portas estavam fechadas e as janelas corridas — era a hora mais fresca do dia, a que precedia o alvorecer, mas mesmo assim, estufava. Porque estufava, todos os cheiros se mistu-ravam, podendo distinguir-se desde o primitivo odor da tinta que estampava o tecido da janela, ate ao cheiro dos coiros, ate ao cheiro das diferentes madeiras. Era contudo urn cheiro poderoso — o do coiro — que exalava mais forte, engolindo todos os outros, o que nao admirava, porque o chao estava atapetado de peles de zebra, e as paredes estavam enfeitadas de setas, mascaras e tambores. O tecto tinha um desenho de forma estrelada construido em setas. Helena de Troia comecou a transpirar sobre o labio — «Chiu! Este e o canto do Jaime. Diz o Jaime que tudo isto tern um alto valor antropologico». Depois aproximou-se da secretaria que ocupava o local onde se esperaria ver um animal embalsamado. Subiu a secretaria, alcancou a boca duma mascara, meteu la o dedo, e com a ponta da unha, retirou uma chave. De fora veio um rufdo que a fez sobres-saltar. Helena sobressaltou-se. Desceu, correu a janela com a mao em cima do coracao. «Nao foi nada, nao foi nin-guem». Helena retomou a chave, dirigiu-se ao cofre. Rodou o segredo, devagar, a porta soltou-se, e de dentro, Helena comecou a tirar envelopes. «Voce vai ver aqui o que o Jaime diz ser um segredo de Estado!» — falava com in-tensa responsabilidade, o peso secreto de se conhecer um documento — disse Eva Lopo. Pergunta-me se nao tive conhecimento directo. Nao di-rectamente, apenas conheci algumas roupas sujas — disse depois Eva Lopo. E para que conhecer directamente? Que-rer desconhecer nao e uma cobardia, e apenas colaborar com a realidade mais ampla e mais profunda que e o des-conhecimento. Aflige imenso o esforco que se faz para atingir umas centenas de quilometros de papel onde se julga deixar selado o conhecimento. Papiro, pedra, papel, sinais, bibliotecas. Lembro a de Alexandria. Ah, Biblioteca de Alexandria, como eu te estimo tanta vez incendiada! — disse Eva Lopo. O conhecimento subtil dos teus papiros amarelos, queimados, transformados em caracois de fumo, escreveu ao longo dos seculos quilometros e quilometros de desconhecimento. A vida passa ao lado, vai correndo a ca-minho do reino obscuro das areias e das pedras. Estimo os paises de vocacao metafisica total, os que nao investem na fixacao de nada. Que queimam ou deixam voar, quando as manhas ventosas de Outono chegam, tudo o que pode ser objecto de conhecimento — disse ainda Eva Lopo. Aprecio imenso esse esforco de tudo apagar para se colaborar com o silencio da Terra. Pegue nestas palavras, leve-as para o ter-raco, ponha-as na boca da noiva na noite d'Os Gafanhotos. E assim que me lembro, ainda que para nada — disse de novo Eva Lopo — das caixas e dos envelopes selados que sairam do cofre. Estavam envolvidos em papel de plas-tico com armas dum exercito dum pais diferente e etiqueta-dos com palavras tambem em lingua diferente. Os envelopes dizia simplesmente spoilt, mas as caixas, essas, estavam rotuladas em caracteres grandes — TO BE DESTROYED. Helena avisou, no entanto, que para ja nao havia intencao de queimar. Quando houvesse uma independgncia branca, aqueles seriam os documentos que haveriam de atestar quern tinha e nao tinha ido a guerra. Blabla mesmo escrito era uma coisa, enquanto a cara na pelicula era outra — tinha dito o Jaime. Queimariam sim, no caso de haver uma volta diferente, mas o Jaime nao acreditava em voltas diferentes. Por dentro das caixas havia envelopes, e dentro dos envelopes, amarradas com elasticos, as fotografias arrumavam-se por operacdes. Em cada envelope, as vezes manuscrito, lia--se spoilt. Helena comecou a passar os envelopes. Devia conhecer as fotografias como um bom estudante conhece a sua sebenta. Ela ia seleccionando, ia dizendo baixo, nao interessa, nao interessa... Parou