desapareceu o significado das cicatrizes de guerra que se confundem completamente com os sinistros da estráda. Mas há vinte anos, nas colónias de Africa, ainda se admi-ravam as cicatrizes, e Forza Leal fazia bem em ter no guarda-fato meia dúzia de carnisas transparentes. O ultimo homem de qualquer coisa passava, com uma dessas carnisas, e sentava-se no terraco ao lado da sua mulher, nesses primeiros dias de Africa. Mas é preciso entender o que sig-nificava para o noivo. O noivo voltava tarde, fardado, demorava a desfardar-se assobiando no grande quarto de banho, e por fim atingia o terraco já cheio de escuridade e de gente. Pela cidade as luzes acendiam frouxas, como num subúrbio. Os telhados e as varandas emergiam na penumbra esverdeada das árvo-res ralas onde a lua entrava quando havia lua. Fosse qual fosse o subterfúgio que usasse, o noivo acabava por deixar á vista a preocupagáo definitiva. «Estás a ver as casas dos civis?» «Claro!» «E pensas que os civis sáo nossos aliados?» «Que remédio!» «Enganas-te — sao nossos detractores. Para alem de nos invejarem». «E o que invejam?» «A nossa independencia, a nossa sobriedade, o nosso espírito de corpo, as nossas distincoes, até as nossas cicatri-zes» — O noivo escorropichava um líquido. «A cicatriz do meu capitáo». Acabava aquele copo de refrigerante, pedia outro. «Nunca te falei de como ele ganhou aquela cicatriz? Sim, já te falei, já te disse que foi perto de Caboiana». Claro que havia contado, mas o noivo tinha várias for-mas de descrever a mesma versáo, porque nunca havia duas versóes diferentes. Umas vezeš contudo condensava até ao essencial, outras alargava como se tivesse estado presente, tivesse visto e tivesse participado. Náo, o noivo náo tinha participado porque tinha sido muito antes do encontro do noivo com Forza Leal. Mas o noivo sabia de tudo, como, por onde e por que razäo. O noivo parecia ter viajado com o capitäo, ter sido a roupa, o bafo ou o pensamento do proprio capitäo. O noivo sabia que o seu capitäo havia sido ferido ao som duma Kalashnikov quando atravessava o charco duma bolanha imensa, perto de Caboiana, tres anos aträs, na Guine. Ele seguia entäo em homem--primeiro, depois da exaustäo duma travessia atraves dum lodo imenso, literalmente cor de esterco. Urn esterco que tinha mares como o mar. Havia sido atraves dum renque de vegetacäo tambem dessa cor que o tiro da Kalashnikov tinha soado. Quando o capitäo, entäo tenente, se tinha vi-rado para se proteger la na bolanha, ja a bala lhe havia atravessado o corpo — o noivo conhecia o instante. Ja o tinha atravessado porque a bala havia entrado no peito do capitäo com um furo minimo, por entre duas cos-telas da frente, e fora sair entre duas de träs, atraves duma ferida do tamanho duma mäo aberta. Entre a entrada e a saida da bala da Kalashnikov, se tinha jogado, durante vä-rios meses, a vida do capitäo. Uma pequena agulha presa a um mostrador ficara a oscilar como uma gadanha de cabo comprido por cima da cabeca dele. O capitäo guar-dava värias fotografias em que aparecia de cara completamente devastada. Ah, se Evita visse as fotografias! Tinha sido durante esse tempo que o Comandante da Regiäo havia mandado lavrar um louvor em que propunha ao tenente exangue o equivalente ä medalha mais alta do agra-ciamento publico. Havia razöes — nao so o capitäo tinha avancado pela bolanha em homem-primeiro quando podia näo ser, näo so porque carregava äs costas o transmissor que o radiotelegrafista ja näo conseguia fazer flutuar, com o peso da lama, como ainda pelo facto de ter dito, antes de tombar, ai o objective), ai o objectivo. O objectivo fora urn paiol escondido entre sarcas e palmeiras, do outro lado da mare da bolanha, em Caboiana. Cachos de minüsculas moscas faziam fila para entrar nos olhos dos combatentes, e o tiro atingira-o no momento da suprema coragem. Mui-tos invejosos — tinha havido invejosos — haviam dito que o Comandante da Regiäo propusera o galardäo, numa 64 65 tarde em que tinha havido noticia de que a infeccäo persistente indicava que o tenente Forza näo voltaria a ver a qua-dratura duma parada. E