180 I Antonio Lobo Antunes ruas de Lixboa a sua biblioteca de continentes, o marinheiro destapava um contentor de lixo e vertia-lhe dentro um feixe de rios tropicais que se enterravam com a sua fauna, a sua vegetacao, os seus minérios, as suas peculiaridades meteorológicas e a profundidade e caracteristicas dos seus leitos, entre sobejos de arroz de grelos e embalagens de pasti-lhas para a tosse. O planeta inteiro sumiu-se dessa forma, pais a pais e meridiano a meridiano, nos caixotes da cidade, e nao lhes sobrava mais, por alturas do Jardim da Patriarcal, que um astrolábio ferrugen-to e meia dezena de recortes de jornal de Luas & Marés que o almi-rante utilizava a fim de orientar melhor a navegacao das caravelas. Nas vizinhancas do Bairro perceberam ao longe, entre um cortejo de frades que entoavam ladainhas e Te Deuns soturnos, o poeta Gomes Leal, de cartola amolgada e camélia no fraque, entrando na pressa urgente do tinto numa taberna aclarada pela fosforescéncia de um televisor. Car-ruagens de marqueses, de brasoes desenhados na talha da porta, ultra-passavam-nos de eixos a chiar para se desvanecerem no Teatro da Trindade abanando as molas lassas do traseiro de ganso. Ao vestir o pi-jama, exactamente por debaixo das badaladas das duas da manha, Diogo Cao, em ceroilas, fiutuava numa espécie de limbo deserto de afluentes e bacias por achar, onde um infante qualquer, de pé no extre-mo de um qualquer monte rochoso, observava o nada com binóculos de madrepérola de socio do Jockey Club. Puxou o autoclismo para se assegurar da realidade da água e nenhuma cachoeira se despenhou na retrete. Espreitou o rio pela janela e nao entendeu as lanternas de navegacao das chalupas e das naus, substituídas por um grande espaco negro atravessado pelos candeeiros da ponte. Palpou ao espelho as gengivas que o escorbuto devorara e deu no vidro com uma dentadura perfeita, de cerámica, que respondeu com um sorriso amávei á sua afli-cao de marujo. Acabou por a jogar no copo da mesinha de cabeceira, por apagar a luz do quarto, por recusar as caricias preocupadas da mu-lher, e por continuar fitando, até de madrugada, roendo a pedra--pomes das mandibulas, a Terra que se transformara num deserto seco de ondas e de tágides, onde mesmo o vento dos buzios tinha por fim desaparecido. Para alojar, de entre os que tornavam de Africa, aqueles cujos cor-pos conservavam ainda o cheiro e o murmúrio de larvas dos campos de algodao adormecido que os caes selvagens percorriam no seu trote quimérico, o governo desocupou um hospital de tuberculosos que pas-saram a tossir nos jardins públicos hemoptises cansadas, e vašou nas enfermarias de muros de cenas de guerra e de actos piedosos, impreg-nados pelo torpor de morte dos desinfectantes, os colonos que vaga-vam ä deriva, de trouxa sob o braco, nas imediacoes dos asilos, na mira dos restos de sopa do jantar. O homem de nome Luis, que se alimentava do espinafre da Mitra na antiga capela de um refeitório miserável, foi presenteado com uma cama em pedacos num pavilhao cercado de macieiras e de ervas ruins perto do gradeamento de um colégio de meninos mongolóides, dalai--lamas descidos das neves do Tibete para aprenderem, em Lixboa, a moldar carneirinhos de plasticina numa paciéncia de novicos. As em-pregadas, que se esqueceram entretanto de transferir para outra clínica, comportavam-se connosco como com os doentes expulsos, medindo--nos a febre de manha e ä tarde, introduzindo-nos ä forca arrastadeiras sob os lencóis, e levando-nos a passear em roupao, a seguir ao almoco, 182 I Antonio Lobo Antunes AS NAUSI 183 num parque de camélias calvas e de tanques de basalto de cujas fendas nasciam em desordem madeixas de jacintos. No sanatório os dias tor-navam-se mais lentos do que partidas de xadrez; as sestas obrigatórias nas cadeiras de lona da varanda, com um tubo de mercúrio espetado na lingua e um galho de plátano a atormentar os pes aparentavam-se äs semanas de mar chao, e alguns mulatos, contagiados pela mágoa dos poentes e o perpétuo outono das mimosas, deram em cuspir san-gue em bacias esmaltadas numa agónia lánguida que os mongolóides do Tibete, todos parecidos como urna ninhada de gémeos, espiavam do portao numa sabedoria secreta. Logo de madrugada um concerto de pigarros e bronquites afogava os guinchos dos pássaros no jardim e as solas dos medicos nos corre-dores, chegados para auscultarem as