pesca. Apcsar disso, ťoram exatamen-te os Pescadores que deram início a essa tradicao. "Os fun-dadores do Boi Tinga, o mais tradicional de Säo Caetano, há 58 anos, encontravam-se no arquipélago do Marajó (ilha de Maracá) quando rcsolveram comprar a 'cabeca do boi'. Uma obra artesanal perfeita em seus detalhes, essa 'cabeca' é a mesma nos dias de hoje. Para näo sérem reconhecidos na chegada ä cidade, os pescadorcs rcsolveram colocar mascaras e improvisar um batuque. A surpresa agradou aos mora-dores, que prontamente aderiram ao 'boi mascarado1. Os fun-dadores do Boi Tinga foram Zeferino Chaves, Bento Zeferino, Vitor Pinheiro e Murilo Chagas, estes dois Ultimos ainda vivos. 0 Boi Tinga difere da estrutura dramática desse género de dramaturgia popular que, em geral, apresenta tenia estrutu-rado e desenvolvido por meio da aeäo de personagens e coro, intercalando diálogos com toadas, que säo cantorias lirico-dramáticas condutoras dessa acáo. A logica do Tinga é a lógica onírica. Pie näo desenvolve um enredo na forma tradicional de encena^äo das outras modalidades do teatro popular. Näo tem enredo, mas um motivo constituido pela festa cm torno do Boi. Näo existe propriamente marcac,ao cénica, a näo ser a livre evolueäo circular em acompanha-mento coreográllco dos movimentos do Boi. H uma espécic de boi de folia, de exibicäo descontraida que independe do espac.0 ritualizado de um palco, exibindo-se ao ar livre, corn o um teatro de rua. Hm sua coreografia livre e simples ele expressa e transmit e grande vibraeäo aos espect adores, que acompanham o desdobramento itinerante da apresentac.äo pelas ruas da cidade, ou aos que assistem ä passagem do es-petáculo ä frente de suas janelas. $01 "0 Boi Tinga apresenta, cnlre seus personagens pier-rots, cabecöes, o boi (figura central), cacador, o cachorro que ajuda o cacador a encontrar o boi, scndo que esses säo personagens ilxos c unicos. 0 grupo vein conduzido por pes-soas que trazem uma quantidade expressiva de bandeiras co-loridas de verde, amarelo c azul. Caracteristica especial desse boi e que, a cada ano, ele apenas foge, para, no outro, reapa-recer na festa, ja incorporado no cordäo."1'' A magia do Boi Tinga näo sc rcvela apenas durante a epoca junina. Ao longo dos meses do ano, os brincantcs, sempre cm nümero maior do que no ano anterior, costuram suas coloridas roupas ou modelam as mascaras e completam o vestuärio. Outros, usando a tecnica do papel-mache, como nas mascaras, modelam grandes cabecas, os "cabecocs" - que cobrem o corpo do brincante ate os joelhos e criam, quando vestidos, a forma hilariante de uma cabeca imensa em cima de um corpo que da a impressäo de ser minüsculo e de minüsculas pernas. Com fantasias de pierrots, mascaras e cabecocs de papel mache ou simulacros de cavaleiros montados, os brincantes (como os participantes do grupo säo denominados) ocupam 0 tempo todo com passos e saltos coreogräficos, instigando e tentando fugir das chifradas do boi, dificil de ser controlado por dois esforcados vaqueiros. Esse boi de quatro "pernas", que tern o tamanho de um boi natural, exige grandc vigor daqueles que o carregam nas costas. Säo as "pernas" do boi e correspondent ä denominaeäo de "tripas" dos outros bum-bäs tradicionais. Outra pcculiaridade do Boi Tinga e o repertorio musical. Predominam as marchinhas, sambas ou xotes estilizados, porem com urn estilo apropriado. Constitucm urn corpo esti- 1 ist ico-musical proprio e de fäcil identificaeäo. Servern, ao mesmo tempo, para reunir os brincantes ao inicio do deslo-camento da cena pela cidade. Percorrendo coreograficamente as ruas ao longo da noite, o Boi Tinga vai interrompendo o percurso, para exibir-se eni Ii etile das casas que anteeipadamente fizeram seu pedido. 30z No ultimo dia o Boi loge. Ele näo morre. Faz parte da vida da eidade, onde é tratado como um ser vivente, eapaz das ma is diferentes reacöes. Ate mesmo, de pereeber quando desejam matá-lo, fugindo astutamente, para retornar no ano seguinte. Nesse periodo entre dois ciclos anuais, refugia-se nos campos do imaginário da populacäo de Sao Caetano de Odivelas. A fuga do Boi Tinga pode ser entendida como uma fuga mágica, no sentido em que o fenömeno áa fuga como moti-vo é analisada por Vladimir Propp, na busca das raizes históricas do conto maravilhoso20. É uma fuga que nao e determinada por circunstáncias anteriores. É um aconteci-mento que surpreende como um desfecho que nao termina. Saindo misteriosamente do espaco dramático e desaparecen-do nas sombras das ruas de Säo Caetano, o Boi Tinga - leva-do pelos brincantes que o carregam - penetra nos canipos do imaginário coletivo. Transfígura-se cm legenda. 0 tempo dramático termina sem um fim conclusivo. Abre-se para um outro tempo mágico, de um realismo proprio, como se o Boi Tinga simbolicamente ultrapassasse os limites espaco-tempo-rais da encenacäo. A perseguicäo e fuga do Boi aeontece como um pós-clímax mais significativo que o proprio climax dramático. Indica a probabilidade do signo do Boi ser maior que o espetáculo que o eontém. Ele näo se transforma em nada. Ele intensillca sua significacäo: ultrapassa a mořte. Transpöe o obstáeulo de seus perseguidores, quebra a logica da distincjio entre o real e o irreal, suplanta o obstáeulo mágico do eírculo de presencas formado pelos espeetadores, que sempře declaram que, embora fiquem atentos, jamais conseguem ve-lo passar em fuga. Torna-se, portanto, um habitante desse espaco mitico-real do realismo mágico que constitui uma realidade cultural amazónica - uma espécie de pacto imaginal da sociedade. Um realismn-mágien do qual a literatura tem revelado uma espécie de mimcsc, uma espécie de surrealismo diferente da atitude inteleetualmente susten-tada que eonstitui o surrealismo curupeu. 0 Boi Tinga ultrapassa os obstáeulos, quebra as porteiras mágieas, refugia se nos campos do imaginário coletivo, para reaparecer "miste riosamente" no ano seguinte. 303 A artisticidade do Boi Tinga fica evidente pelo predominio da funcäo estética, no ritualismo dramático de sua encenaeäo. Ela resulta de uma atividade de eriacáo e recepcäo coletivas, relacionadas ou interligadas pela funcäo estética. Como na danca ou no teatro, a propria atividade é o resultado artísti-co do Boi Tinga. Tem, portanto, essa conľlitiva e densa eter-nidade de um momento, que caracteriza aquelas duas artes. Trata-se da revelacäo de um instante profundamente signi-iicativo da sensibilidade do hörnern da Amazonia. A atividade esta direta e temporalmente ligada ao resultado. Nada no espetaculo visa propriamente á comunicaeäo discursiva. A esteticidade autonoma e auto-reHexiva propria do objeto-estetieo nele está presente de modo constitutive. Evidentemente que há a presenca de funcöes extra-estéticas dialogando nesse processo, constituindo, em niveis diferen-tes, essa esteticidade. Mas o predominio é o da funcäo estética como o ponto vvlico, recebendo, reunindo e impulsio-nando o espetaculo. Os espectadores näo estäo propriamente ligados aos signiflcados nos personagens ou objetos, mas Sim, a exibicäo formal desse complexo signo cénico. É o proprio signo em movimento que interessa ä contemplacäo e que aparenta ter um em si proprio. E claro que a interferencia de fatorcs extra-estéticos no Boi Iinga dando-lhe um conteúdo concreto, estabelece ligacöes funcionais com a realidade que lhe é exterior. "A funcäo estética,por si só, näo bašta para dar ao signo por ela criado uma sig-nillcacäo completa."" Tudo isso situa o Boi Iinga em seu terre-no, no espaco de Säo Caetano de Odivelas, no sen contexto cultural. Constitui-lhe também a existencia. Mas a funcäo estética, como ponto vclico dá o deslocamento artístico de espetaculo. Está-se usando o conceito da física náutica do ponto vélico como a resultante da a<;äo das for<^as das várias acöes do vento sobre a vela, e da resisténcia que o mar opöe ao deslizar do navio. E uma espécie de harmonia desarmônica que estrutura uma situacao. A forca dominante da funcäo estética c a resisténcia a essa dominaeäo decorrente das funcäo extra-estéticas22. As acnes que confluem para fazer da funcäo estética a dominante na obra artistka, sob a resisténcia das funcöes extra- estéticas, constituent] esse "ponto vélico estético" que impul-siona o trajeto, o avanco em direcao do modo de reecpeáo estética da obra, por meio do sensível e das signiilcacôes que sua forma expressa. 0 ponto vélico estético no caso Boi Tinga impulsiona, de certa maneira, um itinerário social equivalente ao percurso do trajeto antropológico durandiano para evoluir e provocar uma atitude de recepcäo estética do grupo social como resposta. Todas as atividades dos partieipantes - atores ou espectado-res — na exibi^äo do Boi Tinga (confeccäo das vestimentas, modelagem e secagem das mascaras, exposicäo das vesti mentas no varal dos quintais ou na grama, cnsaio das musi-cas, eonversas sobre as exibicöes, etc.) säo formas de acao sobre a esteticidade que será dominante, num contexto com-posto de elementos anestéticos. Desse conjunto de forcas e resisténcias resultará, sob a dominäncia da funelo estética, a resultante artistieidade do evento. "Este ponto vélico, variá-vel como variam as forcas e as resisténcias, marca a unidade näo harmonica de um eonllito."" De certa maneira, realiza no campo de atividades de earáter artístico, aquilo que na filosofia poética de Bachelar "se identifíca com sua propria fenomenologia da imaginaeäo"". Pela transparencia da funcäo estética o Boi Tinga revela sua multifuncionalidade, no eixo das oscilaeöes entre essa lun-^äo e as demais, sem que o artístico e o extra-artístico li(|uetn precisamente definidos. Sua capacidade de maniľestar a tun <^äo estética, sem dúvida, predomina e dá um sentido ä sua recepcäo. 0 publico orienta-se pelo prazer da contempla^äo da forma como o Boi Tinga se apresenta e, nessa forma est á seu conteúdo expressivo, urna vez que tudo se torna signifi-cativo na hora de sua exibicäo. c. 0 imaginário c o clip Qualquer que seja a sua modalidade, a arte é um fenômeno da eultura. "Näo se pode determinar de uma vez. para sempře 305 o que a arte é e o que näo é.""J No entanto, a presenca pri-vilegiada da funcäo estética é sempře uma determinante constitutiva da artisticidade. "0 que näo desejo dizer é que a arte se deixe reduzir ä cultura em geral, aos íenómenos da civilizacím em partiular", afirma Gilbert Durand, em a Creadon artistique ciomme configuration dynamique des structures. Componente das relacöes entre os homens e o mundo, a funcäo estética motiva na obra de arte a convergence dessa fun^ao, mesmo que näo exista teoria artística explicitamente definida. Nas atividades artísticas cíclicas, pode-se falar numa relacäo importante entre a atividade artística como produto da esfera estética e o proprio sistema de organizaeäo da vida social. A consciéncia coletiva com a qual as manifestacöes artísticas se relacionam, em busca de uma significacäo simbólica na Amazonia, revela a visäo autonoma que mantém diante da comunidade. De čerta maneira, a relacäo estética em torno da criaeäo artística é uma íorma de auto-realizaeäo dessa sociedade de indivíduos pera nie o mundo que a cerca. fJellagrando um processo proprio de atitude estética e nesse campo se realizando, o Boi Tinga se apresenta como uma ver-dadeira explosäo de signos. Oferecendo-se ä contemplac,äo, o lolguedo adquire valor intrínseco, atraindo sobre sua conste-lacäo simbólica - em todos os seus detalhes de música, danca, vestimentas, coreografia - a fruicäo contemplativa do grupo. E na forma aparente da teatralidade da encenaeäo que se con-centram as atencöes. A realidade transfigurada cm signos aparece aos olhos de todos com toda a complexidade e poten-cialidade. As relacöes mediatizadas entre as pessoas e a realidade se revelam. Todo um universo vivido pelo hörnern ali se observa, por meio da maneira aberta como essa realidade artística é por todos observada. E aquele grupo de pessoas comuns na vida da comunidade - pescadores, operários, donas-de-casa - passa a representar algo alem de sua inser-cao no cotidiano, alem do imediato da existéncia, experimen-tando um momento incomum dentro de suas vidas comuns. Todas aquelas pessoas vestidas com trajes coloridos, de li vre combinaeäo de tecidos e de tonalidades, usando mascaras de $06 diferentes Feitios, levando bandeiras grandes c multicores, movimentando-se como uma danca surreal ao som de um estilo musical proprio, compöem um conjunto expressivo que é envolvido pela atitude estética, convertendo-se em portador de significances sensiveis, estaheleccndo um elima de emoeäo no sentir a realidade do mundo que eles vivem. 0 Boi Tinga matcrializa, objetiva o fantástico natural no espírito do caboclo amazônico, do hörnern na Amazônia. h uma espécie de cristalizacáo desse contorno envolto em som-bras que emoldura com sonho e devaneio as suas atitudes, que faz da expressäo do imaginário uma realidade algumas vezeš mais real do que a propria realidade. É o fantástico do cotidiano táo caro aos surrealistas. A ilusáo aeeita como ver-dade. Quando a representacáo do auto do Boi Tinga encerra, o Boi (que é um ícone em tamanho natural, deixando ä mos-tra as pernas das duas pessoas que o carregam) já desapare-ceu sem que ninguém tivesse percebido. "Como por cn-canto", segundo expressäo local. No ano seguinte, também de modo imprevisto, o Boi reaparece dancando em cena, após sérem iniciadas as representaeöes. 1: todos Ungern acreditar que o Boi verdadeiramente sumiu e reapareeeu, como por mistério ou eiicanto. Operacionaliza-se o paclo imaginal que envolve, numa única realidade, o que é e o que poderia ser. O Boi Tinga é um fenômeno de fascinaeäo contemplativa numa comunidade emocional. Em algum lugar da cidade de Säo Caetano, geralmente no periodo da tarde, quando o ven-to das bandas do rio passa com invisíveis leques abanando as ruas, na época junina, ouvem-se os sons de tambores que estáo sendo aquecidos ou afinados. Alguns sons esparsos de instrumentos de sopro (trombone, sax, pistom) alternam-se, numa livre afinacäo de tonalidades. A partir daí, comecam a surgir, dos mais diferentes pontos da cidade, figuras de grande plasticidade c mistério, usando trajes coloridos e mascaras diversas, predominando os chamados pierrots, como se uma estranha e intemporal representacáo da comoedia del arte se fosse organizando. Uma realidade mágica se vai eon-figurando e aceita com naturalidade por todos. Uma natural idade densa de inleresse pelo (jue pode oeorrer. Em tudo 1°7 vai crescendo uma espécie de expectativa crispada. Todos sentem que "algo" vai aeontecer dentro de momentos —° momento que é por todos esperado. No Boi Tinga tudo é uma crispacäo de olhar e ver como na fascinac.äo barroea da contemplacao delirante, tudo fica preso nessa fogueira de imagens que aeontece em cena aberta. Existir é ser visto, porque tudo sc expressa pela visäo. E um teatro de olhares. "Uma visäo devorantc, alem do visual, como este olho pietural interior que daria 'textura imaginária do visíveP e realizaria a passagem do visivel para o inv.sivel segundo Klee, retomado por Marlau-Ponty."26 Os rostos väo acumulando-se nas janelas para olhar. Cadeiras sao colocadas nas cal^adas, a Tim de que os mats velhos pos-sam olhar sossegadamente. Pessoas, de pé, da soleira das portáš, olham. Nas esquinas, grupos de homens, mulheres e criancas se reúnem para olhar o que vai aeontecer. Esse furor contemplativo já fora estimulado durante os dias anteriores, pela presenca de trajes diversos pendurados pelos quintais para secar. Mascaras foram vistas secando na grama ou pen-duradas nas janelas. A cidade que, ate entáo, tinha sido os bastidores, preparava-se apenas para a festa. Na hora da ence-naeáo itinerante pelas ruas, passa a ser o palco. Nessa hora de espera se coníigura a expectativa de fascinacao contemplati-va propria do clima da relacäo estética. 0 surreal que está pre-sente no real cotidiano comeca a se "evidenciar" no fenóme-no da artisticidade e da relacäo estética de monstraeäo e con-templatividade. A sociabilidade se interpenetra de uma poeti-cidade envolvente. 0 maravilhamento brota do banal. Quando os componentes do grupo se reúnem, como se um quadro vivo de Velasco, Dürer ou Breughel de Velours entáo se materializasse, a música inicia com modulacoes intensas sob ritmo contínuo. 0 grupo do Boi Tinga movi-menta-se pelas ruas, com scus personagens bizarros. Alem de personagens isolados e constantes, como pierrots, macacos, cachorros, porta-bandeiras, inesperadas caracte-rizat;öes väo surgindo no pereurso do folguedo pelas ruas e se ineorporando ä encenaeäo. Inclusive, verdadeiros 308 entreatos, pequenas cenas ou unidades significativas autö-nomas em meio ao con junt o - como cenas de casa mento, de amor, sátiras de costumes - surgem imprevistamente de alguma esquina e logo se incorporam ao grupo, sob o olhar da pequena multidäo que acompanha a representacao. Tudo sc impregna de um sentido que encontra na estética do surrealismu a sua compreensäo. A representacao artistica do Boi Tinga representa uma passagem para o maravilhoso, no ämbito desse sfumato proprio do devaneio na Amazonia. Pelo maravilhoso resultante da interpenetracäo entrc o visi-vel e o invisível, o real e o imaginal, parecc haver urn mer-gulho na esséncia das coisas. Lissa interpretacím resulta no alargamento da expericncia estética no cotidiano. Os perso-nagens, o movimento, a livre combinaeäo das formas de danca, a sutileza formal do conjunto revelam, nesse contexts cultural, uma insercao do imaginário livre no real. Como na estética surrealista, aí também se permite o riso, o humor negro, o sarcasmo, o lirismo, o deboche, a descontinuidade, o improviso, o poético como um valor universal da vida. O poético desregrado revela-se como contraponto da vulgari-dade de cada dia. 0 insólito é a logica dessa dramaturgia sem eodiílcacoes. 0 predomínio das imagens signitleantes livres sobre a linearidade do sentido. 0 sensualismo, nesse ponto, alcanca um altíssimo nível. d. Do Tinga ao clip A exibicíio do Boi Tinga deve ser vista com os olhos cm liberdade. Como uma fonte de signos, a movimentaeäo eéni-ca de rua vai evoluindo segundo a livre permutacím dos aca-sos formais em que as figuras väo sucessivamente se agru pando durante a representacao, na qual se combinam músi-ca, movimento e cores. IIa uma espécie de celebracao do lirismo do instante, uma erispacáo do instante, como a consagrada expressao de Octavio Paz, referindo-se ;i poesia lírica. Como no tempo pré-soerático de Zenou de Pléa, um tempo composto de sucessivos instantes, a evolucím do Boi Tinga é uma incontável sucessäo temporal de imagens, sem 30ß to n näo ser aquela determinácia pelu uma lógiea aparente, a na inário percorrendo as aeaso. Há urna ep.famzacacdo £ ruas eomo um fogo-dc-santelmo ou h ■ "nernas", que sáo as pes- 0 duplo do Boi levado pelos dc pern^ '^.^ ^ soas que o carregam, execuw h ^.^ reves,infl(, (k, suscitam admiracäo. Essa aomi v dingem a urna afetividade ingfc.ua e corte^an. • A ^ cle „alavras de instigacao, de mcent ^ ^ ^ compreen_ racäo, eomo se e e fosse um ser movimentos com dé-las. Por oulro lado, os pemas r co q o Boi eomo se fossem «P0^^0^^ assustados. Dizem avanca sobre os circunstantes que re que o Boi rem rtta. E por ,sso qu ha um ^ similhante na erenca de que o Bo. Joff . Quer dizer, o Boi tratado eomo um ser v.v eomo assumindo atitudes próprias de animals v.vos. A imagem do Boi Tinga evoea a remota imagem de forca e a impetuosidade dos animais mitológicos - mars do tou-ro que propriamente do boi. É urna espécie de sublimacao das energias vitais. Urna forca que é incontrolavel, tento que o Boi Tinga näo se submete ás leis dramat.co-ntuais do sacri-fício da morte. Está acima desse desfecho tragico. Ullrapassa os limites da encenaeäo. Ele aparece con.o um golpe do des-tino no meio da encenaeäo e desaparece antes que ela che-gue ao fim. Quer dizer, 0 Boi Tinga e .mortal . na medida em que é anterior ao inicio da representaeäo e ultrapassa os limites da encenaeäo no final. Nao tern comc-co nem fim. Ele participa de uma forma de eternidade virtual, aceita pelo pacto imaginal em que loda a comumdade está envolvida. Jung eselarece em sua simbóliea analítica que o sacrifício do touro "representa o desejo de uma via do espinto que permi-tirá ao hörnern o triunľo de suas puxöes animais primitiyas e que, após uma cerimônia de inieiaeäo dar-lhe-á paz"". Como o Boi Tinga näo se deixa malar, ele ibge, ele se oeulta, ele triunfa sobre a lógiea do espetáculo-ritual, ele pode representor a predominäncia dessas paixöes animais primitivas, a supremacy do desejo, o succsso do imaginärio, das Ibrcas do in co nscien t e incontro 1 ado. Mas o boi, no Boi Tinga, näo e urn animal sagrado como cntre os grcgos e nem e imolado cm sacrificio ä consagracao de alguma divindade. Pelo contrario. Ele e enccnado de uma forma humanizada, jocosa, familiar, afetivizada e burlesca. Näo e nem vitima, nem sacrillcador. Nem se assemelha aos bois primordiais dos gauleses. Tambem näo tern o papel anä-logo ao de urn herbi civilizador. E urn boi humanizado, brin-calhäo e pamdico. Um simbolo animado do lirismo burlesco do surrealismo. O surrealismo do Boi Tinga e como urn sonho no espelho contemplado por quem sonha. Uma projecäo de livres associates do inconsciente, materializada e animada. Liberados dos mecanismos de repressäo, näo operam a separaeäo entre o racional e o irracional. Os limites do real säo rompidos, libertando o magnifico, o maravilhoso, de acordo com uma forma de vida a qual a realidade tambem se esteti/.a e se con-funde com a manifestaeäo artistica e onde hä lugar para uma convivialidade estetica. E um instante poetico de persona-gens, de formas, de movimentos, de cores, de ritmos, de liberdade ante o real. 0 Boi Tinga näo desenvolve um discurso tradicional. Lie ilus-tra visivelmente uma especie de intermitencia onirica. A realidade racional que organiza os fatos cm uma ordern cronolögi-ca e substituida pela livre associaeäo de fatos e de intuicoes objetivadas. 