näo seria preciso adivinhar muito para se saber que no mesmo dia, ä sombra dumas escassas cervejas quentes, värios haviam sonhado alto com a voz do funeral-arma, e o tenente Forza Leal descendo no caixäo de chumbo. No entanto, se o Comandante so tinha pro-posto a condecoracäo para acalmar as contas do Imperio com urn moribundo que continuava ainda em cima do len-col a dizer o objectivo, o objectivo, saira-lhe o tiro pela culatra, e por certo que havia passado värias noites sem dormir. O corpo do capitäo tinha comecado a travar uma luta vigorosa com a terra, quando ja se ouviam as pazadas, e decorridos seis meses, o pulrnao decepado do capitäo do noivo realojara-se aträs dos outros örgäos com a veloci-dade dum espirito. Fora desse modo que ele havia ganho a cicatriz. A cicatriz liläs, que abria no peito, dava a volta ao flanco, para terminar a meio das costas. Näo inventava — praticamente toda a gente do Stella Maris sabia, mas o noivo vivia com outra emocäo esses factos, por certo contados pelo capitäo, em locais onde näo havia nada para fazer, nem ver, e restava contar. Näo o disse explicitamente, mas era para que visse a cicatriz que iamos ä praia defronte da casa de Jaime Forza Leal. Levou--me a ver a cicatriz como se mostra uma paisagem, urn re-canto, se vai ate urn miradoiro para tirar urn fotografia. «Ves.ali?» — disse ele. Vejo. Pela beira do mar anda o capitäo e anda Helena. Helena e uma bela mulher, mas a cicatriz de Forza e mais. Falamos disso, a opiniäo e do noivo. O noivo pergunta se näo tem razäo. Dou-lha toda. Contente, pede-me que me imagine alferes, que me imagine soldado, combatente, que me imagine äs ordens do capitäo. E dificil imaginär. Mas ele pede, tem o cabelo molhado, colado ä cabeca, e as pati-lhas espetam muito, pöem-lhe as macäs do rosto salientes como peras. Näo e mais a pessoa com quern fiz namoro, a primeira pessoa com quern me deitei mrxarruagem do 66 comboio, atravessando uma planicie com lua. Era Prima-vera, brilhavam uns pedacos de serra ao fundo. Ele viajava com uma pastinha chela de notas sobre as equacöes de grau superior. A pastinha escorregou sobre nós, caída da bagageira nos solavancos da carruagem, abriu, espalhou as equacöes. O noivo suspendeu o impulso que o arremetia sobre o vestido de Evita, na nesga de luar que o pano do janelim fazia entrar. «A pasta?» — disse ele. «Onde está a pasta?» E o noivo havia suspendido, o noivo havia apa-nhado os papéis um a um, acertado a sequéncia dos cálcu-los, fechado a pasta, pedido a Evita que deitasse a cabeca näo só sobre o pulóver dele, mas também sobre os cálculos. Evita deitou. «Imagina se eu os perdesse!» — o Luis sope-sava, demorava a regressar ao corpo, pensando nessa hipó-tese remota de se perderem cálculos. Só regressou quando a Lua se punha, já näo se via nenhuma falda de serra, era só planície, o comboio apitava estafado, tinha de ser agora porque podia amanhecer, o revisor podia vir. Só entäo o alvoroco, os beijos, o contrato com a natureza. Lembrava--se de a mäo dele, durante o selo com a natureza, se dividir e partilhar entre o cabelo de Evita e a pasta dos cálculos, tactear tanto uma como outra com o mesmo despudor. «Näo foge» — tinha-lhe dito. A pasta näo fugia, ela era uma ligacäo, a mais poderosa, ela continha um animal que balia entre folhas escritas de incognitas, chamando para o mesmo ponto ignorado do Universo, aquele mesmo ponto para onde o inquieto carneiro balia nessa madrugada sem sossego. Seus pobres cornos contra uma dimensäo que des-conhecia. Para aí mesmo íamos nós, e a pasta nos ligava como uma prancha — Agora näo é mais ele. Näo vale a pena fingir. Como posso apalpar nele a figura que Evita quis? Näo és mais a pessoa com quem fiz namoro, e muito mais do que namoro, amor até esgotar, ä socapa das imen-sas velhas que guardavam o pudor da nossa geracäo com uma faca do tamanho duma catana. Näo és mais o mesmo. Ele diz-me exactamente o mesmo. Estamos deitados lado a lado na areia, mas a cicatriz do capitäo separa-nos, nesse dia de praia, apesar do fascínio que exerce como coisa der- 67 ěá radeira. Como um hall se liga