a campainha e o empregado voltou a aparecer: — Deixe ver o horário e as cadernetas do senhor dou-tor Alberto Soares. Dia novo. Belo dia de Outono cheio de niemórias de Verao. Tinha o corpo sovado de insónia e do comboio, os olhos ardidos de espertina, mas sentia-me bem, já na rua, com os meus papéis profissionais na aígibeira.Olho a pla-nície do alto da rampa e sinto-me invadido dessa plenitude de quem olha o mař do alto de uma falésia. E dois dias depois comecavam os exames da segunda época. Säo meia dúzia os alunos que essa manna suam as entrants. Há uma guerra de Tróia a decidir a golpes de dicionário. Eu assisto, ainda comovido. Fumo ao longo da sala, abro enfim uma janela para o espaco da planície, crestada, abandonada ao sol. Passa ao longe o assobio de um comboio de criancas, um carro desliza pela fita negra de uma estráda. O tempo arrefecera bruscamente. E um sol triste pousa ao de leve nas coisas, um ven to inesperado sopra de vez era quando, revolve no chäo as folhas secas das árvores. Nos fios eléctricos que passam diante das jane-las agrupam-se cachos de andorinhas que meditam na sua longa migracäo. Estremecem no baloico, aos sopros do ven-to, de penas ericadas, oíhando ao longe com melancolia. Subitamente, porém, a porta abriu-se e o vasto reitor entrou. Trazia no seu sorriso belfo e infantil uma pequena noticia para me dar: — O doutor Moura telefonou-me a perguntar por si. Quer saber onde é que o pode encontrar. III Mas nao foi fácíl encontrarmo-nos. Eu proprio lhe te!e-fonei daí a pouco a acabámos por marcar o encontro para o dia seguinte no Arcada, sem que Moura se lembrasse de que era uma terca^feira, ou seja, dia de mercado. Com efeito, ao entrar no café, após o almoco, ťrve a surpresa de ver aquele vašto tunel apinhado de gente. O corredor atra-vancava-se de negodantes, porque era ali, entre bebidas, que se reatizava o mercado da semana. A terca-feira era «dia de porcos», como soube mais tarde que lhe chama-vam. E, por isso, quando recordo esses dias distantes, a imagem que deles tenho é a de um ventre glorioso dige-rindo poderosamen'te, preencbendo compactamente todo o espaco do café... Achei a custo um lugar a um canto, ä esquerda de quem entra e onde viria a instalar-me para sempře. Em mesas postas para o almoco, forasteiros mas-tigavam; e dir-se-iam eles tao natura'mente feitos para isso, que mesmo sem mastigarem me pareciam raastigar; como certos carros «aerodinämicos» mesmo parados, parecem lar-gados a grandes velocidades... Por entre a vozearia, a fuma-rada e o odor a corpos, tento localizar o doutor Moura em 26 27 quem tenha o olhar inquieto e procure também como eu. Canso-me enfim e para ali fico, abandonado a cigarros e a olhos väos. Decerto o enconto falhara. Meu pai reco-mendara-me o Moura como um apoio no deserto. E sei que lhe escrevera. Tinham sido colegas em Coimbra, tinham ambos construído ai um passado, sobretudo através de uma discreta boémia — essa que, por ser discreta, pode melhor depois preencher uma memoria. Meu pai contara-meque o hörnern tinha uma bela voz de tenor e coadjuvava os amigos com serenatas nos flirts de ocasiao. Bato um novo cigarro, espero ainda. E de subito vejo vir áté perto de mim um sujeito gordo, baixo, ensacado, de olhar inquieto pelas mesas. Ergo-me, vou até ele. Fitámo-nos ambos um momento até acharmos o nosso traco de uniäo; e foi ele quem pri-meiro o descobriu: — É o doutor Alberto Soares? Ora viva, viva. Entäo que tal de viagem? Onde está instalado? Öra vamo-nos sentar um pouco. Isto hoje é mau dia, mas nem me lembrei. E sentámo-nos. Moura pediu o seu café e, talvez por reparar no meu fato preto, evocou enfim o meu pai. Con-tei-lhe o desastre subito da sua morte (que ele soubera pelos jornais), mas era evidente que Moura se näo sentia muito impressionado. Tinha a sua alegria espontánea, firmada näo sei em que — como alias nunca soube. Depois falou da minha aldeia, da nossa casa, e ela foi verdade mesmo ali, naquele ar grosso de fumo, de algazarra, de notas de conto esfolhadas pelas mesas de negócio. — Passámos lá há dois anos. Näo: há trés. — Eu estava para fora. — Eu sei. O Álvaro, o seu pai, disse-me. Mas a casa, a casa. Extraordinária. Muito antiga, näo é? Velha casa. E eu sendo, aparecendo, criando-me atraves de ti e de mim. Muito antiga? Havia uma data que eu des-cobrira no sobrado: 1761 ou 1767.. Algum velho «mineiro» a trouxera do Brasil. Um vasto jardim em frente, com um grande alpendre ao lado, um pinhal descendo do lado oposto ate ä ribeira, e adiante a montanha. — Vai-lhe custar a adaptar-se — disse Moura. — Isto aqui e muito diferente. Mas note: tambem tern a sua beleza. Quando eu vim foi o mesmo. Porque eu nao sou daqui. Mas casei em fivora e por cä fiquei. A mim diziam-me: «O que custa säo os primeiros dez anos.» — Espero ir para o ano para Lisboa. —Eu sei, quero dizer, ca'culo. O senhor nao e um desconhecido. £ muito falado lä em casa. A -minha Sofia, que tambem faz versos... Sofia. A luz do meu Inverno, eis que te lembro no teu corpo esguio, no teu olhar äcido de pecado... Domingos de Primavera pelos campos, noites quentes de Veräo no Alto de Säo Bento, a planicie banhada de uma lua enorme. E tu voltada para o ceu, cantando, cantando: Ai... Ai, ai, ai, ai! Ouco nas visceras o teu canto ardente, iluminado de loucura. Os ceus estremeciam ä anunciacao da tua divin-dade. Os teus olhos vivos, Sofia, a tua face täo jovem tinham o misterio da vitöria e do desastre, da violencia do sangue. Canta! Que mais ha na tua vida que o teu canto, a angustia do teu grito contra os ceus desabi'tados?... —...Tambem faz versos?—perguntei por fim. — A minha Sofia? Se ela tivesse tanto jeito para o latim como tem para isso... 28 29 — Latím? — Dois anos řeprovada na admissao a Direito, veja o meu amigo. Dois anos. E, se caJihar, vai-