0 acaso combinatory de formas assume o lugar da lögica narrativa. Ao inves de uma ordern progres-siva e encadeada dos fatos da narrativa, hä uma aeumulaeäo de ima-gens visuais que näo fazem avancar nenhum relato, atraindo a contemplacäo por sua magia formal sensivel, as-sumindo, por isso, mais uma dimensäo do poetico que do dramätico-narrativo, 0 diälogo existente e de livre improvi-saeäo durante os intervalos da coreografla musicada, do qual se ouve ape-nas o "rumor" de vozes abafadas, como um co-ral de mur-muraeöes. Mas o diälogo gestual vai ocorrendo du raute as livres seqüencias de uma renovaeäo plastica, que, por serem }11 imprevistas, surpreendcm, näo apresentando uma conexäo ä primeira vista, parecendo incoerentes c sem relacionamentos. Só urna interpretacäo simbólica oferece meios ä identificacäo de sua mensagem estética, os scus conteúdos do imaginário que ali se apresentam, como no estado visível de urna desor-dem imemorial. 0 que confere unidade e coerénda ao conjun-to é a música. Cada momento propriamente cénico correspon-de a urna associacäo entre imagens dissociadas e o som de urna melódia que tem atmosféra propria, a música do tinga. A encenacäo assemelha-se ä encenacäo coreográfica de um tenia musical. É por esse motivo que se pode considerar a represen-tacäo do Boi Tinga como uma espécie de clip do imaginário. e. Do clip ao Tinga 0 clip é considerado como urn "programa musical de telcvi-säo, de curta duracäo, concebido a Ilm de promover uma cancäo e seu interprete"2". A Uniáo Européia de Radiodifusäo estabelece algumas características fixas para o video-clip. A primeira é que seja uma ilustra^äo visual de determi-da música, com a principal ou exclusiva finalidade de assegurar a promoklo comercial de difusäo cm diferentes canais de 1 \ . Os curtas-metragens destinados a promover os artistas de jazz e do music-hall americano na década de 30 säo consi derados precursores. Nessa categoria estäo os scopitones que, na década de 60, apresentavam, na Itália, cenas de Im a de boxe, na TV. 0 primeiro scopitone frances foi realizado por Claude Lelouch, em 1960. Mesmo o filme "Help", de Richard Lester, estrelado pelos Beatles, é intercalado de clips, como uma verdadeira colagem sobre a base narrativa da história. Provavelmente, o video-clip, via TV, terá produzido mna verdadeira pedagogia social de sensibilizacäo e compreensäo coletiva da descontinuidade da estética surrealista c propria do cinema moderno. A livre associacäo de imagens ligadas a caneöes de autores conhecidos, populäres, sem haver necessidade de uma logica narratia aparente na relacäo entre essas imagens livremente associadas, por seu amplo alcance 3iz c(i "i-"'1* da dívulga?äo massiva, pode ler promovido cssa ucasäo da sensibilidade coletiva para a recepcäo da expressäo surrealista nas arlos, e benéľica para a evolueäo do cinema. A progressiva economia narrativa do cinema atual quanta as cenas de ligacäo, i, multiplicidade de cortes, á montagem associativa ou dissociativa, que podem ser cítenou as como qualidades de linguagem surrealista do filme, pela subversäo de tempo e espaco, certamente beneficiadas (™nu, técnica eriativa e como recepcäo do publico) polo vtdeo-clip. Deve-se também lembrar uma outra modalidade retónca das imagens influenciadas pelo clip que e a publici-*ade televisiva ou cinematográfica. Pode-se considerar um fundamental marco histórie,, de linguagen, surrealista n cmema, o filme U„ chien andalou, de Luis Bunuel ta vez o pnme.ro cine-clip da história do cinema. K uma obra aberta 0 de «ranilť riqueza emotiva. Como ocorre no caso do Boi ľinga, no clip hi " «»»P'" mento detectado por Umherto lico nas ohras abertas, <, a ense do eódigo e ao mesmo tempo a sna po.enc.ali/^a«K . perceptível que, segundo o que Eco analisa en, sua om aberta, o estudo da logica dos significan.es na » ' > ^ deve ter presente o campo de liherdade dessas " 1 ' den.ro do movimento de techamenlo e abertura H <> ■ como no video-clip, u,n efei.o de cs.ranhan.cn.o ^ em ambos de urna linguagem desautomatizada. i. ■M "m sentitnento ulillzam-.se imagens filmař 0I' í ,,s "'f o-cliP ou Tinga - ľora das formulas fixas detern das Pela lógiea de combinacäo ou de urna sin.axe I " «• * "ôs, em ambos os casos, urna realidade qu< aparente-mente conhecemos revelada por signos numa relacao total-mente diferente da expectation, gerando .una pcrplex.dade e umu ambigüidade nessa mensagem em relacäo au cod.go automatizado. o estranhamento laz coin que os espectadores reconsiderem a mensagem c sejam instigi.....s a descobnr n que essas imagens exprimem. De čerta maneira, como no caso do video-clip, o espec.ador do ľinga é um co-i -nádor de seu evenlo arlisliěo. Ele o recria por sna recepcím criativa-mente alivada. "Nessa dialélica entre lomia c abertura (ao nível da mensagem) e entre lidelidade e iniciatíva, ao nivel do destinatário, estabelece-se a aíividade interpretativa de qua] quer fruidor e, numa proporcao mais rigorosa e inventiva, e concomitantemente, mais livre e mais fiel, a atividade de lei tura típica do crítico - numa recuperacáo arqueológica das circunstáncias e dos códigos do remetente, num ensaiar a forma significante para ver até que ponto suporta a insercao de novos sentidos, gracas aos códigos de enriquecimento, num repúdio de códigos arbitrários que se insinuam no eurso da interpretacao e náo saibam fundir-se com os demais." Embora impulsionados por um proccsso de distanciamento, os es})ectadores assistem á exibicáo itinerante do Boi litina pelas ruas de Sao Caetano, como quern contempla as repre sentacoes de um mundo do inconsciente. Náo desejam alem do que contemplar essa espécie de sonho, velando-se como fonte de poesia. Em sua ainda recente história, o clip incorporou c contribuiu para a difusáo de caractcrística das estéticas do surrealismo, aumentando sua aceitacao compreensiva. Uma contribuicjio extensiva ao cinema e a TV. Há até mesmo ca na is como a MTV, inteiramente dedicados a sua divulgacáo. Rapidez nas imagens, ritmo sincopado, síntcse formal, síntese de expres sáo, abolicáo funcional de nexos narrativos de ligacáo, livre associacáo de cenas e signos, forma fragmentária, abertura de signiílcados. Exatamcníc a mesma estrutura do Boi Ting i e de sua relacao com o publico. A música caractcrística e apropriada, com čerta duracao, serve de base ao movimento constitutivo e sucessivo das cenas. A primeira vista, os movimcntos coreográilcos dos personagens dessa fantasia objetivada parecem ser uma ilus tracao visual da música, dada a estreita relacao que ha entre cla e a eoreografia. A música determina o comeco e o lim da sucessao de cenas, livremente criadas, superpondo-se inces santemente sem logica aparcnte, semelhando a řlguracáo de um prodígio sem distin^áo do real. Violando as normas do auto do Bumba-meu-boi, o Boi Tinga atrai independente de enredo motivador a atencao dos 3H espectadores. Sem se fundamentar propriamente em arqueti pos do gosto (pit' respondent a expectativas, o publico se sur-preende a cada nova mudanca de eena resultante do acaso, no ritmo de alguma das musicas que constituem o repertdrio do auto. Hssa violacao do sistema resulta cm aumcnfo de informacao e potencializacao da esteticidade. Uma retdrica de imagens visuais marcada pela imprevisibilidade, que man tem os espectadores presos em sua forma aberta e significan-(e. E embora no Boi Tinga estejam imbricadas quase todas as funcoes do discurso relacionadas pur Mukarowsky (pratica, teorica, esfetica e magiea), a funcao dominanle e a estetica, com lodo sen componenle de emotividade. Sendo uma ativi-dade de cunho artistico, mesmo sob o signo do folguedo, e um lugar da esteticidade. Sen regime de I'image, para lem-brar uma expressan precisa de Gilbert Durand, vem assimila-do por motivos simbdlicos epic brotam da consciencia coleti-va, ilustrando plasticamente, cenicamente, o carater imagina dessa coletividade. Sem ter propriamente uma tematica, o Hoi Tinga e, acima de tudo, uma incessante f'onte de simbolos. Uma simbdlica <|ue revela um modo coletivo de sentir-juntos e que passa a ter um significado sociocultural. I'roduzindo uma sedu9ao otica, ele revela obsessiva valoriza^ao do signo do olltar. Uma seducao otica (pie vem do briJho dos panos, do colorido da vestimen (as, da expressividade das mascaras, das surpresas coreogra fleas dos movimentos. Pierrots que lembram o carnaval e a comoediu del arte; figuras imaginarias on de animais; peque-nas eenas de grupos (pie se deslocam no con-junto dos perso-nagens isolados; bandeiras eoloridas sendo agitadas no ar; um boi negro, de tamanho natural, levado por duas pessoas sob a estrutura do animal, que eniretem cum os participantes e com o publico umjogo de inten96es, de atitudes, de rea^oes, como se ele fosse um personagem vivo e inteligente. A evo lucao cenica de rapidos quadros coneomitantes on sueessivos, condicionados a uma determinada mt'isica a semelhanca do video-clip, exige que o olbar permaneca atento, absorvido na contemplacao, preso na fruicao contemplativa do momento, na sueessao de instantes cenicos de imagens lugidias. 3 V otÁy o (mtorj>roLbidů oiAy stmxjučs do meuy somujia^ a. Um ccnário histórico 0 teatro do Pará apareee com a presenca e instalacäo por-tuguesa no século XVII. Essa expressáo artística, como em outras regioes brasileiras, veio inicialmcnte agregada a uma funcáe) pedagógica rcligiosa. Os colégios jesuítas costuma-vam incluir o teatro em suas atividades. Foi um jesuita, pe. José de Anchieta, o iniciador do teatro no Brasil, que deter-minou a linha da dramaturgia alegórica para essa atividade. "Com o fim de converter o nativo, Anchieta engenhou uma poesia e um teatro cujo correlate) imaginário é um mundo maniqueísta cindido entre forcas em perpétua Iuta: Tupá-Deus, com sua constelacáo familiar de anjos e santos, e Anhanga-Demönio, com sua corte de espiritos malevolos que sc fazem presenles nas cerimönias tupis.'"" Na Amazonia, as tragédias, comédias, autos, diálogos comecaram sob essa caractcrizacáo, encaminhados pelos educadores e catequistas jesuítas desde o início da conquista. "Dos cantos, dancas e música passou-se aos espetáculos e, no Nořte, deu o primeiro impulso o pe. Euiz Eigueira, na inaugurate) da igreja de Nossa Senhora da Luz do Maranháe), pělo ano de 1626, com um Dialoge), cm epic ao lado de gentilismo, pobre c miserá-vel, se apresentava o Cristianismo, cheio ele esperan^as; e num tre)no ou carro alegórico, a Igreja Nova do Maranháe)."" Utilizavam-se freqüentemente ne) Norte, o que foi uma interessante peculiaridadc, as igrejas como espaco de representa-ce~)cs ele Mistérios e Autos Sacramentais, adequados á peda gogia jesuítica. Na propria portaria do Convento elas Mercěs, em Belem do Pará, cram comuns as encenace)cs a partir ele 1677. Ate ejue, com as encena^es da pec,a Concordia, consi-derada inadequada aos locais existentes, houve pressáo para y6 que essas encenacoes propriamente teatrais se transferissem para outros mais adequados. Foi construida, cm 1775, cm Bělém, a Casa da Opera, proje-tada pclo arquiteto Antonio Jose Landi. Foi uni dos raros tea-tros construidos com essa flnalidade no periodo colonial bra-sileiro, tendo funcionado regularmente até por volta de 1812. O repertório de pecas nele encenadas era constituido de árias, tragédias, comédias, dramas e operas propriamente ditas, de acordo com a denominacím e destinacím da casa. Vicente Sal les, que estuda com propriedade essas questóes em sua excelente obra A Música c o Tempo no Grao-Pará, conside-ra que: "Essa realidade estimulará a eriatividade local"". Desdc o comeco, entre operas, autos pastoris e dramas musi-cados, aparecem coros de índios. Salles destaca corretamen-te aquele que considera o primem dramaturgo desvinculado do teatro missionário jesuítico, .lose Eugénio de Aragáo e Lima, portugues de Tavira e diplomado na Universidade de Coimbra. Sua obra principal c o "Drama recitado no Teatro do Para a princípio das operas c comédias nele postas pelo doutor juiz presidente da Cámara, c vereadores, do atio de 1793, em aplausu do íausto nascimento de Sua Alteza Real e Sereníssima Scnhora D. Maria Tereza, Princesa da Beira, e presuntiva herdeira da Coroa de Portugal". No conjunlo dos personagens já se encontram, de čerta maneira, a mistura alegórico-cultural que marcará, anos depois, a estrutura do Pássaro Junino: A Ninta Pará (tutelar da cidade), o Génio (tutelar do Fstado), Guajará (o rio que banha a cidade), Séquito de Ninfas, Séquito de índios. Em 15 de fevereiro de 1878, foi inaugurado um novo e grande teatro, tamhém em Bělém do Pará: o Teatro de Nossa Scnhora da Paz, mais tarde simplificado para Teatro da Paz, denominacím que é mantida até hoje. Entretanto, a construcáo desse teatro teve suas obras interrompidas e arruinadas inúmeras vezeš, o que "aca-bou diílcultando, ou retardando, o aprimoramento artístico de Bělém"*'. Nos dez anos que duraram nessa demorada construcáo, um teatro sem grandes recursos prcencheu essa lacuna de espacos cénicos, o Teatro Providéncia. "É quando a Amazonia comeca a se capitalizar com os recursos prove-nientes da exportacím da borracha e a efervescéncia cultural 317 nas duas principals cidad.es do vale, Belem e Manaus, torna-se quase legendária. o Teatro da Paz, eomo a remodelacjao de Belem, é produto dessa capilalizacäo." (...) "Näo é possível avaliar coneretamente o que ocorreu no extremo Nortc, cm materia de expansím artístico-cuUural, sem uma análise do conjunto que envolve simultaneamente as trés capitais: Säo Luis, Belem e Manaus."3A Verdadeirámente, há uma espécie de globalidade cultural da regiäo, que se aprescnta também como uma forma de unidade. Na solenidade de inauguraejio do Teatro da Paz Toi apresenta-do o original Trances de A. D. Ennery, "As Duas ürTas". "Dessa epoca cm diante, o Teatro da Paz seria um dos mais Tabulosos centros artisticos do Norte do Pais, um dos mais movimenta-dos do continente. Dizia-se que rivalizava com os melhores teatros europeus. Pelo menos quanto ä arquitetura, localizacäo e cxcelencia artistica, isto era verdade. Sousa Bastos conside-rou-o, alias, em sua época, o primeiro teatro do pais.""' Na relacím dos espetáculos exibidos no Teatro da Paz, podem-se extrair alguns exemplos de modalidades do estilo trágico-operístico que continuou exercendo uma espécie de pedagogia do gosto que influiu no estilo do Pássaro Junino - género de teatro musicado, espécie de opera popular ori-ginário da Amazönia: "A Dama das Camélias", "As Duas Órfas", "Rigoletto", "Um bade de Mascaras", "Trovador", "O Guarani", "Eucrécia Bórgia", "Eorca do Destino", "Traviat-ta", "Lucia de Lammermoor", etc., no campo do repertório clássico de operas. "Os Pobres de Paris", "Os Miseráveis", "Abel e Cairn", "A Cabana do Pai Tomaz", "A Estátua de Came", "Recrutamento na Aldeia", etc., no campo dos dramas ou melodramas. 0 largo da Pólvora (hoje praca da República), pra^a-parque no centra da qual o teatro Toi construído, era tida como uma bela miniatura de Montmartre. No centro havia o pavilhao de reercios onde canconetistas c dancarinos de origem trances.i. por exemplo, Taziam suas apresentac/)es. Ao lado do largo da Pólvora situava-se o Teatro-Circo Cosmopolita, onde eram encenados Vaudevilles e Zar/.uelas. $18 Em 1873 Foi inaugurado o Teatro Chalet pelo ator Lourenco Antonio Dias, no largo cle Nazaré, onde também está eons-truída a Basíliea de Nazaré, dedieada ä padroeira dos pa-raen-ses. Era um teatro de variedades. "0 chalet den início ao teatro estável de Nazaré. Ali se representavam haixas co-médias ou ehanehadas, em espetáeulos que näo exeediam de urna hora.""' Marcou as origens de um tipo de teatro loeal conhe-cido generieamente como teatro nazareno. 0 teatro nazareno apresentava uma estutura de teatro de vaudeville ou teatro revista, alem de abrigar apresentacóes cénicas de origem fol clórica. Estruturava-se em cenas rápidas, muitas músicas e quadros humorísticos. De čerta maneira, a mesticagem cénica que constitui hoje o Pássaro Junino, se incluirmos, nessa sín-tese de culturas, a iníluéncia das óperas e dos aulos jesuiticos. b. 0 maravilhoso realista O Pássaro Junino é um exemplo do maravilhoso objetivado que constitui uma das marcas distintivas da arte produzida na Amazonia. Alegória de mesticagem ou SÍntese cultural, essa espécic de opera cahocla se estrutura com elementos da cultura indígena e da cultura européia, revelando, vez por outra, tracos da cultura negra. Nele se percebe a presenca essencial da contribuicáo indígena, um dos tracos dislintivos da cultura amazôniea no amplo contexto da cultura brasileira. O Pássaro Junino é uma forma de teatro popular, um teatro sni generis, com aparéncia de opereta, organizado em pequenos quadros e contendo uma estrutura de base musical. A linha dramática condutora é constituída pela perseguicáo de um pássaro pelo cacador, sendo que, após abatido, o pássaro é ressus-citado, em geral, por algum personagem coin podereš mágicos. O pesquisador Edson Carneiro considera que o Pássaro Junino contém "uma estranha mistura de novela de rádio, burleta e teatro de revista, ä cjual näo lalta čerta cor local"". Essa espécic de teatro de cenas breves como as burletas, na verdade, aproxima-se bastante da estrutura cénica propria 3*f das operetas. Sua atmosféra de relacäo com o publico asse-melha-se ä atmosféra dos teat ros de origcns, sej a o teatro mímico dos gregos na Grécia antiga, sej a o teatro de rua (teatro callejero) da cultura andina, onde prcdominam processos cénicos de sentido trágico ou burlesco. Jorge Hurley, descrevendo um Pássaro Junino do munieipio de Curucá, no Para, apresenta um enredo bastante tipificador do género: "0 enredo gira em torno de um bicho de estima-cäo, que é cncontrado na selva por um cacador que, supon-do -o sem dono, o abate com um tiro de espoleta, surgindo nest a ocasiäo o criado do proprieta rio que o ccnsura aspera-mcnte. 0 cacador humilhado, em väo se desculpa, sendo em seguida preso por selvagens ou por soldados, que o levam ao senhor seu amo. Dadas as cxplicacôes, o dono do bicho diz que so o perdoará se ele conseguir restituir-lhe o bicho vivo. Sai entäo o cacador escoltado ä procura de um doutor. 0 dou-tor se faz acompanhar de um ajudantc. Ao examinar o animal, constata que o mesmo cstá completamente morto. Com isto, aconselha o cacador a procurar o pajé, que trabalha com almas e poderá encontrar o rcmédio. 0 pajé quando chega diz que o animal est á semimorto, dorme apenas, tem papo 1 u rado, que deverá ser substituído o coracao por um de borracha. Com uma defumacäo o bicho se levanta. De súbito, ergue-se 0 pajé triunfante a proclamar que o animal voltou ä vida". (...) "As orquestras quase sempře exccutam músicas de orelha e compôem-se de violôes, violas, cavaquinhos, clarinetes, ťlau-tas de embaúba, figurando em alguns também a 'onca', que no ronco se confunde com violonceIos.",H A onea de que Hurley fala é uma espécie de cuíca, isto é, um tambor compri-do que tem, na parte interna, um cilindro de madeira preso por uma das extremidades no couro do tambor. Tcndo na mäo um pedaco de pano úmido, o tocador vai esfregando ln memente esse pano no cilindro de madeira, cm movimentos rítmicos de vai e vcm, extraindo um som contínuo e grave como de um violončelo ou o ronco de uma 01191 na mata. Dando énfase ao drama de consciéncia, o Pássaro apresenta a tendencia psicológica de todo o teatro ocidental, segundo a conhecida distincäo feita por Antoniu Artaud: o teatro ocidcntal como tendo tendéncias psicológicas c o leatro oriental como de tendéncias metafísicas. O Pássaro Junino, ncssc tcatro, é lcvado por um menino ou menina com uma vestimenta que, dc čerta maneira, lembra uma ave e gesticula como se Fosse um pássaro voando. Preso cm uma gaiola ou pousado cm um pequeno galho ornamental, é exibido na cabe^a pelo Porta-pássaro. Esse per-sona-gem lembra a imagem mítica do homem-pássaro - o pássaro na cabeca do hörnern ou da mulher do Egito antigo, onde essa figura simbolizava a alma de um morto partindo, ou a visita de um deus ä terra. Estará, entäo, representada no Pássaro Junino, no seu Porta-pássaro que sempře renasce, a alma nativa que náo morre, que náo pode ser niortaľ Essa alma-pássaro séria a resisténcia mítica das origens pousada emblematicamente numa árvore do mundo amazônicoľ Uma espécie de Fénix tropical da alma de uma cultura? Um homem-pássaro nascido dessa hybris comum na mesticagem entre o real e imaginal? As simbologias cm torno de um pássaro säo ricas ein todas as culturas, talvez porque as aves pertencam a um campo intermediário entre o céu e a terra. Na etmologia grega, um dos signillcados da palavra é o de presságio, de mensagem Celeste. Platäo quando fala do percurso de retorno espiritual cm busca de reencontrar a primeira imagem cterna, o ocea-no da beleza universal, diz que a alma se "reimpluma", que signiilca dizer que cla é como um pássaro voando cm busca do reconhecimento dos mundos pretéritos já antes por cla visitados. Os bráhmanas qualificam os sacrificadores e os dancarinos como sendo pássaros que voam no céu. Nas culturas eristás, costuma-se opor o pássaro (mundo) á serpente (mundo terrestre). Alem disso, usa-se a aeäo do pássaro para os estudos espirituais da leveza dos anjos, das asas da ima-ginacáo. 