a um General, uma banheira se liga a um noivo, nunca se sabe o que desune um casal moco, deitado na areia. Sim, eles dois eram menos mocos, mas mais unidos. Ti-nham um bote a motor que Forza aproximava da beira. Helena näo sabia nadar, mas agitava-se na água e acenava quando o via. Ele vinha em direccäo a ela, ela avancava até atingir a água pelo nível dos ombros, e ele em cima do bote. Roneava o bote, era como se a viesse buscar, e depois passava em tangente e atingia o largo. Ficava de costas. Ela gritava — «Jaime, Jaime, estou aqui!» De novo ele fazia a curva, traeava a tangente, ela saltava, uma onda pequena bastava para a engolir, ela de bracos esticados, gritando aqui, aqui, ele se ia de novo, o motor resfolegava na água a uns metros. Näo chegava a fazě-la entrar. Regressava no bote, chamava-a para ela puxar o bote. Ela corria á beira, empurrava o bote para fora, saltava e com-punha o cabelo, como se naquela simulaeäo de vai näo vai no pequeno barco existisse um divertimento exaltante. Era uma bela mulher, despida lembrava um pombo, como ou-tras lembram uma rä e outras uma baleia. Näo era só a voz que lembrava um pombo, a chamar pelo barco, mas era também a perná, o seio, alguma coisa estava espalhada por ela que pertencia á família das columbinas. Talvez o cabelo vermelho, talvez a pele leitosa. Os dois, ele e ela triunfantes, entendidos. A uniäo deles era urn triunfo. Ele com o bote, com ela e com a praia junto ä casa, a cicatriz, era a perfeicäo do triunfo na vida. Essa sensacao, por mais ingredientes desusados que tivesse, era täo forte que se transmitia a todos os elementos circundantes. A areia onde estávamos deitados até ela mesma seria uma emanaeäo desse triunfo se o noivo näo estivesse nostálgico vendo aquela alegria. Talvez Evita fosse injusta e o noivo manti-vesse a mesma sede de resolueäo das coisas inextrincáveis, como antigamente tinha com as várias incognitas e com o cálculo infinitesimal. Para quem tem a sede de infinito, é possível que tanto se comova com a dispersäo das galáxias como com a rigidez do mármore. Helena deveria despertar no noivo, com aquela voz de pomba, a imagem do femi-nino absoluto, e daí até ao amuo com a sua realidade onde estava eu, Evita, ia um passo — disse Eva Lopo. O noivo näo ria nem para mim nem para o1 mar, só conseguia rir para o capitäo. O noivo pegou no bote, amarrou o bote, ficámos na praia amarrando tudo isso, para que eles pu-dessem ir sos até ä entrada de casa. Ele adiante com a toa-lha ao ombro, em grandes passadas, ela mais atrás, com um saco. Ela sentou-se na areia para calcar as sandálias, ele já ia no alto dum pequeno morro. Virou-se, assobiou por ela com o tal assobio tremido, de ordem e chama-mento. Eía pegou no saco e correu, escorregando e caindo. Aproximou-se da estráda e dele também. A uniäo deles näo se revestia do modelo que Evita havia colhido nas salaš de cinema de Lisboa com imensa fita francesa, com ca-sais cheios de distúrbio, e no entanto, surpreendentemente, Helena e Forza tinham uma alegria doméstica triunfante, tudo neles triunfava como um areo erigido ä porta duma casa. Entraram pela portinha de ferro, os mainatos vieram, Helena acenou da porta com o cabelo molhado, a fieira dos dentes luziu e pareceu, na atmosféra do meio-dia, um reclame ao elixir estival da felicidade. Entraram na porta de casa, fecharam-na, no ar havia harmonia — como um pendulo bom vai, vem, promete. Lembro-me. { -i Prefere a harmonia? Eu também, é por isso que tanto estimo a paz que se respira na noite d'Os Gafanhotos. Em relacäo ao que estava dizendo, aqui a tem — Nessa tarde mesmo encontrámo-nos na Marisqueira. Até aí só nos tí-nhamos visto e agido em comum, mas ainda näo tínhamos falado. O capitäo levava a camisa mais transparente que sempře Ihe vi. Também o noivo e o capitäo se entendiam perfeitamente no acto de escolher os mariscos. A Marisqueira aquela hora abarrotava de gente que falava e ria, e para se passar por entre as mesas era preciso encolher a barriga sob o perigo de se espalharem as cascas. Helena sentou-se na minha frente, mas era difícil entabular uma 68 69