pioras no tórax dos doentes cujos pulmoes se aparentavam aos naperons dos tremós, prestes a dissolve-rem-se em grumos com a simples forca do olhar. O homem de nome Luis, a quern apesar da auséncia de sintomas obrigaram a um roupao de moribundo, obteve autorizacao para um intervalo de urna hora fora da cerca do hospicio, escoltado por um servente que carregava o peni-co de loica destinado aos bacilos da hemoptise que tardava. Assim co-nheceu, em pantufas, o bairro envenenado pelo sanatório de miasmas tristes e no qual toda a gente adquirira, por receio de contágio, o uso de apertar contra a boca o lenco de assoar, fornecendo ao épico a im-pressäo de que caminhava de pijama no meio de uma multidäo de ci-rurgiôes aberrantes vestidos de vendedeiras de peixe, de operários ca-nalizadores ou de caixas de banco, esmagados pelo lacre em chamas de agosto. Cada vez mais Lixboa se lhe afigurava um rodopio de casas sem destino, uma cavalgada de algerozes, de tapumes, de flechas de igreja e de ruas a quern as obras camarárias expunham as tripas dos esgotos sob um céu rebentado de pústulas de nuvens. No meio de tanta odio-sa claridade que despia as pessoas da misericórdia das suas próprias sombras, o escritor, tonto de luz, acabava por acompanhar, sempre se-guido do sujeito do penico, os falsos doirados de um enterro qualquer na esperanca da noite de cedros dos cemitérios onde os defuntos se evaporavam sob miniaturas de templos gregos e criancas de gesso, es-tranguladas por flores artificiais que cheiravam ás cerejas de gaze dos chapéus e que ele confundia com o aroma de naftalina da morte. Sen-tado no parapeito de tijolo de uma ruela de jazigos, com o bacio ao al-cance do primeiro cuspo, assistia ao cortejo modesto dos funerais dos pobres, ou seja uma urna numa carreta desfeita, velhos a cambalearem atrás, e rafeiros vagabundos que a presenca do cadaver aticava. Interna-do num sanatório longe do mar ter-se-ia esquecido de Loanda e dos pássaros pernaltas da baía, de pescoco esticado no cume das palmeiras, se no seu pavilhao, mesmo colado ao edifício onde os dalai-lamas aprendiam os ditongos, nao escutasse por vezes, trazido pelos assopros do vento, o sussurro dos motores das fragatas largando para a pesca das docas de Cabo Ruivo, sob a labareda litúrgica da Siderurgia. Aos domingos ä noite um flautista internado na enfermaria do ter-ceiro andar de onde se avistava o radar do aeroporto e os longes do Seixal, animava a sala de convívio, de mesas de pingue-pongue empe-nadas e longos sofás de concubina, com baladas dos anos trinta segre-gadas pelo enfisema do instrumento. Fora cozinheiro num restaurante do Lobito frequentado por camionistas negros e bébedos sem vintém, e interrompia o halo de insónia dos programas de televisao para exu-mar o pífaro de um estojo de cetim, encaixar uns nos outros os trés segmentos que o compunham, esticar os lábios num marnilo de bibe-rao, apoiar a ponta dos dedos nos orifícios semelhantes a buracos de cinto, e em pontas de pes, no intuito de conferir mais sentimento äs notas, soprar pelos poros da gaita um tango de Gardel que a tosse dos colonos acompanhava a descompasso. Num desses recitais aŕlitivos, logo a seguir a notícias de greves de relojoeiros suícos, alunagens papais e inundacoes em Cabo Verde, o homem de nome Luis, que se julgava sozinho numa poltrona de ramagens, meditando oitavas e compondo episódios gloriosos, notou a presenca, ao seu lado, de um sujeito albino e míope, de frasquinho para a expectoracao nos joelhos, que o som da flauta atravessava sem tocar de tal modo a tuberculose e o despaisa- 184 I Antonio Lobo Antunes AS NAUSI 185 mento lhe tornaram o corpo numa espécie de tutáno sem substáncia. De tempos a tempos pingava no gargalo um fiozito de sangue que coagulava numa florinha escarlate e desaparecia de novo no interior do pijama, reduzido á cintilacao dos olhos. No termo da serenata dirigiu--se, quase nao rocando o sobrado com as calcas de brim, para um pavilhao mais recente que os restantes, construído nas traseiras do pré-dio principal, a vinte ou trinta metros da cozinha, e em cujos quartos empalideciam, definitivamente, os derradeiros odores das canjas das dietas. Nas tardes seguintes, quando abria caminho a chinelar, através de um emaranhado de pigarros, para o seu passeio diário, topava o fulano míope, que a translucidez confundia com as aguarelas das paredes, a