0 pássaro é a leveza da cultura e da arte. "Os pássaros guardam entre nos, algumas coisas do canlo da eriacao."39 Instigador do imaginário como uma viva cháma de candeia, esse pássaro é um elo de conciliacáo entre o sobrenatural e o natural. 0 Pássaro Junino é um elemento simbolólico-dramá- 2'? 1 tico deflagrador de divergéncias e conciliates: em íuncáo dele ocorrem os conflitos que desarmonizam personagens do enredo e, ao mesmo tempo, é por eles que essas forcas se rea-grupam. E um mensageiro da hybris posto que é mortal e divino. Sendo mortal morre para renascer mais tarde devido a sua condicao sobrenatural propria dos imortais. É urn intermedia rio etitre o eéu e a terra. Ja foi sobejamente estudado o sentido do pássaro eomo ins-trumento de revelacäo, seja nos sinais no tracado solené de seus vóos no ar, seja por via de sens cantos anunciadores de Pressagios. Mesmo o sonho e o devaneio sáo imagens asso-ciadas aos pássaros, äs asas e aos vóos. É compreensível que, numa realidade cultural eomo a da Amazonia, de riquíssima variedade de pássaros indissociáveis cle sua paisagem, mar-^ontemplatividade e o devaneio, o pássaro entras-se de forma preeminente nas simbologias da arte. É regiáo Pela qual revoam pássaros aos milhares e teriam que pousar eomo signos na criacáo artística local. "Mais de seleeentos (nie disseram o numero) mais de duzentas gareas abrem o voo do capinzal verde-claro" (...) "Noite sublime de lua chcia. As' gaivotas que descem nos paus boiando, acordam com o arl:)r do vaticano c só vendo o barulho que fazcm" (...) "Um casal de araras atravessa o rio. Bando de borboletas amare-as na pele do rio. De repente uma azul, das grandes. 1 "Indulas cm quantidade. E os peixcs saltando no remanso."' Mmto alegre também é o canto do tango-do-pará que se ive sempře nessas paragens. É um coral menos variado que dos japiins, porém mais suave e melodioso. Ao mesmo mI»> cm que canta, o grupo dos cantores se pöe a dancar, llt:,,1(l» nos ramos". (...) "Distinguem-se estes canais encan-dores (do rio Tocantins), que tem nomes eomo as ruas da dade, pela proi'usäo das borboletas que constclam suas margens e pelas Viganas'. A cigana é uma ave simpática. A cor dominante de suas penas é a do rape; salpicam-na, porém, tintas variadas, de modo que me lembra, com afei-to, uma cigana toda ataviada" (...) "A garea real [pilerhodus pileatus), sobre o verde-escuro da vegeta^ao ribeirinha, em linha de apurada elegáncia, alveja poeticamente ao longo dos igarapés" (...) Há também o guará. "Sua rica plumagem ßzz flamejante faz dele um magnifico ornato dessas praias. Quando novo cle é negro, mas eorrem os anos e o carvao se faz brasa viva. Quando a aurora rubra sueede as trevas da noite, recorda a transieao das cores do guará."" E comprcen-sivel, portanto, que os pássaros entrassem de uma forma pn-vilegiada, tanto no imaginário, como na criacjio artistica de origem popular, seja de uma forma referenda!, seja numa forma simbólica. Vicente Salles atribui ao Pássaro Junino a qualidade de sci uma espéeie de resisténcia do caboclo. Segundo essa con-cepgáo, o Pássaro c uma demonstracím de reacao da resti -téncia da cultura indígena e negra ante a imposicao modelo europeu imposto á regiáo. De čerta face a imposiC. do modelo europeu imposta á regiáo. De čerta maněna, fenňmeno equivalente, embora de outra natureza, «»o q^a ocorreu na constituicao do mito da yara, onde tambem st verifica um fenómeno de mesti^agem cultural. O 1 assal Junino, mantendo como estrutura de conteúdo dramatic surrealidade propria do maravilhoso realista amazonic. adotou aspectos formais do teatro convencional: o p como espaco cénico definido: o cenário como contigu'« i nieao coiuo de um mundo dentro do mundo; a uummay estabelecimento de uma realidade onirica e diegetica^ fina, embora sem o sentido de quarta parede, un!a 0 há um diálogo de ilusória continuidade espacia _q publico; a orquestra, o pouto, as conveneocs de nia de cena, etc. ■ i ,., de Pássaros lracema Oliveira, uma interprete e cuauoi. ^ ^ Juninos, em Bělém do Pará, sugere uma classitica? género, com base em sua rica observacím participan t teatro regional: "Na minha experiéncia, observo qut tem dois tipos de pássaros: o 'cordáo" ou cordáo de meia- ^ e o 'melodrama fantasia'. 0 cordáo se passa em roda, co do Albertinbo e o Arara da D. Joana. (Também e o caso < estilo de encenacáo de D. Noémia, na Líha do Mosqueiro, tti -trito do município da capital.) Náo sai de cena. Ate o enre é mais simples. Já o meu é o melodrama fantasia: a g* n lála dus reinados, das riquezas..."' 3Z3 Há um texto de autoria do teatrólogo e músico Lourival Pontes e Sousa, "0 amor proibido on sangue do meu sangue", que pode ser enquadrado nessa tipologia ensaiada por Iracema Oliveira e que será estudado a seguir, eomo breve ilustracäo de cunho analítico problematizante, de aspectos eonstitutivos do Pássaro Junino. c. Amor Proibido ou Sangue do meu Sangue Como, em geral, todo Pássaro Junino, a peca de Lourival Pontes e Sousa é um teatro popular, uma opera caboela pon-tuada de cancoes — seja na forma de coral, de árias isoladas ou de solos instrumentais. Tem libreto, marca^äo cénica e indumentárias vistosas de acordo com a posicäo social ou exotica dos personagens. 0 texto corresponde ä encenacäo ľeita em 1976 pelo grupo Rouxinol, organizado por Julieta Castro, grupo criado em 1912 por seu pai. Foi publicado em 1984, na série Cadernos de Cultura Teatro 2, pela Secreta-ria de Educacäo c Cultura - SEM PC, de Bělém, capital do Estado. Como de um modo geral acontece nos Pássaros Juninos, estäo envolvidos na história uma família real, gru-pos de índios e caboclos. 0 pássaro é ferido de morte. Envolvem-se na trama outros personagens extraídos da mi-tologia ou da reigäo, da cultura européia ou indígena. Numa acáo paralela, alternadamente apresentada cm quadros, ocor-retn eenas da vida caboela e da nobreza. As cenas da vida caboela geralmente säo engracadas e revelam o espírito galhofeiro do povo. Quando apresentadas nas cidades do interior, os espectadores adrniram-se da vida idealizada da nobreza ou das entidades mitológicas ou riem de si mesrnos, por suas vidas caricaturadas no palco. 0 autor de "Amor Proibido ou Sangue do meu Sangue", Lourival Pontes e Sousa (1914-ľ) foi aluno do professor e dramaturgo popular Cirylo Silva. Após concluir o curso j)rimário entrou para uma oflcina de marcenaria onde se tornou operário. Estudoti música com o tio, o renomado violo-nista Bern-Bcm, cm Bělém do Pará. Sua přiměna peca, eserita 3Z4. e encenada em 1928, intitulou-se "0 poder da Yarn". Dentre mais dc 50 pecas que eserevcu c para as quais compos todas as músicas, algumas Coram criadas para ser encenadas em Manaus, capital do Pstado do Amazonas, pelo grupo Papagaio, organizado por D. Joana Torres. Lourival Pontes e Sousa fbi um homem de teatro: autor, ator, músico, encenador, contra-regra, arranjador. Alem de pecas para a quadra junina, eserevcu autos natalinos e revistas musicais. Trabalhou nesses diferentes misteres no Teatro Moderno, Teatro Avenida, Teatro Popular e no Idea! Teatro. Homem do povo, operário pobre, näo teve oportunidade de organizar sistematieamente sua imensa obra (pie, como documcnto literário, (eve o mesmo destino das apresentacóes teatrais: foram momentos densos de criatividade e poesia durando o mesmo tempo das enccnacôcs. Foram poucos os que flcaram ineólumes ä pobreza, á umidade e äs Iracas. Sobre essas perdas, cle reflete: "Todos os meus borrôes foram destruídos pelas iracas e muitos eu mandei para o interior (...) Fiquci com esses cadernos para ter de lembranca um dia cm que eu näo ex isti r mais". "Amor Proibido ou Sangue do mcu Sangue" é uma peca tea tral da época junina, pertencente ä categoria do melodrama fantasia. Nela, o pássaro Rouxinol estabelece a articulacáo dramática da acáo, que se relaeiona com outros subtemas: o amor proibido, o filho perdido, o amor e a morte, a vida cabocla, a interferencia dos encantados. Há uma grande variedade de personagens: o Pássaro, a Imperatriz, o Impcrador, a Princesa, a India, o Marqués, o Caeador, a Pciticeira, a Pada, a Dama de Companhia da Princesa, o Ma-lulo Paracnse, B i 1 u - B i I u lllho do Matuto, a Severina -mulher do Matuto, o Soldado, o Tuxaua, o Grupo dos índios, a India Branca, o Marques Josimar e o Grupo de Matulos. 0 enredo tem uma čerta complexidade. Há 16 anos, Josimar, (lího da Imperatriz, perdera-se na řloresta. Sens pais nunca perderam a esperanca de cncontrá-Io. A India Miriam encon-tra, por acaso, o jovem Marqués e se conľessa apaixonada porele, sem que, no enlanto, fosse correspondida. lim seguida, 32-5 um angustiado Cacador tenta consolar-se da solidäo, cami-nhando pela mata, quando é surpreendido pcla feiticeira Maria Helena. Desse encontro nasec um pacto: o Cacador conseguirá, para cla, um helo Rouxinol que revoa sem dono naquele lugar; a Feiticeira compromete-se a livrá-lo de qual-(pier perigo que venha a ameacá-lo. Casualmente, a formosa lada do Bosque presenteia a Princesa com o belo Rouxinol cobicado pela Feiticeira. No momento em que a Princesa admira o pássaro, entra em cena o jovem Marques Josimar e, de um golpe, se coníessa perdidamentc apaixonado, manifes-tando ardente desejo de unir-se a cla pelo casamento. Embora pressentindo sofrimento futuro cm conseqiiéncia de sen gesto, ela cede äquele amor irresistível. Para o "espectador oniscien-te" é um momento de densidade dramática, pois fiea bem claro a entrada em curso o interdito do incesto. Nesse justo momento do enredo, numa correta arquitetura cénica, inter-vem os Matutos desenvolvendo cenas jocosas que Funcionam como esvaziamento de tensoes, mostrando o filho a instigar o pai a ter eiúmes da mulher que ľicara no interior. Dessas peni-pécias 1'az parte também o Matuto cearense, (pie é satirizado na sua lama de coragem e destemor de (pie se orgulham os cidadäos dessa regiao. Essas cenas da chamada matutagem propria de estrutura do Pássaro, por sua espontancidade, por sua calivante simplieidade, sáo como uma forma de '"explo-sao da sineeridade primitiva da hutnanidade"". Antes de retornar ä trama principal, há urna participacäo coreográfiea do grupo dos índios. Ľni seguida o Cacador reencontra a Feiticeira, trocam juras de amor enquanto entra o proeurado Rouxinol, cuja hada protetora impede de cair nas mäos dos que o perseguiam. Assustada com os riscos que sen indefeso pássaro passa a softer, a Princesa o entrega ä India Branca que se compromete em protege-lo, guardando-o em sua maloea. 0 Tuxaua concorda com isso e o Rouxinol é levado pelo grupo de índios (|ue cantam e dancam. Em seguida acontece novo encontro entre o Marqués Josimar e a índia Branca - que acahara, sem o saber, de proteger o Rouxinol de sua rival. Ao compreender (pie seu amor näo era correspondido, desfalece de dor. Enquanto isso, o Cacador encontra, na maloea, o Rouxinol, atira e o Cere gravemente 52^ numa asa, captura o pássaro, entrega-o ä Feiticeira, tenia fugir, mas é presu pclos índios. Paralelamentc, a Feiticeira consegue sair de cena levando o pássaro. A revolta torna conta da Princesa. Em seguida vein o desespero. Arrependida do que provocou, a Feiticeira entra cm cena e devolve o Rouxinol á Princesa, que se apressa em levá-lo para o palá-cio. Rcapareeem os índios dancando e gritando, acentuando o clima tenso. Novamente, para atenuar a dramaticidade acentuada, relornam os Matutos, que deseontraem a cena com muilo humor e brincadeiras. Após o alívio (las tensôes, retornam ä cena os dois nobres apaixonados e revelam a intensäo de comunicar aos j)ais da Princesa que estäo apaixonados e desejam casar. lista circunstaticia provocará a trá-gica rcvelacäo: o Marques Josimar, perdido ainda erianca no bosque e eriado por uma outra família nobre, é irmäo de sua amada. 0 sinal idenlillcador loi a medalha que, desde antes dc se perder, o Marques usava no pescoco. A Imperatriz deli-ra de incontrolavel felicidade por ver a família enflm reuni-da. A princesa chorá convulsivamente. O ultimo quadro mostra a Princesa dominada pelo desespero e pela bebida. A piedosa Fada tenta ajudá-la, sem conseguir esse intenso. lan seguida a boa Dama de Companhia procura livrá-la, sem o conseguir, daquelc estado de desespero e liumilhacáo. Chega o momenta em que a Princesa retira da blusa um vidro de veneno, sorvendo-o de um gole, pondo íim ä vida e ao sofrimento. A Imperatriz, que acabara de chegar, loniha desfa lecida e morre também. Entrando cm cena, Josimar, ojovem Marques, desespera-se de ver sua amada irtná morta, dispara uma arma no ouvido e também morre. Ouvindo o disparo, o Imperador entra apressado e vendo a cena terrível, gesticula e fala eomo um louco até cair morto por fim. O epílogo pertence á lada, isto é, ao destino, para dizer que tudo t in ha de ser assim, pois estava tracado para assim ser. Como é possível perceber, a tessitura céniea do Pássaro Junino, tal como aparece excmplarmente em 'Amor Proi-bido on Sangue do men Sangue", é complexa, mas facilmen-te comprcensível e desenvolvida leenieamente de forma competente. Ilá eorreta utili/aeáo da logica diegética e da 327 arquitetura das cenas. Observa-se uma espécie de logica oní-rica condutora dos encadeamentos e significances, de sortě que, ao Hnal, a mensagem passa por meio dos personagens. Seu enredo vai criando sucessivas surpresas aos espectado-res, opondo-se a opiniäo comum, evoluindo por meio de eventos incomuns. Suas condicöes de credibilidade advém de uma verossimilhanca cultural. Quer dizer, está de acordo com a ambiéncia do maravilhoso real ou objetivado da cultura amazdnica. rudo se passa mim ambiente de surrealidade cotidiana. É aparentemente incrível que tantos acasos, tantos personagens diferentes, tantas rcalidades (äo diversas, de repente fiquem reunidas no mesmo espaco, atravessados pe-los acontecimcntos de um mesmo drama. No entanto, cín decorréncia dessa ambicntacäo do maravilhoso objetivado, de onde se originou a forma amazdnica do realismo mágico, tudo isso se torna verossímil. li crível que nobres, indígenas, encanlados se cruzem e que os tabus e os interditos se torném instrumentos do destino, num ambiente onde o boto vira rapaz e engravida mulheres, a Yara atrai os rapazes para seu palácio na encantaria do fundo das águas, a boiúna (cobra-grande mítica) vira navio iluminado pcrconendo os rios noturnos, o latim e o portugués fazem mesticagem corn a lingua geral, a natureza parece um mundo dentro do mundo, os colonizadores nobres ou näo procriam com as natívas. As improbabilidades estäo permeadas de pequenas verossimi lhancas prováveis ou de cfcitos do real - segundo nomenclature de Roland Barthes - o que garante condicöes de credibilidade requeridas ä ficcäo desde Aristoteles. Eis alguns exem plos de efeitos do real que vao tornando verossímil o impro-vável, na peca de Lourival Pontes e Sousa: Maniuěs - "... I li i perdido nas matas, näo aceitei voltar para o lar..."" Cacador - "... embrenhar-se nas matas, á procura de uma caca para distrair algumas mágoas..." Matuto Paraense - "... desde o dia em que cheguei acpii, que cu näo 'cumo' dos pratos de 'bóia' daquela bem 'gustosa'." Matuto Paraense - "Pode 'está', o que o 'sinhu' trouxe de 'bum' pra gente? Trouxe muita rapadura?" fciliceira "Os índios, ouvindo o rufar dos tambores, apro ximam-se com o Rouxinol, quando eles deparam conosco ficarn amedrontadös, fogem..." Princesa - "... tenho vontade de pisar-le com os mens sapatos sujos." Outras referencias verossimilhantes que Iegitimam o con-texto imaginärio, säo relacionadas ä natureza, a coneeitos e proverbios de uso corrente, alusöes a interditos circulando na mentalidadc coleliva, rcalismo satirico da vida populär. Quer dizer que hä uma trama de linhas temäticas que se intercru-zam e permeiam as situacöes, as falas, os proee-dimentos, sustenlando a credibilidade diegetica, a verossimilhanca de situacöes limites, provocadas pelo maravilhoso realista desse tipo de (ealro. A titulo de exemplillcacäo dessas linhas temäticas, poder-se-ä identilicar cm "Amor Proibido ou Sangue do meu Sangue", as seguintes: a A sina ou destino: "E muito triste a minha sina". "Sou como os lindos passarinhos/Que sofrem sem saber". "Como sofre um coraeäo de mäe". "Triste, bem triste ie minha sina/Sei que sou infeliz". "...tudo o que vom tracado a gente tem de passar..." "Tambem (e amo, embora saiba que mais tarde, eu vou softer". "E assim que nasee o amor/E desse encontro assim/Depois vem a dor..." "... vem matar esta pai-xäo, (jue nie maltrata o eoraeao". b — Natureza como locus amoenus: "Nesta maiiha radiosa/Nas laranjeiras ao raiar do so!" "... ouvindo o trinar dos passarinhos criados pela natureza". "Como e linda a natureza..." "Neste bosque sozinho/Consolo meu coracäo/Com o trinar dos passarinhos". "Nfio tenho casa, moro na rloresta juntamente com os passarinhos". "Sinto a alma eativa/Com o trinar dos passarinhos". "... deste maravilhoso bosque". "Como e tao lindo este pässaro". "Neste bosque täo suave e eneanta-dor". "...vivo constantemente pelas florestas me alimentando da obra da natureza e do eanto dos passarinhos". e - Proverbiais: "Como e triste amar sem ser amado". "... a solidäo e um bälsamo..." "Amar nao e pecado, mas e um amor proibido". "Näo vos allijais, nao podereis easar eomigo, mas poderä apareeer oiitro, que o amor näo seja proibido, e podereis easar". "... contra a forca näo h;i resisteiieia". "Quem lala de nos tem paixäo". 3Zß d - Fatalismo: "... se ele for vivo um d i u voltará". "Sei de tudo e deseubro tudo, brevemente irá reinar muita alegria neste palácio e, ao mesmo tempo, tristeza e muito desgosto. A prineesa vai amar um marqués, pensa cm casamento com ele, mas näo consegue, vai ter motivos que väo impedir, ele vem em caminho, permita Deus, que isto näo aconteca, mas é impossível, näo vos impressionem". "Ii crime amar em siléncio; é crime porque faz soľrer". "0 destino desnorteou os meus pianos, näo posso casar com quem tanto amava". "... näo |)osso easar-mc com o jovem que tanto amava..." "Vim no mundo para soťrer..." "Ficou concretizado o que antes falei, como é triste desaparccer urna família nobre, que Deus rogue por essas almas, que o destino liquidou para sempře". Essas linhas temáticas estruturam, no texto, idéias inerentes a conceitos populäres locais, legitimadas pelo grupo e usadas correntemente, o que confere ao texto uma logica intcgrada ä consciéncia do grupo. Tornám compreensível e aceitável, isto é, verossímil essa acäo dramática por mais surrealista ou absurda ou ilógiea ou inverossímil que possa ser. Duas earacterísticas de teorias estéticas do teatro, sob alguns aspeetos opostas, sáo perceptívcis na estrutura do Pássaro Junino: a estrutura da tragédia deľmida por Aristoteles na poética c o distanciamento brechtiano. Como na concepcäo aristotélica de tragédia, o Pássaro Junino "é a imitacäo de urna acäo importante e completa, de čerta extensäo; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada urna de suas formas, segundo as partes; acäo aprescntada näo com a ajuda de uma narrativa, mas por atores (...)''