QUANDO tio Severino voltou da fazenda, trou-xe para Luciana um periquito. Náo era um cara-suja ordinário, de uma cor só, peque-nino e mudo. Era um periquito grande, com man-chas amarelas, andava torto, inchado, e fazia: "Eh! eh!" Luciana recebeu-o, abriu muito os olhos espan-tados, estranhou que aquela maravilha viesse dos de-dos curtos e nodosos de tio Severino, deu um grito selvagem, mistura de admiracáo e triunfo. Esque-ceu os agradecimentos, meteu-se no corredor, atra-vessou a sala de jantar, chegou á cozinha, expós á cozinheira e a Maria Julia as penas verdes e amarelas que enfeitavam uma vida trémula. A cozinheira náo lhe prestou atencáo, Maria Julia franziu os bei-cos pálidos num sorriso desenxabido. Luciana desorientou-se, bateu o pé, mas receou estragar o contentamento, desdenhou incompreensóes, afastou-se com a idéia de batizar o animalzinho. Acomo- dou-o no fura-bolo e entrou a passear pela casa, contemplando-o, ciciando beijos, combinando sila-bas, tentando formar uma palavra sonora. Nada conseguindo, sentou-se á mesa de jantar, abriu um atlas. O periquito saltou-lhe da máo, escorregou na folha de papel, moveu-se desajeitado, percorreu lento vários países, transpos rios e mares, deteve-se nu-ma terra de cinco letras. — Como se chama este lugar, Maria Julia? Maria Julia veio da cozinha, soletrou e decidiu: — Minsk. — Esquisito. Minsk? — É. Nao confiando na ciéncia da irmá, Luciana pe-gou o livro, avizinhou-se de mamáe, apontou o no-me que negrejava na carta, junto aos pes do periquito: — Diga isto aqui, mamáe. — Minsk. — Engracado. Pois fica sendo Minsk, sim se-nhora. Caminhou muito e parou em Minsk. É Minsk. Nomeado o periquito, Luciana dedicou-se in-teiramente a ele: mostrou-lhe os quartos, os móveis, as árvores do quintal, apresentou-o ao gato, reco-mendando-lhes que fossem amigos. Explicou miu-damente que Minsk náo era um rato e, portanto, náo devia ser comido. Adverténcia desnecessária: o bi-chano, obeso, tinha degenerado, perdido o faro, e queria viver em paz com todas as criaturas. Aceitou a nova camaradagem e, dias depois, estirado numa faixa de sol, cerrava os olhos e agúentava paciente bicoradas na cabeca. Essa estranha associacáo lison- 69 jeou Luciana, que supös ter vencido o instinto car-niceiro da pequena fera e a mimoseou com as so-bras da afeicäo dispensada ao periquito. O instinto de mamäe é que näo se modificava: de quando em quando lá vinham arrelias, censuras, cocorotes e puxöes de orelhas, porque Luciana era espevitada, fugia regularmente de casa, desprezava as bonecas da irmä e estimava a companhia de Seu Adäo carroceiro. — Luciana! Luciana estava no mundo da lua, monologan-do, imaginando casos romanescos, viagens para lá da esquina, com figuras misteriosas que ás vezeš se uniam, outras vezeš se multiplicavam. A chegada de Minsk alterou os hábitos da ga-rota, mas isto no comeco passou despercebido e mamäe continuou a fiscalizar o ferrolho alto da porta, a afastar as cadeiras da janela, excelente para fugas. Pouco a pouco cessaram as precaucöes — e as ami-gas invisíveis de D. Henriqueta da Boa-Vista dei-xaram de visitá-la. D. Henriqueta da Boa-Vista era a personalidade que Luciana adotava quando se er-guia nas pontas dos pés, a boca pintada, as unhas pintadas, bancando moca. Perdeu o costume de an-dar assim, ganhar cinco centimetr os apoiando os cal-canhares nos tacöes inexistentes de D. Henriqueta da Boa-Vista, esqueceu as escapadas, as aventuras na carroca de Seu Adäo. — Luciana! Agora Luciana se encolhia pelos cantos, vaga-rosa, Minsk empoleirado no ombro. Sentia-se no-vamente miúda, quase uma ave, e tagarelava, dizia 70 as complicacóes que lhe fervilhavam no interior, coi-sas a que de ordinário ninguém ligava importáncia, repelidas com aspereza. Mamáe saía dos trilhos sem motive A criada negra, rabugenta, estúpida, gru-nhia: "Hum! hum!" Maria Julia era aquela pregui-ca, aquela carne bamba, dessorada, e comportava-se direito em cima de revistas e bruxas de pano, triste. Papai sumia-se de manhá, voltava á noite, lia o jor-nal. E tio Severino, idoso, considerado, sentava-se na cadeira de bracos e falava dificil. Nenhum desses vi-ventes percebia as conversas de Luciana. Seu Adáo carroceiro é que procurava decifrá-las, em váo: ar-redondava os bugalhos brancos, estirava o beico grosso, cocava o pixaim, desanimado. Por isso Luciana inventava interlocutores, fazia confidéncias as árvores do quintal e as paredes. Esse exercicio, agra-dável durante minutos, acabava sempre fatigando-a. As sombras misturavam-se, esvaiam-se. Afinal de-sapareceram, substituidas pelo periquito, colorido e ruidoso, de espírito docil e compreensivo. — Minsk! Minsk arregalava o olho, engrossava o pesco-co, crescia para receber a caricia: — Eh! eh! Antes de amanhecer estalava na casa o grito agudo que aperreava mamáe. Uma ponta da cober-ta descia da cama da menina. O periquito se chega-va banzeiro, arrastando os pes apalhetados, segurava-se ao pano com as unhas e o bico, subia. Os bracos magros de Luciana curvavam-se sobre o peito chato, formavam um ninho. E os dois cochi-lavam um ligeiro sonho doce. 71 Minsk era também um ser disposto ás aventu-ras e á liberdade. Agitavam-no caprichos, confusas recordacoes do mato, e batia as asas, alcancava a copa da mangueira, voava daí, passava algumas ho-ras vadiando pela vizinhanca. Satisfeitos esses ím-petos de selvagem, regressava, pulava dos galhos, pezunhava no cháo, doméstico e trópego. Se se de-morava na pándega, Luciana, inquieta, subia á ja-nela da cozinha, sondava os arredores, bradava com desespero, até que ouvia duas notas estridentes, lo-calizava o fugitivo, saía de casa como um redemoi-nho, empurrava as portas, estabanada: — Quero o meu periquito. Entrava sem cerimónia, dava buscas, voltava triunfante, com o vagabundo no ombro. Virava o rosto, enviava-lhe beijos. Minsk se equilibrava agarrando-se á alca da camisa dela, metia a cabeca no cabelo revolto, bicava delicadamente as orelhas e o couro cabeludo. Ora, Luciana, estouvada, nunca via os lugares onde pisava. Mexia-se aos repelóes, deixava em pon-tas e arestas fragmentos da roupa e da pele. Tinha alem disso o mau vezo de andar com os olhos fe-chados e de costas. Sabia que essa maneira de locomover-se irritava as pessoas conhecidas, indiví-duos ranzinzas, exigentes. Mas a tentacáo era forte. E se conseguia, de olhos fechados e de costas, atra-vessar o corredor e a sala de jantar, descer os de-graus de cimento, chegar ao banheiro, considerava-se atilada e rejeitava as opinióes comuns. Otimismo cur-to. Uma pisada em falso, um choque na mesa, um trambolhao, e o orgulho se desmanchava. Um ca- 72 lombo aparecia no quengo, engrossava, justificava as impertinéncias caseiras. Luciana baixava a crista, humilhada. Necessário recomecar as experiéncias, até acertar. Um dia em que marchava assim pisou num objeto mole, ouviu um grito. Levantou o pé, sentindo pouco mais ou menos o que sentira ao ferir-se num caco de vidro. Virou-se, alarmada, sem perceber o que estava acontecendo. Havia uma desgraca, com certeza havia uma desgraca. Ficou um minuto per-plexa, e quando a confusáo se dissipou, sacudiu a cabeca, náo querendo entender. — Minsk! A aflicáo repercutiu na casa, ofendeu os ouvi-dos de mamáe, de Maria Julia, da cozinheira, che-gou ao quintal e á rua. — Minsk! gritou mais baixo. Parecia que era ela que estava ali estendida no tijolo, verde e amarela, tingindo-se de vermelho. Era ela que se tinha pisado e morria, trouxa de penas ensangúentadas. Minsk. Devia ser um sonho ruim, com lobisomens e bichos perversos. Os lobisomens iam surgir. Por que náo acordava logo, Deus do céu? Saltar a janela, andar em ruas distantes, entrar na carroga de Seu Adáo. — Minsk! Ele ia exibir-se, fofo, importante, banzeiro, ar-rastando os pés, todo frocado: "Eh! eh!" — Náo morra, Minsk. Pobrezinho. Como aquilo doía! Um bolo na garganta, peso imenso por dentro, qualquer coisa a rasgar-se, a estalar. 73 — Minsk! Ele estava sentindo também aquilo. Horrível se-melhante enormidade arrumar-se no coracáo da gen-te. Por que náo lhe tinham dito que o desastre ia suceder? Náo (inham. Ameacas de pancadas, que-das, esfoladuras, eoisas simples, sofrimentos ligei-ros que logo se sumiam sob tiras de esparadrapo. O que agora havia se diferencava das outras dores. Os movimentos de Minsk eram quase impercep-tiveis; as penas amarelas, verdes, vermelhas, csmo-reciam por detrás de urn nevoeiro bianco. — Minsk! A mancha pequena agiiava-se de leve, tentava eXpriinir-Be nurn bcijo: — Eh! eh! 74 A prisáo de J. Carmo Gomes •a pequena casa do Meyer, á Rua Castro Alves, D. Aurora Gomes, filha do Major Carmo Gomes, hoje defunto, soltou o jor-nal desanimada, com um aperto na garganta, pro-eurando ar, o diafragma eontraido. Os intestinos remexeram-se, D. Aurora deu uns passos no corre-dor e dirigiu-sc á sala de jantar. Aí, debelado o tu-multo das tripas, normalizada a respiracao, encostou os cotovelos á janela, enxergou á direita o fundo da igreja, á esquerda o telhado baixo do núcleo inte-gralista e a ponta de um mastro onde as vezes se ba-lancava a bandeira nacionál. Era domingo. A igreja devia estar aberta áquela hora, mas a bandeira náo se agitava em frente dela. D. Aurora pensou no jornal abandonado mi-nutos antes, uma angústia apertou-lhe novamente o coracáo e outras vísceras. Encaminhou-se ao banhei- 75