observar as macieiras do parque derramado numa cadeira de lona ou dialogando num canto da varanda, em conspiracies misteriosas, com cavalheiros tao inexistentes como ele, cada qual com a sua proveta de rosas de cuspo na mao, e de que línguas cicatrizadas possuíam a marca iniludível do escorbuto. Por essa época o sanatório conseguia os seus primeiros defuntos entre os retornados mais magros, minúsculos sob os lencóis que lhes cobriam a cabeca, e a gente via-os seguir, estendidos numa espécie de tabuleiro com rodas, para a cave de adega das autóp-sias, claustro onde um carniceiro de avental de borracha e luvas cor de néspera de lavar a roupa dissecava intestinos e artérias a golpes de facao. O homem de nome Luis já levava escrito um terco do poema na tarde de setembro em que o míope caviloso, após uma hora de pru-dentes círculos de abutre, lhe puxou a manga do pijama e o convidou a presenciar na Ericeira, na primeira semana de outubro, o desembar-que do rei: - D. Sebastiao aparece das ondas num cavalo branco, assobiou ele depositando uma rosa no seu frasco. O poeta imaginou uma horda de tísicos em uniformě hospitalar, acocorados na neblina das dunas, á espera de um monarca risível que se elevaria das águas na companhia do seu exército vencido. Desde que regressara de Africa que até o fluir do tempo se lhe afigurava absurdo, e nao se conformara ainda com os demorados crepúsculos de calda de marmelo do verao, a auséncia de capim e o seu restolhar ávido de in-sectos, e movia-se na cidade como num planeta criado pelo mecanis-mo da imaginacao, informado por notícias de jornal tao enigmáticas como arrulhos de baleia. E aceitou a expedicao do mesmo modo que aceitava os pneumotórax e os xaropes dos medicos do asilo que se lan-cavam sobre si, ás tercas e as sextas, num zelo curativo de agulhas e de tintura de iodo. - O único problema, preveniu-o o senhor transparente sem mover os lábios, designando com o queixo os serventes que vigiavam as expectoracöes dos colonos, sao os informadores espanhóis. E elucidou-o que o pais fora ocupado pelos castelhanos na sequén-cia do fracasso da expedicao a Marrocos, e o prior do Crato, filho do infante D. Luis, cuja tropa desertara após dois ou trés recontros de jógo do pau, vagueava pelo norte disfarcado de pequinés tentando apoios inúteis nas aldeias alheadas. As miudezas do piano para a restauracao da independéncia, elabo-rado entre acessos de bronquite pelo patriota da flauta, ser-lhe-iam re-veladas durante as sestas de depois do almoco ou os velórios quase quotidianos na capela do sanatório, decorada por Sao Roques pestanu-dos que contemplavam, numa piedade marialva, tuberculosos de ja-quetao com a boča ainda aberta num sorvo sem ar. Um escriturário do hospício, aliciado pelas manobras de amor de uma mulata pasionaria que se redimia dessa forma de vinte anos de prostituicao desenfreada, alugara um autocarro de vidros fumados de pastorear turistas por tor-res de menagem, catedrais e insignificáncias do género, que se destina-va a transportar os doentes até ä Ericeira ao encontro do rei maricas e do seu Estado-maior em farrapos, partindo daí a fim de ocupar o aero-porto, as estacöes de rádio e de televisao, o parlamento, a ponte do Te-jo e as entradas de Lixboa, enquanto pelotöes de internados de diver-sos asilos, sob o comando de moribundos a soro, invadiriam, a pigarrear as suas pétalas de sangue, o edifício da política, os ministérios e os portos, aprisionando os duques espanhóis no forte de Caxias ou 186 I Antonio Lobo Antunes AS NAUS j 187 empilhando-os em escunas sem leme, jogadas ao acaso num oceano de tritöes. O sanatório viveu as semanas imediatas no siléncio de maus pre-núncios que antecede as gripes e sobressalta os cachorros, cujas pupilas se arroxeiam de um suor de pavor. A tísica dizimava pavilhöes inteiros e os corpos, cobertos de mantas numeradas, aguardavam as tesouras da autópsia nao apenas nas mesas de mármore de esquartejar defuntos mas nos próprios degraus que conduziam ä adega, nos tapetes esfiados da sala de jantar, no espaco para as pernas das secretárias dos doutores e por detrás dos fogöes da cozinha, juntamente com os jornais e as baratas, corados pelos briquetes dos fornos. Alguns enfermeiros e medicos escondiam já as faringites incipientes na palma da mao, e apre-sentavam-se ao trabalho com olheiras de noites mal dormidas, ator-mentados pelas perturbacöes