. Näo se trata de urna total aplicacáo do conceito aristotélico, mas de urna aproximacäo contigurante. Para Aristoteles, no ámhito da cultura grcga pagä e de predestina-cäo, além das qualidades propriamente formais, apresenta a condicäo de suscitar a compaixäo e o terror, com a producäo final de um efeito capaz de provocar a purgacTio das emo-coes. Se bem que a obtencäo da compaixäo seja um dos resultados da encenacäo do Pássaro Junino, a provocacäo do terror näo acontece, até porque o efeito do terror trágico está 330 inlirnamente ligado ao sentido irremediável da predcstina-eao, próprio da cultura grcga. Também, no mesmo sentido, a purgacáo das emocôes näo acontece com as características vislumbradas pot" Aristoteles na encenacäo dos trágicos da antiga hélade, uma vez que é uma reacäo psicológica de alí vio, profundamente ligada ás peculiaridades mítico-religio-sas daquela cultura. Na cultura grcga o alivio advinha do fato de que aquele destino terrível contemplado no palco podia ser o de cada um dos espectadores, mas, felizmente, no línal, ve-se que nao é. Embora no Pássaro Junino transpare-ca a idéia do destino, já é o destino sob uma atmosféra ema-nada do eristianismo, isto é, algo que pode ser mudado, anie-nizado, reorientado pela piedade crista on pelo arrependi-mento. E uma tragédia sem o trágico, o melodrama. As aproximacôes entre o Pássaro Junino e a poética de Aristoteles decorrem de sua estrutura propriamente formal. Nela estáo presentes a fábula, os caracteres, a elocucáo, o pensamento, o espetáculo apresentado, o canto (melopéia)46. Também no Pássaro Junino - "A parte mais importante é a da organizacäo dos fatos, pois a tragédia é a imitaoäo, näo de homens, mas de aeóes, da vida, da Iclicidade e da infe-licidade (pois a infelicidade result a também da atividade, sendo o lim que se pretende a lea near, o resultado de uma čerta mancira de agir e näo uma maneira de ser)."" A fabu-lacáo encenada é seguramente um dos pontos altos do Pássaro, onde o autor sempře demonstra cotdiecimento da importáncia náo só das perípécias como do reconheeimento. A labulacáo concent ra a preocupacáo eriadora dos poet as trágicos do Pássaro Junino. Mesmo que para esiruturá-la cle laňce máo de recursos inverossímeis na escolha dos persona-gens, na relacáo entre eles e a linguagem tpie usam, no con-Ironto entre ligu ras táo díspares nos mesmos espacos. 0 espaco dramático, na verdade, näo é um determinado csjjaco material, mas o espaco do imaginário. Como tal, o discurso dramático é semelbantc na linguagem de todos os persona gens, mesmo na carieatura lingiiística da língua-geral indí-gena, ou do linguajar caboclo. li o lluxo da imaginacáo do autor que se transforma cm discurso dramático sem nuances nos personagens, apenas separado cm diálogos, (hjocju^ira; do uma^lhJj'Lo a. A testa das fogueiras e o eiclo junino 0 espetäculo do bumba-meu-boi na cidade de Parintins, Estado do Amazonas, e uma realizacäo fisica e social da arte criadora de uma convivialidade na qua! 0 estetico e vetor de soeiabilidade, reveladora de uma real emoeäö este-tica e afetiva da coletividadc. E uma forma de ficcäo dian-te da qual as pessoas reagem como sc fosse equivalente a realidade. No paradoxo de um quiasmo, a intersecyäo entre ilusao e realidade torna-sc deflagradora dc prazer colctivo por via de uma cadeia de rcacöcs individuals. Como espetäculo e algo que e mostrado para ser vislo. Motiva, portan-to, urn olhar participante. Urn olhar cativado por aquilo que sc mostra cativante. Produzido para se dar ä contemplacäo, 0 Boi de Parintins (que e como esse auto popular passou a ser denominado) permite que essa atitude atenta e estetica do olhar faca 0 espetäculo. 0 antropölogo Charles Wagley, cm scu classico estudo sobre uma comunidade amazönica que de denomina de Itä, des-crevendo as festas de tradicäo popular do ciclo de junho, reconhece que säo "das mais caracteristicas e populäres do Brasil"59. Considera que cssas festividades resultam de adaptations de costumes herdados de Portugal äs novas condicöes, as quais tiveram de se adaptar: As festas juninas, como tambem säo denominadas, represen-tam o mais importantc ciclo artistico/cultural da Amazonia, seja por sc estenderem por toda a rcgiäo, seja pcla pluralida-de das manifestacöcs, seja pela grande vibraeäo comunitaria das atividades e celebraeöes. E uma festividade que se orga-niza a partir do simbolo de uma fogueira, cm torno da qual se 34-0 reunem as familias, os amigos, os parentes, para entoarem cantigas, organizarem brincadeiras, comerem as comidas tipi-cas da epoca, soltar baloes de papel, foguetes, bombas e logos de artificio. Mem disso, inumeras atividades de cunho ludieo e artistico sao organizadas, como as dancas, as quadrilhas, os cordoes de bieho, os passaros junino os Bumba-meu-boi, etc. A iogueira acesa constitui o signo que nucleiza e ilumina a cultura junina. Isso faz do logo o elemento detlagrador de seu devaneio e de sua esteticidade - o lugar do imaginario ardente. Nas diferentes culturas, o logo sempre exereeu urn especial e multiplo fascinio. H siguo intermediário entre o céu e a terra. É criacao e destruicáo. Li o rubro, o verao, o coraeáo. É a chama ardente do amor. 0 logo simboliza as paixoes. Simboliza a sabedoria humana c divina, a purificacáo e o demoniaco. lima lingua de logo trouxe a cieneia no Pentccostes. Instrumento de Deus e do demonio. Gilbert Du-rand diz que: "A palavra 'puro', raiz de todas as purifica-cocs, significa ela propria logo em sanserito. No entanto, deve-mos náo nos esquecer de reťerir quanto o simbolo do logo é polivalente, como o mostra, talvez, a tecnologia: a produgao do logo está ligada aos gestos humanos e a utensil ios muito diferentes"*". O logo da Iogueira junina é um fogo convivial na Ama-zonia. provocando o fortalecimento dos la^'os comunitários. Ian torno dele os grupos se reúnem, sob o poder hipnótieo de suas cha mas erepitantes, eriando-se lacos de parenteseo cultural muitas vezeš mais fortes do que os naturais. í;. um logo que representa unidade no grupo. Aeeso ao mesmo tempo nos mais distantes lugares da regiáo, é como uma constelacáo que religa o todo fragmentado em milhaies de agrupamen-tos humanos, desde as cidades de médio porte como Manaus e Bělém, até as mais diminutas vilas. I- a alma visivel da cultura junina. Contcmplar uma Iogueira é lanear um olhar ineessanle-mente renovado sobre o mundo. Impelido por uma 34-1 imaginacäo ardente, o hörnern amazônico, o caboclo, mul-tiplicou a sua criatividade cm torno desse signo, apreen-dendo a realidade numa dimensäo profunda e sensivel-mente estétizada. Ľle se liberta da história, da memoria, para viver o momento de urna surrealidade que lhe permi-te mergulhar na profundidade das eoisas, nas quais essa propria realidade é apreendida em sua mais rica signifiea-cäo. 0 hörnern joga com o fogo da ľogueira. É como sc com esse jogo cle íbsse iluminando os caminhos noturnos do devaneio poético. Várias sao as significances do fogo na história das culturas: paixäo, espírito, alma errante, purifica^äo, regeneracäo, sabedoria, inferno, ato sexual, iluminacäo, pássaro. Na cul-tura amazônica que se expressa na época junina, o fogo na ľogueira representa a religacäo: cle ctia, fortalece, regenera os lacos afetivos e a unidade do grupo. Passar ä fogueira, por exemplo, que é o ato de ir e vir cm torno do fogo, cria rela-cöes equivalcntes ou até mais fortes que o parentesco. As atividades artísticas da cultura junina tia Amazônia säo diversas, destacando-se, entre eles, as quadrilhas, os cordöes de bicho, os pássaros juninos e os bumbas-meu-boi ou boi-bumbá. De um modo geral, o boi-bumbá é simples, apresentando, no entanto, variantes, de acordo com a regiäo, embora a forma circular como teatro de arena seja seguida em quase sua tota-lidade. Pclo registro feito por Charles Wagley, pode-se ter urna idéia do en redo tipifieador na Amazônia: "0 cnredo da peca é conhccido de todos. É a história de um simples lavra-dor que atira no boi favorito de um vaquciro. 0 Velho Francisco, como se chama o lavrador, é o personageni central do drama que, gcralmente, se apresenta vestido com os trajes de um sertanejo do Nordeste. Em Itá, Francisco, que tern um papel cômico, usa urna mascara com um enorme nariz. 0 chefe dos vaqueiros e sens companheiros choram a morte do boi e procuram em väo capturar o Velho Francisco. Finalmente, o vaqueiro convoca os indios, que cm Itá säo caracterizados pelos rapazes mais jovens, enfeitados com $4.2. tintas e penas vermelhas de arara e munidos com arco c riečna. Depois de batizados, säo os caboclos (o termo aqui é empregado para designar os indios) despachados para captu-rar Francisco. Sao guerreiros famosos, certamente o conse-guiräo. 0 vaqueiro exige que Francisco cure seu hoi; entao ele convoca os medicos — Dr. Aguardente, Dr. Carruncho e Dr. Remédio. liste ultimo dá ao boi (pelo menos na versäo representada em ltá) um purgativo de pimentas, carrunchos, folhas de rosas e diversas ervas medicinais. Depois manda que o Velho olhe debaixo da cauda do boi para vr se o purgativo cstá surtindo el'eito. No instante em que Francisco olha, o purgativo atua. O boi lcvanta-se cheio de vida e energia e termina a peca"11. Originalmente o boi-bumbá ľoi tido como um ľolguedo de sentido profano, cujas apresentacôes muitas vezes resul-tavam em brigas que reciueriam a intervcncäo da polícia. Em conseqúcneia disso, o código de posturas municipals estabelecia urna regulamentacäo rígida proibindo mani-festacôes como cssas que motivavam a reuniäo de esera-vos e näo tinbam ľins religiosos. "Em meados do século passado, certos tracos característicos do ľolguedo, na Amazônia, já se achavam cstabilizados, ou quic,á cristali-zados, tais como: ser um ľolguedo de eseravos, reali/ar-se na quadra junina, apoiar-se numa vanguarda agucrrida, a malta de capoeiras."'"' Há inúmeros grupos de bois-bumbás que entraram para a história cultural da regiäo, como, por exemplo, o Tira-Fama, que tern como organizador o Seu Setenta. Como amo cle é o principal tirador de toadas, que impressionam pela beleza poética e musical. Pode-se dizer, em geral, epic o estilo do amo é o estilo do boi-bumbá. 0 estilo que o Seu Setenta imprirne ao ľira-Fama é coreográtlco-musical, no (pial |)re-dominam as daneas e os cánticos sobre a dramalizacäo dia logal do enredo. Um estilo cujo brilho laz do lira F'atna e seu amo, urna referencia consagrada de qualidadc e bom gosto. Seu Setenta revela urna personalidade marcante como ence nádor, impondo sna energia criadora na expressividade do grupo e no lirismo das toadas, além de ser figúra dominante 3H cm cena, como sc fosse um coreógrafo que dancasse e diri-gisse a cena diante do publico, como o maestro diante da orquestra e do corpo de baile. Ele dirigc minuciosamente os movimentos cénicos, lidera as toadas c se movimenta no palco como se incorporasse toda a emocäo e expressivida-dc do grupo. Os espectadores tem a imprcssáo de que a encenac,äo está brotando de seus gestos c que de cada músi-ca no improviso das toadas vai brotando a alma do espetá-culo. Scndo de estatura física pequena, Seu Sctenta sc agi-ganta cm cena por sua estatura dramática. Embora todo grupo de teatro popular seja sempře a expressäo da personalidade de seu organizador, mais do que qualquer um outro, podc-sc dizer - ä semelhanca de Flaubert falando de Bovary - que o Tira-Fama é o Seu Sctenta. Ele é um homem de teatro na acepcäo brechtiana quanto ao metier clu theatre, na especificacäo das atividades do autor e do ator: "Uma čerta aptidäo e um certo prazer de imitar pro-cessos reais ou a sc travestir para imitar o outro levando as pessoas a sc apresentar no texto diante do publico"' '63 Um processo diferente é o estilo de dona Noémia, que esere-ve, compöe e encena o Boi Canarinho, na ilha do Mosqueiro, Estado do Pará. Ela nao participa em cena das acöes drama-ticas. E uma encenadora por excclcncia, desenvolvendo uma obra completa de autoria, uma vez que esereve o texto dra-mático, compöe as músicas, dirige o espetáculo e acompa-nha o grupo durante as apresentacöes do ciclo junino. Embora aqui se esteja cvidenciando sua relacäo com o boi-bumbá, deve-se registrar que suas encenacöes de cordäo de pássaros, no estilo cordäo de meia-lua, säo brilhantes, mar-cadas pela beleza musical, riqueza poético-musical das composicöes e lirismo cénico. Incansável produtora cultural, dona Noémia também apresenta, durante o ciclo natalino, sua tradicional pastorinha (auto pastoril introduzido no Brasil pela cultura portuguesa). Alem do delicado e original lirismo cénico que caracteriza o estilo de dona Noémia, há a utilizacäo, cm suas cancöcs, de diferentes ritmos populäres. Nisso cla difere do rigor concei-tual do Seu Sctenta, cjue mantém a estrutura rígida de toadas em sua encenaeäo do Boi Tira-Fama, sua única c obstinada forma de criacäo. Dona Noemia privilégia niais a melódia e a dramaturgia elássica, no sentido de urna história transfigu-rada em aeäo por meio de personagens. Seu Setenta imprime a forea rítmica das toadas no movimento cénico. Dona Noémia emprega as músieas eomo eomplemento on intensi-fieaeäo do drama cenarizado. Säo, portanto, dois estilos que cristalizam urna tradieäo e que mantem, renovam e atuali-zam os tracos esseneiais da dramaturgia do boi-bumbá. De urna dramaturgia da qual difere em pontos fundamcntais, o atual Boi de Parintins, que representa urna variante dentro do género, torna-sc um aconteeimento cultural complexo nas convencôes semióticas, expressäo de urna modalidade de tra-jeto antropológico individualizador realizado pelo género, no municipio de Parintins, Estado do Amazonas. b. "E cxtraordinário como ttulo se enche de entes, de deuses, de seres indescritíveis por detrás, sobretudo se tenho no longe em frente urna volta de rio A eidade de Parintins Ilea ä margem direita do rio Amazonas, na área perteneente ao Estado do Amazonas. Essa regiäo, que se eompleta com urna parte do Pará ineluindo Santarém, eonstituindo o Médio Amazonas, é considerada o coracäo geografico da Amazônia, loealizando-se entre as duas capitals mais importantes da regiäo: Belém e Manaus. Foi funda-da no século XVI, na i Íha Tupinambarana. É um topônimo que homenageia os índios Parintins, antigos habitantes do lugar. Tem aproximadamente 100.000 habitantes e 7.069 knv* de superfície. A tradieäo diz que a pessoa que beber das águas do lago Matacurani voltará scmpre. Nela estäo locali-zados os maiores rebanhos de bois e búľalos do Estado do Amazonas, o que lhe dá a condicäo de principal centro pecuário cstadual. "Ilha tropical entrecortada de rios e igara-pés, Parintins tem clima ameno, vegetac,äo exuberante, e urna grande abundáncia de alimentos naturais, principalmente frutas e peixes. 0 exotismo da paisagem, a ľauna divcrsificada, os hábitos de hospilalidadc de seu povo e a singular cultura regional, tornám a cidade area de atracäo turística para milhares de pessoas no Brasil e no exterior. 0 Festival do Boi-Bumbá, festa introduzida pelos migrantes do Nordeste brasileiro há mais de cem anos e que se associou ä tradieäo indígena da regiäo, é a maior atracäo dcsse paraíso amazô-nico. É um espetáculo de ritmo, cores e originalidade inigua-láveis."'''' 0 historiador da cultura local Tonzinho Saunier, afirma que: "0 folclore de Parintins atravessa mais de t rés séculos, desde as primeiras notícias da existencia de criatu-ras humanas em nossa ilha, que dátam de 1669, quando o firade alemäo Joäo Felipe Bettendorf, fundou o nosso povoa-do no dia 29 de setembro, com o nome de Sáo Miguel dos Tupinambás"66. 0 calendário de eventos da cidade, efetiva-mente é vasto: Carnaval, em fevereiro; Festival do Folclore, cm junho; festas religiosas e profan as em ho menage m a padroeira Nossa Senhora do Carmo, em julho; Festival de Veräo, em setembro, na praia de Uaicurapá; aniversário da cidade, Festival do Camaräo, Festa do Coracäo de Jesus, em outubro; Festa de Säo Benedito, Pastorinhas, atividades na-talinas, em dezembro e Janeiro. É, portanto, uma comuni-dade na qual as atividades culturais e artísticas exercem um papel proeminente e importante como vetor de sociabilida-de. F ncssc contexto que se destaca, no Festival do Folclore, urn tipo sinerético, mestieo de boi-bumbá, que passou a ser conhecido como Boi de Parintins, denominacäo genérica que engloba os grupos como urna nova modalidade desse géne-ro: Caprichoso e Garantido. As referéncias aos grupos obede ceräo ä ordern do abecedário e näo de importáncia, qualida-de ou antiguidade. Analisando a cultura amazônica sob o ángulo das ruínas dei-xadas pelo proeesso colonizador, o romancista e sociólogo Márcio Sousa considera que elas testemunham, de um modo geral, "as ruínas das culturas originárias assaltadas e massa-cradas, ruínas das impossibilidades da civilizacäo ocidental, ruínas da natureza mal compreendida, urna paisagem de destrocos""'. Pelo ángulo do proeesso de resisténcia do pro-dutor cultural nativo, no entanto, foram sendo criadas algumas estratégias no sentido de aerescentar dimensöes da criatividade e do estilo da terra aos evenlos culturais e artis-licos, absorvendo-os criativamente, convertendo-os mais ern fenbmenos de cultura ])opular do que propriamente de Fol-clorc. Um dos exemplos disso é o da reconstrucáo pereně e plurinioiTa epic a eultura popular vem promovendo na Amazonia, como pode ser percebido no easo plurissignifi-eante do Boi de Parintins. c. O boi de Parintins ou quando a arte se mistura com os jogos da paixáo. "Contam em Maiums que o parintinense é too vid rado por bumbá, que ao naseer uma erianqa na cidade, antes de perguntar se é menino ou menina, perguntam: é Capriehoso ou Garantido?" "l-xistem na ilha de Parintins, dois bumbás Famosos e tradi-cionais: Garantido e Capriehoso, que atravessam mais de cinco anos de existencia, passando de pa i a filho a brin-cadeira. Ambos tém suas bandeiras e seus brasbes. As cores do Garantido sao vermelho e braneo. Do Capriehoso, azul e branco. Cada um prima pela melhor apresentaeao de seus brincantes: vaqueiros, indios, cantadores, tiradores de toa-das, botadores de versos, rainhas, princesas, misses, amos e jlguras ťantásticas dos rios e das llorestas."'" Aproximadamente, a partir do mes de abril eomeeam a ser tornadas as providencias para a preparaeao do espetáeulo de apresentaeao eompetitiva desses dois bois-bumbás. Para anunciar o início dos ensaios, epier dizer, da preparaeao ceni-ca de eada um dos grupos, os bumbás saem as ruas no raiai do dia — a alvorada — numa exibicáo informal convocatória dos participantes. A partir dai, durante todas as unites, há os ensaios nos currais, denominaeáo dada á sede dos bumbás. Com a presenea do publico ao longo desse periodo prepara-tório, realizam-se os ensaios de toadas, ritmos, harmonia, .W7 näo só visando á perfeicäo da encenacäo, como para divul-gar, entrc o grande publico fiel que comparece, as bases da aprcsentacäo daquele ano, uma vez que os elementos com-petilivos constituem um segredo inviolável. É um processo de fortaleeimento dos lacos da comunidadc cm torno de cada grupo, sob a motivacäo da emulacao coletiva gerada pelo esperado espetáculo. Com o passar dos dias e a aproximacäo do festival, a cidade vai se transformando, dividindo-se literalmente ao meio pelas cores vermelho de um lado e azul de outro. 