num envelope que dizia 77-gre Doido para alem de spoilt. Helena passou-me esse envelope, com o olho pregado ora na porta ora na janela, daquele quarto de caca. Vejo — as primeiras dez sao fotografias de colunas normais. A pessoa que as tirou deveria ter sido uma das ultimas porque apanhou, em terreno 130 131 quase descoberto, as cabegas de imimeros soldados em longa fila, sobressaindo acima das gramíneas. Há fotogra-fias prosaicas com soldados comendo deitados, outros en-terrando latas. Numa outra estäo fugindo e abandonando os bornais e as espingardas. Helena explica que se tratou dum ataque de formiga. Na fotografia seguinte, de facto, um soldado ri, mostrando uma espingarda sem bandoleira. Helena diz — «Comeca aqui!» Helena mostra. Numa fotografia tremida, urn negro esfarrapado está a ser segurado pelos bragos, mas näo se lhe vé o rosto porque está de cos-tas. Ve-se na seguinte o rosto, mas näo s e lhe distinguem bem as feicôes nem a fotografia está legendada. Na seguinte, o capitäo examina urna arma. Helena explica — «E urna Kalash que temos aqui em casa. Voce sabia que temos urna Kalashnikov em casa?» Novamente a coluna, a vegeta-cäo rasteira, e em seguida os soldados figúram entre umas árvores sem copa que parecem ter sido queimadas. Näo, näo devem ter sido queimadas, sao mesmo assim. Está le-gendado — Zona dos Paus com paisagem de paus. No meio desses paus, sem copa, é a primeira vez que distingo o noivo. Helena retira essa fotografia do moľho e suspende a fotografia onde se lhe vé nitidamente a cabeca. Tern a barba crescida e a bóina espalmada na testa, o noivo. De-pois só silhuetas, só figuras andando, depois o tip o negro sem camisa, de calcôes esfarrapados, ä frente. «Este é o mesmo a quern tiraram a arma» — explica Helena. «Näo viu atrás?» Helena faz questäo de mostrar atrás, mas logo a seguir o homem negro dos calcôes esfarrapados aparece a ser amarrado pelo pescoco numa espécie de pano. «É a camisa dele» — explica. A fotografia seguinte representa urna ár-vore alta, sem folhas, como se realmente queimada, e um grande galho donde pende o negro, pelo pescoco, baloi-cando sem camisa. A seguinte tem a mesma árvore, o mesmo galho, o mesmo negro, mas agora näo tem nem cal-cas nem camisa. O negro baloica no galho da árvore, ro-deado por soldados. Helena segura a fotografia. «Disse o Jaime que as calcas dele escorregaram e que ejaculou para 132 cima do capim, em frente dos soldados Portugueses! O Jaime diz que nunca mais acontece — agora vao amarrar sempre i as calcas de quern for enforcado, para se pouparem a cenas j dessas!» — disse ela. «Passe» — disse, com um olho na \ . porta, outro na janela. Passou outro pacote. Agora havia j outro pacote que dizia Vibora Venenosa. Eram imagens de \ incendios, aldeias em chamas, sem qualquer referenda. O : fotografo deveria gostar dos rolos de fumo. As seguintes I %:y: tinham referenda, localizacao, e numcro de palhotas des-truidas — destruidas trinta, oitenta e ties... Tambem tra-, ziam coordenadas. Agora no meio das palhotas incendia- das havia soldados correndo. Adiante, novo pacote. Esta-vamos sentadas num sofa de pano onde Helena ia em-pilhando e desempilhando. Helena mostrou-me com pre-caucao o pacote que dizia spoilt como os outros e Vibora i ;:: Venenosa III. Mais rostos, mais cabegas de soldados escon-1 didos entre sarcas, mais incendios, e logo a imagem dum j homem caido de brugos, depois dois telhados, e sobre um j J dos telhados de palha, um soldado com a cabeca dum ne-j ;p: gro espetada num pau. Viam-se varios corpos sem cabeca I a beira duma chitala, um bando de galinhas avoejava sobre eles na mesma fotografia. Helena passou. Helena tomou a seguinte e mostrou o soldado em pe, sobre o canico. Via--se nitidamente o pau, a cabeca espetada, mas o soldado que a agitava nao era um soldado, era o noivo. Helena de p Troia disse — <