da febre. E no entanto o flautista pros-seguia os seus concertos impávidos apesar do resplendor murcho da televisäo, interpretando boleros com uma veeméncia que comovia ao ponto das lágrimas a assisténcia que salivava moléstias nas provetas, enquanto lá fora as rajadas de setembro secavam as árvores e doiravam as noites, quase de outono, do pó amarelo dos seus bagos. O hörnern de nome Luis julgava entender na flutuacäo da música o morse cifrado dos adeptos do menino loiro, principalmente quando o artista, a quern a inspiracao libertava do peso da sua condicao terrestre, se er-guia verticalmente no ar no sentido do estuque do tecto, agitando os pés como barbatanas de peixe de aquário acima das cadeiras do publico, para regressar ao soalho, com a ultima nota, na leveza dos ilusionis-tas. Ao atravessar o parque, acabados os boleros, imaginava naus de es-panhóis perdidas nos escolhos do Báltico e galeras sem destino encalhadas nos penedos da Costa do Marfim, nas quais centenas de soldados, de armaduras amolgadas por tempestades dementes, acena-vam em vao para orlas de floresta onde se acumulavam cachos de pre-tos siderados. No serao em que o músico trocou o reportório do costume pelo hino nacionál, executado em ritmo de pasodoble para enganar os ser- ventes, ja muito poucos colonos sobreviviam aos bacilos dos pulmoes, a calcular pelos bancos desertos e pelo odor de carne decomposta das enfermarias, e värios medicos haviam deixado o hospital em busca de melhoras nas clinicas dos Alpes, arrepiados pelos solucos dos cucos. Preparava-se para se levantar do sofa, enjoado pela pestilencia dos defuntos, quando o sujeito transparente o arrastou com brandura pelo terraco de tijoleira fora, que as rafzes das macieiras fracturavam num esforco imenso de ressurreicao, e lhe apontou com o minimo, que mal se diferencava da cor malva do ar, uma camioneta de faröis acesos esta-cionada ao portao e tuberculosos em pijama que se disseminavam em bicos de pes pelas moitas de arbustos, tentando nao fazer barulho no silencio do escuro em que patinhavam como escafandristas na direccäo das luzes coaguladas do carro. A camioneta era urn espantoso vefculo para americanos ricos, de assentos semelhantes a cadeiras de barbeiro, ar condicionado, lavato-rios de aviao, auscultadores individuals para zarzuelas e operas, e hos-pedeiras de farda e bivaque que serviam päes de leite e copinhos de sumo. O motor trabalhava no zunido imperceptivel da electricidade estatica, e o hörnern de nome Luis viu pela ultima vez o desmedido edificio do asilo composto de varandas sucessivas e cercado de cara-manchoes indecifraveis, adornado sob a meia laranja da lua. Viu os pa-vilhoes na trama dos buxos, as estufas dos laboratories em que chiava o medo das cobaias e a casa mortuaria repleta de mümias quitinosas, identicas aos caimoes dos museus. Nos quartos dos medicos desliza-vam de quando em quando os pavios de navegacao da insönia dos doutores, que desciam seminus ao armärio dos remedios a cata da gar-rafa rolhada dos hipnöticos. O colegio dos dalai-lamas era uma nave de cujo sötao surdiam sem rumor cardumes de morcegos, de caninos crueis como mestres de frances. Carrosseis de cavalinhos e outras ferra-mentas de tortura giravam numa especie de redil destinado a esmagar rötulas e a abrir cabecas, que o farmaceutico do quarteirao suturava amorosamente num aparato de agrafes. O hörnern de nome Luis aco-modou-se nos estofos, fechou os olhos e sonhava ja com as vielas tor- 188 I Antonio Lobo Antunes AS NAUS I 189 tas do Cazenga e os jipes da polícia militar derrapando nas traicoes do lodo, quando o flautista berrou lá da frente, com o pífaro numa das mäos e a proveta dos cuspos na outra, Sao Jorge e Portugal. O hospí-cio dos pneumotórax desapareceu nas suas costas, sombras de prédios escorregaram para trás de mini nas janelas fumadas, os lampiöes dos palacetes do Lumiar, cobertos de buganvílias até ás vigias do sótao, afastaram-se de nos com as suas salvas de prata e os seus leitos de dos-sel e quedou-se apenas a telefonia do autocarro que repetia, aos uivos, marchas militares e versos comunistas. Tomaram a estráda de Sintra atrás do escape de urna ŕurgoneta de legumes que silvava gases de guerra por todos os poros da panela des-feita, enquanto vários pijamas revolucionários se desmoronavam em intermináveis acessos de tosse e o senhor transparente, de termómetro