0 antago-nismo entre os dois importantes bumbás espalha-se pela cidade como uma onda crescente, evidenciando disputas e confrontos. Delineiam-se as formas coletivas dessa paixäo. A propria topografia da cidade expressa e constitui, näo de forma valorativa, mas estratégica, os espacos de cada bum-bá: na parte alta está o espaco do Garantido; na parte baixa, o do Caprichoso. Essa localizacäo ocupa os dois espacos ex-tremos opostos da cidade de Parintins. "A parti r do més de abril, a cidade de Parintins comeca a se agitar e, no fim do mes de maio c comeco de junho, o povo dá início a um verdadeiro mutiräo para enfeitar a cidade inteira que Ilea colorida de norte a sul de leste a oeste, com as cores, vermelho, azul e branco. A cidade se divide: para cima é domínio do Garantido, que tern seu curral na Baixa do Sao Jose, no bairro de José Operário e, para baixo, domina o Caprichoso, cujo curral fica no antigo aeroporto, entre Bangu e a entrada do bairro de Palmares."69 Entre os dois está localizado o Bumbódromo, proximo ä Casa da Cultura. E o anliteatro das aprescntacôes do Caprichoso e do Garantido, nos dias culminantes do festival. A competicäo gera dois interditos: das cores e da linguagem. Ncnhum dos dois Bumbás pode utilizar as cores do outro. O regulamcnto, que exerce pressäo sobre os grupos tal como os antigos eódigos de posturas do Gräo-Pará, proíbe formal-mente: "Art. 37. Ficam caracterizadas como cores básicas, do Grupo Eolclórico Caprichoso, as cores azul e branco e, do 14-8 Garantido, as cores vermelho e branco. S 1° É expressamen-te proibido o uso de cores representativas dos bumbás pela outra agremiacáo, salvo, em casos excepcionais, como alego-rias e em coisas quc naluralmente tenham de utilizar o vermelho ou o azul". No § 2", o regulamento é mais taxativo: "0 grupo ťolclórico que utilizar em suas fantasias a cor exclusi-va do grupo oposto perderá os pontos quanto ao item corres-pondente, ressalvadas as excccôes previstas no parágrafo anterior. "Contrário" é qualquer boi que se mete no caminho do boi de fama. A tradicím de Belem é do ťolclore de lutas, por exemplo; nele o perdedor nunca se humilha, morre, isto é, adota outro nome. A polícia de Bělém acabou com esta tradicím detcrminando o confmamento dos bois nos seus currais. Quanto ä linguagem - que em muitas regiôcs da Amazônia ainda guarda uma funelo mágica maniťesta - pode-se dcsta-car, como exemplo, o lato dos participantcs de um grupo jamais pronunciarem o nome do grupo oponente. Este é sempře denominado de "contrário". Este interdito se estende ä camada popular pertencente a cada grupo. A rádio de Parintins, Rádio Alvorada, concentra suas progra-macôes na divulgacäo da festa, das músicas, da opiniáo dos organizadores, dos atores ou brincantes. Pelas ruas circulam carros enfeitados com chifrcs-de-bois. 0 visual da c.dade hca ocupado pelo terna do festival: bandeiras, cartazes cannsas, u - i mnUnK rlo boi exibidos pelos chapeus, tatuagens com desennos oo uui i jovcns. Carros com alto-falantes circulam pelas ruas d.vul-gando as músicas, informando sobre o grande acontecimen-to - entre cada mcnsagem ouve-se o sonoro mugido de um boi. Os animos se váo radicalizando, as preferencias por este ou aquele bumbá também. Cornenta-se que irmáos perten-centes a grupos opostos ílcam de mal, deixando de se falar durante aquele periodo; pais c filhos, quando sáo partidários de bumbás diferentes, evitam de falar em casa sobre o assun-to. llá eomentários na cidade de que até casais se separam quando eventualmcnte těm preferencias por bumbás diferentes. Os barcos, quc cbegam ás dezenas e aportam na cidade, säo recebidos por grupos de jovens que levam bandeiras do sen preferido, cantando canqôes que farao parte das 34? exibicdes, na tcntativa do cativar o visitante para seu lado. Enquanto isso, cada um dos bumbás trabalha em absoluto sigilo na confeccjio das vestimentas e alegorias, num clima de mistério e segredo que potencializa a expectativa geral. Há casos de costureiras que colocam urna venda nos olbos do partieipante, a ŕlm cle que cle näo veja a vestimenta que vai usar no dia do espetáculo, enquanto a experimenta. Säo estratégias para preservar a originalidade e evitar imitates que possam quebrar a surpresa que é considerada um dos fatores fundamentals näo só dianie do publico, como para um julgamento favorável do corpo cle jurados. Säo alguns exemplos de um segredo que é guardado rigorosamente. Todo segredo traz consigo a idcia dc que existe um lesouro, urna espécie de poder que cic resguarda. Revelar um segredo, por outro lado, pode, inclusive, signil icar colera e putneao, como ocorreu com Prometeu. Num segredo pode cstar o des-tino dos deuses. Fechada em seus selos de silencio, a alma experimenta a angústia de conservá-lo ou a eufória de estar protegida, cla mesma, em sua intimidade. Considera-se que aqueles que guardam um segredo se inves-tem de um poder que os torna superiores, poderosos, domi-nadores. L é com este sentimento de segredo como índiee de superioridade artística que os bumbás Caprichosos e Garantido se preparam para a exibicäo competitiva. Urna dišputa de caráter estético, visto que o enredo, ainda cpie tenha temas c variantes a cada ano, se estrulura sobre urna base dramálica comum: A Catirina, personagem que problematiza o enredo, é mulher de um eseravo que sc chama ľa i Francisco, deseja comer a lingua do boi. 0 marido, ansioso por satisfazer-lhe o desejo, tenta roubar o boi de seu paträo, sendo visto enquanto exeeutava essa tarefa. 0 Paträo, revol-tado com o eseravo infrator, ordena sua prisäo e, como agra-vante, ainda o ameaca de morte caso o boi venha a morrer em consequéncia do seu ato. 0 auto prosseguc com a vä tcntativa de ressurreicäo do boi empreendida inicialmente pelo pajé, depois pelo padre c, enfim, pelo médico. Como ultimo recur-so, os eurandeiros incorporam-se no ritual de ressurreicäo do boi e o auto chega ao fim cpiando esse objetivo é alcaneado. 350 Com a recuperac.au do animal, todos se rejubilam e festejam. Ao mesmo tempo, o Pai Francisco obtém o perdäo. A base tradieional da história, portanto, é a mesma e é conhecida por todos. Os itens para julgamento, também. 0 regulamento, no seu capítulo IV - Oos itens da votaeao — Art. 12, determina que "fleam estabeleeidos vinte e quatro (24) itens a screm julgados, por noite de apresenta^áo, os quais seräo inscritos na cédula de votaeäo (...). Na tabela incorporada como anexo ao regulamento estäo enumerados itens de julgamento, para conhecimento antecipado dos bumbás e do publico: Apresentador, Levantador de Toadas (o mesmo que cantador, equivale ao puxador do samba nas escolas de samba, no carnaval), Batucada, Ritual, Porta-Estándarte, Arno do Boi (pessoa que é responsável pelo bumbá e entra, acompanbando o boi, na arena), Pai Francisco e Mae Catirina, Sinbazinha da Fazenda, Rainba do Folclore, Cunhä Poranga (significa mulher bonita na lingua geral -nheengatu - que é o tupi generalizado na Amazónia), Boi-Bumbá, Evolucäo, Toada (letra e música), Pajé, tribos indigenas masculinas, tribos indigenas iemininas, Tuxaua Luxo, Tuxaua Originalidade, figuras engracadas, figuras tipi-cas regionais, Alegorias, Lenda Amazönica, Vaqueirada, Galéra (é o mesmo que torcida, Conta ponto positivo sua vibracäo pelo boi preferido e seu süencio durante a apresen-tacäo do adversário ou pouto negativo, caso sc manifeste prejudicando a exibicäo do grupo antagonista) e Coreogra-fia-Organiza^ao-Animacäo-Conjunto lolclórico. Conliccidos os elemcntos de base do enredo e cstrutura ceni-ea, onde estará a Ibrca e o mistério do segredo? Parece evidente que na originalidade estctica da apresentacäo de cada bumbá. Se o importantc é ganbar, como é o lema da disi)u-ta, diverso do histórico ideal olimpico de que o importantc é competir, os organizadores se esmeram no agradar ans jurados inveslidos na eondicäo de arquicoulempladores ou publico privilegiado, cm eujas máos está a dccisáo de quem é o melhor. Nesse aspecto de compcticáo e julgamento, esse les tival lolclórico náo difere de outros equivalentes, de cinema, de música, de teatro, de Carnaval, etc. 351 d. 0 festival De acordo ainda com os estudos de Tonzinho Saunier, o precursor do atual Festival Folclórico de Parintins foi organiza-do em 1965 pelo Sr. Rairnundo Muniz Rodrigues, coadjuva-do pelo Reverendíssimo padre Augusto, Xisto Pereira e Lucinor Barros, reunidos na sede da JAC (Juventude Alegre Católica). Os bumbás se apresentavam, mas sem competieáo. "0 verdadeiro Festival Folclórico de Parintins iniciou-sc no dia 12 de junho cle 1966, como 1" Festival Folclórico."'" 0 local foi a quadra da catedral, logo consielerada inadequada. A partir de entäo scu crescimento foi de tal amplitude que se tornou inadiável a construct de um local adequado, um anfiteatro digno do porte da apresentaeäo e compatível com o grande publico presente. Em 1983 o prefeíto Gláucio Goncalves transferiu o local de apresentaeäo para o Tabladäo do Povo, no local do antigo aeroporto. Logo no ano seguin-te, 1984, no mesmo local foi construído o anfiteatro Messias Augusto. Finalmente, para eriar uma infra-estrutura compatível com a expansäo desse acontecimento, o governador Amazonino Mendcs construiu, em 1988, o Bumbódromo, anfiteatro de grandes proporcöes no qual já foi realizado o 23" Festival e onde, até hoje, permanece sendo realizado. Já em 1989, o Bumbódromo teve sua capacidade de 13.000 lugares aumentada para receber um publico de 35.000 pessoas. 0 Bumbódromo como teatro, isto é, lugar para ver e ser visto, está constituído cle um espaco cenico central para as apresentacöes, em torno do qual foram construídas as arqui-bancadas, arantindo uma visäo circular. É um teatro de arena ou theatre rond, permitindo uma encenacao do tipo csféri-co, segundo o princípio proposto por Etienne Souriau". Seu projeto simboliza um boi estilizado. Alem da finalidade principal de sede do festival, ele atende a necessidades sociais da populaeäo durante o ano inteiro: dispöe de salaš de aula, posto médico, posto de seguran^a publica, museu regional, quadra de esportes, apresentaeäo de pecas de teatro e de shows musicais. 0 Bumbódromo, com essa estrutura e fun-cäo, torna-se um verdadeiro centro de convivéncia cultural. A paríir de uma abertura brilhante do espetáeulo i ,.v-i • • ' ^'Olefin se desdobra como urna progressiva apoteose, urna ve? m, . u ma succssäo de eenas que prímam pelo brilho formal com ■ finalidade de surpreender, como se fosse o visível desahmd1 '* . i ~. i ~ l""oM^. o lúdico) e em outros", Carlos Kodrigues Brandäo, 19 se condenem as transformacôes, mas nao se anuli a u i - miií* hrmou pani dade, a resisténcia de toda uma populacao, qm ^ conseguir transformar uma simples brincadena nc festa populär que é hoje o festival parintinense Na verdade o que se diseute é o problema da tradicionalismo. E, dentro dessa questáo, um p01! ' |R.rinl..;is folclorizante - no sentido do santuário ťU,tuľ 5^.-,n,ic;, de do nassado — e a concepeáo de uma expressao aH-i dioniskha. cultura populär, antropolágica, pantagruium, A condicáo da autenticidade artística no B<>i de 'jj™1^^ eonílgura no momento da apresentacao na <)K" rante 0 pro-tro que é o Bumbódromo. No periodo anterior, < ťj(j;i(jr a eesso de organizayäo comunitária que cl,Vl) ^;U1K.nte uma funefio estética aparece sem (íuc haja consli 3Sý atividade artistica. Essa funeäo sc vai constituindo como urn instrumento. Na verdade, as fun^oes extra-esteticas ocorrem em funcao da artisticidade da exibi^äo dos bumbäs, e com a finalidade de al-cancar urn determinado objetivo, processo pelo qual se fortalecem os elos de convivencia social. Essas atividades extra-esteticas de organizacäo e finalidade do festival folclörico, a esteticidade ampliada que sc forma na esfe-ra social da cidade, o momento de realizacao artistica que e a apresenlacao, eonstituem, no entanto, uma unidadc diale-tica implicada na artisticidade do evento. d. 3) O jogo intensivo e repercutivo entre o estético e o extra-estético Sao ncas as relacöes entre o estético e o extra-estético que o festival Folclórieo de Parintins revela, estabelecendo uma rela^ao estreita e ľuncional entre o propriamente artístico e os^ fatos reais exteriores. A orientacäo funcional das atividades extra-estéticas entra cm relacäo intensiva e repercutiva com as artísticas, provocando essa unidade densamente este-tizada que o Boi de Parintins apresenta. Essa unidade se torna tanto mais eficaz quanto melhor se ajustem aos ob-jetivos extra-estéticos de premia^äo no concurso. É uma dia-lética propria de acontecimentos como esse: festivals de poe-sia e teatro, desde a Grécia antiga, por cxemplo. A dišputa, no scntido dc contcslar ou defender a finalidade 1 udica valorativa e classiflcatória do concurso, a rejeicäo ä absorcäo de elementos expressivos do Carnaval, a prudéncia quanto ä velocidade das inovacöes, verdadeiramente, no sen-tido formal, representam uma dišputa por impedir que as normas extra-estéticas interfiram, se multiplitiuem e compro-metam o caráter artístico original do espétaculo. Trata-se de impedir que objetivos exteriores ä gratuidadc desinteressada da representacäo artistica tenha sua autonómia semiológica comprometida pelo aumento de procedimentos voltados para o interesse de premia^äo. Resguardando-se a fun^äo estética dominante na arte, pode ser criado um balanceamento com 360 as funcôes extra-estéticas näo reprimidas, estruturando cssa reciprocidadc de tensôes. Com isso, o momento artístico no qual a luneäo estétiea é soberana se valoriza, sobressaindo como motor do espetáculo, tornando-se o ponto vélico de conflucncia de todas as funcôes ali reunidas, isto é, o con-junto de forcas estetizantes c näo-cstetizantes, cuja rcsultan-te produz cstcticidade-artística do espetáculo. Produz-se um fenômeno equivalentc ao ja analisado no caso do Boi Tinga, em Sáo Cactano de 0 divel as, no Para. Na apresentaeäo do bumbá, seja do Caprichoso, seja do Garantido, o único objetivo |>ara o qual a aeäo cénica se orienta é o dc agradar pela forma de sua aparéncia e de atrair sobre si mesma as atencôes e a sensibilidade dos espectado-res. Deflagra a capacidade de descoberta dos sentidos e sig-niľicacôes nessa realidade dc pura eontemplacäo. No entan-to, a intensificacäo da í'uncäo estétiea eonstituída n esse momento artístico rcsulta também da presenca funcional de tantos elementos cxtra-estéíicos que participam e se relacio-nam globalmcntc no festival. Deve-se ressaltar, no entanto, que a oricntacäo do Boi de Parintins para urna fínalidade prática — a dišputa e a vitória — condicionando sua estrutura, o manlém sintonizado com a realidade prática, fato cjuc pode produzir "urna atenuacäo ou mesmo urna completa diminuicäo da eficácia artística da obra"78. Significativo é, no entanto, cjue toda a evolucäo artística do espetáculo do Boi de Parintins também decorre dc pressôes extra-estéticas. Mas há outros nobres exemplos no panteón das artes: o prcstígio artístico da tragédia luiipo Rci, de Sófocles, continua sendo realimentado por urna funcäo extra-estética oferecida pela psicanálise. 0 mesmo se pode dizer do Hanilcí, dc Shakespeare. E, ainda, das artes temáti-cas e das cngajadas, quando fatores sociopolítieo-culturais concorrem, como fatores extra-cstéticos, para intensiľicar a esteticidadc da obra. A oricntacäo do Boi de Parintins - Caprichoso c Garantido -é revestida dc urna atmosféra estetizante mesmo no cmara-nhado dc situacôcs extra-estéticas que se entreeruzam no 3 Q evidenciamento da propria estrutura do espetáeulo, a partir do processo de preparacäo. Tudo porque, as fun?oes extra- ' fiof-m hmbém na estrutura artistiea da obra, estetieas se refletem tamnrin » de modo que a adaptacäo visivel da obra a cada uma dessas funcôes é, ao mesmo tempo, do ponto de vista da tuneao estétiea um procedimento artístico (...)'*• Muitos íatores extra-estéticos sao orientados no sentido da esteticidade artistiea: os temas da história, do repertório folelórico, da ecologia, da mitologia, etc.; a competicáo ludica; o segredo revestido por euidadosos procedimentos; o fetiehismo das cores; a mobilizacäo turística. Todos confluem para o avan-co es'tetizante, impulsionados pelo ponto vélico estético do espetáeulo. d. 4) As fantasias concretas da mudanca cultural O que signiflca a carnavalizacáo do boi de Parintins? A incorporacao de signos considerados inerentcs as escolas de samba e ao desfile carnavalesco na estrutura desse bumbá. Por expemlo: o caráter do desfile, a relacao com os especta-dores, a monumentalidade, a presenca de figuras de desta-(pie, o uso de carros alegóricos, a funcáo da toada usada com a mesma funcáo do samba-enredo, a incorporacao de fantasias como vestimentas, a intensillcacáo do ritmo da bateria. Todos esses elementos municiam com argumentos tanto os tradicionalistas como os evolucionistas. A socioantropologia tern nisso urn farto material a sen dispor. A opcáo nestas reflexoes vem sendo a da simetria estético-sociológica. Nessa linha, cabe refletir sob re o efeito artístico que esses acréscimos, resultantes da antropofagia cultural, provocaram nesse tra jeto antropológico, motivador de uma conversáo semiótica do Caprichoso e do Garantido, cm uma nova modalidade de boi-bumbá: o boi de Parintins. Um rico e vivo processo antropo-íágico-carnavalizador na cultura amazónica. As apresentacdes do boi-bumbá requerem um cspaco aberto ou mesmo fechado, de dimensóes pequenas, exibindo-se no estilo circular-centrífugo, expandindo se o drama de um 562 centro pere a periferia que os espectadores circundam. Obedecendo á regra de unidade de acáo, tudo na comédia está relacionado com o drama e náo somente com o tenia. Como uma fonte de signos, do círculo do bumbá vao sur-gindo as etapas dramáticas, os personagens, as toadas. O boi, onipresente, é o centro dramático da acáo. A circularidade é a marca cénice do bumbá tradicional. No Boi de Parintins essa circularidade recorrente é substituída pela linearidade sucessiva do desfile. Como no desfile carnavalesco, o terna passa a evoluir aos olhos do publico, em sucessivos quadros que o expressam on ilustrarn. Uma certa densidade de con-centracáo poetice propria da circularidade do boi-bumbá, mesmo nas variantes como o Boi Tinga, c substituída por uma succssividade narrative, linear e teatral. Sem deixar de ser um boi-bumbá, relaciona-se com o publico á scmellian-ca progressiva da exibicao da escola de samba. A par disso, o efeito estetizante se reconstitui e amplia no sentido de al-cance social - politico, de certa maneira - uma vez epic um publico infinitamente mais numeroso passa a ser envolvido nessa comunidade estética. A relacáo com os espectadores se acentua na dimensáo lúdi-ca. A concentracáo é menor, a vibracáo competitive diminui a empetie no sentido de identificacao aristotélice, mas se transforma numa espécie de comunháo. Os espectadores se sentem parte integrente do espetáculo, para o quel contri-buem com o uso da cor de sen bumbá predileto, cantendo, juntos, as toades, fazendo um cenário rítmico de aplausos, impulsionando e emocáo do espetáculo. Toadas c dances sáo compartilhadas nas arquibancadas. Essa relacáo monumen-talizada do espetáculo com os espectadores efetivou-sc com a construcáo do anfiteatro do Bumbcklromo, com capeci-dade de 35.000 espectedores e ume arena de exibicáo de con-s i de rá ve i s p rop orcóes. Os grupos de culture popular váo incorporando novos materials, novas técnices, com o pesser do tempo, gerentindo feei-lidede de ecesso a eles. Essa incorporacáo se dá paralelamen-te ás inovacóes de efeito estético. Um participante de bumbá explice: "0 que se conserve vivo na memórie dus juimeiros 3(3 bois-bumbás é que, na époea da brincadeira descompromissa-da, näo havia luz elétrica na cidade e os grupos se apresenta-vam na ťrente das casas de pessoas abastadas, munidos de lamparinas para clarcar o ambiente. Os lamparineiros segura-vam um pau comprido contendo na extremidade um cilindro feito de lata de azeite, do qual saíam quatro a seis bicos. Colocava-se o querosene no bojo do cilindro c nos morrôes, pavios que saíam dos bicos, onde ateava-se logo". Ora, as pos-sibilidades de exploracäo da expressäo estética cm condicôes como a dcscrita säo muito diversas das que hoje os bumbás encontram no Bumbódromo. Grande espaco para apresenta-cäo, imenso publico de espectadores, considerável dištancia entre um c outro, farta iluminacäo com possibilidade de efei-tos de luz, disponibilidade de tempo para apresentacäo em condicôes de acompanhamento pela platéia. Além disso, aces-so a novos materiais e tecnologias, novas alternativas de con-feccäo de vestimentas, acesso a processos visuais que a tele-visäo e o jornalismo fotográfico revelam, estímulos ä novida-de, ä surpresa, ä grandiosidade nascidas e alimentadas pela competicäo. Essas novas oportunidades representam um novo campo de tcnsôes eriativas, de expressäo e rccepcäo estética, geradoras de modalidades novas, nas quais o estético se con-firma como vetor de sociabiliza^äo, como essa de um boi ear-navalizado. 0 importante até agora é que essa nova modali-dade que já se propaga como modelo de out ros bois de Parintins - resulta de um eruzamento ou mesticagem cultural espontánca e näo de uma espéeie de inseminacäo artificial. A monumentalidade do csj)ctáculo permitida pelo anftteatro do Bumbódromo e pelo uso amplificado da voz, cquivale ao impulso para o grandioso que na tragédia clássica, por exemplo, cstava ľuncionalizado com os espacos cénicos da Gréeia antiga — onde a necessária amplifica^äo da voz era conseguida pelo uso de engenhosas mascaras e os tamancos elevavam a estatura dos atores na medida visual de sua importáncia cénica. Do intimismo dos pequenos espetáculos do bumbá tradicional, o Boi de Parintins monumentalizou-se em deeorréncia das progressivas possibilidades materiais e técnicas a que foi tendo acesso a imaginacäo criadora de seus eneenadores. Da limitada quadra da Juventude Alegre 3*4 Católica, a exibicäo passou pelo estádio de futebol Tupy Catanhede, pelo Tabladäo do Povo no antigo aeroporto, pelo anfiteatro Messias Augusto no mesmo loeal, até o atual Bumbódromo comportando 35.000 pessoas. Ä medida que o espaco disponível foi equivalente ao dos desťilcs de Carnaval, e que esse espaco se tornou permanente, permit in-do o planejamento prévio do espetáculo, a monumentalida-de da estratégia carnavalesca toi sendo absorvida e incorpo-rada na estrutura cenica do Caprichoso e do Garantido. Revela, portanto, um sintoma de criatividade e utilizacäo expressiva de novos meios e materials. A presenca de figurantes e de carros alcgóricos, como com-ponentes cstruturais do desfile dramatizado, foi outra incorporate carnavalesca do Boi de Parintins. Säo engenhosos recursos de distensáo ou mesmo distanciacäo dramatica, ao mesmo tempo em que mantém a atencäo dos espeetadores imantada pela trama central. Seu efeito é equivalente ao dos entreatos usados em algumas modalidades tradicionais do teatro. Devido á duracáo do espetáculo determinada em ties horas pelo rcgulamento, um enredo esquematicamcnle simples, sem complexidades psicológicas, sem cvidenciamento de personagcns-tipos, sem surj)rcsas no esperado desfecho, a manutencáo do intercssc tcria de resultar do procedimento e das surpresas provoeadas no dccorrer da representacao. Os cspectadores sabem o que vai acontecer, mas náo sabem o que poderia acontecer antes do desfecho. A surpresa ou o suspense processual exige o imprevisto da apresentaeáo de atracöes de li vre criatividade (como figurantes ou alegorias) ao longo do desenrolar do espetáculo. Se esses figurantes ou alegorias náo estäo de alguma forma relacionados com o enredo, estäo com o tenia evidenciado ou homenageado da cultura regional em cada ano. Alem disso, se náo aparentam uma integracáo no enredo básico, os figurantes e alegorias contribuem para a distensáo do enredo tradicional obrigató-rio de ser mantido, mas que poderia resultar monótono em um tempo täo longo de apresentaeáo. Podem ser, portanto, tornados como entreatos da aeäo (liegetica propria do drama, garantindo a atencäo do publico, conferindo ao espetáculo a dimensäo de uma alegoria apoteótica. A toada apresenta no boi-bumbá urna relacäo estrutural com o drama da história do boi. Mesmo que haja variantes pocti-cas ao longo da representacao fruto do improviso, das säo componcntcs cstruturais da acao dramática. A toada c tao importante que é o amo, o líder dessa modalidade de canto cénico. Já no Carnaval, o samba-enredo é uma apresentacao ou desericäo poético-deseritiva do enredo ou do tenia esco-lhido para o desfile da escola de samba naquele ano. A medi-da que o Boi de Parintins (bi incorporando elementos do espetáeulo do desfile carnavalesco, a toada foi também sc aproximando do samba-enredo, como forma de se adequar á nova estrutura de apresentacao. Eis dois exemplos de toadas que exprimem o espírito e a téc-nica tradicionais: Do Garantido - Tema: Danca das Cores. Autor: Fredy Goes. "Eu brinco o boi/ Como brinea uma crianca/ Papel de seda na ponta da lanca/ No coracäo é encarnado/ Ľ o verde da espe-ranca/ Desta selva imensa...// É encarnado e branco! É encarnado! (bis)/ Folhas de papel crepon/ Na capa do chapéu/ Moca bonita // Boi de veludo/ Lua no céu/ Dancando as cores do meu boi-bumbá// É encarnado c branco! É encarnado! (bis)." Do Caprichoso - Tema: Vaquejada. Autor: J. Carlos e Carlinhos - "Este ano eu vou/ Erguer minha bandeira (bis)/ Eu, tu vais, eu vou, eu vou (bis)/ Rcuni meus vaqueiros,/ Pra tocar a boiada/ Convidei a morena/ Pia ver de pertinho/ Minha vaquejada/ Quem ouvir um urro forte/ Quem vem lá do Norte/ Pode preparar/ É meu boi Caprichoso/ Alegria do povo/ Que está j)ra chegar". Em seguida, duas toadas que apresenlam novas característi-cas, decorrentes da aproximaeäo com o samba-enredo do Carnaval: Do boi Caprichoso - Tema: No siléncio da mala, rufa tamu-nä. Autor: Ronaldo Passos Barbosa. - "Das tabas guerreiras rufa tamunä/ Aldeias inteiras um canto no a r/ Repousam as pieces nas penas das flechas/ Dos (ilhos da mata temidos na 3& guerra/ Rcpousam o areo guerreiros tupis/ Iamánd/ Hurué, hurué, hurué/ Hurué, hurué, hurué/ Tua voz o troväo/ Trás o vcnto nas mäos/ 0 brilho dos raios tcu olhar/ Do relámpago a luz/ Rasgando os ecus, matas, ar, rios e mar/ Rüge ťeroz como tigre a uivar/ Levanta naeäo tupi/ Explode um canto guerreiro// luacanän// Arie, arié, ariá/ Elautas que exaltam tupá, arié, ariá/ Cantos que encantam os cantos/ For todos os cantos iräo ressoar/ Deus Tupá.../ Iamänd/ Hurué, hurué, hurué/ Arié, arié, ariá". Do Garantido — Tema: Amazonas, esse ho é minha vida. Autor: Braulino - "Rio Amazonas, tcu cenário é uma beleza/ A natureza chega alé a se admirar/ O ten caboclo táo altivo, altaneiro/ Para o mundo inteiro virou testa popular/ Olha já, rio Amazonas, teu cenário é urna beleza/ A natureza chega até a se admirar/ O teu caboclo táo altivo, altaneiro/ Para o mundo inteiro virou festa popular/ Men grito aqui, escamu-rinado a mořena/ A lna Serena brincando de boi-bumbá/ No terreiro é festa, tarubá, manieuera/ A fogueira viva, o boiáo já vai chegar/ Traz o tucupi, faz o tacacá, tem pacu, bodó c curimatá/ Vinho de cupu, taperebá/ Pešta de caboclo deštic zo, índio brasileiro/ Garantido é forte, é o rei deste lugar/ Festa de caboclo destrezo, índio brasileiro/ Garantido é fone, é o rei destc lugar" A incorporaeáo pelos bumbás de Parintins das fantasias, dos destaques, da porta-estandarte, do apresentador, alem da ampliaeäo da batéria que pode contar com até 300 membros executando um ritmo com tiovas nuancas, säo outros ele-mentos do desflle carnavalesco desse banquete antropofágico do Boi de Parintins como a alimentar-se do Carnaval. "0 carnaval brasileiro era, primeiro, um periodo no qual se entregava aos atos que se tornavam, algumas vezeš, a aparéncia de jogos violentos. De um ponto de vista puramente mecánico, ])ode-se dizer que cle afetaria mesmo a vida dos animais e a existencia de certos objetos.""0 Deílagrando uma inversäo na ordern das eoisas, cle constitui uma ordern propria circunstancial e deseoncertante. A orga- 3é> nizaeäo do desfile é uma espécie de gesto ordenador tentan-do interferir na liberacáo deflagrada pela carnavalidade. Os sentidos instituční o seu império, numa surrealidade alegre. Homcns se transformam cm mulheres c mulheres em homcns. A nudez se revela como a epifania do secreto. 0 jogo das inversöes domina. 0 demônio se ľaz verbo. A car-ne se ľaz espírito em ľesta. 0 invisívcl torna-se visível e tu-do é uma visualidade em transe. Maria Isaura Pareira de Queiroz, em Carnaval Brasileiro81, p. 162, considera que o Carnaval é um dos signos de brasilida-de. Considera que o Carnaval brasileiro é um rito com uma atmosľcra de utopia, de uma vivéncia idealizada, requerendo uma comprcensáo mais ampliada do que o mito carnavales-co cm geral. Em out ros espectos, porque "ele estabclece uma convergéncia entre o aspecto objetivo do conhecimento e o aspecto subjetivo dos sentimentos, com o fim de alcan^ar um futura imaginário, mas acessível"lu. Há uma logica na superposicao entre o Boi de Parintins e do C arnaval brasileiro. Ľ sintoma de sua vitalidade insaciável como cultura popular cvoluindo, criando novas alternativas expressivas a partir de novos materiais e novas possibilida-des lécnicas. 0 Carnaval é um modelo nacionál de expressáo coletiva, como se fosse a propria encenacäo da alma brasilei-ra. A alma brasileira se faz carne, isto é, aparéncia sensível e sensual. Por isso, revestida de seducao. A sedueáo do Carnaval como espetáculo e como expressáo de brasilidade o tornou modelo a ser imitado ou incorporado, náo só pelo burnba de Panintins, como por inúmeras manifcstacöes da cultura popular brasileira. De certa maneira, a adocáo de ele-mentos expressivos do Carnaval pelo Capricboso e pelo Garantido é um gesto muito mais evidente de um contínuo cultural do que a incorporaeäo de clementos europcus ocor-ridos na época da colonizacáo. Em Panintins vem ocorrendo o desdobramento histórico dos ideais de busca de autonómia artístico-cultural reco-nbecido no Movimento Modernista brasileiro de 1922: o Brasil espelhando-se no Brasil. Naquela lase, a cultura nacionál procurou inspirar-sc na regional, alimentando-se, [)or exemplo, seja no movimento Anta ou verdeamarelista, e mesmo na antropofagia, dos mitos e (eniáticas amazónicas. No caso do Boi de Panintins, eni face das novas possibilida-des oferecidas pelos meios de comunicaeäo social, cspecial-mente a TV, é a cultura regional que se vale de qualidades expressivas da cultura nacionál. O Carnaval brasileiro, como o interpreta Roberto da Malta, engloba os fundamentos de nossa sensibilidade e vivéncias como um tempo forte de grande especificidade. O carnaval está, portanto, junto daquelas instituicocs perpétuas que nos permitem sentir (mais do que abstratamente conceber) nossa propria continuidade enquanto grupo'". Seguindo a reflexáo de Roberto Matta, cm Carnaval, Bandidos c llcróis, tentar-se-á, no paragrafu a seguir, demonstrar uma sensível relacäo entre essa festa e o Boi de Parintins, tornando compreensível a inlluéncia de um sobre o outro. No Boi de Parintins, independente do seu resultado, assim como no carnaval, "a festa tem a vantagem de ser apenas festa""', mesmo que as paixöes parecam concentradas em out ras (Inalidades. Hic é também uma "lestividade de determinates múltiplas", guiadas por motivacöes centrais de que a "a música, o canto, a danca, os desfdes e os gestos que lun-damentam a harmonia e a realidade". Hesse modo, pobres e ricos tornam-se figuras míticas, índios, deuses, natureza antropomorlizada, nobres, etc. Pelo ritual, a comunidade se individualize e ostenta uma identidade propria. A dramatiza-cäo, como toda visáo artística, eria um enquadramento expressivo da realidade que, au mesmo tempu, comporta a ilimitacáo de signifieáneia aberta. Torna-se um mundo no mundo. Um cosmo ordenado originalmente dentro do cosmo. As coisas simples adquirem significaeäo. 0 real se draniatiza. O cotidiano torna-se o lugar do raro. Tudo se ritualiza. 0 banal converte-se em signo. A forte tentativa de eriar direi-tos iguais, de garanlir o conllito tunu clima de paz, de ultra-passar as difereneas com a conseiěneia sem rancores conere-tizam, por um tempo determinado, as esperaneas de um mundo "de paz e de concórdia""'. li uma forma de tra jeto 59 antropológico complexo e revelador de vitalidade no proces-so evolutivo. O periodo de realizacao do Festival Folclórico dos Bumbás encena uma aparente e momentánea harmonizacím de classes, quando os membros transitam de uma classe para outra com o passaporte único do ritual, como se, de subito, todos adquirissem uma "cidadania cultural" única. Mas também é importante de se levar em conta que esse fenömeno, por exemplo, no Carnaval e no Boi de Parintins, c sempře decor-rente de uma atividade de arte e cultura populäres, náo se conhecendo exemplo inverso. Pode-se di/.er (pie há uma identificacáo entre o discurso regional do Boi de Parintins e o discurso nacionál do Car-naval. Há uma equivalente aproximaeäo da realidade. Também nesse ritual se pode aplicar a formula de Clifford Geertz, aplicada por Roberto da Matta na interpretacao do carnaval: é uma história que eles contam a eles próprios, so-bre eles mesmos1"'. A populaeäo de Parintins constrói e vive sua história imaginária revestida com as formas visíveis de um ritual. Finalmente, encerrando essa caminhada paralela e imbricada com as reflexöes de Roberto da Matta sobre o Carnaval bra-sileiro, pode-se ainda esquematizar um parelelismo auto-implicativo entre as dramatizacöes do Carnaval e as do Boi de Parintins. Um relacionamento benéfico ä compreensáo vitalista do processo, sua coeréncia e a demonstratio de sua forca eomo cultura da sociedade de Parintins. Uma socieda-de que, por meio de atitudes como essa, participa de um fenömeno de conversao semítica do folclore como antiguida-de preservada e repetida ciclicamente, em manifestacáo de cultura popular inventiva e renovada. Como Carnaval, há no Boi de Parintins "a exibicáo em opo-sicáo á modéstia e ao recato"'". Tudo se torna teatro e há uma exageracáo cénica dos comportamentos e atitudes. Na mesma maneira de se vestir, no nudismo ritualizado eufemi-zados como nus artísticos, na ostentacáo de formas, na 3/0 encarnacao de formas míticas ou da nalureza, na idealiza-cäo plastica de tribos indígcnas. Ainda quc as instituicocs rc-ligiosas nao accitem o quc chamam de índios nus, figuras nuas, elas permancecem lá legitiniadas pelo rituál. Pessoas que primam pela disericao exibem-se para chamar ateneáo sobre seu papcl. A sociedade vai ao Bumbódromo para ver e ser vista. Pode-se ainda dizer quanto ao confronto entre "o hierarqui-co e o igualitário""", posto cm circulaeáo no carnaval brasi-lciro, que é também o que o Boi de Parintins provoca na cidade, embora sua recepeáo no Bumbódromo, por conta do rituál, "engendrc um momentu igualitário; (...) nimi meio social onde tudo é muito bem marcado, sej a por meio de leis, regulamentos, portarias, deeretos, regras de etiquetas, etc., o momento carnavalesco subsiste""'. As pessoas que participam do Festival de Parintins säo unánimes cm reconbcccr que c um periodo de sensacáo de liberdade, em que as pessoas abandonam os horários, as obrigacócs, e experimentam um estado de graca de quem se libera por um tempo das repressives sociais. Mesmo em competicáo declarada, c rígida com frontacáo, tudo se passa como se uns ignorassem os outros "contrários", isto é, pertecentes ao Bumbá rival. As hierar-quias sáo normalmente niveladas em igualdade de possibili-dades, num contexto em que tudo é disputa, julgamento cm termos de igualdade até a rcierarquizacáo Hnal valorativa, com a promulgacáo dos rcsultados. A tensäo erispada c a intensidade de competicáo na aréna do Bumbódromo, á semelhanca do carnaval, reílete essa "dialética entre a igualdade e a hierarquia e das diliculdadcs de conciliac.áo desses valores"90. 0 espetáculo do Bumbódromo, cm Parintins, quando ocor-rem as exibicóes do Caprichoso c do Garantido, é uma espé-cie "de uma estética de čxtasc c dc encantamento" percebi-do por Christine Buci-Glucksmann no "barroco llambo yant"". Uma pura fascina^áo dc olhar o que passa a exis-tir no momento em que é olhado. 0 espetáculo lúdico que se desenvolve na aréna, com sua dramatizacáo operística, leva a exitacáo dos sentidos ao esplendor. 0 pouto vélico 3// estetico impulsiona todo o espetaculo para o efeito dc uma teatralizacao totalizadora. Uma dramatizacao que mobiliza a sociedade local, que a faz participante passional do insta-vel e do efemero que e o espetaculo no anilteatro a sua frente. Diante de milhares de espectadores, como nas mais antigas cerimonias cenicas, ali estao reurndos para expres-sar algo pelo corpo, voz, gesto, canto, danca, movimento, plasticidadc, cores, numa compcticao cenica que, a semc-lhan^a da estetica barroca, produz vcrdadeiramcnte "uma dramaturgia dc paixoes"'". 572 a. Situacäo e contexto Os brinquedos de miriti säo urna forma de artesanato artísti-co característico da eidade de Abaetetuba. Säo fabricados com material da polpa ou búcha do miriti, palmeira abim-dante no município e comum nas áreas de várzea da Amazônia. Abaetetuba fica localizada na zona fisiográfica G ua jari na, ä margem direita do rio Tocantins, em ľrente ä baia de Marapatá, no Baixo Tocantins. É eidade antiga do Pará, fundada no século XVIII em um ponto situado a 50 km em linha reta da capital do Estado. A topografia é piana, sendo o solo representativo de tres tipos: o solo de várzea, na chamada Zona das Uhas, constituída, em parte, por mais de 45 ilhas; os tesos; e, fínalmente, os solos de terra firme. Em virtude do clima quente e seco, sujcito a enchentes periódi-cas dos rios e igarapés, os miritizais se desenvolvem no ala-gado. A importäncia dessa situacäo climática é percebida na producäo, ťabricacäo e aeabamento dos brinquedos, que exigem material perľeitamentc seco. Säo brinquedos artisti camente eriados, que revelam a necessidade e o desejo de coneretizar na matéria os frutos de sonhos e experiéncias vividas. "Ľu aprendi a fazer brinquedo da minha cahcea mesmo, olhando os outros fazendo, eu aprendi, mas nunca imitei ninguém", explica o artesäo António Silva."'" b. A vaga história das origens O origem histórica dos brinquedos de miriti est á perdida no tempo vago da cultura oralizada na Amazônia. A rememora-cäo e a oralidade da tradicäo säo vias cpie reimplumam as asas da imaginacäo, ultrapassando a realidade prática, na 373 eterna busca das fontes, que caracteriza o desejo de autoco-nhecimento e conhecimento da vida que move todos os bomens. 0 caboclo da Amazónia náo poderia fugir a cssa ati-tude e condicao. Em Abaetetuba, acredita-se que foram as crian^as que come-caram a utilizar o mirili para fazer pequenos brinquedos, sobretudo pela maciez do material para entalhe e sua possi-bilidade de flutuar nas águas dos rios, igarapés, lagos e pocas d'agua deixadas pela chuva. Eram pequenas montarias e vigilengas navegando por entrc as inúmeras atividades lúdi-cas infantis. Costuma-se associar o iníeio da eomercializacao dos brinquedos de miriti ao Cirio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belem, na suposieáo de que tal fato tenha ocor-rido já durante a realizacáo do primeiro Círio, em 1793. Hoje, esses brinquedos estáo de tal maneira integrados a essa procissáo, que se constituem num de seus mais representatives signos culturais. 0 Círio de Nazaré é uma procissáo religiosa culminante do culto da padroeira dos paraenses, realizada todos os anos no segundo domingo de outubro. É uma espécic de apotcose epi-ťánica da fé do povo do Pará percorrendo as ruas de Bělém. Representa uma modalidade de síntese cultural, pela comple-xidade e diversidade de realidades e simbologias que constituem o seu processo e a sua estrutura. De origem latina, cereus, o vocábulo "círio" designa uma tocha grande eomo a vela pascal. Tanto em Portugal eomo no Brasil, serve para designar romarias ou mesmo procissóes de maior porte em celebraeáo do santo padrociro do lugar. Isidoru Alves considers que o Círio exerce na festa do padroeiro o papel de intercámbio ritual, no processo de trocas simbólicas. E "um poderoso aglutinador, em torno de uma generalizada idéia de identidade regional", constituindo-se em "um campo ritual de cruzamentos de várias dimensoes da vida social"91. Estima-se, atualmente, que cerca de um milháo de pessoas — romeiros — acompanham o Círio de Nazaré durante suas 4 ou 5 horas de pereurso, desde a Sé Catedral, na Cidade Velha, até á suntuosa Basilica de Nazaré, no centro da cidade, num pereurso que se estende por 4,5 Km, aproximadamente. 374- As circunstäncias de vinculacäo com o Círio rcvclam o cará-ter cíclico c periódico dos brinquedos dc miriti. Dc ccrta maneira, há um componente de mereado motivado durante a festa, o que estimula essa periodieidade e, ao mesmo tempo, explica o caráter social evidente no processo desse artesana-to artístico. Torna-se, inclusive, um elemento a mais no con-junto plástieo da monumental procissäo. Nessa condicäo pode ser visto também como uma "arte representativa de uma festividadc tradicional de cunbo religioso, com caracte-rísticas essencialmcnte da Amazonia"''''. Essa relacao pode ser testemunhada pelos próprios artesäos. Seu Abaeté, por exemplo, explica que foi vendo os brinquedos sendo vendidos no Círio que aderiu ä idéia de se tornar também um fabricante. "Eu acbo täo bonito aquilo. Se eu näo vou, eu me sinto ruim. Eu näo von só vender os brinquedos näo... eu vou pra ver a Santa também" (As coloridas girán-dolas de miriti). No entanto, sua produeäo atendc também a outras finalidades, isto é, como pagamento de promessas fci-tas ä Santa, dcpositadas no carro dos milagres (onde säo depositados ex-votos no dccorrer da procissäo), miniaturas de barcos ou casas, em reconhecimento a uma graca alcan-cada. A propria literatura da Amazonia já registra essa utili-zacäo ritual dos brinquedos de miriti. O personagem central do conto Carro dos Milagres, de Benedicto Monteiro, diz; "Olhc compadre, nem qucro lbe contar a triste sina deste men barco a vela feito de tala dc miriti. Eu trouxe ele, mas foi pra colocar no Carro dos Milagrcs"'^ Säo numerosos os artesäos que confirmam essa hipótese: "Comecou a idéia de vender com as canoinhas de promessa. No Círio de Nazaré, o promesseiro levava aquelas canoinhas, que ele fazia promessa. Uma pessoa do interior, por exemplo, fez uma promessa de uma canoa dele que sumiu. Se aparc-cia, ele levava uma montaria para Nossa Senhora""7. Portanto, o uso desses brinquedos é diversificado. É um sinal dc sua plurissignificacäo. Servern como signo mágieo-religioso na iorma de ex-votos, de brinquedos propriamente, de recorda-cao da lesta ou da regiäo, dc objeto estético entre os artistas plástieos e colecionadores, de elemento de decoraeäo, de 375 arte fa to museologico da cultura popular. "Quern compra mais é a crianca (...) Outros compram pra enfeite, mas c mais brin-quedo de crianca. Qualqeur brinquedo podc servir de enfeite. Muita gente de fora compra pra recordacáo. Agrada."98 Luis Carlos Morais afirma que o brinquedo "tern sua funcáo socioeducativa no lazer, na religiao, como adorno, objeto decorativo para turista ou coisa de agrado para uma peque-na parcela de admiradores"99. c. 0 suporte material Os brinquedos sáo modelados em urn material que é a bucha do miritizciro, uma polpa vegetal fibrosa e leve, de grande maciez e flexibilidadc. 0 miritizciro, que é uma palmeira abundante na regiáo de Abaetetuba, comurn nas areas alaga-das, tem uma altura que varia de 30 a 50 metros. Seu nome científico é mauritia flexuosa. Trata-se de urn material familiar de múltiplo uso, seja como meio de subsisténcia para os índios e caboclos, uma vez que seu fruto tern agrada vel sabor e inúmeras utilidades; seja como material de constru^ao de habitacocs; seja pelo uso de suas talas na magnifica cestaria regional; seja na fabrica^ao dos brinquedos com a polpa ou bucha. 0 miritizeiro é, portanto, uma árvore cultural da regiáo onde estáo disseminadas, embora predominem nos baixos ou areas alagadicas resultantes do transbordamcnto dos rios. lltn dos motivos da intensa producáo dos brinquedos cm Abaetetuba resulta da grande quantidade de tremendais de miriti existentes no municipio. A densa rede potámica que o divide em um arquipélago, corn ilhas que também sáo entre-cortadas de rios, lagos e igarapes, criou condicoes para que se tornasse abundante essa espécie vegetal no municipio. Para que a polpa ou bucha do miritizeiro llque apropriada ao trabalho de entalhe, deve ser observada uma adequada meto-dologia. Em primeiro lugar, retiram-se as talas, (pie sáo Libras duras que revestem a polpa. Em seguida, as toras da polpa sáo postas ao sol para secar a fim de que o material adquira a consisténcia adequada ao entalhe. 376 Os artesáos váo adquirindo o material ao longo do periodo de novembro de um ano até julho do outro quando os traba-lhos serao inieiados, para que fiquc bem seeo no periodo menos úmido e quente do inverno. Nessas eondieóes o miri-ti fica com a textura adequada ao corte e ao lixamento. "0 miriti, a gente compra cle verde c bota pra secar com a quen-tura do tempo, dentro de easa. No sol, cle seen por 1'ora, mas nao ilea bem seco. Dentro de casa, dá tempo pra cle secar todo, descansa. Entáo cle fica bem apurado."100 d. 0 processo de trabalho com o material A fabricacáo do brinquedo de miriti estabeleec a relacáo profunda que bá entre o artista c sua obra. 0 ťabrieante é um artesáo que tem a execucáo material de sua obra acom-panhada de uma interacáo e um gesto estetizante em sua modelagem. É evidentemente possuidor de uma téenica apu-rada, a servico de uma concepeáo de forma significante no contexto cultural cm que está inserido. Eabricando integral-mentě o seu objeto estetizado, cle reproduz ou eria modelos, assumindo sua completa execucáo. "Pra mim c uma arte, porquc tem gente que fa z aquilo que vé, eu erio" (Seu Abaete, in Amazónia Hoje, p. 18). Em aditamento a essa visáo do brinquedo reconhecendo sua artisticidade, opina o pcsqui-sador Luis Carlos Morais: "Pelo visto, o brinquedo de miriti se apresenta como arte (...). Os fabricantes de brinquedos de miriti trabalham fazendo sua obra, com reduzida utilizacáo de instruments meeánicos e sem o caráter de série, próprio dos casos em que se utiliza a máquina. É grande sua habilidade manual. "A gente tem de estar com a cabeca Erin. Trabalhar com muito cuidado, ás vezeš eu largo e vou embora, dar uma volta. Quando a gente tá fazendo o brinquedo, tem de tá com o olhar eerlo, com a visáo čerta, porquc qualquer vacilo a gente tá se furando, se cortando."10'' As obras apresentam uma individualidade ou diversidade real em meio a uma apatente uniformidade, nunca sendo absolutamente iguais. Por isso, constitucm-se 377 b'etos estilizados na modalidadc de artesanato artístico, rfarantindo cada peca sua originalidade. Dentre sens princi- ais procedimentos técnicos de criacäo estäo o corte, o lixa-P ento, a montagem e a pintura. É aparentemente fácil modelár peío corte a polpa do miritizeiro. Ela é extremnmente macia e näo tem fibras que difícultem o corte e os entalhes. Mas as facas precisam estar afiadas e a concentracao penna-nente. A penetracäo da lämina, o corte, o lento desbastar de seus contornos tem urna voluptuosidade carnal. A matéria näo oferece quase resisténcia. A faca penetra como se esti-vesse trabalhando numa forma suspensa no a r. A maneira dos ceramistas que, especialmente na poteria, väo corn as mäos esculpindo formas no ar, assim os fabricates desscs brinquedos väo recortando suas formas no miriti. 0 artesäo de brinquedos vai penetrando na intimidade cla matéria do miriti, á medida que nele vai objetivando sua imaginacäo e seu ďesejo. Vai atribuindo sentidos á matéria extraída na natureza. Seu ponto de partida é urna espécie de espirituali-dade poética. Pela fragilidade do material é como se fossem entalhando o cfémero. Os objetos e as flguras resultam numa simplificacäo de tra-cos, persistindo os essenciais significantes, sem detalha-mento naturalista, pois a textúra do material näo permite. assim como as läminas de entalhe utilizadas. Há urna pcríei ta adequacäo entre procedimento, instruments e material, para a obtencäo desse resultado estético que define inn gé-nero de criacäo. Dessa maneira, o artesäo de brinquedos de miriti é urna espécie de entalhador do sonho. O artesäo de brinquedos de miriti faz cle suas mäos um ins trumento vivo e inefávcl de sua relaeäo com a matéria. Como se dialogasse com o miriti, ela vai extraindo as suas Formas imanentes, vai convertendo — numa operativa conversäo semiótica - a forma natural em forma expressiva. Acäo libertadora de energia, a mäo, além de veículo de trabalbo, parece conter o sentimento do artesäo nela impregnado. Elas vibram com intensidade diante da matéria leve e efémera que é a polpa do miriti, no ato de atribuirlhe a duracäo indivídua lizadora da forma artística. 37* Geralmente sentados no chäo on numa pequcna banqueta, o fabricante de brinquedos estabelece com os materials e objetos uma intimidade familiar e efetivizada. É o seu mundo. Com as mäos ele segura cuidadosamente um pedaco de miri-ti, confere sem pressa sua condi^äo material, acaricia-o com as mäos ou algum instrumentu a sua superfície levemente rugo-sa, a lim de torná-la uniforme e lisa. Corta com minuciosa delieadeza os contornos configurando as pecas ou partes do brinquedo. Náo parece ferir, nem agredir a matéria que se oferece rica de possibilidades. Toea naquela polpa como no próprio eorpo da ternura. Segura a lämina como o pocta sua pena, como o pintor segura o pincel. Separa do geral da matéria domestieada o particular que é o brinquedo, criando um objeto estético universal na sua signillcacäo. Cria um objeto distinto da natureza. Esse inútil essencial que consti-tui a mágia dessas formas täo frágeis e singelas da beleza, esse mundo miniaturizado que o artesäo sonhou naquela matéria c que vai nascendo de suas mäos. "A euriosidade da infäncia, o artista a prolonga e privilégia além dos limites dessa idade. Ide toea, ele apalpa, ele estima o peso, ele mede o espaco, ele modela a lluidez do ar puto e prefigura a forma, cle acaricia o contorno de todas as coisas, e é da linguagem do olhar - um tom quente, um tom frio, um tom pesado, um tom vazio, urna linha dura, uma linha mole."'03 0 artesäo desnuda a polpa do miriti de sua veste de talas. Imprime nela urna forma econômica simples. A mesma mäo que faz barcos de verdade, constrói casas, forja o ferro, nave-ga e pesea, é a que imobiliza no miriti o acaso do seu deva-ncio. A mäo do trabalho j)esado fazendo o trabalho da leveza. Após a conformacäo da llgura pelo entalhe, é necessário o lixamento, a Eim de que as formas tenham suas superficies e contornos alisados ou amaciados. Toda aspereza deve ser des bastada. As superficies devem estar suavizadas para o reeebi-mento das cores, do toque das mäos c do olhar. É um proces-so dc suavizacáo da matéria que se processa após os eorte: modeladores. Objetiva-sc a eliminacäo das larpas da polpa d< miriti, a Fim de que as pecas tenham superfície alisada e sua vizada. Podc-se dizer que é também um gesto de ternura O objeto estético é criado por meio de movimentos que tradu-zem uma aproximacáo eťetiva da materia, uma eíetivacáo crescente, á medida que a obra se vai conílgurando. Como o eeramista, o fabrieante de brinquedos de miriti acaricia as for-mas objetivadas de sua imaginacáo criadora, impregnando-as de uma humanidade coneentrada, transierida pelo toque das maos, da pele, da emocao sensível. Com o uso eomplementar do cabo da lamina do entalhe, a superfíeie porosa adquire uma impermeabilizaeao que favoreee á pintura. Quando há brinquedos compostos de várias partes, eles preeisam ser montados — ťixados por cola ou estiletes de tála - para receber a forma Hnal. Os brinquedos estao prontos, mas ainda apresentam a eor neutra do miriti. Alguns artesáos mantém neles essa tonalidade. Outros, pintam-nos de cores ou signos. Poucos fabricantes, como, por exemplo, Antonio Jaruma, substituíam ou substituční a pintura das ílguras por vestimentas. "Eu comecei a fazer com a idade de 7 anos. Aprendi lá no interior, em Jaruma. Eiz da minha cabeca, sem ninguém ensinar. Tinha uma turma de 5 a 6 moleques. A gente ia pra beira do igarapé, tirava miriti, botava pra secar e fazia barco pra brincar na água. Eazia aviáo, fazia curru-pio. A gente fazia barco grande, de vela de pano, enchia de pedra e punha pra disputar no rio. Tinha 8 a 10 canoas cor-rendo todo dia de domingo. Fomos aprendendo assim, cada qual fazia um mais bonito. A tinta, cada um fazia de acaí, porque nao tinha tinta, náo havia nem de anilina. Entao nós pegavamos o acaí preto, amassava ele puro c botava limao. Ficava vermelho. Quanto mais limáo, mais muda a eor, mais vermelha a tinta. Agora eu nao uso mais porque ficou tao caro o acaí, e tem também a facilidade de tcr tinta."IIM 0 fabrieante desse artesanato artístico atenta para a sua artisticidade mesmo quando sua finalidade é lúdiea ou utili-tária. Trata-se de uma espécie de arte do tipo cquivalcnte ás artes momentáneas como as instalacóes ou a arte do cartaz. Nessas artes, a sua destruicao está intimamentc ligada á sua cxistčncia. A destinacáo para o eterno próprio das artes aurá-ticas, opdem uma fragilidadc mortal e sem conllitos, incor-porando a brevidade como um valor inerente a elas mesmas. $8o Aries do efémero — o cartaz, as instalac,ôes, os brinquedos de miriti — tôni na destruieäo pelo uso urna contingéncia cons-titutiva e näo urna Forma de valor negativu. No entanto, a uti-lizacäo como brinquedo propriamente é apenas um dos destines desse artesanato artistico, eapaz de aleancar durabilidade nos museus de arte popular e na decoracäo. Os brinquedos de miriti estäo impregnados de urna artistici-dade singular adequada ao material do qual é ľeito, represen-tando a penetracäo dessa esteticidade nutrida no devaneio operataivo e poetizante da vida amazônica. Revela urna sen-sibilidade instintiva participando objetivamente das ľormali-zacôes da vida. 0 brinquedo de miriti é urna confluéncia des-sas duas lendéncias que permitem converter em urna forma sensível o desejo de liberdade do espírito. 0 caráter lúdico convive com a beleza. 0 brinquedo de miriti, por sna aparén-cia artística e sua destinacím lúdica, é urna forma intercam-bial de jogo e de beleza. Mesmo porque, sendo a arte um aná-logo do jogo, essa interseceao analógica constitui um dos fatores de legitimacím do brinquedo de miriti como artesanato artistico. Após a valorizacím da estética industrial, certas discussôes sobre arte e utilidade perderam em grande parte seu fôlego. Evidentemente que, na mím das criancas, a funcäo dominante do brinquedo de miriti é a de jogo. Mas é o mesmo que acontecerá, em condicôes equivalentes, com os bonecos e bois do mestre Vitalino, que estäo entre os mais representa-tivos artesanatos artísticos brasileiros. 0 que ocorre no brinquedo de miriti é que persiste nele ainda a finalidade lúdica, ním se tendo desloeado a producäo para o campo prioritário da recepeäo ou do consumo dominantemente artistico. Aliás, esse componente lúdico ainda é presenca também dominante na producäo. Os seus artesäos se confessam gratillcados com esse trabalho, como pode ser testemunhado por seu Abaeté que, vendo o sucesso comercial de venda dos brinquedos durante o Círio de Nazaré, em Bělém, ou o Círio de Nossa Senhora da Conceicäo, padroeira de Abaetetuba, eon cluiu que "era bonito e dava dinheiro certo": "ľra mim é uma arte, porque tem gente que faz aquilo que vé, eu erio". Como 3#r lodo artesáo, ele vende pessoalmcnte seus objetos artisticos: "Eu aeho tao bonito aquilo. Eu náo vou só vender os brinquedos náo... eu vou pra ver a Sanla também". Todos esses artesáos se confessam levados pelo prazer de fazer e vender os seus produtos. A perfeicáo desse jogo, a harmonia das lormas produzidas, a originalidade, a composicáo plástiea, o cromatismo resullam em sua esteticidade. Em sua Localizacáo como artesanato artístico, onde se per-cebe "o encontro dc uma técnica e de uma intuicáo", o brinquedo de miriti situa-se na zona fronteirica entre a arte e a criacao extra-artistica. Nele, a funcáo estética é muito mais visível do que em outros tipos dc brinquedos e outras formas de artesanato da propria regiáo, como os brinquedos de madeira e a poteria. Pela forma, pela cor, pelo conjunto expressivo e originalidade, o brinquedo de miriti é valorizado como objeto por via de sua aparéncia formal. Com Isso, ele adquire uma independéncia ante a realidade. Eoi por esse motivo de evidenciacáo estética que esse brinquedo ultrapassou o públ ico inlantil destinatano, para conquistar com uma finalidade náo finalística ou lúdica, mas estética, um outro publico para esse "mundo sem idade", de que fala Luis Carlos Morais""'. Mukarovwsky considera que o artesanato artístico pode ser configurado historicamente nos fins do século XIX e initios do século XX. Sáo casos cm que se opera uma evidenciacáo dos aspectos estéticos, cvoluindo para casos em que a funcáo utilitária se degrada, a intensidade de uso vai sendo anulada, surgindo objetos que, sendo anteriormcnte de uso - como, por exemplo, tacas - náo podiam mais ser usados, mas somente apreciados. Eram tacas para ver e náo para beber. No easo dos brinquedos de miriti, fora do uso como brinquedo infantil, mas apreciados nos museus e nas decoracocs, ou nas colecoes particulares, houve a conversao cm brinquedos para serem contemplados e náo mais para brincar. Convertem-se em objetos para os adultos. Há uma transposi-cáo de estados, uma conversao semiótica de artesanato em arte. Um trajeto cruzado por meio do qual cresce a funcáo estética á medida que deeresce a funcáo lúdica e utilitária. 382 Sem poder competir com a seducäo e a eíicácia dos brinque-dos industrials, eletrônicos ou meeánieos, o brinquedo de mířili se resguarda protegido por sua cativante singeleza estética. 0 que atrai nele näo é a complexidade de efeitos mas o tempo de uma simplicidade atraente da infancia nele concentrado. Volta-se aqui, ao conceito de temps comprimé ou concentra-do de Gilbert Durand. Esses objetos deflagradores do tempo de uma vida, que ľazem cum que todo um passado possa emergir de uma taea de ehá, ante n doce sahor do uma sin-gela madalena. Esse fenômeno acontece em objetos intensa-mente energizados pela cultura, que säo como urn botáo de epifania prestes a desabrochar ao toque dos dedos de urn momento qualquer no cursn da existencia. Uma energizacao que se processa por acumulacao de tempos e de vidas, suces-siva consolidacäo de significados universais, por via de uma cadeia de emocôes individuals. Esses ľrágeis brinquedos de miriti, como um poema, como urna cancäo, como fragmen-tos de vida durando na memúria emotiva, quando säo reen-contrados em outras épocas ou lugares, reeompňem todo um passado. Como todo caso de tempo comprimido [temps corn-prime) säo como o repetido rebrotar da fonte do devaneio. c. Tipos e características dos brinquedos. A execucáo material das representacoes do seu imaginário faz do trabalho de fabricacao dos brin(|uedos de miriti uma atividade de cunho artesanal, uma vez (pie o l'abrieaute tem a responsabilidade completa nos objetos produzidos. Uti-lizando a mao e um instrumental reduzido, cle mesmo comercializa seus produtns. Na sua condican de artesanato artístico, o brinquedo de miriti "é o produto únicn de uma atividade que se situn, algumas vezeš, sobre o piano das ati-vidades imaginárias de um grupo social dado". Ele vai revelando o inesperado na sua materia leve. 0 que antes era superficie, ángulos, rugosidade, vai-se refazendo 3*3 cm asas, bracos, pernas, pássaros, flguras. A rugosidade sc convcrtc cm maciez sob o toque das maos dialogando com a materia. Libcrando o imaginário aprisionado na materia. E as figures de brinquedo intermedeiem relacoes entre uma e outra alma. Por sua aparente ingenuidade, o brinquedo de miriti repre-senta uma espécie de gloria efémera da emocáo, renovan-do e embelezando a materia vegetal, que se torna cativan-tc por recriar para o adulto uma encenacao, a mis en scene de urn cstado de infancia que vai ficando cada vcz mais nos bastidores, a medida que o tempo passa. Para as crian-nas há uma adesao ideniificadora, uma vez que naqueles pássaros, aves, animais e homens no trabalho, há uma sin-gela representacáo daquilo que elas náo tern ainda a Ventura de criar. Vai-se promovendo, ao mesmo tempo, uma pedagogia do gosto, uma educacáo da sensibilidade nos moldes teorizados por Schiller, visto que as criences sáo atraídas para formas de beleza a part i r dc materia is e téc-nicas simples da regiáo, do seu contexto, demonstrendo-lhes possibilidades criadoras na relacáo com seu mundo. Urn exemplo dc como a materia á sua (rente pode se tor-nar sentimento e emocáo. E nessa condicáo formadora dc percepcóes dc beleza -criacao e rcccpcao - como na educacáo da sensibilidade que repousa uma das caracteristicas sociais da estética perceptível nos brinquedos dc miriti. É urn dos clcmcntos (pie uneni a popu-lacáo em torno de uma emocáo partilhada, expansive e extensive. Essa etitude e emocáo estétices (pie penetram con-tinuamente na vide, como ume des relacoes essenciais dos homens com a realidade. Como objeto estético, o brinquedo de miriti é o signo de sua propria simbolizacáo. Desse inenci-re, vao sendo orquestredes e renovedes es relacoes entre o caboclo amezónico e sua realidade sobre e quel sen compor-tamento se reflete. A respeito desse relacáo entre e norma estética e a organizanáo social, Mukerowsky demonstre bem""' que é e condicáo social do homcm que lhc permitc comprccn-dcr-sc o caráter veriável e obrigetório de normě estetice. 0 contexto cultural amezónico, cm que sc observe 3H uma intcrseccao do mágico no real, explica essa valorizacím estética do brinquedo de miriti e a sua esteticidade singela presente ou dominantě. A variedade dos objetos produzidos é muito grande nesse relacionamento entre o simbólico e o real, podendo-se dar alguns cxemplos ilustrativos: A "montaria", que é a representacáo em pequena escala de uma canoa ou igarité indígena. Pode ser encontrada pintada ou sem pintura. Sua forma deslaca-se pela plast ieidade, reproduzindo fielmente as proporcoes do modelo original. A "canoa de vela" é um tipo mais complexo, uma vez que exige a cobertura no tombadilho, mastros, lemes com mobilidade e pintura onde aparecem, a par das cores básicas, os signos que fazem parte dos códigos semióticos das canoas grandes que navegam pelos rios da Amazonia. Os "navios ou motores", sej a do tipo "gaiola" ou "marabaense", eonstruídos segundo os modelos de grande porte, exigem maior complexidade na fabricacáo e na pintura. 0 mesmo aeontece com os "iates" de dois mastros com velas, que se assemelham a um tipo de embarcaeáo comumente utilizada para o transporte de gado bovino da i 1 ha do Marajó. A "cobra-que-mexe" é uma reproducao na regiao. Lila é enge-nhosamente articulada, o que lbe permite um movimento coleante de reptil quando agitada pělo vento ou arrastada no cháo por um íio. Divididas em partes de miriti que sáo uni-das longitudinalmente por uma lira de pano que passa pelo meio da cabe^a á cauda, as cobras-que-mexem tem no movimento um elemento visual constitutivo de sua funcao. Nao é apenas uma cobra: é uma eobra-que-mexe. Outro componente dessa fauna de miriti é o "tátu". 0 tátu também incorpora o movimento e tem nisso um de seus sinais de intetesse. Tendo no corpo, que é o apoio do con-junto, uma (ala eníiada numa das partes laterais. pode ser manipulado com a man que o movimenta para a esquerda ou para a direita, oscilando como uma balanea imaginária. lim consequéncia disso, a cabeca e o rabo, (jue sao móvcis, oscilam, numa estilizacäo dos movimentos do animal vivo. 0 que per-mite esse movimento é um pequeno peso pendente em um ťio sob o easeo do tatu, cujas pontas estäo atadas, de um lado, ä eabeca e, de outro, ao rabo. Outro brinquedo de grande aceitacáo é o "soca-soca" repre-sentado por dois homens trabalhando com piladores, isto é, triturando urna substancia imaginária no piláo. Estäo ambos sentados segurando a mäo-de-piläo para usar, um dc frente para o outro. Entre eles fica o piläo. Por um artiľício de fabrieacäo, bašta um pequeno movimento nas bases onde estäo sentados - duas tiras articuladas e superpostas - para que, alternadamente, batam com a mäo-de-piläo no piläo. Pintados com cores primárias, eles constitucm um interessante objeto plástico e, ä semelhanca dos outros brinquedos, podem ser agrupados cm forma de painel de grande efeito visual. Na mesma linha de concepcäo de conjunto cromático e plástico estäo as "pombinhas". Säo duas pombas pousadas numa tira de miriti, urna de frente para a outra. Entre elas demora-se urna vasilha com imaginários gräos. Do pescoco articula-do ao corpo de cada ave sai a ponta de um cordäo que se une amarrando um pequeno peso que líca pendurado embaixo. Segurando-se numa tala que está espetada na base do brinquedo e oscilando-se pendularmentc á csquerda e ä direita, provoca-se um movimento que faz as figuras simularem estar bicando alimento na vasilha. Os "dancarinos" representam um casal dancando. Estäo abra-cados e o movimento da danca pode ser provocado pelo vento, caso estejam pendurados, ou pelas mäos, ä semelhanca de marionetes. Esses dancarinos usam roupas de pano, o que os difere dos outros brinquedos. Säo alguns exemplos da variada tipologia dos brinquedos de miriti, representativos da invencäo e do fértil imaginário do caboclo. Trabalhando com o miriti, complementam com outros materiais segundo a necessidade: algodäo, argila, tecidos baratos, talas, ílos, cola, resinas, tintas, etc. Väo se acumulan- $86 do novos elements desde que exigidos pelo processo de fabri-cacäo e atendendo äs novas idéias criativas dos artesäos. Os brinquedos de miriti säo expostos ou levados ä venda em uma estrutura que tem a forma de uma cruz de bravo duplo, feita com pedacos do mesmo material, tendo por volta de 2 metros na haste vertical e 1 metro nos bracos horizontals. Nessa estrutura säo presos os brinquedos, formando uma espécie de painel de grande beleza visual. Os brinquedos säo colocados sem uma necessária ordern, de modo que essa acu-mulacao de lormas, cores e movimento resulta em um con-junto estétieo original c atraente. Sao as "girándolas" ou "girandas", como popularmente säo conhecidas. 0 nome é apropriado: girándolas. 0 eonceito de girändola é de buque, conjunto de logos de artificio, travessäo em que se reťi-nem cert o numero de foguetes que sobem e estouram simulta-neamente. Os brinquedos reunidos em girándolas säo como fogos de artificio imobilizados no ar e no tempo. Permaneeeni com seu esplendor exposto, suspenso e sem se extinguir dian-tc de olharcs atraídos por essas lormas e cores exibidas como uma composicáo plástico-eromática. Uma espécie de resplen-dor barroco levado pelas ruas. Uma árvore de signos. Deixado ao acaso das demandas do mercado e da produeäo individualizácia, o brinquedo de miriti exerce uma dupla fun-cäo que se alterna ou substitui como dominante: a lúdica e a estética. Ambas cstäo relacionadas com suas relates com o mercado. A demanda maior de mercado resulta de sna situa-£äo lúdica. Säo relacôes que oscilam de forma pendular c inversante dentro da cultura. Quando a funcäo estética domina, a lúdica torna-se secundaria e vice-versa. Ocorre de urna forma dinämica no campo sociocultural o fenômeno que se vem denominando de conversáo semiótica, isto é, urna altc-racäo de dominante pela mudanca de relacäo cultural no pereurso de um objeto, de um aconteeimento, de um signo. Ora triunfa o utilitário-lúdico, prosaico; ora o estético-ex})ressivo, poético. Mntendidos como ponto de encontro, "há neles urna perfeita conjugacäo enire ra/.áo e emocäo. Construídos como se obedecessem täo-somente á necessida-dc, sem excessos, sem desperdícios, o que resulta em pura poesia""". Representam um jogo de puxôes: sáo produzidos manual mentě para o publico restrito e náo-orientado, embo-ra motivado, da época do Círio de Nazaré, em Belem ou do Círio dc Nossa Senhora da Conceicäo, cm Abaetetuba. Exprimem, nesse jogo, o devancio dc scus fabricantes: "Onde cu estou está cheio de erianca. Todo o meu trabalho é ťeito para as eriancasB. Embora haja a fabricacao de um numero limitado de tipos dessa forma dc artesanato, cada um dos objetos apresenta uma singularidade artística individualizadora. Todos tčm uma forma, mas nunca uma forma. Säo, portanto, densa-mente simbólicos. Nenhum é idéntico ao outro, em sua con-dicäo artesanal. "Ora, o que caracteriza o objeto onde o ina-cessí-vcl näo é mais deixado ao acaso da procura c da exe-cucäo individuals, mas que é hoje em dia condenado e siste-mati-zado pela producäo, que assegura através dele (e a combi-natória universal da moda) sua propria finalidade."104 Quando väo para as mäos do colecionador, do decorador ou para museus, os brinquedos dc miriti experimentam o fenô-meno que Jean Baudrillard chama de abstracäo da funcäo. Quando é usado como brinquedo, ele näo é um objeto esté-tíco, mas um brinquedo. Nas mäos do colecionador ou nos museus, ele é esvaziado de sua finalidade ou funcäo, conver-tendo-se em objeto estético. Há a transferéncia de dominante nesse processo de conversäo semiótica do brinquedo de miriti. Ele deixa de ser um instrumento para tornar-se um objeto auto-reflexivo. Näo é mais um caminho para uma finalidade exterior a ele, mas um caminho para si mesmo. Näo é mais euriosidade c instrumento dc jogo para quem o utili-za, mas objeto de paixao de quem o possui. e. 0 pais submerso Em texto de abertura da Exposicäo de Brinquedos Populares promovida pela Secretaria Municipal de Educacäo c Cultura de Beiern em 1984, o pintor Emmanuel Nassar afirma que foi atraido pelos brinquedos pelo sen colorido, forma e cunosidade Hm seguida pelo Interesse de resgalar o que ficou perdido no tempo, de alegria e, eertamente, de emo-cao. Algo me dizia que aqueles brinquedos fazem parte daqudo (pie ehamo de 'pais submerso', que e o verdadeiro pais por baixo da aparencia imposta pelos padröes culturais mternaeionais....... Para ele e necessärio uma verdadeira arqueologia a fim de descobrir-se o Brasil encoberto, onde restam Iragmentos de culturas extintas ou desaparecidas. Ideahza uma espeeie de retorno ä identidade original, a par-tir do que todos se tornassem sujeitos a sua propria voz. De certa maneira, essa ideia de compreensäo profunda da sociedade amazöniea por mein de sua arte, revelando seu mundo eultural submerso, coincide com "o destaque de Iran-castel que arte e um metodo de escolha para compreender a cultura escondida e os sentidos secretos de uma sociedade, pois que, atraves das visöes do paleolitico nös percebemos as primeiras elassificacöes naturais do espirito e o dualismo provävel da visäo de mundo das sociedades primitivas", rei-terado por Roger Bastide, ao estudar as origens das belas- artes numa perspectiva sociolögica...... Para Emmanuel Nassar, um dos pontos de convergencia visivel e social desse mundo submerso estä nos brinquedos populäres. "Na sua construyäo näo estäo as odiosas barreiras entre a ciencia e a arte, entre o criar e o fazer, que tanto caracterizam a esqui-zofrenia da sociedade em que vivemos."1" üs brinquedos de miriti säo uma epifaniza^äo de uma cultura amazöniea submersa sob as cannulas culturais (pic sc ioram empilhando na Amazönia. Revelam, portanto, essa ou-tra que estä alem das evidencias, cssas raizes submersas prontas a allorar cm atividades de cunlio material ou simbö-lieo do imaginärio. Psse outro que a cultura amazöniea c alem das apareneias e que vem das realidades psicossociais encobertas por tantas fases de colonizaeäo ou dcsenvolvi-mento näo enganjado na cultura. Esse pais submerso pode revelar-se pela mitologia, por exemplo, nas encantarias situadas numa realidade alem do real e da cultura manifesta. Ou mesmo nas cidades encantadas submersas no imaginário, como Abaetetuba, transfigurada na ilha da Pacoca e guarda-da pela boiúna, a cobra-grande mitica. Nos brinquedos de miriti aparecc urna espécic de outra natu-reza miniaturizada, gulliverzada, fruto do encontro entre a técnica e a intuicäo. Urna espéeie de memória da natureza e da infáncia esculpida no efemero da polpa do miriti. Hsse mundo sem idade guardado na memória da eultura originá-ria e que constitui o lugar das realidades imaginárias, enrai-zadas na existencia colctiva da sociedade amazônica. Urna outra característica, enfim, do brinquedo de miriti como artesanato artístico é sua efemeridade. Urna fragilidade que contraria sua condicäo de brinquedo e o aproxima da condicäo de objeto estético, sob a qual ele podc resistir ao tempo. Isto significa que a fragilidade material de seu suporte de miriti é mais coerente com a condicäo de artesanato artístico do que de sua destinacäo como brinquedo. Na sua outra condicäo marcada pela artisticidade artesanal, ainda que a fragilidade do suporte de miriti permaneca, a condicäo de esteticidade Ihe atribui maior permanéncia no caso de seu uso como arte decorativa, nas máos do colecionador ou na vitríne dos muscus. 0 certo é que sua eficácia cstá também ligada ä sua fragilidade. Como certas flores que tém a duracäo de um dia, o brinquedo de miriti é um artesanato artístico que näo se propôe como duracäo indeterminada. Sua existencia é a da brevidade. Faz do efemero sua matéria e näo tem na duracäo sua qualidade. Seu tempo é urna forma de acaso. Como o cartaz, a publicidade, a "instalacäo", seu tempo é limitado ä sua utilidade ou funcäo. Somente o colecionador refaz sua aura. Näo apresenta nem raridade nem especial dote em seu material. Todo seu efeito advém da es-tetizacäo que o transfigura. É o jogo entre a finalidade e o destino desse artesanato. 0 eixo em torno do qual se opera o movimento dialético da conversäo semiótica na mudanca cultural de dominäncia de instrumento lúdico para objeto estético, que pela fragilidade de seu material renuncia ä expectativa aurática de duracäo ou cternidade. 3po NOTAS BIBLIOGRÄFICAS 1 SALLES, Viccnt A Müsica e o Tempo no Gräo-Parä. Beiern, Conselho Estadual de Cultura, 1980, p. 25. 2 SALLES, Vieent, op. cit, 1980, p. 27. 3 GALVÄO, Eduarde Santos e Visagens. Säo Paulo, Gräfica da Revista dos Tribunais, 1955, p. 8. 4 WAGLEY, Charles. Uma Comunidade Amazönica. Säo Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977, p. 50. 5 SALLES, Vicente, op. cit., 1980, p. 31/32. 6 SALLES, Vicente, op. cit., 1980, p. 33/34. 7 MARX, K. le Capital Mexico, Fundo de Cultura Econömica, v. 3, p. 320. 8 BOSI, Alfredo. Dialetica da Colonizacäo. Säo Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 23/24/25. 9 VAN GENNEP, Arnold. Coutumes et croyances populaires en France (T.A.) 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Beiern, Secretaria Estadual da Cultura, 1987, p. 16. 20 Lcs racines historiques du conic merveilieux. Paris Gallirnard, 1983. 21 M UK AR OWOSKY, Jan. Estudos Söhre Estetica c Semiotica da Arte. Lisboa, Estampa, 1981, p. 224. 22 Este conceito aparece em outros sentidos, corn referenda ciencia poetica de Bachelard em P. Quillet, in Bachelard. Paris. Segheres, 1970. Cite par Japiassu, Hilton, in Para Ler Bachelard, Rio deJaneiro, Librairie Francisco Alvcs, 1987, p. 89. 23 JAPIASSU, Hilton. Para Ler Bachelard. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1970, p. 89. 24 JAPIASSU, Hilton, op. cit., 1876, p. 89. 25 MUKAROWSKY, Jan, op. cit, 1981, p. 27. 26 BUCCT-GLUCKSMANN, Christine. La folic de voir de Vesthetique baroque. (I.A.) Paris, Galilee, 1986, p. 71. 3ßz 27 CHEVALIER, Jean el GHEER, Alain. Dictionaire de Sym boles. Paris, Robert Laffont, 1982, p. 933. 28 BALLE, Francis et LETEINTURIER, Christine. La Television. (LA.) Paris, M. A. Editions, 1987, p. 153. 29 ECO, Umberto. a Estrutura Ausentc. Trad. Perola de Carvalho. Sao Paulo, Perspectiva, 1971, p. 71. 30 BOSI, Alfredo, op. cii., 1992, p. 67/68. 31 LEITE, Serafim, Histöriä da Companhia de Jesus no Brasil, 1943, p. 296. 32 Beiern: Conselho Estadual de Cultura, 1990, p. 94. 33 SALLES, Vicente, op. cit, 1980, p. 238. 34 SALLES, Vicente, op. cit., 1980, p. 261. 35 SALLES, Vicente, op. cit., 1980, p. 289. 36 SALLES, Vicente, op. cit., 1980, p. 407. 37 SALLES, Vicente. Couverture du Disque Folguedos Populates do Para. Beiern, Sedue (Secretaria de Educacäo do Estado), 1980. 38 HURLEY, Jorge. Itaranä. Beiern, Off. Gräficas do institute Dom Macedo Costa, 1934, p. 136/159. 39 PERSE, Saint-John. Oisseaux. Oeuvres completes. Oiseaux. (TA.) Paris, Gallimard 1982, p. 427. 40 ANÜRADE, Mario de. 0 Turista Aprendiz. Säo Paulo, Duas Cidades, 1877, p. 81/102/103. 41 LUSTOSA, Dom Antonio de Almeida. No Tstudrio Amazönico. 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Nouvelle Techinique d'art dramatique. Ecrits sur le theatre Trad, teilleur, Jean et Dclpel et de Beatrice Perregaux, ct Jean Jordheiril, (T.A.) Paris, L'Arche Editeur, 1963/72, p. 335. 54 BRECHT, Bertolt, op. cit., 1963/72, p. 335. 55 BRECHT, Bertolt, op. cit., 1963/72, p. 337. 56 UIDEL. II. Le Vaudeville (T.A.) Paris, Puf, 1986. ! |^ I 57 ROUSSIN, A. Farce Vaudeville. Cahier de la Compagnie Renault-Barrault, n- 32, december, 1960. Cite par, Etienne souriau in Dictionaire du Theatre. Paris, Puf, 1990. 58 SOURIAU, Etienne. Dictionaire du Theatre. Paris, Puf, 1990. 59 VAGLEY, Charles, op. cit., 1977, p. 202 60 DURAND Gilbert. Les estructures anthropologiques de ľimaginaire. Paris, Dunod, 1994. Estruturas Antropológicas do Imaginário. Trad. Milder Cantinho, Lisboa, Presence, 1989, p. 120. 61 WAGLEY, Charles, op. cit, 1977, p. 203/204. 62 SALLES, Vicent, op. cit., 1988, p. 193. 63 BRECHT, Bertolt, op. cit., 1972, p. 249. 64 ANDRADE, Mário. 0 Turista Aprendiz. Säo Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 76. 65 Texte ďinformation de la Prefecture Municipale de Parintins 66 0 Magnißeo Folelore de Parintins, Manaus, Gouvernement d'Etat, 1989. 67 Texto "mimeogr." cite en publication par ĽĽnterprise Jornal do Comércio, de La Nova Comunicacäo e Marketing Ltda. Manaus, juin, 1989. 68 SAUNIER, Tonzinho. 0 Magnißeo Polclore de Parintins. Manaus Gouvernement d'Etat, 1989, p. 33. 70 SAUNIER, Tonzinho, op. cit., 1989, p. 34. 71 SOURIAU, Etienne, op. cit, 1990. 3ß5 72 FOUCAULT, M. L'usage des. plaisirs. Paris, Gallimard, 1984, p. 106. 73 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 56. 74 SIMMEL, Georges. Eslheüque et sociologie. La tragedie de la cultura. Paris, Rkivage, 1988, p. 1332. 75 SIMMEL, Georges, op. cit., p. 129. 76 JC - Publicacao do Jornal do Comercio, Manaus, 1989. 77 Editorial do Jornal 0 Parintins, sem referenda ao mes, 1988. 78 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 226. 79 MUKAROWSKY, Jan, op. cit., 1981, p. 228. 80 BOROJA, Julio Caro. Le Carnaval Trad. Sylvie Sese Leger. Paris, Gallimard, 1979, p. 50. 81 Paris, Gallimard, 1992, p. 162. 82 Paris, Gallimar, 1992, p. 189. 83 Carnavais, Bandidos e Herdts, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 25. 84 Carnavais, Bandidos e Hcröis, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 25/26. 85 Carnavais, Bandidos e Hcröis, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 21. 86 The Interpretation of Cultures: ensaios. New York, Basic Books, 1973. Cilado por Oa Matta, Roberto, op. cit., 1983, p. 109. 87 DA MA ITA, Roberto, op. cit., 1983, p. 109. 88 DA MAT FA, Roberto, op. cit, 1983, p. 114. 89 DA MATTA, Roberto, op. cit., 1983, p. IK). 90 DA MATTA, Roberto, op. cit, 1983, p. 116. 91 Paris: Editions Galilee, 1986, p. 238. 92 BUCCI-GLUCKSMANN, Christine. La folic Jm». Btimhs Safav £stftie* e Semiatica da Arn-.. Usbun, listampa, IUÖ1, p. 23, 3 IAN NI, Octávlo. In Poraní im fPrefácioj. Livro de poemas de Paes Lourciro, Joäo de Dens. Rio de Janeiro, Civilizacäo Brasil vim, l()79. 4 MOREIRA, Eidorf. Capitalismo — uma revolueäo geogräfica. 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Belo Horizonte, Itatiaia, 1990, p. 235/236. lr> RIBEIRO, Berta, op. cit., 1990. ý-20 16 Cabier n.L,l, p. 11. 17 JATENE, Simäo Robson. A meia-vida da crianca na Amazonia. Beiern, Uniäo das Universidades Amazönicas (UNA-MAZ) Universidade Federal do Para, 1993, p. 34. 18 JATENE, Simäo Robson, op. cit., 1993, p. 78. 19 Prerequis du modele d'integration de l'Amazonie Bresilienne aux marches national et international des derniercs anees: la modernisation ä rebours. Cabier CERCAL n." 13. Bruxelles, Centre d'Etude et de Promotion des relations entre les pays de la C.E. et de PAmerique Eat ine, 1994, p. 46. 20 Conflito no Campo, CIT, Regional Nord-Belem, 1989. 21 LOUREIRO, Violeta, op. cit. 1994, p. 47. 22 op. cit., 1990. 23 Paroles de la Greee antique. Textos recolhidos por Lacarriere, Jacques. Paris, Albin Michel, 1994, p. 32. 24 Paroles tie la Greee antique. Textos recolhidos por Lacarriere, Jacques. Paris, Albin Michel, 1994, p. 41. 25 VARELA, Consuclo. Cristobal Colon Textos y documentos completos. Madrid, Alianza, 1986, p. 213. 26 VESPUCCTO, Americo. Cartas de riaje. Madrid, Alianza, 1986, p. 53. 27 MAGASICHI-AIROLA, Jorge et BEER, Jean-Mare de. Amerique Magique. Paris, Autrement, 1994, p. 49. 28 MORIN, Edgard. Sociologie. Paris, Fayard, 1994. p. 9. 29 MORIN, Edgard, op. cit., 1994, p. 9. 30 MORIN, Edgard, op. cit., 1994, p. 13. 31 MORIN, Edgard, op. cit., 1994, p. 14. 32 PALS LOUREIRO, Joäo de Jesus. Porantinr. poesia. I" livro da Triogia Cantares Amazönieos. Säo Paulo, Roswitha Kempt', 198 5, p. 76. 4-Z1 ACEVEDü, Rosa c CASTRO, Edna. Negros do Trombetas. Beiern, Editora Univcrsitäria, 1993. AGASSIS, Louis. Voyage au Bresil. Trad. Felix Vogeli. Paris, Hachette, 1969. ALVES, Isidore Promessa e Divida. Rio de Janeiro, Tese de Doutoramento, Mimeogr. UFRJ/Museu Nacional, 1993. ALIGHIERI, Dante. Purgatoire (La divine Comedie). Trad. Jackeline Kisset. Paris, Flammarion, 1988. _. Inferno Verde, Tonics, Tipografia Arraucttia, 1927. 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No final da década de 70 tornou-se, por concurso publico, professor de Fducacao Artístiea na Fscola Técnica Federal do Para e de História da Arle, Introducäo ä Filosofia e, depois, Estética, Cullura e Comunicacáo, na UFPA. Tornou-se Mestre cm Teoria Literária e Scmiologia pela PUC de Campinas em 1984 e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, Franca, em 1990. A partir de 1983 exerceu as funcöes de Secretário Municipal de Fdueacäo e Cultura de Belem, Superintendente (e criador) da Fundacao Cultural do Para Tancredo Neves, Secretário de Cullura do Pará, Secretário de Fducacao do Pará e, atualmente, Presidente (e criador) do Institutu de Artcs do Pará. 4-33 Obvcus LiterdrLeu Tarefa. Pará: Falängola, 1964. Cantigas de amar de amor e de paz - poesia. Belem: Gráf. Globo, 1966. Epistolas e Baiadas - poesia. Beiern: grafisa, 1968. Remo Mdgieo - poesia. Belem: Gráf. Sagrada Família, 1975. Enchente amazönica - poesia. Separata publicada pelo Conselho de Cultura do Pará, 1976. Porantim - poesia. Rio de Janeiro: Civilizac/äo Brasileira, 1979. Deslenddrlo - poesia. Rio de Janeiro: Civilizacäo Brasileira, 1981. Pentacantos - poesia. Sao Paulo: Roswitha Kempf, 1984. Cantares Amazönicos - poesia. Sao Paulo: Roswitha Kempf, 1985. O Ser Aberto. Belem: Cejup, 1987. Romance das tres flauias ou de como as mulheres perderam o domínio sobre os liomens: poesia. Traducäo para o Alemäo de Hildegard Fauser-Werle. Ed. bilingüe. Sao Paulo: Roswitha Kempf, 1987. 0 Poeta Wang Wei (699-759 AD) Na visüo de Sun Chin e Jodo de Jesus Pacs Loureiro - poesia. Ed. bilingüe. Sao Paulo: Roswitha Kempf, 1988. Artesdo das Águas. Belem: Cejup/Universidade Federal do Pará, 1989. Iluminacöes/Iluminuras - poesia. Traducäo para o japonés de Kikuo Furuno. Ed. bilingüe Roswitha Kempf, 1988. Altar em chamas e outros poemas. Säo Paulo: Cejup Cultural, 1989. Elemeníos de Estética. Bělém: Cejup, 1989. Cinco palavras amorosas d Virgem de Nazaré - poesia. Bělém: Cejup Cultural, 1989. Tarefa - poesia. Reed, fac-similar. Pará: Falángola, 1989. Erleuchtungen/Malereien (Iluminacöes/Iluminuras). Traducäo para o alemäo de Michael V. Killischh. Munique: Horn, 1990. Cantares Amazönicos - coletänea de poemas. Ed. bilingüe (portugues e italiano), lancada em L'Aquila, Italia. 4-34- Parä: Falängola, 1990. Cantares Amazonkos. Ed. bilingüc (portugues e alemäo). Berlim: 1991. Qultura Amazönka - uma poetica do imaginärio. Beiern: Cejup, 1991. Une Complainte pour Chico Mendts. Traducäo de Lyne Strouc. Poire International Icncs de E'Avenir - CCED. Paris: 1992. A poesia como encantaria da linguagem/Hino dionisiaco ao Boto. Beiern: Cejup, 1992. Altar cm Chamas - poesia. Rio de Janeiro: Civilizacäo Brasileira, 1992. Beiern. 0 Azul c o Raro. Beiern: Edicäo de Violöes da Amazönia, 1998. Pdssaro da Terra - teatro. Säo Paulo: Escrituras, 1999. Do Coraeao c Suas Amarras - poesia. Säo Paulo: Escrituras, 2000. LUeratura Brasileira cm Curso. Selecäo de Dirce Riedel. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1968. // Brasile Atraverso La Poesia. Selecäo de Savino Mombclli. Miläo: AVE, 1969. Antologia da Culiura Amazönica. Amazönia Edicöes Culturais Ltda., vol.2, p. 333/335. Poemas publicados na Revista Gazeta do Instituto Colombiano de Cultura, 1982. Poemas publicados na Revista Religiüo e Sociedade. Rio de Janeiro: 1983. Gesangc des Amazonas - Poemas/Gedichto. Berlim: Diä, 1991. •as Outros trabalhös: Inventario Cultural e Turistico do Para. Funarte/Idesp/Secult. Proposta Modular dc Educacao e Cultura - SEMEC. Cadernos de Cultura, 1985. Proposta Contextual de Educacao Infantil - SEMEC. Cadernos de Cultura, 1986. Projeto PREAMAR: 0 Para e a Expressao Amazonica - Boletim da Fundacao Cultural "Tancredo Neves", 1986. "Discos Disco com músicas de sua autoria - Escorpiäo/Roscmbi, 1974 Ate a amazónia - Músicas com Quinteto Violado. Rio dc Janeiro, Phonogran, 1975. Rostos da amazónia - Poesia, com Sebastiäo Tapajos ao Violäo. Rio de Janeiro, Phonogran, 1985. 0 Rei e o Jardineiro - Com Quinteto Violado. Producäo independente, 1995. Bělém. 0 Azul e o Karo [para ler eomo quem anda nas ruas) - Poesia e Música com Salomäo Habib, 1998. Obrat ^mdaÁcu Mha da Ira. Primeiro Prcmio do Servico Nacionál deTeatro, Ministério da Educacäo, Rio dc Janeiro, 1976. A Procissao do Sayré. Inaccn/MEC. Rio de Janeiro, 1977. Altar em Chamas. Prcmio dc Poesia, pela Associacäo Paulista de Criticos de Arte. Säo Paulo, 1994. 4tf Romance das trcsflautas. Prémio Jabuti. Säo Paulo, 1998. Joäo de Jesus Pacs Loureiro - Obras Reunidas. 1" lugar na categoria Livros de Texto e Melhor Acabamento Editorial do X Prémio Fernando Fini de Excelencia Gráfica. Sao Paulo, 2000. H7