na boca, vacilava de febre á minha esquerda naufragado em limos de transpiracao. Pinheiros afiados ameacavam-nos das bermas perto do arco de trevas do desvio de Queluz devorado pela gula da hera. Um tapume que corria paralelamente ao alcatrao desvaneceu-se de subito abandonando-nos numa mata de abetos. Polícias de tránsito de bas-toes luminosos, emboscados nas encruzilhadas, multavam caleches desprevenidas. Os restaurantes e os monumentos de Sintra, diluídos numa neblina perpetua e desenhados por holofotes de estádio, achata-vam-se no fundo da humidade com robalos entrando e saindo pelas janelas abertas a despedirem reflexos azulados. A estacao dos comboios enchia-se na noite de malmequeres de ausentes, e nas vivendas de te-lhados como cornos de bois minhotos, marujos vogavam de perfil na preguica das algas. O hörnern de nome Luis recordou-se dos crepús-culos concretos de Loanda onde tudo parecia exactamente o que era, sem mistérios náuticos nem pegadas de sereias ausentes, que se limita-vam a conversar nos bares dos hotéis, de cigarro nas escamas das unhas, com belgas idosos a quern o quarto cálice de porto transtor-nava. O trajecto de Sintra á Ericeira compunha-se de um desespero de curvas e contracurvas com aglomerados de aldeolas no percurso, casas de campo, vivendas de emigrantes e cäes estremunhados, de palatos negros, a ladrarem com ódio das portas das tabernas. Ultrapassaram o convento de Mafra repleto de centopeias e soldados, e chegaram á Ericeira pouco antes das trés e vinte da manha, chocalhando os ossos de frio no interior do pijama hospitalar, cada qual com o seu gargalo ex-pectorante debaixo da boca e os comprimidos do pequeno-almoco na algibeira, sob as ordens do tísico do pífaro cuja asma assobiava como um fole empenado. Vaguearam por becos e pracinhas reconhecendo-se mutuamente pela tonalidade dos pigarros, a fárej ar, com o nariz cor de améijoa dos doentes, a direccao do mar e a localizacao da praia, e es-barrando em cadeiras de esplanada, bancos públicos a que faltavam pranchas, taipais que lhes vedavam a água, muralhas de granito de cin-quenta metros a pique, canoas de pescadores, redes enroladas, cintila-coes de bóias e os paus de toldo do verao acabado, com os seus desper-dícios atolados nas dunas. Foi um velhote de pupilas pisadas pelo avanco dos bacilos, de ca-checol em torno do talo de couve do pescoco, que encontrou a escada que descia para a areia em patamares precários, e chamou o músico que decifrava nas trevas o mercúrio do termómetro a fim de se inteirar dos centígrados da sua desdita. O patriota transparente e mais dois ou trés heróis de bacia no queixo convocaram os tuberculosos que se aventuravam, em roupäo, num parque de automóveis deserto palpan-do o possível sentido do oceano que os espreitava ao mesmo tempo de todas as esquinas com o seu cheiro de alforrecas e narcisos, e acabaram por tropecar em rebanho, numa manada incerta de esqueletos, nos de-graus que levavam á praia e aos cestos de sardinha desprezada, junto a um café com um gato cinzento a dormir no gume desigual do para-peito. Amparados uns aos outros para partilharem em conjunto do apa-recimento do rei a cavalo, com cicatrizes de cutiladas nos ombros e no ventre, sentaram-se nos barcos de casco ao léu, no convés de varanda das traineiras, nos flutuadores de cortica e nos caixotes esquecidos, de que se desprendiam odores de suicida dado ás dunas pela chibata das 190 I Antonio Lobo Antunes correntes. Esperámos, a tiritar no ventinho da manha, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os fri-sos de espuma que haveriam de trazer-nos, de mistura com os restos de feira acabada das vagas e os guinchos de borrego da água no sifao das rochas, um adolescente loiro, de coroa na cabeca e beicos amua-dos, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tánger ao pescoco, e tudo o que pudemos observar, enquanto apertávamos os termómetros nos so-vacos e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital, foi o oceano vazio até á linha do horizonte coberta a espacos de uma crosta de vinagreiras, familias de veraneantes tardios acampados na praia, e os mestres de pesca, de calcas enroladas, que olhavam sem entender o nosso bando de gaivotas em roupao, empoleiradas a tossir nos lemes e nas helices, aguardando, ao som de uma flauta que as vis-ceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossivel.