76 I A. BAPTISTA-BASTOS, 19 DE NOVEMBRO, 1985 [BB] A velhice incomoda-te? [ALA] Náo me apetecia acabar num parque a apanhar beatas, com uma pantufa no pé, um sapato no outro e a mastigar a gengiva... [BB] A mořte apavora-te? [ALA] Náo. Até agora, pelo menos. Quando fazia muita Medicína, vi morrer muita gente. E a mořte é muito mais tranquila do que os meus fantasmas me diziam. [BB] Que te diz este nome: Portugal? [ALA] Para um homem como eu, meio-brasileiro, meio-alemáo, é o país onde quase náo venho e onde sempře estou. 8. CLARA FERREIRA ALVES V4 vinganga de Lobo Antunes' ľ. xpresso/Revista 12 de Abril, 1986, pp. 31-331 «Auto dos Danados» acaba de receber o prémio da APE. E «quando se ganha é uma alegria», mesmo que considere que em Portugal náo existe crítica literaria». Lobo Antunes consagrado continua polémico. EXPRESSO: Há trés anos, quando publicou o Fado Alexandrino, parecia-me um escritor desiludido, para quem Portugal era pequeno e o estrangeiro um exílio decente. Ia-se embora para os Estados Unidos ou para o Brasil, e estava farto disto tudo e de toda a gente. Hoje, estou a entrevistar o galardoado com o Prémio da APE. O que č que mudou, entretanto? Vocé ficou cá... outros hábitos, outra energia, outra atitude? LOBO ANTUNES: Nada mudou, penso. O estrangeiro está cada vez mais próximo, depende é das condicöes e talvez ofereca condicôes melhores. [EXP] Vai fazer um discurso bem comportado no dia da entrega ofícial do Prémio? [LA] Acho que me tenho portado bem... näo sei, talvez náo a certos níveis, näo tenho sacrificado aos deuses habituais, aos bonzos. [EXP] Já que falamos de bonzos, houve uma altura em que se ouvia falar de Lobo Antunes e a Kultura puxava logo as pistolas. Hoje, 1 Nas pp. 33-34 Tereza Coelho comenta a atribuigáo de Prémios: "Prémios para qué e para quem?". i I 78 I CLARA FERREIRA ALVES, 12 DE ABRIL, 1986 ( voce tern muitos amigos no «establishment» literário e até lhe deram um prémio. Será que a crítica, académica ou náo, já näo o persegue tan to? j [LA] Penso que näo existe em Portugal crítica literária. Havia trés | homens, o Óscar Lopes, o Jacinto do Prado Coelho e o Eduardo Lourenco. Um morreu, e os outros deixaram de fazer crítica literária, Depois, hájornalistas que fazem recensöes, que escrevem sobre livros... \ 4 JORNALISTAS CULTURAIS OU CULTURALISTAS? [EXP] Os täo falados jornalistas culturais... [LA] Näo sei se säo culturais se culturalistas... [EXP] Näo sei se fazem «body-building»... [LA] Para mim é muito mais importante uma crítica no «New York Times» ou no «Liberation». [EXP] Uma recensäo no «NYT» ou no «Libe» pode ser, e é quase t sempře, feita nos mesmos termos em que eu fago uma crítica a um livro seu no EXP./Revista. A única diferenca é que nem eu nem voce escrevemos em Nova Iorque ou em Paris. Talvez fosse mais «chique» mas estamos em Portugal, voce é portugués, escreve em lingua ■ portuguesa, para os Portugueses lerem. Essa atitude é snobismo ou é { gula? i [LA] Gula o qué? Näo percebo. [EXP] Gula! Raros escritores Portugueses chegam äs páginas do í «NYT», tal como nenhum escritor portugués, creio, alem de si, foi ( publicado na «Granta»... [LA] Aonde? [EXP] Na «Granta». Näo sabe o que é? E considerada uma das melhores revistas literárias do mundo... | [LA] Ah, sim, sei! Isso foi uma antologia que eles fizeram com i Kundera, a Nadine Gordimer, o Peter Weiss... [EXP] Nessas coisas voce näo tem de que se queixar. É por isso que se dá ares de se estar nas tintas para o que os outros escrevem sobre j si? Porque é que dá entrevistas? [LA] Na primeira que dei na minha vida, ao Zé Manel Rodrigues da Silva, disse-lhe que estava mesmo nas tintas para todas as opinióes sobre mim excepto äs dos meus amigos. É verdade. Quem é que hoje ■ "A VINGANCA DE LOBO ANTUNES" | 79 le criticas? Quem e que vai ao cinema por causa de uma critica? E muito mais importante a opiniäo das pessoas que eu respeito, do Ze Cardoso Pires, dos escritores que vivem estas coisas por dentro. O Ze Cardoso Pires, a respeito deste livro de que voce näo gostou - e tera o direito de näo gostar - disse-me que era o meu melhor livro, e ele costuma 1er os meus livros värias vezes para depois discutir comigo. Isso e importantissimo. [EXP] Por serem escritores? [LA] Sim, embora sejam entre si täo diferentes. Säo bois que andam a marrar contra a parede, aträs das palavras. «O ESCRITOR E UM NEURÖTICO» [EXP] Nos seus livros, naquilo que diz, no que se le nas entrelinhas, percebe-se que voce e um escritor que precisa, desesperadamente, de ser amado pelos outros. Um escritor precisa de ser amado? [LA] E evidente que sim! O escritor e um neurotico, e escrever e provavelmente a ünica forma que tem de exprimir os seus afectos, e de neles ser retribuido. E complexo, porque e misturado com uma grande dose de narcisismo. [EXP] «O escritor e de um extremo egocentrismo, tem o ego dilatado»... [LA] O que? O ego? [EXP] A fräse näo e minha, e de um escritor que voce gosta: John Cheever. [LA] Coitado, esse morreu bebado! [EXP] Grande parte da boa literatura norte-americana foi escrita por gente que morreu bebada. £ mau? [LA] Sim, e verdade... o Faulkner... eu näo sei o que e isso do ego dilatado, e um termo psicanalitico. O facto de gostar do Cheever näo quer dizer que goste de tudo o que ele diz. [EXP] Näo estou a pedir-lhe que goste mas que comente. [LA] Näo sei o que e um ego dilatado, sei o que e um figado dilatado. Quanto ao egocentrismo, quando uma pessoa acaba por ter täo pouco tempo para estar com os amigos, para escrever as suas histörias, isso acaba por nos fechar, por nos tornar timidos, introvertidos e por vezes ate com dificuldade de relacäo. 8o I CLARA FERREIRA ALVES, 12 DE ABRIL, 1986 "A VINGANCA DE LOBO ANTUNES" | 81 «QUANDO SE GANHA É UMA ALEGRIA» [EXP] Regresso a uma pergunta que ficou sem resposta. Vai fazer um discurso bem comportado quando receber o Prémio? [LA] Voce depois vé. [EXP] Qual é a sua relacäo com o Prémio? [LA] Insólita. Se a gente näo ganha fica chateado e eu fiquei de facto muito chateado quando näo ganhei com o Fado Alexandrino. Quando se ganha, é uma alegria... [EXP] O que é que lhe dá mais jeito? O prestígio ou os mil contos? [LA] O prestígio para que é que dá jeito? Ser conhecido nos restaurantes? [EXP] Voce é? [LA] Ainda näo sou o Marco Paulo. [EXP] Voce tern dado sempre a entender que a sua escrita resulta de um acto penoso, trabalhado, de sofrimento. O romance sai-lhe das mäos, é publicado, é criticado, e depois é pesado numa balanca por um grupo de pessoas. O livro sujeita-se a andar em bolandas, votos para cá, votos para lá, 4 a 2, 3 a 0, como no futebol. Como é que um escritor sofre estas votagóes? A intriga de bastidores? [LA] Em relacäo ao Prémio, ainda näo sei como é que as coisas se passaram, ainda näo vi as declaragóes de voto... mas os livros säo feitos para umas pessoas gostarem e outras näo. Lembro-me de uma carta do Marx ao Proudhon em que o tipo dizia que o drama é que as ideias dele se tinham muitas vezes confundido com os seus sentimentos. Isto tern a ver com todos nós, estamos ainda muito quentes, muito próximos, para podermos dizer fulano tal é bom, é mau... E arriscado fazer esse tipo de afirmacóes, de análise objectiva. [EXP] Arriscado dizer este livro é mau, ou dizer este romancista é mau? [LA] As duas coisas säo arriscadas. E depois, em Portugal, ganhou--se a mania de dizer o melhor dos últimos trés anos, o melhor de todos, o dos últimos cem anos, o melhor do ano... Quando se está muito proximo é impossível ajuizar. Há a moda, os gostos. [EXP] E os seus gostos? Lé os mesmos autores que lia quando era muito novo? [LA] Continuo a ler os mesmos. O Faulkner, o Celine, os americanos sobretudo. Fitzgerald... o livro que li mais vezes foi O Som e a Fúria. A CONSTRUgÁO DA PERSONAGEM [EXP] Já que falamos de Fitzgerald... dá-me a sensagáo de que voce tem tanto cuidado a construir um livro seu como a construir a personagem do escritor Antonio Lobo Antunes. E esta personagem é construída como se ser escritor ainda fosse uma profissáo romántica. E verdade? [LA] E é uma profissáo romántica. [EXP] E o escritor é um herói romántico? [LA] Talvez umjísquizofrénico romántico. Já viu o que é uma pessoa ! estar fechada numa sala a escrever coisas que as pessoas depois léem / na cama cinco minutos antes de adormecer? , [EXP] Náo respondeu á pergunta que vinha de trás. [LA] Eu náo construí nada, acho que sou assim. [EXP] Mas tem uma pose... [LA] O que é uma pose? [EXP] Exemplificando: ao longo dos anos, desde o sucesso de Memória de Elefante, vocé tem-se contradito várias vezes. Contradiz--se em muito, até na sua escrita isso se reflecte. Na acumulacáo dessas contradigóes, que para outros seria desastrosa, vocé conseguiu fazer uma administracáo sábia e favorável a uma personagem que se expóe. As contradigóes acabam por fazer sentido, no «puzzle» que vocé é, encaixam... Bašta ler as suas entrevistas, as vezes que vocé já mudou de opiniáo! \ [LA] Penso que nas entrevistas os entrevistadores tendem mais a representarem-se a eles próprios do que ao outro. Aquilo que vocé cháma a personagem construída sobre o escritor que sou, penso que foi mais dado pelo exterior. Se falar com os meus amigos eles dizem--lhe coisas completamente diferentes. [EXP] Se náo tivesse ganho o Prémio da APE como é que se teria sentido? [LA] Na mesma. [EXP] Náo se sentiria, antes, como um condenado a quem dáo a última refeicáo? ;- [LA] A gente tem sempre a esperanca de que os próximos livrós sejam melhores. Dá-se uma importáncia excessiva a este Prémio! Há quem deixe de dormir. [EXP] Vocé náo? > 82 I CLARA FERREIRA ALVES, 12 DE ABRIL, 1986 [LA] Näo! Näo ganhei com Fado Alexandrino! Alias, a sua opiniäo era contra mim, voce achava que os melhores eram a Agustina e o Vergílio Ferreira, lembra-se? Näo me interessa falar disso, mas näo ganhei e continuei a escrever, o tempo Joga a meu favor. «OS CRÍTICOS CA SÄO UNS AMADORES» [EXP] O seu estilo evoluiu, voce maneja melhor os instrumentos, agora. Julgo que Auto dos Danados, que voce acha que é o seu melhor livro, podia ser de facto o seu melhor livro! Mas näo é, porque o autor entra pelo narrador dentro e sendo Auto dos Danados um romance a várias vozes, o que exige uma técnica dificílima, é aí que voce se espalha. Ao entrar por todos aqueles narradores dentro, o Antonio Lobo Antunes repassa a personagem para o narrador, e näo controla a sua divagagäo, em prejuízo da accäo. O autor perturba a narracäo. [LA] Penso que näo. Foi um livro muito policiado, mas é inevitável que o autor näo passe... [EXP] As suas personagens, como é que aparecem? Como é que as constrói? [LA] Está a perguntar como trabalho? Faco urn piano detalhado com os capitulos todos, as personagens todas. Uma espécie de mapa do que vai acontecendo nos diversos capitulos. [EXP] O livro comeca por uma ideia, uma frase, um título? [LA] Depende. A primeira frase é sempře a mais dificil. As vezes demora muito tempo. Este livro demorou-me um ano dentro da tola, a Explicacäo dos Pássaros veio-me de repente. [EXP] Já experimentou reler-se, ver o que escreveu atrás? [LA] Nunca, sequer, revi provas dos meus livros, nisso sou um autor cómodo. Depois de acabar os livros näo os quero voltar a ver ou a ler. [EXP] Mas se alguém em quern voce confiasse, ou entäo os editores Portugueses fizessem o que fazem os americanos ingleses, o «editing», e lhe mandassem[,] por exemplo, o Fado Alexandrino, para trás a dizer que tinha cem páginas a mais, o que faria? [LA] A questäo é académica, mas o Zé Cardoso Pires, que leu trés vezes o Fado Alexandrino, disse que nas mäos dele ficaria com menos 50 páginas. Mas a gente depois já näo está em estado de emendar, "A VINGANCA DE LOBO ANTUNES" | 83 está noutra onda. Alias, isto tem a ver com aquela frase do Jorge de Sena que respeito, mas näo admiro particularmente como escritor. A frase era de um prefácio, em que ele pedia aos críticos que distin-guissem as razóes porque näo gostavam dele das razöes porque näo gostavam de um livro dele. Ate que ponto essas coisas näo se misturam? [EXP] A crítica literária em Portugal tem dois vícios: as ternas cumplicidades ou o nacional-porreirismo, e a falta de coragem. Já vi muito boa gente que escreve sobe livros dizer alto, e em particular, que tal romance é péssimo e escrever que ele é assim assim ou que é bom. Há especialistas nessas habilidades, tem medo dos autores. E sobretudo dos que tem mau feitio; ou entäo näo se querem incom-patibilizar. Näo acha isto mais grave do que escrever a verdade, mesmo que ela lhe doa a si, como escritor? [LA] Näo tenho essa experiéncia, näo escrevo em jornais e näo conheco toda a gente que escreve em jornais. Mas admito que isso é uma mentalidade portuguesa, que lá fora näo existe. E os críticos cá säo uns amadores. [EXP] Entäo a única crítica é a académica? Ou só os americanos é que sabem fazer críticas? [LA] Ah! Ah! Bom, amadores säo, forgosamente... bem, eu nunca respondi a nehuma crítica e tenho sido crucificado de várias maneiras. [EXP] Näo reage? [LA] Näo. [EXP] Em publico näo, mas em privado... [LA] E raro! Eu quase nunca leio as críticas, o seu jornal eu näo compro, näo leio praticamente jornais a näo ser «A Bola». [EXP] E o «New York Times»... [LA] Näo me faca mais pedante do que eu sou! [EXP] É quanto? [LA] Como vocé. [EXP] Pode ser uma boa resposta mas näo quer dizer nada. [LA] Eu näo quero dizer nada, provavelmente temos todos uma dose de snobismo, de pedant[e]ria, e pensamos que somos todos detentores da verdade. 84 I CLARA FERREIRA ALVES, 12 DE ABRIL, 1986 A VINGANCA DE LOBO ANTUNES" | 85 AS FUNgÖES DELETÉRIAS DOS PRÉMIOS [EXP] Acha que o júri da APE, na sua decisáo, é detentor da verdade? [LA] Näo fago a menor ideia. [EXP] Leu algum dos outros romances mais falados do concurso? [LA] Li o do Antonio (Alcada Baptista). Os outros säo escritores que näo me interessam. E depois todos os prémios tem fungöes deletérias, criam invejas, inimizades... [EXP] Já as sentiu? Voce fala do seu grupo de amigos como de um conjunto táo solido que näo acredito que o Prémio da APE o ataque... ou näo? [LA] Acho que os meus amigos ficaram mais satisfeitos do que eu. o Zé, o Urbano, o Joäo de Melo ficaram täo contentes. De qualquer modo, o Prémio significa para mim uma espécie de viragem, sempře pensei que ele era dado por idades. [EXP] E que näo era dado a tipos com a mania de se portarem como um «enfant terrible»... [LA] E a sua opiniäo, nunca fui «enfant terrible»! [EXP] Outra contradicäo! Foi imenso, e näo sou só eu quem pensa • isso. i [LA] Entäo junte-se com os seus amigos e faca um coro! [EXP] Nunca lhe falei nos meus amigos e näo cantamos em coro -e muito menos sobre si, as suas qualidades ou defeitos! Ha opiniöes comuns. [LA] Com a música da Mocidade Portuguesa talvez näo lhes ficasse | mal! j [EXP] Estamos a falar de livros e de escritores, parece-me, e quanto a isso tenho por hábito 1er sozinh[a] e näo em grupo. Também näo vou em análises de grupo. Voltando ao Prémio, que tal a palavra consagracäo? : [LA] Näo faco parte do Patriarcado, e consagracäo tem uma conotacäo f religiosa que me desagrada muito. [EXP] O que é isso das idades? Quer dizer: já despacharam a Agustina, o Saramago, o Vergílio, os mais velhos... [LA] O Vergílio - o seu querido - näo! [EXP] Falei em escritores que estiveram na ultima fase do concurso, I näo nos que ganharam. O Saramago näo ganhou. Será que voce í pensa que váo comecar a dar prémios aos da sua geracáo, porque dantes só davam aos outros? [LA] A minha geracáo é a da guerra, da abertura, da mudanca, passámos por muitas experiéncias diferentes. [EXP] Se náo fosse a guerra teria sido escritor? [LA] Náo sei, náo sei... eu fazia redaccóes desde crianca, naqueles cadernos pretos das máes fazerem as contas, lembra-se? Rapinava-os á minha máe para escrever neles. Inventava histórias com jogadores de boxe, ou corredores de automóveis, coisas assim... [EXP] Heróis? [LA] Sim, claro, nessa altura! O ESCRITOR E AS RAÍZES [EXP] Qual o primeiro livro que leu e nunca mais esqueceu? [LA] Aos doze ou treze anos, os Contos de Oscar Wilde impressionaram-me muito. O Happy Prince. E poesia, sobretudo poesia, nessa altura. O meu pai gostava muito de poesia e tínhamos muitas coisas. Éramos seis irmáos, apanhávamos papeiras por atacado, e o meu pai sentava-me na cama e lia-nos coisas de que ele gosta. Camilo, Pessanha, o Antero, alemáes... [EXP] Vocé é médico, psiquiatra. Continua a exercer. [LA] Čada vez sou menos isso. Penso que se for para Berlim acabou de vez. [EXP] Vai para Berlim? [LA] Vou, tenho um convite muito bom para ir escrever. E de qualquer forma vou pedir a reforma do hospital, porque com os anos da tropa, os concursos, cheguei relativamente depressa a uma posicáo na hierarquia... [EXP] Quem, ou o qué, o convidou a ir para Berlim escrever? [LA] Todos os anos há um concurso assim para compositores, escritores e náo sei qué, náo sei bem se sáo uma espécie de bolsas, agora é que vou informar-me quando for lá. Sáo dois anos, prorrogáveis. [EXP] Já da última vez que falámos vocé ia para o Brasil, ou os Estados Unidos, estava de partida para qualquer lado. [LA] Repito-me, sou muito repetitivo. E aqui náo tenho muitas raízes. 86 I CLARA FERREIRA ALVES, 12 DE ABRIL, 1986 [EXP] Como e que näo tem raizes se os seus romances säo profunda-mente enraizados na realidade portuguesa? [LA] E como dizia o Churchil[l], ele afirmava que era 50 por cento americano e 100 por cento ingles. A minha familia vem do Brasil e a que näo vem, vem da Alemanha. Embora eu goste muito de Lisboa. Esta ultima vez, na Alemanha Oriental, tive umas saudades loucas de Lisboa. [EXP] Estä sempre a falar dos amigos, etc. Ja se imaginou a viver em Berlim, que e uma cidade fria, em todos os sentidos...? [LA] Isso näo vai ser fäcil, mas viver em Portugal e fäcil? As vezes parece-me tudo a Pövoa de Santo Adriäo, sabe? «O BAIRRO ALTO ESTÄ CHEIO DE ARTISTAS» [EXP] Voce faz-me lembrar a anedota do barbeiro que todos os dias punha urn letreiro na montra a dizer: «Amanhä, barba e cabelo de graca». E as pessoas iam la, mas era sempre amanhä... Nunca chegava a ser. Voce, mesmo a falar, parece que estä parado, em cima do cais, a olhar para longe, ä espera de partir ou de que chegue qualquer coisa. E aquele livro de que me falou e que se ia chamar O Regresso das Caravelas? [LA] Sera o proximo. Tenho andado a rasgar o resto do que escrevo. E urn livro sobre retornados e eu näo sou propriamente urn retornado. [EXP] Voce näo e propriamente um psiquiatra, näo e propriamente um portugues, näo e propriamente urn retornado. E propriamente o que? Um escritor? [LA] Urn escritor? O que e urn escritor? o Hokusai aos 80 anos disse: «Se Deus me tivesse dado mais cinco anos de vida tinha-me tornado um escritor». Gostava de usar uma frase do Gide em que ele considerava que em Franca hä mais artistas do que obras de arte e isto aqui e assim... o Bairro Alto estä cheio de artistas, os bares estäo cheios de artistas, os restaurantes tambem. Montes de artistas, somos bestiais, mas näo hä obras de arte, de facto. [EXP] Jä estä a escrever outro romance, e havia aquele que teria como titulo Chamam o sr. Bunel ao Telefone. O que e que lhe aconteceu? Como e que gera tantos romances na sua cabeca ao mesmo tempo? "A VINGANCA DE LOBO ANTU N ES" | 87 [LA] A gestacäo é lenta, uma pessoa pega numa história e depois está uma data de dias a ver se é capaz de escrever. {EXP] Como é que se sente, durante esse tempo? [LA] Ando ä procura, escrevo, rasgo. [EXP] Escreve todos os dias? Como, com que rituais? A noite ou de manhä? [LA] Escrevo quase todos os dias, quando posso, ä noite. faco uma primeira versäo, que escrevo em blocos, na cama, sentado no chäo. Sempre ä noite porque näo acho fascinante levantar-me cedo. Fico até äs tantas. [EXP] Diga-me um poeta portugués de que goste, dos actuais. [LA] Há um homem que morreu há pouco tempo e que está injustamente esquecido e que acho um grande poeta, o Santos Barros. Gostava muito dele, como poeta e como pessoa. Posso admirar as pessoas mas é raro ter respeito por elas, por ele tinha. E há um outro homem que merecia ter a obra divulgada, como poeta, que é o Fernando Assis Pacheco. E, outro insuficientemente conhecido e de que gosto muito, o Joäo Miguel Fernandes Jorge. A CRÍTICA E A AFECTIVIDADE [EXP] Quando lé um romance de um amigo seu, do Cardoso Pires, ou da Lídia Jorge, consegue fazer a destrinca entre a opiniäo afectiva e a técnica? [LA] E afectiva, como a sua. Quando vocé escreveu sobre este livro, era extremamente afectiva2. E isso que torna a crítica, aqui, o contrário do que o Borges dizia. Afirmava mais ou menos que se näo tem nada que declarar se o livro é bom ou mau, mas tem que se tentar, tentar... bom, é a opiniäo dele, que é diferente de mim e até nem é escritor que aprecie muito. Deve-se desmontar o mecanismo do livro e torná--lo mais compreensível para o lei tor, em vez de emitir juízos de valor. [EXP] Toda a crítica é afectiva, é outra coisa. E está-se sempre a fazer juízos de valor, näo tem nada a ver uma coisa com a outra. Falou em desmontagem. O que pensa de Barthes, por exemplo? 2 Clara Ferreira Alves, "Lobo Antunes e os sete pecados mortais", in Expresso/ Revista, 23 de Novembro, 1985, p. 58. Ver, a propósito, Introducáo, p. xxii. CLARA FERREIRA ALVES, 12 DE ABRIL, 1986 "A VINGANCA DE LOBO ANTUNES" [LA] O mesmo que o Ionesco: a linguística leva ao crime. [EXP] E quem mata quem? [LA] Matam-se todos uns aos outros, devoram-se. Quanto á afectividade, bom, eu sei muito bem que vocé náo gosta do que eu escrevo, e gosta do que o Vergílio escreve. Leu a dedicatória do livro j que lhe mandei? Dizia que vocé era definitiva e completamente peremptória. [EXP] Eu náo gosto de tudo o que o Vergílio Ferreira escreveu e náo detesto tudo o que vocé escreveu. Há coisas suas de que gosto, coisas dentro de livros. Frases, até, de que gosto muito. Quanto a ser definitiva e peremptória, vocé também é. Bašta ouvi-lo falar dos seus amigos! [LA] Mas aí sou eu a sé-lo! (risos). E vocé tem direito a sé-lo, quando for mais crescida vai sé-lo menos... [EXP] Vocé também, quando crescer. Da última vez que falámos, de há trés anos até hoje, vocé fartou-se de crescer. Tem muito mais cautelas, já náo diz tantas «boutades», já náo diz mal dos outros como dizia. Alias, era bastante divertido. [LA] Eu náo estou mais cauteloso, mas há coisas de que já náo vale a pena falar. Nessa altura perdi muito tempo a combaté-las. Batalha vá. Por exemplo, vocés, jornalistas literários, tém um gosto completamente «kitsch», eu acho. [EXP] Exemplifique... [LA] Sei lá, determinados escritores. [EXP] Kundera? [LA] Sim, por exemplo[.] Náo me entusiasma, é romance cor-de--rosa. Como aquele outro de que vocé gosta, o Heller, também náo me entusiasma... [EXP] Só leu o Catch-22. Mas é estranho, porque pensei que o seu sentido de humor encaixaria no do Heller. Mas, onde é que está hoje o seu sentido de humor? Auto dos Danados está cheio de ódio... OS RICOS E OS POBRES [LA] Por quem? [EXP] Vocé é que sabe. Os burgueses, por exemplo, hoje já ninguém fala em burgueses. [LA] Nem eu. Burgués em que sentido, flaubertiano? [EXP] No sentido em que vocé emprega a palavra em Explicagáo dos Pássaros. Hoje vocé fala em ricos e pobres... [LA] Esses existem, de facto. Mais pobres que ricos... [EXP] Alguém disse uma vez que nos romances da Agustina náo havia amor. Em Auto dos Danados náo há nem sequer ternura, uma personagem cativante. Qual a sua relacáo com as suas personagens? Parece-me que é a mesma que elas estabelecem entre si: ódio. [LA] Náo sei se nos romances da Agustina náo há amor, mas ela demonstrou um grande amor pelo dr. Freitas do Amaral, é a prova de que a senhora tem amor. No meu livro, náo sei, penso que gosto daquele tipo que é uma espécie de toiro de cobrigáo da família toda. E daquele miúdo que tem uma relagáo com uma mulher muito mais velha do que ele... [EXP] É o único onde há um afloramento de ternura. Onde é que foi buscar aquela gente, donde é que a inventou? [LA] Do seu nariz, da minha boča, os olhos dele (aponta o fotógrafo, Luis Ramos). Sáo bocados apanhados aqui e acolá, como toda a gente faz. A gente náo inventa nada. [EXP] Eu náo sei como é que toda a gente faz, quero saber como vocé faz! Diga-me! [LA] Vocé, á forga de falar com génios, deve saber como é que fazem (risos). Tenho uma atitude humilde, a gente faz uma espécie de «patchwork», de bocadinhos de pessoas. Ali o que é real é Monsaraz, é a festa. [EXP] A palavra génio existe, náo está proibida a aplicagóes. Porque náo utilizá-la, como a todas as outras? [LA] Se calhar somos todos génios. No outro dia estava a falar com um doente que me disse: «Oh, sr. dr., estive a falar com um médico que tinha uma voz de sabonete embrulhado em papel furta-cores». Isto náo é uma frase de génio? E tenho mais um outro que me disse: «Sabe, o mundo comegou a ser feito por detrás...» [EXP] Um doente disse-lhe isso? Vocé roubá frases aos seus doentes para os seus livros? [LA] Náo sei. Tenho bastante dificuldade em utilizar a palavra em alguém. É como a palavra escritor, tem tanto peso! Náo sei o que é um escritor... go I CLARA FERREIRA ALVES, 12 DE ABRIL, 1986 PROFISSAO: ESTAR VIVO [EXP] Daqui a pouco so sabe que nada sabe, como o Socrates. Vamos ter que arranjar cicuta. Qual e a sua profissäo? [LA] Estar vivo! [EXP] Ja ninguem diz essas coisas, dizia-se nos anos 60. [LA] Se se dizia nos anos 60 estou täo «kitsch» como voces, estamos perfeitamente na mesma onda... [EXP] Estamos? Eu näo sou dos anos 60. O que e o «kitsch»? [LA] E o bar Procopio em Literatura, aquele bar das Amoreiras, cheio de anjinhos... [EXP] Anos 60. Sente-se parte de uma geracäo? Uma vez disse que näo participara nas lutas associativas de 61, porque näo lhe tinham cheirado a Chanel. [LA] Passei a vida universitäria a jogar xadrez. Senti-me parte de uma geragäo em Africa, na guerra. Parte de um grupo. Ate ai estava isolado. O Maio de 68 passou por mim como ägua por um pato. Pergunto-me se näo seria mais uma adesäo romäntica, intelectual, do que real... e depois tive uma familia muito tribal, que pesou muito na minha educacäo. Vivia numa quinta, em Benfica. [EXP] Educagäo catölica tradicional? [LA] Fui menino de coro. Fiz tudo, ate deixar de ir ä missa. Fui educado num ambiente concentracionärio, fechado. Que se repetia em Africa, mas em Africa havia a solidariedade da morte. [EXP] Conte-me um episodio de crianca... [LA] Escrevia e no alto da pägina punha Obras Completas de Antonio Lobo Antunes e depois inventava titulos. E escrevia poemas ao Cristo, porque os vendia ä minha avo que me dava umas massas. Sonetos, que eram a minha especialidade. Era magnifico no soneto. [EXP] Infäncia feliz, livros autobiogräficos, invencäo a partir da Explicacäo dos Pässaros. Auto dos Danados estä cheio de ödio. Inventado? «NÄO SEI O QUE E O ÖDIO» [LA] Näo sei o que e o ödio. Ou gosto das pessoas ou näo existem para mim, näo quero saber. Näo sou capaz de odiar. Fala do ödio do Auto, bem, o meu sonho foi sempre escrever um livro como o "A VI NGANCA DE LOBO ANTUNES" | 91 Hitchcock fazia nos filmes. Quero que as pessoas saissem deles de gatas. O proximo nao vai ser tao insuportavel, no ambiente. Estes parecem filhos do Faulkner... [EXP] O proximo. Preocupa-o envelhecer como escritor? [LA] Tenho mais dez anos a minha frente. [EXP] Escreve a mao? [LA] Sim, a mao, e artesanal como um bordado. E como se estivesse a bordar, como o rei Gustavo Adolfo da Suecia, no seu castelo. 156 I ANA SOUSA DIAS,18 DE OUTUBRO, 1992 äs vezeš dava aulas sobre coisas que tinha comprado na Feira da Ladra. Completamente fascinante. Era professor de Clinica Cirurgica, a cadeira de cupula da faculdade no que diz respeito ä cirurgia. Mas havia outros professores de cirurgia cultissimos, Abel de Morais, Celestino da Costa. Lembro-me de um professor de dermatologia dizer que näo se podia ser bom médico se näo se tivesse lido o Kafka e outros grandes escritores. Penso que provavelmente isso se terá perdido hoje na faculdade. [P] Fala do passado sempre com muita nostalgia, como se fossem valores que se perderam, como se näo houvesse outros valores, como se hoje existisse um vazio. [R] O Ortega y Gasset dizia que a arte é a infáncia fermentada. De facto vivo no presente, com a idade que tenho agora, nas circunstäncias de agora, séria profundamente ridículo eu refugiar-me num passado que já näo existe. No entanto, ele serve para eu dominar o presente. Penso que o Fernando Pessoa tem razäo num ensaio curioso em que diz que nós, portugueses, temos duas caras, uma constantemente voltada para o passado e outra para o futuro. Näo gosto do Fernando Pessoa nem do pensamento dele, nem sequer da poesia dele, acho que ele é o Tomáš Ribeiro deste século, todos os séculos se ten ta arranjar um poeta melhor do que o Camóes. Acho que ele é um bom poeta mas näo é um poeta extraordinário. [P] E acha que há algum poeta extraordinário? [R] Camóes. Foi ele que inventou o portugués moderno. A sensualidade do portugués de Camóes, a espantosa modernidade da poesia dele... Camóes, Bocage, Bernardim... säo poetas de que eu gosto muito. Custa-me conceber um poeta que nunca tenha feito amor. E äs vezes quando leio certos prosadores portugueses, näo tém esperma nenhum lá dentro, säo tudo coisas que se passam dentro da cabeca. Pensam muito. E a literatura faz-se com palavras. E urna literatura que se pretende intelectual e eu näo gosto dos intelectuais. 16. LUÍS ALMEIDA MARTINS, 'Antonio Lobo Antunes: «Quis escrever um romance policiab Jornal de Letras, Aii.es & Ideias 27 de Outubro, 1992, pp. 8-11 Provocador, excessivo, blase, poseur, com uma pitada de loucura -diga-se dele o que se disser, em portugués ou noutra lingua, que nem por isso Antonio Lobo Antunes deixa de ser um dos nossos escritores mais traduzidos, com maior projeccäo internacionál e, ä partida, com fortes probabilidades de vir a ganhar o Nobel, ou näo se chamasse o seu novo romance, a lancar amanhä, «A Ordern Natural das Coisas»... Antonio Lobo Antunes lanca amanhä, quarta-feira, o seu novo romance, «A Ordern Natural das Coisas» (Publicacöes Dom Quixote). O nono, no ano em que perfaz 50 anos. Uma das vozes mais representativas da actual literatúra portuguesa, Lobo Antunes é um dos nossos escritores mais traduzidos e, com Jose Saramago e Jose Cardoso Pires, um dos de maior projeccäo internacionál, liderando as edicôes nos países anglo-saxónicos e nórdicos. A sua cotacáo na Suécia, por exemplo (onde a sua obra está editada na totalidade), coloca-o numa boa posigäo do ranking portugués para o Nobel. Comegou a publicar um tanto tardiamente, aos 37 anos. Nesse ano de 1979 foram dados ä estampa os romances «Memoria de Elefante» e «Os Cus de Judas», a que se seguiram [«Conhecimento do Inferno» (1980), «Explicacäo dos Passaros» (1981)], «Fado Alexandrino» (1983), «Auto dos Danados» (1985), «As Naus» (1988), «Tratado das Paixöes da Alma» (1990) e, agora, «A Ordern Natural das Coisas». 158 I LUÍS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 Lobo Antunes é um escritor controverso. Com uma formacáo médica e uma especializagäo em Psiquiatria, assume-se de algum modo como um outsider em relagäo aos circuitos «normais» de promocäo das obras literárias. Inicialmente primava pela truculéncia, produzindo declaracöes públicas «bombasticas», características que tem vindo a refrear na proporcäo directa da obtencäo do éxito e do reconhecimento. Presentemente, trabalha no seu ofício de ficcionista de manhä ä noite. Após dois divórcios, vive sozinho num pequeno apartamento da Avenida Afonso III, com vista para o mar da Palha, despojado de bens materiais e rodeado de poucos livros - sempre os mesmos, que relé até ä exaustäo: Faulkner, Gogol, Tolstoi, Truman Capote, Thomas Mann, Flaubert, Zola, Celine, Camöes, poucos mais. Ficcäo portuguesa contemporänea, praticamente náo lé, embora se compraza na descoberta de novos valores. Sai para almocar e para jantar em breves pausas do seu labor programado. Fala muito nas filhas, com quem passa os fins-de-semana. Está mais sereno do que noutros tempos, assumindo o seu isolamento como uma bóia de salvacäo. Quase todos os dias pousa a caneta para contactar telefonicamente com Jose Cardoso Pires. Depois retoma-a e volta a desenhar letras na sua caligrafia redonda. «A Ordern Natural das Coisas» é, provavelmente, o seu melhor romance. Complexo, polifónico, pöe em evidéncia as várias faces de uma realidade em forma de trama que se desenvolve mais para os lados do que para a frente. É, também, o romance de um romance. [JORNAL DE LETRAS] O seu novo romance, «A Ordern Natural das Coisas», está agora a chegar äs mäo[]s do publico. Parece-me mais proximo dos primeiros - intimista, cheio de reminiscéncias - do que os mais recentes. Estarei a ver bem?... [ANTONIO LOBO ANTUNES] Sob este ponto de vista nunca tinha imaginado. Os primeiros sáo muito mais lineares. Este é um livro muito mais polifónico, com muitas vozes; portanto, tecnicamente estará muito longe dos outros. Penso que o livro pertence a um ciclo que acabará com o proximo (e que já abrangia o «Tratado das Paixöes da Alma») e que quase se poderia chamar «Ciclo de Benfica», porque o cenário é sobretudo centrado na Benfica da minha infäncia. [JL] Referia-me ao lastro de reminiscéncias, de recor[d]aqöes. [ALA] Mas näo [] [e]xiste nele nada de autobiográfico. Agora, é evidente que näo invento nada. Os cenários das casas säo reais, parte "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL»" | 159 das personagens, depois de transformadas, säo pessoas que eu conhecia. Mas näo há nenhum romance que e[u] tenha escrito em que a coisa näo se passe mais ou menos assim. Penso que este romance vem na linha dos outros todos, ao fim e ao cabo, apesar de haver trés fases dife rentes. [JL] Que trés fases? [ALA] Os primeiros eram nitidamente autobiográficos. Na fase seguinte, a personagem é o Pais. A actual é o tal «Ciclo de Benfica». [JL] Penso que este é o mais bem construido de todos. [ALA] Eu também penso que sim, embora a partir do «Conhecimento do Inferno» tenha comecado a ensaiar este tipo de técnica, que depois tenho vindo a tentar aperfeicoar. Ao principio näo havia a substituigäo dos diálogos pelos monólogos sobrepostos, que tem que ver com a dificuldade que há de se fazer diálogo em portugués. [JL] Evita o mais possível o diálogo. [ALA] É, mas no «Tratado das Paixöes da Alma» a acgäo é feita outra vez ä base do diálogo. Neste ultimo, há sempre o interlocutor^ subjacente - a personagem fala para alguém. [JL] Nesse sentido, todo o livro é um diálogo. [ALA] Ou dez diálogos. No fundo, é uma história quase policial. Toda ela é inventada por uma mulher que vive sozinha. Só no fim é que o leitor se apercebe disso. Eu nunca tinha experimentado fazer um livro desta forma. [JL] É o romance de um romance? Um jogo sobre a escrita? [ALA] Jogo, näo. Trata-se de uma mulher que está a morrer no meio de uma grande solidäo e que povoa a sua agonia destes fantasmas todos, que säo as diversas personagens que ela adapta, transforma, muda, de maneira a conjurar a angústia da aproximacáo da mořte (e o livro acaba com a mořte dela). E a dissolucäo de um cérebro. No final, a mořte é também entendida como uma espécie de nasci-mento: em vez de falar da agonia dela, evoca o nascimento da filha. [JL] Quando falei de «romance de um romance* referia-me ä dissecacáo do processo criativo, que neste caso era como que uma espécie de catarse para essa mulher. [ALA] Também, embora quase todas aquelas histórias sejam reais. E evidente que há sempre um elemento transfigurador quando a gente está a trabalhar. Se näo parto sempre de qualquer coisa que seja real[,] se näo encontro verosimilhanca, näo sou capa[z] de esc i ever i6o I LUIS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 uma história. Náo consigo tirar totalmente uma história da cabega, sem casas que eu conheco, pessoas que eu conhe[]co... [JL] Tudo o que escreve tern muito a ver consigo. [I]sto é válido para qualquer escritor, mas no seu caso parece-me ainda mais patente. [ALA] As vezeš sáo coisas inventadas a [pajrtir do que se ouve, do que se [v]é. Por vezeš entretemo-nos a escrever uma história acerca de uma pessoa que acabámos de conhecer. Mas é verdade, sim, que isso se passa com todos os escritores. Náo [d]eve haver grande diferenca de funcionamento. Há, sim, é diferengas de qualidade quando o livro está acabado. [JL] Gosta děste livro tal como ele ficou? Perguntando de outro modo: será o melhor dos que escreveu? [ALA] Eu penso que é o melhor, mas náo sei se é aquele de que eu gosto mais. As razóes por que se gosta dos livros sáo muito variáveis. De uns gosta-se deles em si, de outros gosta-se por razoes mais afectivas, de outros ainda pela forma como foram recebidos pelas pessoas. Embora de uma forma diferente, acaba-se por gostar de todos, senáo náo os publicávamos. A GENESE DO ROMANCE [JL] O Lobo Antunes e&ereve ininterruptamente... [ALA] Sempře, sempře, ininterruptamente [J L] Esse ritmo de trabalho corresponde decerto a uma necessidade interior. Mas vamos trocar isso por miúdos... [ALA] Porque é que eu escrevo assim? Porque acho que é preciso trabalhar muito[.] Acabo um livro e só passados meses é que consigo comecar a trabalhar noutro, mas normalmente ao fim de quinze dias recomeco a escrever, nem que seja para fazer pastiches[,] escrever «á maneira de...» [J L] De quem? [ALA] Dos escritores de quem eu gosto: Flaubert, Faulkner, etc. Eu penso que isso ajuda muito a fazer a m[]áo. Até aparecer o romance novo, até fazer o piano, penso que é importante continuar sempře a escrever. [JL] Quando comeca a escrever um romance novo já tem o piano completamente delineado? [ALA] Já tenho o piano escrito. "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL»" | 161 [JL] Faz aquilo a que em guionismo se cháma uma sinopse? [ALA] Sim, mais ou menos sim. Para alguns, mais detalhada. Por exemplo, o «Fado Alexandrino» tinha um piano detalhadíssimo, até ao mínimo pormenor de cada capítulo. Mas, normalmente, um piano é uma folha assim grande e está lá tudo escrito. As vezeš mudo coisas. Estou a lembrar-me desse capítulo da mořte da mulher: andei uma data de tempo á roda dele, a fazer versóes, até que de repente descobri que tinha de ser escrito assim e foi o capítulo que escrevi mais depressa - para aí em meia hora. Mas é muito raro acontecer uma dádiva destas. Eu escrevo muito devagar, com muitas emendas. É tudo muito penosamente conquišfado. --------- [JL] Sempře á máo? ■-—i [ALA] Sempře a máo. Depois dou a passar e volto ainda a emendar. Por exemplo, este livro inicialmente tinha mais do dobro do tamanho com que ficou. Acabam sempře por ficar muito mais pequenos. Com o «Fado Alexandrino» lembro-me que estava no ultimo capítulo e atirei o livro fora para recomegar tudo de novo. E era um livro com cerca de setecentas páginas. Deu-me um trabalháo enorme! [JL] E muito exigente consigo próprio? [ALA] Náo é só uma questáo de exigéncia. E que é preciso fazermos as vezeš que forem precisas até ficarmos satisfeitos. Este livro, por exemplo, tem trés capítulos que náo me satisfazem: o livro está feito, mas continuo a náo gostar deles. Comigo, o processo é muito lento. O meu ideal era conseguir publicar um livro por ano, mas é impossível, náo consigo. Mesmo trabalhando dez, doze, catorze horas por dia, náo consigo... A ESCRITA COMO NECESSIDADE [JL] Há Uma coisa de que já falámos noutra entrevista publicada1 mas que náo fica mal aqui outra vez: porque é que só comecou a publicar livros relativamente tarde, aos 37 anos? [ALA] Tarde eporacaso. Comecei a publicar por acaso. Nunca me tinha passadó antes pela ideia publicar um livro. [JL] Mas ia escrevendo. Ver entrevista 12. i62 I LUÍS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 [ALA] Escrevia os romances e atirava-os para o lixo. Nessa alt[u]ra, em 78, um amigo meu, o Daniel Sampaio, encontrou um molho de papéis e perguntou: «O que é isto? - É uma coisa que eu escrevi». Ele leu e levou a uma editora - foi a Bertrand, na altura - que recusou. Depois o livro andou por aí em bolandas[.] Foi sempře ele que fez tudo. Acabou por sair na Vega. De tal forma que quando o livro saiu já o outro a seguir estava quase pronto. Foi uma espécie de bola de neve. Houve aquele sucesso muito grande do primeiro e os outros seguiram-se. O primeiro näo tinha aquele título com que acabou por sair. «Memoria de Elefante» era o tí[t]ulo do [s]egundo, que depois veio a chamar-se «Os Cus de Judas». Como acharam que o título era muito comprido e []näo [e]ra comercial, o título do [sjegundo foi para o primeiro. Saíram com quatro ou cinco meses de intervalo. O livro saiu no Veräo porque era de um autor desconhecido, com uma tiragem pequena, etc. Mas foi muito bem recebido e criou o tal efeito de bola de neve. [JL] Antes de comecar a publicar escreveria, portanto[,] por necessidade absoluta. [ALA] Era. [DJeixei publicar a «Memoria de Elefante» porque achei i que era o primeiro livro onde eu tinha encontrado uma maneira pessoal, ou mais ou menos pessoal, de dizer as coisas. Até entáo 'nunca me interessou publicar. Estive sete ou oito anos a escrever livros e na maior parte foram destruídos. Periodicamente queimava ou rasgava tudo. [J L] Entáo só comecou a publicar quando sentiu que tinha encontrado a sua voz pessoal e tanto quanto possível definitiva. [ALA] Sim, sem dúvida, embora ela tenha vindo a modificar-se, a enriquecer-se, no fundo. O primeiro livro é um livro cheio de ingenuidade, sempře com o controlo do tempo... Nessa altura eu defendia muito a situacäo da acgäo num espaco de tempo muito determinädo e muito curto, o que me permitia uma maior facilidade de escrita. Agora comeco a andar para a freute v para trás no tempo... A «Memoria de Elefante» passa-se em vinte e quatro horas, «Os Cus ! de Judas» numa noite, [o] «Conhecimento do Inferno» era uma viagem |do Algarve para Lisboa, [a] «Explicacäo dos Passaros» eram quatro jdias, o «Fado Alexandrino» era uma noite, o «Auto dos Danados» >eram quatro dias... Born, a partir de «As Naus» é que deixei de ter esse problema. "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL»'f | 163 [JL] «As Naus», pelo seu carácter eminentemente simbólico e literal-inente fantástico foge ä tónica da sua obra. [ALA] Eu penso como um brasileiro que escreveu sobre esse livro e que dizia que ele encerra a segunda fase, a que ele chamava «epopaica», (,u coisa assim. Esse brasileiro interrogava-se: o que é que [s]e vai i-screver a seguir a este livro? Mas era o fecho natural dessa fase que t omega com a «Explicacäo dos Passaros» e inclui o «Fado Alexandrino» r o «Auto dos Danados», encontrando a cúpula em «As Naus». [JL] É a tal fase cujo protagonista é o proprio Portugal. [ALA] É o País. Embora isso se passe com quase todos. E o «Tratado das Paixöes da Alma» abre esta nova fase que continua com «A Ordern natural das Coisas» e acabará com o próximo, de que só poderei dizer o tí[t]ulo depois de estar registado, para näo voltar a acontecer uma surpresa desagradável. [JL] Refere-se ao caso de «As Naus», cujo título anunciado era O Regresso das Caravelas», título este que näo pöde utilizar por já ler sido alegadamente registado por outra pessoa, concretamente Vitorio Kali. Agora que falamos disso: o livro do outro autor nunca chegou a aparecer. [ALA] Nem se[i] se era um autor. Mas «As Naus» continua a ser traduzido nos outros países com o título «O Regresso das Caravelas», porque aí o copyright näo funciona em relacäo ao título. O título é meu a partir do momento em que eles o publicaram. Meu ou da editora. PARENTESCOS LITERÁRIOS [JL] O Antonio Lobo Antunes é um dos escritores portugueses com maior projeccäo internacional. O primeiro ou segundo? A frente ou atrás do José Saramago, em termos de traducóes em línguas estrangeiras? [ALA] Mais que o Saramago, sem dúvida nenhuma. [JL] Com mais edicóes?!... [ALA] Mais edicóes e mais países. Eu duvido que algum outro escritor tenha a obra toda vendida para países como Franca, Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, e em editoras como Bourgois, como a Grove [e] por aí fora... E na Suécia. Quem é que tem a obra toda vendida para estes países todos? Penso que näo há. Eu nunca fiz foi promoeäo. Eu i64 I LU(S ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 acho um bocado provinciano uma obra ser traduzida num pais qualquer e mandar logo a notícia e as criticas para os jornais. [J L] O Lobo Antunes coloca-se um bocado ä margem dos próprios meios jornalisticos. Vive um bocado isolado. [ALA] Eu dou-me com pessoas e com poucos escritores. Até porque näo há tempo quando se está a trabalhar, äs vezes nem para os amigos. E näo sei se existem muitos mentideros, ou muita má-língua, ou muita inveja, ou muito chime. Estou um bocado fora disso. O único escritor com quern eu me dou muito é com[] o José Cardoso Pires, falamos quase diariamente ao telefone. Depois há outras pessoas com quem me dou: também me dou com o Joäo de Melo. Há outro> escritores que eu admiro muito e que respeito, sobretudo poetas. Agora, mandar as críticas de lá de fora para os jornais, ou os prémie >s que se ganham no estrangeiro, é tudo täo portugués! Acho que <■ uma questäo de pudor, também. [JL] Admira e respeita sobretudo poetas. Porqué poetas? [ALA] Em primeiro lugar, temos mais poetas do que prosadores. temos melhores poetas do que prosadores, também do meu ponto de vista. E fácil enumerar cinco ou seis excelentes poetas vivos e näo é fácil enumerar cinco ou seis excelentes prosadores vivos. [J L] Quer tentar enumerá-los. [ALA] E sempre aborrecido, porque a gente corre o risco de se esquecer de alguém. [J L] Já falou do Cardoso Pires. Admito que sinta que é um do>-grandes prosadores vivos. [ALA] Eu acho que é um grande escritor. E um homem que constrói admiravelmente uma hi[s]tória, com grande solidez. É um dos pouco*. Portugueses que sabem fazer diálogo. Entre vivos e mortos. Em alguns contos dele os diálogos säo admiráveis. «0 Hóspede de Job» talve/ seja o livro dele que eu prefiro: Näo tem nada a mais nem a menos, nem uma vírgula; é perfeito, para mim; os diálogos säo estupendos. também. Embora como [e]scritor seja um homem que está nos antípodas daquilo que eu sou. E talvez seja por isso que somos amigos. Eu acho que somos amigos também porque temos respeito um pelo outro, e sem respeito e admiracäo näo pode haver amizade. [JL] Estäo nos antípodas em que sentido? Como escritores enquanto tal ou como atitudes perante a eserita? "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL»" | 165 [ALA] Säo os grandes americanos do Sul, os escritores de que eu uonľo mais. O Cardoso Pires gosta mais do Hemingway, que a mim nic deixa um bocado frio, eu prefiro o Faulkner. Mas há uma paixáo que temos em comum, que é o Graham Greene. Gosto dos russos -o Gogol, o Tolstoi [-,] do Simenon que é um escritor em que täo pc.iica gente fala também; ele vem da linha do^Rabelais, que depois acaba no Celine. É muito engracado porqüe os pais do Čéline säo claramente o Rabelais e o Zola. De resto, o Zola foi dos poucos escritorefs] de quem o Celine falou em publico. Ninguém nasce de geraeäo espontänea... E há o Günt[]er Grass, por exemplo. Aprendi com ele a näo ter medo das palavras. [JL] Continua a 1er, a reler, os livros de que gosta? [ALA] Eu leio sempre os mesmos escritores. Säo os livros que eu tenho ali, que é a obra toda do Faulkner, o Scott Fitzgerald, Dickens, Shakespeare, Camöes, e pouco mais. Truman Capote, salvo erro. MÉTODO DO TRABALHO [JL] Apesar de dedicar muitas horas diárias ä eserita, vai encontrando tempo para ler metodicamente, ou apenas o faz pontualmente? [ALA] Quando estou a escrever um romance näo leio fiegäo, porque, necessariamente, a prosa entra na nossa. Leio poesia ou leio ensaio. Ou leio qualquer outra coisa. Por exemplo, agora estou a ler correspondéncia do Celine, que me foi dada por [um] amigo de quem eu gosto muito e näo vejo há muito tempo, e que é uma das personagens de «Os Cus de Judas». Mas quando se está a escrever romance é melhor näo ler os romances dos outros, porque a prosa entra. E entäo há escritores que tém uma prosa que se «pega»! Por exemplo, o Ega pega-se imenso. [JL] Qual é agora o sen método de trabalho? Umas tantas horas por dia, sempre as mesmas, previamente estipuladas? [ALA] Houve uma altura em que fazia umas tantas horas por dia, como o V[ic]tor Hugo, que comecava äs oito da manhä e eserevia por ali fora «A Lenda dos Seculos». Agora, näo: normalmente saio para almocar e para jantar e o resto do tempo trabalho. Isto, mais ou menos, cinco dias por semana. Ao fim-de-semana tenho as minhas filhas. i66 I LUIS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL*" | 167 [] L] Abandonou definitivamente a clinica? [ALA] Já näo tenho consultório. Agora, o que fago é só escrcver, porque o hospital näo me tira muito tempo. [JL] Vive, praticamente, da escrita. [ALA] Claro que näo se vive täo bem como sendo medico, mas clá para viver. Também näo sou assim täo masoquista... E, depois, há os direitos do estrangeirp. As adaptagoes teatrais. Por exemplo, agora com a pega de teatro tirada de «Os Cus de Judas», que se estreia em Maio[,] em Franga. Por ai fora... [JL] Nunca escreve crónicas para jornais. [ALA] Tenho fugido a isso. Quando se está no ritmo do romance é difícil passar para o ritmo da crónica. Eu tenho uma grande admiracäo pelas pessoas que säo grandes jornalistas e escrevem. Näo sei muito bem como é que conseguem. [JL] Há jornalistas que sejam simultaneamente grandes romancistas? [ALA] Em Portugal, näo sei. Mas o Hemingway era jornalista, o Faulkner era jornalista. E por ai fora, por ai fora... Em Portugal, näo sei. Mas eu conhego mal a ficgäo portuguesa. [J L] Näo costuma le-la? [ALA] Leio só os livros das pessoas de quem eu gosto. Mas tenho sempre muito medo de que os livros näo sejam bons, porque gosto muito delas. Bons do meu ponto de vista, é óbvio. E por isso, também, que eu nunca respondi a nenhuma critica, por mais agradável que fosse. [J L] Acha que os escritores deviam ser mais unidos, mais organizados como classe, ou näo se importa com isso? [ALA] Unirem-se para que? Contra que? E, primeiro, é preciso saber quem é que é escritor. Hoje a gente vé na televisáo uma pessoa que escreveu uma coisa qualquer e aparece logo por baixo «fulano de tal, escritor». Acho que há uma distingäo muito grande entre escritores e fazedores de livros. Há muito mais fazedores de livros do que escritores, do meu ponto de vista pessoal, que é perfeitamente discutivel, como todos os pontos de vista. Também por isso é que nunca respondi a nenhuma critica. O único erítico a quem eu até agora respondi foi ao Presidente da Academia Nobel, que escreveu o prefácio ä tradugäo sueca de «Os Cus de Judas», e ao Jacques Lemontand, quando criticou o «Fado Alexandrino» no «Canard». [JL] É verdade que a actividade de escritor é uma actividade solitária? [ALA] Normalmente, as associagöes säo sempre contra qualquer coisa. Agora contra quem? Contra os leitores? Contra os criticos? Contra as editoras? Contra os jornalistas? O NOBEL POSSIVEL [J L] Falou de uma carta que escreveu ao presidente da Academia Nobel. Já pensou receber o Prémio Nobel algum dia? [ALA] De há dois anos para cá que todos falam nisso. [J L] Vé isso como sendo qualquer coisa de provável? [ALA] O meu agente sueco e o editor véem. Náo sei... Fatalmente, iráo dar o Nobel a alguém de lingua portuguesa. Sempre pensei que n Dmmmond o iria receber. Em Portugal, näo sei... É difícil para a maioria dos escritores portugueses, porque a maior parte näo estáo iraduzidos em sueco. [JL] O Lobo Antunes está... [ALA] Eu estou. Mas, por exemplo, o José Cardoso Pires náo está iraduzido em sueco. Estará o Saramago, que acho que tem dois livros cm sueco. Pela critica internacionál (agora recentemente ao «Fado Alexandrino», ao «Auto dos Danados», ä «Explicagäo dos Pássaros», a «As Naus», por aí fora, e sobretudo nos Estados Unidos) o Nobel näo parece uma hipótese absurda. Os jornais falam todos nisso, desde o «Européen», aos franceses. Mas a gente näo pode dramatizar muito isso, senäo acabamos por ficar presos a essa coisas. E o Prémio Nobel c, em primeiro lugar, um prémio politico, claramente. Mas também c idiota dizer isto, porque no fundo, secretamente, toda a gente o quer ganhar, mesmo que diga que näo. [J L] Por todas as razóes apontadas, e que säo do conhecimento geral, o António Lobo Antunes tem fortes probabilidades de vir a ganhar o Nobel. [ALA] Entäo esereva isso. O que é facto é que as pessoas sabem isso, que a rádio o diz, mas os jornais nunca o escrevem. Já reparou como normalmente se referem a mim? E sempre como a qualquer coisa de marginal. Mesmo quando tém de reconhecer que eu existo lá fora, póem-me sempre atrás de alguém. [J L] Em regra, peca-se por falta de realismo na apreciagäo das probabilidades. E fala-se quase sempre de Torga... 168 I LUIS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 [ALA] E verdade. [JL] O Antonio Lobo Antunes pensa muito na posteridade? [ALA] O Jorge de Sena dizia que näo acreditava em eternidade nenhuma, mas sempre havia uns tempos mais compridos do que outros. [J L] Há tempos muito mais compridos, se pensarmos no Homero ou os tragediógrafos gregos. [ALA] Mas nessa altura já estamos com a boca cheia de terra. É que jogar no futuro näo é para quem perdeu o presente. Se um tipo pensar: «Vou ser um escritor para daqui a cem anos» é porque o nosso presente näo corre täo bem assim... Eu penso que o que nos interessa fundamentalmente é tocar as pessoas que vivem connosco. Provavelmente, poderá ser muito agradável a gente pensar que daqui a duzentos anos ainda nos léem, mas isso depende de tantos factores!... Por exemplo, agora estou a tentar reler o Villon naquele francés arcaico. E lixado perceber assim! Ao passo em que nas edicöes em que o francés está actualizado ele continua a ser um poeta espantoso. Conseguir guardar aquela frescura por quinhentos anos! E na poesia é mais fácil do que na prosa, de qualquer modo. _j [JL] A prosa é mais datada. ! [ALA] Muito mais datada. Sobretudo, näo há nenhum romance que resista ao ridículo, por maior que seja esse romance. Em todo> eles se encontram coisas más e de mau gosto, mesmo nos grandcv Talvez a receita seja nunca reler o nosso trabalho, porque entäo n< defeitos aparecem enormes e as qualidades pequenas e fica-se espantado com a recepgäo crítica das pessoas. Por exemplo, quando «As Naus» foi publicada na revista da Universidade de Nova Iorque eu fiquei todo contente, achei aquilo uma honra bestial, mas depois pus-me a j reler e disse: «Bolas, isto está cheio de defeitos». Eu releio os livros 1 com os tradutores, com as dúvidas dos tradutores. Äs vezeš olha-se para aquilo e pensa-se: «Que coisa täo boa que eu fiz!». Outras, pensa-se: «Que grande porcaria!» Mas eu penso, ao contrario do Carlos de Oliveira, do José Cardoso Pires, do Eugénio de Andrade, J por aí fora, que mexiam muito nos textos, que näo tenho esse direito. Näo tenho porque o estado de espírito já é outro, depois porque havia nas primeiras edicöes uma frescura que se perde necessariamente, finalmente näo sei até que ponto será leal para com o leitor mudar uma coisa que as pessoas já compraram. É evidente que näo tenho "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL»" | 169 nada contra as pessoas que fazem isto. Eu seria incapaz de fazer, mas a vontade que me dava era pegar numa caneta e comegar a riscar e a emendar. Mas, para isso, é melhor escrever outro livro. Isso tem muito que ver com a gente querer deixar um perfil mais perfeito para a eternidade, näo é? A «GERAgÄO» MAIS RECENTE [jL] É um pensamento piedoso. Com segunda versäo ou sem ela, a primeira está lá, e ambas seräo objecto de comparacäo pelos estudiosos do futuro. Isto se alcangar a tal posteridade. [ALA] Pois, com todos os defeitos que a obra possa ter. E já me tem acontecido gostar mais de primeiras versöes de coisas do José Cardoso Pires ou de poemas do Eugénio de Andrade, que é um hörnern a quem eu pessoalmente devo uma grande estima e uma ternura que näo posso esquecer. Tenho recebido algumas provas dessas - da Agustina, por exemplo, do Eugénio, do Egito Goncalves, do José Cardoso Pires, do Namora, pessoas que foram para mim sempre de uma amizade, de uma ternura, de uma generosidade que eu näo posso de maneira nenhuma esquecer e a quem estou muito grato. Isto falando só dos portugueses. E outra coisa curiosa é o entusiasmo crcscente dos novos escritores. A quantidade de livros que aparecem «á Antonio Lobo Antunes»! É muito curioso. E acho que algumas dessas pessoas novas säo muito boas. Por exemplo, o José Rigo Direitinho, que penso que será um grande escritor se continuar a trabalhar. Um hörnern de quem também gostei muito foi o Rodrigues Guedes de Carvalho. Gostei do livro dele. É um livro bem feito. O Daniel (Sampaio) chamou-me a atencäo para o livro e eu fui lé-lo e gostei muito. É óptimo descobrirmos isto, porque eu penso que abaixo da nossa geracäo näo há ninguém, é o vazio completo. Mas há esta gente que tem escrito coisas muito engragadas e que eu penso que poderäo vir a fazer alguma coisa se trabalharem. E há mais: alguns rapazes e raparigas do «DN Jovem» tem mesmo talento. Note--se que eu näo conhego o Rodrigues Guedes de Carvalho, nunca o vi pessoalmente a näo ser na televisäo e fiquei espantado quando urn hörnern com aquele aspecto fisico escreveu um livro: par[e]ce urn jogador de räguebi... O que näo é defeito: o Scott Fitzgerald também parecia. Eu gostei do livro. Penso que será capaz de fazer muito 170 I LUIS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 ' melhor do que o que fez. Tenho muita esperanga. É engragado, porque a geragäo dos trinta anos é o vazio complete. Mas a culpa näo é inteiramente deles: nós tivemos muita coisa... [JL] Para o publico, a «nova geracäo» ainda é a nossa, a que se situa entre os 40 e os 50 anos: Lobo Antunes, Lidia Jorge, Joäo de Melo, etc. Os escritores surgidos depois do 25 de Abril... [ALA] E ainda näo somos velhos, caramba!... Mas tenho muita esperanca nestes nomes. E é uma alegria descobrir novos valores: letům poema do Joäo Miguel Fernandes Jorge e ficar contente. Isto é apenas um conselho, claro. [JL] Trabalhar «a Lobo Antunes». Quantas horas por dia? [ALA] Muitas. Hoje escrevo menos porque estamos aqui a conversar. Mas escrevo durante o dia todo: de manhä, ä tarde e ä noite. Mas aproveita-se pouco; cerca de meia página é o que se aproveita. Agora estou a demorar uma média de dois anos a fazer um livro, mas se tivesse outra actividade me ocupasse, tipo consultório, acabava por escrever durante a noite até äs quatro ou cinco da manhä e andava a matar-me estupidamente. [JL] Era o que o Lobo Antunes fazia inicialmente... [ALA] Era, mas tinha outra idade que já näo tenho agora. Fazia coisas que já näo fago agora. E quando se está a escrever näo se pára de fumar. E terrível, é um amanhecer horroroso no dia seguinte. Felizmente, näo bebo. Näo sei o que é que se vai aproveitar desta entrevista. Está tudo täo coloquial! NOVAMENTE O NOBEL P L] Assim mesmo é que tem graca. E até podemos voltar a conversar do Nobel: como se explica que o prémio nunca tenha sido concedido a nenhum autor de lingua portuguesa? [ALA] Bern, o Nobel depende muito de lobbies, também. E näo é a pressäo de um Presidente da República que faz que se ganhe prémios. Näo estou a querer pessoalizar a questäo. Por exemplo, o Graham Greene nunca teve o Nobel por ser considerado um homem demasiado ä esquerda, o Borges nunca o ganhou por ser considerado um homem demasiado ä direita (e eu näo gosto do Borges e gosto do Graham Greene). Bom, tirando o Drummond, quem é que o merecia, na lingua portuguesa, até há uns anos? Näo sei. Tenho muitas dúvidas. "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLIC1AL»" | 171 O Aquilino? O Aquilino foi candidate ao Prémio Nobel. Mas nessa altura também näo havia traducôes como há agora. Havia poucos escritores portugueses traduzidos. [J L] Praticamente só o Ferreira de Castro. [ALA] Sim. E o Namora. Mas eles publicavam em editoras muito pequeninas e na maior parte deles estäo traduzidos em editoras que näo tém grande poder. Actualmente, tirando o José Cardoso Pires, que está publicado em Franca, na Gallimard, quem está na editora mais forte sou eu, que estou no Bourgois, que é um homem com uma grande forga, e näo só em Franga. Eu tenho a sorte de ter editoras muito boas. Se conquistarmos o eixo Nova Iorque-Paris-Berlim, os outros países vém por acréscimo. Publicar no Brasil näo me interessa nada. [J L] Normalmente isso é considerado importante. [ALA] Porqué?! Eies näo pagam! A distribuigäo funciona pessimamente... É tudo uma aldrabice pegada. Pode parecer uma visäo muito mercenária, mas já fui explorado anos de mais. [J L] Por quem? [ALA] Tive um processo em tribunal por abuso de liberdade de imprensa quando chamei determinadas coisas a determinada editora e comprometi-me a näo voltar a falar dessa editora. [J L] É uma história conhecida. Foi o seu confute com a Vega, onde publicou os primeiros livros2. [ALA] Se somos profissionais... Apesar de tudo, a mais-valia sobre os livros publicados no estrangeiro é uma coisa terrível. Os contratos 110 estrangeiro que eu tenho säo, na maioria, de oito, dez, doze por ccnto. Depois, há sempře tanto livro a aparecer!... É preciso ter as primeiras páginas do «New York Times», a primeira página do «Washington Post» e por ai fora. Eu tenho-as e vendo no Greenwich mas näo vendo no Downtown de Nova Iorque. Se fazemos um flop a editora näo pega mais em nós. Eu tenho sorte de estar em editoras de autor, que publicam a minha obra toda. Por exemplo, a minha editora alemä tem o Calvino, o Kundera, o Botto Strauss, o Canetti... 2 A propósito, e a título de exemplo, vej?,m-se os artigos "Lobo Antunes muda de editora e reedita livros", in A Capital, 3 de Fevereiro, 1983, p. 23 e "Antonio Lobo Antunes: primeiro editor leva-o a tribunal", in O Jornal, 4 de Abril, 1983, p. 20. 172 I LUIS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL»" 1 173 [J L] O Lobo Antunes vive inteiramente para a escrita? [ALA] Sobretudo, mas náo só... Há outras coisas de que eu também gosto. E bom quando conseguimos fazer aquilo de que gostanw», Embora escrever näo tenh[]a só que ver com o gosto, mas tamhéni com uma necessidade mais profunda. Eu escrevo desde que me conheco, e o publicar nunca foi em mim um frenesim. Provavelmcntc. se näo fosse a intervencäo do Daniel (Sampaio) continuava a escivver romances sem os publicar. Nunca me passou pela cabeca levar um manuscrito a uma editora. Simplesmente, depois há um mecanisnm que nos apanha e que, ao mesmo tempo, é bom e mau. E eu tciilm medo. Este ultimo livro, por exemplo, o Bourgois comprou-o si-ni o ler sequer. Imaginemos que o vou desiludir!... Estabelece-se uma relacäo de cumplicidade e de amizade com o editor, como tenho com o agente, que foi por acaso que me apareceu na vida; era um homun que eu conhecia de nome e que era (e é) agente do Jorge Amado, do S[áb]ato e do Reynaldo Arenas, que era um grande amigo meu. E um dia, em 80, recebi uma carta desse hörnern a dizer que queria mt meu agente. Eujulguei que era uma piada, näo respondi e ele voliou a escrever. Entäo soube que tinha sido o Márcio Souza, que agora é o director do Instituto do Livro do Brasil, que tinha recebido «Os (,u\ de Judas» de presente e o tinha deixado em Nova Iorque, ao Torn Colch. E foi assim. Ao principio ele lutou muito, mas depois as coi[s]as inverteram-se e agora estáo ä espera. Mas depois comeca a ser estranho. quando se assinam contratos em esloveno e em turco... DESAPEGO A OBJECTOS [JL] Pergunto se a escrita é o que mais o motiva na vida, sobretudo porque olho em volta e vejo uma casa espartana, praticamente sem móveis. Dir-se-ia que apenas a escrita povoa este espaco. [ALA] Eu nunca me senti bem rodeado de muitas coisas. Tenho as fotografias das minhas filhas e pouco mais. Objectos, näo tenho, E nunca senti necessidade. Tive, eu e os meus irmäos, uma educacä<» muito austera. A parte material näo é importante para mim. Tem a ver com a minha maneira de ser, e näo com a escrita. Gosto de casas com pouco móveis. Gosto de ter dinheiro, de vestir boa roupa, isso gosto. Agora, penso que näo preciso de muito dinheiro para viver, Mas é Optimo te-lo. Para dar äs filhas, por exemplo. O que provoca uma čerta culpabilidade, porque quando a gente näo é capaz de dar icrnura dá coisas em vez dela. E muito mais fácil... Dá menos ansiedade do que ser verdadeiramente terno para as pessoas. [JL] Vivendo assim, isolado, escrevendo de manhä ä noite, onde é que vai buscar a matéria para os seus livros? Sobretudo ä parte reminiscente? [ALA] Também näo vivo assim táo isolado. Mas até posso ir buscar as coisas a pessoas que só tenha visto uma vez, e com quem nunca tenha falado. Como aquele trovador francés que morreu de amor por uma mulher que nunca viu. Estou a lembrar-me daquele crítico suíco que diz que eu sou uma espécie de mata-borräo. Da Faculdade para o escritor absorvi tudo. No fundo, é-se um bocado ladräo, ladräo de emocôes, ladräo de pessoas. Um escritor é um bocado um gatuno. Mas também há a parte voyeuriste. Muitas vezeš, para se arranjar o cenário é preciso ir lá, passear. No «Auto dos Danados» há uma parte que se passa em Evora, na «Explicacäo dos Passaros», uma parte em Aveiro. Entäo, eu ia aos sítios, chegava a fazer plantas, etc. Penso que os outros escritores fazem mais ou menos a mesma coisa, mas nunca lälei disso com eles, quando se fala com outros escritores há uma espécie de pudor. [JL] Quando faz o piano de um novo romance, o que é que privilegia mais? A trama em si? As situacóes? As personagens? [ALA] E tudo um pouco indissociável. Penso que o que se tenta] sobretudo é inventár um novo portugués, inventár uma nova linguagem. Ter uma voz pessoal, é isso, ter uma forma nova de contar as coisas. [JL] Mas também há a história. — [ALA] Um romance é sobretudo intriga. ) [J L] O piano inclui, portanto, essa intriga'? [ALA] Sim, embora neste ultimo a trama cresca mais para os lados do que para a frente. [JL] Comecou pelo fim? Pela «explicagäo» de tudo aquilo, pela tal senhora que, no romance, «inventou» o proprio romance? [ALA] Näo. Comecei pela primeira parte. Inicialmente o ex-pide que faz a investigacäo alternava em todos os planos com todas as personagens. Só depois é que me apercebi de que aquilo assim náo estava certo. 174 I LUIS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 [JL] Entäo, inicialmente, era a história de uma investigacäo. [ALA] Näo, a ideia näo era essa. Eu tinha vagamente o desejo de fazer um romance policial. A questäo era: como fazer um romance policial? O pide näo era o detective da história. Eu näo sabia ainda quem era. Só no fim do piano é que me apercebi de que era aquela senhora, que é tiráda de uma pessoa real cuja mořte me doeu muito. Talvez para conjurar o sofrimento que me trouxe a morte dela, tentei tornar o desespero dela fértil. [JL] Gosta de literatura policial? [ALA] Conheco pouco. O Chandler, que considero um grande escritor, o Dashiel Hammett, o Simenon, obviamente. Mas penso que, quando eles säo de facto assim täo grandes escritores, reduzi-los a «escritores policiais» é uma injustica. Esses rótulos («fulano é o escritor da guerr.i colonial») säo sempre destinados a apoucar as pessoas. Uma coisn que os anos me ensinaram foi a ter mais respeito pelo trabalho dos outros. Ao princípio eu espadeirava contra tudo e contra todos. Iss<> näo tinha nada de pessoal. O que eu fazia era tentar explicar o que eu achava que devia ser um romance. Até me aperceber de que era completamente väo, pronto. Nós somos um pais formado pelos franceses - o Malraux, o Sartre, que säo escritores de que eu nán gosto -, as pessoas escrevem em francés com um sotaque da Beira, dr Trás-os-Montes, do Algarve ou de Lisboa, e escrevia-se como se näo tivesse havido Proust, como se näo tivesse havido Faulkner, como sc näo tivesse havido Joyce, como se näo tivesse havido Virginia Woolf. Continuava-se a escrever romances ä Balzac, penso, havia muito pouc;i novidade no romance portugués, eu acho. Claro que cada pessoa pensa que vai inovar imenso, mas se a pessoa näo achasse que escrevia as melhores coisas do mundo näo as publicava. Mas penso que muitas vezes näo temos muito sentido critico nem humildade em relacäo ao nosso trabalho; a primeira coisa que o sucesso me trouxe foi a humildade, julgo eu. Sou agora muito mais humilde do que era c näo é pose. Já näo sou capaz daquela arrogäncia. Embora saiba cada vez melhor o que é que quero, julgo que cada vez me é mais claro que näo sou o detentor da verdade. Poderei sé-lo de parte da minha verdade, e é tudo. "ANTONIO LOBO ANTUNES: «QUIS ESCREVER UM ROMANCE POLICIAL»" | 175 O LU GAR DA MEDICÍNA [JL] Porque é que o Lobo Antunes, sendo desde muito jovem uma pessoa voltada para as Letras, tirou um curso de Medicina? [ALA] Talvez por influéncia do meu pai, que foi uma pessoa muito marcante para os filhos. Hoje sinto-me muito feliz por näo ter tirado um curso de Letras. O ter tirado urn curso técnico foi muito importante para eu criar metodo. Julgo também que a vida hospitalar foi bastante enriquecedora para mim. Penso que teria escrito de qualquer maneira, mas o contacto com o sofrimento deu-me... [JL] É verdade que há uma tradicäo de medicos escritores. Haverá alguma relacäo entre as duas actividades, ou é coincidéncia? [ALA] Há uns muito maus, mas há escritores médicos espléndidos. O Rabelais era médico, o Céline, o William Carlos William, o Somerset Maugham, tantos... [JL] Em Portugal também: o Namora, o Júlio Dinis... [ALA] ... o Torga... [JL] O Torga também. [ALA] Até há uma Sociedade de Escritores Medicos. Mas havia uma grande tradicäo humanista dos médicos quando eu estava na [F]aculdade. Havia professores da Faculdade de Medicina que eram admiráveis homens de cultura. lembro-me de um professor que dizia que quem näo lia o Kafka näo podia ser bom médico. Eu penso que isso se terá perdido um bocado, que actualmente näo acontece tanto. E muitos médicos que eu conheci na minha infancia eram homens extraordinariamente cultos. Penso que foi bom para mim näo ter tirado um curso de Letras, porque se o tivesse feito talvez tivesse ficado a gostar menos dos livros. Assim, eles funcionavam um bocado como a minha alegria e a minha liberdade. Näo era obrigado a estudá-los de uma forma académica. Dedicava-me a eles por amor, em lugar de ser por obrigagäo. [JL] De qualquer modo, depois acabou por se especializar em Psiquiatria, que é talvez a parte da Medicina mais próxima da Literatura. [ALA] Era preciso tirar uma especialidade, e eu pensei que era aquela que estava mais perto do Dostoievski, o que é perfeitamente um engano. Depois, havia algumas pessoas na especialidade que me eram completamente fascinantes, casos do dr. Joäo dos Santos ou do prof. Barahona Fernandes. Eles acabaram por ter, sem o saberem, i76 I LUIS ALMEIDA MARTINS, 27 DE OUTUBRO, 1992 um grande peso na minha escolha. Alem de que, na altura, a Psiquiatria era menos competitiva do que a Cirurgia ou a Pediatria, por exemplo. e portanto dava-me a ideia de que me proporcionaria mais tempo para escrever. Mas acho que foi sobretudo por preguica que entrei para Psiquiatria. Nao me estava a ver ser medico a vida toda e a passar tardes inteiras no consultorio depois de ter passado as manhas no hospital. Embora eu goste muito da medicina e tenha uma certa nostalgia dela. Gosto do cheiro dos hospitais, do ambiente dos hospitais. Disso eu tenho saudades. Disso eu tenho saudades... 17. ISABEL RISQUES "Lobo Antunes: '0 artista é um ladräo bom 0 Jomal/Cultara & Espectáculos 30 de Outubro, 1992, pp. 34-35 O romance de um romance. O ponto final no ajuste de contas com o passado. A dimensäo da ternura é, agora, o eco de todas as emocôes. «A Ordern Natural das Coisas», assim se chama o nono e novo romance de Antonio Lobo Antunes. Planificacäo audaciosa, estilo depurado, o autor descreve-nos, num trapézio agitado de emocôes, a pluralidade, a um tempo harmonioso e triste, de todas as razöes emudecidas. Pela primeira vez, o todo é possível: a representacäo do desejo e da agónia, o amor, o nascimento e a morte, o delírio dos visionários, a intriga, o humor e, sobretu[d]o, ternura. Este é, sem dúvida, o melhor romance de Antonio Lobo Antunes, um escritor bem amado pelos suecos e pelos norte-americanos e, cada vez mais, ao alcance do Nobel. [O JORNAL] «A Ordern Natural das Coisas» é o segundo livro de uma trilógia que marca um novo ciclo na sua obra. Que diferencas (técnica, temática) separam estes dois livros dos anteriores? [ANTONIO LOBO ANTUNES] Até agora houve, basicamente, trés fases: uma, autobiográfica, que abränge os trés primeiros livros, uma segunda, em que a péŕsónagem central deixa de ser o narrador para ser o Pais (uma fase de epopeias e anti-epopeias que abränge [a] «ExpHcacäo dos Passaros», «Fado Alexandrino», [o] «Auto dos Danados» e «As Naus») e agora, uma terceira fase que poderá ser chamada, proviso-riamente, o ciclo de Benfica, porque é ali que a acgäo se desenrola, näo em Benfica actüäl, ffiasem Benfica da minha infäncia, das quintas, 47- SARA BELO LUÍS "O mundo de Antonio Lobo Antunes em 12 partes" Visäo 26 de Outubro, 2006, pp. 136-141 O ultimo livro do escritor, Ontem Näo Te Vi em Babilónia, acaba com uma frase que é também uma confissäo: «Aquilo que escrevo pode ler-se no escuro.» Lobo Antunes fala na primeira pessoa e, ä VISÄO, aqui revela um pouco desse seu universo sombrio. ANTONIO LOBO ANTUNES nem reparará, mas a sua voz muda quando se liga o gravador. Detesta entrevistas (säo «artificiais», haverá de afirmar no fim) e, por isso, evita-as ao maximo. Os livros falam por si, muito mais do que as palavras do escritor possam tentar justificar. E, parafraseando D. Francisco Manuel de Melo, Lobo Antunes tende sempře a dizer que o livro trata do que nele vai escrito dentro. Diga-se apenas que Ontem Näo Te Vi em Babilónia - que hoje, 26, será langado no Teatro Maria Matos, em Lisboa, com apresentagäo de Jose Eduardo Agualusa e Ricardo Araújo Pereira - é o seu mais recente livro. E que lá dentro tem uma série de personagens (um polícia, uma doméstica, uma enfermeira...) que, em cidades diferen-tes, numa só madrugada, váo relatando as histórias das suas vidas. O que contam terá mesmo acontecido? De que é feita a memoria das coisas? Onde é que, afinal, reside a verdade? Da meia-noite äs cinco da manhä, numa vigília um tanto ou quanto delirante, eles väo adormecendo. Por vezeš, até dialogam com quem as cria. Foi escrito nas mesmas folhas de sempře (as folhas de prescricäo do Hospital 528 I SARA BELO LUIS, 26 DE OUTUBRO, 2006 O MUNDO DE ANTONIO LOBO ANTUNES EM 12 PARTES" | 529 Miguel Bombarda) e, sobre o livro, o escritor tinha uma única ideia: «Como é que a noite se transforma em dia?» Segue-se, em 12 partes, o mundo de Antonio Lobo Antunes. Sem quaisquer interrogates. Fingindo que näo se trata de uma entrevista. 1. A MEMORIA DA INFÄNCIA Nenhuma infäncia é alegre. A recordacäo dela é que pode ser alegre ou triste. Nenhuma infäncia é alegre porque a infäncia é sempre muito normativa. Os pais impöem normas contra as quais os filhos reagem constantemente. A infäncia e a adolescéncia säo sempre perío-dos de uma grande revolta. No meu caso, um miudo que escreve provoca nos pais reacgöes várias. De apreensäo, por exemplo. O que é que irá ser o future dele? Será que ele vai conseguir ganhar a vída? Porque é que ele faz isto? Porque é que ele tem necessidade de fazer isto? Porque é que ele näo tem uma infäncia como os outros? Para um pai e para uma mäe, ver um filho sentado a uma mesa a escrever coisas deve ser - näo sei, nunca perguntei - muito alarmante. Nunca falei sobre os livros com a minha família. Tenho com os meus irmäos uma relacäo muito boa, mas há um grande respeito pela intimidade de cada um. Näo se fala de Deus, näo se pergunta em que partido vota. Respeitamos a privacidade e, mesmo que näo estejamos de acordo com as posicôes que tomam, acabamos sempre por nos defendermos uns aos outros. 2. A AUTOBIOGRAFIA } Quando estive agora em Estocolmo, uma senhora, numa sessäo de ' autógrafos, disse-me: «Leio os seus livros e estou a vé-lo a si.» Ao contrario do que se possa pensar, estes últimos livros säo muito mais autobiográficos do que os primeiros que escrevi. Chega a uma altura em que o livro e eu formamos um corpo único - e eu acabo por falar muito mais de mim. Deixo de falar dos episódios da minha vida para falar da minha vida interior, da minha inner life. Estou muito mais inteiro dentro deste livro (Ontem Näo te Vi em Babilónia) e quem o ler com atengäo fica a conhecer-me muito melhor. A urn olhar atento, apareco completamente nu nestes últimos livros nos quais, do ponto de vista factual, já nada tern a ver com os factos da minha vida pessoal. Nos primeiros livros, bem ou mal, eu escrevia o que queria. Agora, estes livros ganharam uma čerta autonómia e, por isso, vou atrás, apenas acompanho o que está a surgir. Sou a primeira pessoa a ficar surpreendida com o que lá está escrito. 3. A MÄO Faco duas versöes de cada capítulo, passo para o capítulo seguinte e vou por ai fora... Demoro um ano e tal com isto e, depois, quando chego ao fim, tenho medo de ir olhar o material. E um mistério como, nesse momento, tudo se articula porque, quando se está a escrever, náo se tem essa nocäo. Nos grandes momentos é claro que penso na hipótese de a mäo me falhar. E a cabeca também. Acho que, no fundo, escrevo com o corpo todo. Estou täo metido dentro do livro, somos täo parte urn do outro... Näo sei como é a gravidez, nem creio que tenha semelhangas, mas é como se de repente o meu inconsciente estivesse ali, como se de repente aquilo que näo conheco de mim estivesse ali ä mostra. O que me acontece cada vez mais é que essa parte de trevas continua em mim durante os intervalos dos livros e dá-me uma maior tranquilidade, uma maior paz e uma maior humildade. Porque eu náo sou autor daquilo que escrevi. 4. A GUERRA COLONIAL Náo li as cartas que escrevi enquanto estive em Angola (publicadas no ano passado em D'este viver aqui neste papel descripto). Näo me pertencem. Foram escritas por uma pessoa, um rapaz de 20 anos, que eu já näo sou. E, por outro lado, näo me apetece mexer com os pauzinhos nas feridas. Em todo o caso, tanto quanto me recordo, quando as escrevi, a única coisa que queria dizer era «estou vivo, continuo vivo, ainda estou vivo». Essas cartas eram um grito e os livros säo um comentário a esse grito, a pessoa em que me fui tornando. De qualquer maneira (na apresentacäo publica D'este viver aqui neste papel descripto), gostei de encontrar os militares que estiveram em Africa comigo. É evidente que foi muito emocionante porque existe entre nos uma certa camaradagem, um termo que contém dentro de si amor, partilha e muitos outros sentimentos. Era uma situacäo horrível e estávamos juntos naquele pesadelo. Foi com eles que vivi as coisas 530 I SARA BELO LUIS, 26 DE OUTUBRO, 2006 mais horriveis da minha vida, ao lado deles, com eles. E isso cria lacos que seräo indestrutiveis. 5. AS VOZES Os livros näo tem personagens, é sempře a mesma voz, que vem, que vai, que muda de tom. Fico sempře muito surpreendido quando as pessoas falam em romances polifónicos, porque é sempře a mesnia voz. A uma segunda ou terceira leitura o leitor compreenderá que se trata sempre da mesma voz. A mim também me pareciam ser vozes polifónicas. Agora fala este, agora fala aquele outro. Depois, comecei a perceber que estava equivocado. Era só uma voz, que ia mudando. Como o dia, que é um só e que vai mudando de cor e de luz. Se calhar é sempre a mesma voz que vai transitando de livro em livro. Eu proprio näo sei. O livro adquire uma tal autonomia que conversa comigo o tempo inteiro. E questiona. E pergunta. E responde. Transforma-se numa espécie de diálogo, faco corpo com o livro. Umas vezeš há uma distancia[] entre nós, outras vezeš voltamos a unir-nos. Dai parecer-me que náo se pode chamar romance a estas coisas que escrevo. Náo há uma história, náo há um fío, náo há hada. 6. O BELO A mim o que me interessa nos livros é a felicidade da expressáo. E isso dá-me uma alegria enorme. A escrita děste livro {Ontem Näo Te Ví em Babilónia) foi acompanhada de uma grande alegria. Claro que se está sempre com os problemas técnicos que a cada passo o livro pöe, claro que muitas vezeš náo se sabe como resolvé-los, claro que se comega, recomeca e volta a recomecar. Mas o sentimente profundo é um sentimento de felicidade. Um livro tem que ser uma alegria. Keats dizia que «a thing of beauty is a joy for ever». Quando pela primeira vez li este verso, fiquei muito impressionado - uma coisa bela era uma alegria para sempre. Por isso fico surpreendido quando me dizem que um livro é triste. A partir do momento em que é belo é uma alegria. É uma alegria, para mim, enquanto leitor. No outro dia, li a versäo definitiva de 0 Grande Gatsby e deu-me uma imensa alegria ler aquilo. Pela felicidade de expressáo, pela capacidade de exprimir os sentimentos, por me revelar a mim mesmo e por me "0 MUNDO DE ANTONIO LOBO ANTUNES EM 12 PARTES" | 531 revelar o mundo. Uma obra de arte boa é uma vitória sobre a mořte. E isso é o mais importante de tudo. 7. A PORTU GALIDADE No princípio, era no estrangeiro que eu era mais bem entendido. Porque, neste caso, é óbvio que a distáncia torna o lugar do tempo. Ao longo destes anos, as pessoas em Portugal näo sabiam muito bem como classificar-me e, entäo, iam pondo etiquetas que, sucessivamente, se foram alterando. O rótulo dos subúrbios, o rótulo de que eu trato mal as mulheres... Tenho que ensinar os meus leitores a lerem-me e, livro após livro, a sensacáo é a de que hoje estáo mais próximos daquilo que faco. De há uns anos para cá, acho que as pessoas foram percebendo que náo podem aplicar-me a mesma categoria de valores nem a mesma tabela que se aplica a um romance. Estes Ultimos livros deveriam ser a vida inteira. Como é impossível manter isto durante muito tempo, a minha ideia é fazer mais dois ou trés livros e depois calar-me. Cada vez me dá mais prazer apanhar o aviáo de regresso porque sei logo qual é o que vai para Portugal pelas pessoas que estäo na bicha para o check in. É aqui que eu pertencp, é aqui que eu gosto de estar, é para as pessoas do meu pais que escrevo. 8. A OBSESSÄO DE ESCREVER Até agora, a vida tem sido generosa comigo. Gosto de estar vivo. Gosto das manhäs e, quando estou com um livro, tenho uma vida muito metódica. Caso contrario, náo conseguiria escrever. É curioso porque, visto de fora, pode parecer muito monótono, mas náo é. A minha vida está sempre habitada e, quando estou a escrever, o livro ocupa-me 24 horas por dia. Nunca entendi porque é que o fazia. Gosto de estar sem escrever, gostei de estar sem escrever nestes Ultimos trés meses. O problema é que depois comecp a sentir-me culpado. Como se me tivessem dado uma coisa que náo é minha e que eu tenho obrigacáo de transmitir. É como se o livro näo fosse meu. Acho que os livros deveriam ser publicados sem o nome do autor, seria mais honesto. 0 Monte dos Vendavais näo foi escrito pela Emily Bronté, foi escrito por mim enquanto o estou a ler, foi escrito por si enquanto o está a ler. Bronté foi apenas o veículo que trouxe o livro até nós. 532 i Sara belo luIs, 26 de outubro, 2006 "o mundo de antonio lobo antunes em 12 partes" | 533 Quando digo que ninguém escreve como eu, näo implica vaidade nenhuma. Näo foi feito por mim, a unica coisa que fiz foi esvaziar--me para o receber. 9. AS EMOgÖES Näo há sentimentos puros. O que eu quero pôr dentro de urn livro é tudo. Quero pôr a morte, a vida, o amor e a alegria. Como a morte nos preocupa mais do que a vida, temos tendencia para ter visöes parcelares do que estamos a 1er. Tal como em relacäo äs pessoas, vivemos com fragmentos delas e näo com elas todas. Tal como em relacäo ä nossa propria vida - temos muitos quartos, vivemos em dois ou trés quartos e de modo nenhum abrimos as portas dos restantes. Näo podemos aplicar a estes livros o mesmo código, a mesma escala, o mesmo alfabeto. Estes meus Ultimos livros tém que ser lidos de maneira diferente, Nunca pensei se as minhas personagens estäo loucamente apaixonadas ou se pelo contrario se odeiam imenso. Näo é isso que me interessa. O que me interessa é o mais fundo de nos, o negrume onde depois as paixöes e as emocöes podem brotar. O que me interessa é o que está antes de elas florescerem ou de se manifestarem. 10. AS REFERÉNCIAS Só há dois ou trés escritores que eu considero meus colegas -Tolstoi, Conrad, Proust, Tchecov, Gogol... O problema é que, enquanto no século XIX tínhamos 30 génios, hoje, só encontramos trés ou quatro grandes escritores no mundo inteiro. E, mesmo assim, temos que andar com uma candeia acesa. Há muito poucos escritores bons, ainda menos escritores muito bons. Perante a maior parte dos livros que se publicam, pergunto-me: porque é que publicam isto? É difícil escrever livros bons, sendo jornalista, médico, engenheiro ou escriturário. Um livro precisa de nós por inteiro. Aqueles nomes de que falei só escreviam, tinham todo o tempo. E muitos deles escreviam com grandes dificuldades materiais porque ninguém enriquece a escrever. Se uma pessoa enriquece a escrever, os livros näo säo bons. Iräo, depois, isso sim, enriquecer os herdeiros. Todos os anos, Terna é a Noite vende näo sei quantas vezes mais do que vendeu durante toda a vida de Francis Scott Fitzgerald. Até ä morte de Celine, Viagem ao-Fim da Noite vendeu 16 mil exemplares. Citando Shakespeare, Stendhal escrevia sempře no fim dos livros: «to the happy few». A grande literatura é lida por poucos. Há tempos, Philip Roth, que sem ser um grande escritor me parece um bom contador de histórias, dizia que os leitores daAnna Karenina seräo um clube de 150 pessoas. 11. OS TÍTULOS DOS LIVROS Gostei do título Ontem Näo te Vi em Babilónia (inscrito em escrita cuneiforme num fragmento de argila, 3000 anos a.C.) porque me fez sonhar. Andei muito tempo a perguntar quern é que teria escrito äquela frase e para quem. Uma mulher para um homem? Um homem para uma mulher? Um pai para um filho? E, ao mesmo tempo, é como se fosse: ontem näo te vi no café, ontem näo te vi no restaurante, ontem näo te encontrei. Além do som da palavra Babilónia, que tem para mim muitas conotacóes. Lembra-me logo o Camóes, por quem eü tenho uma imensa admiracáo. Acho que ele inventou o portugués moderno, que é o Antonio Lobo Antunes da poesia. Näo fago a menor ideia de como é que aquele título se relaciona com aquelas personagens. Até que ponto é que o nome Antonio se relaciona comigo? Normalmentej os títulos só comecam a aparecer a dois tercos do livro. Näo é nenhuma angústia porque sei sempře que ele vai aparecer, é apenas uma questäo de tempo. O que é curioso é que, depois, sem que se dé conta, é o título certo para o livro. 12. AS NOITES Tenho a impressäo que as emocöes se väo esbatendo nas personagens e que, como nos sonhos, a voz flutua. Sobretudo nos Ultimos livros (que era por onde eu deveria ter comecado, näo devia ter publicado os primeiros), tenho sempře a sensacäo que a tristeza ou a alegria já säo vividas como um estado segundo. Estou a contar um sonho, estou a escrever sonhos e os sonhos, em si mesmos, näo säo alegres ou tristes. Somos nós a despertar, temos uma recordacäo deles, que pode ser de tristeza ou de alegria. Quero que o leitor, durante a leitura, fique todo mergulhado. Ao sair do livro, foi uma grande alegria ter conseguido escrever o que escrevi. E isso que eu quero que 534 I SARA BELO LUIS, 26 DE OUTUBRO, 2006 o leitor entenda. Quando á noite atravessa a sua casa com as luzes apagadas e passa pelos sítios onde estáo os livros, os livros bom sáo florescentes, os bons livros estáo iluminados. Os outros, pelo contririo nao se dá por eles, estáo na escuridáo. Somos sempre capazes de encontrar os livros bons, de Ihes estender a máo, de saber o Iuear deles. Como se eles nos dissessem: «Sou eu, estou aqui » 48. ALEXANDRA LUCAS COELHO '"Tenho a sensagäo de que ando a negociar com a mořte'" Publico/Publica, 29 de Outubro, 2006, pp. 44-54 Diz de si proprio que está cada vez mais autista, mas acaba por falar dö Iraque e de Israel. De elogiar Sócrates, Cavaco, Soares, Ribeiro e Castro. Acha que é óbvio que o Governo é corajoso e os sindicatos säo primários. De resto, näo tem tempo para o mundo. Acaba de publicar "Ontem näo te Vi em Babilónia". Tem outro livro pronto. E comecou a escrever outro, ä volta de um autista. Ainda näo é desta que pode morrer (na ultima entrevista ao PUBLICO tinha dito que já podia morrer). Deram-lhe uma coisa, é o que ele acha. E o emissário de um rei desconhecido, como no soneto de Pessoa (que, alias, näo é um escritor dos seus). Por isso, ao fim de um més sem escrever sente-se infiel. Näo só ninguém escreve como ele (repete ele, e é verdade), como escreve "cada vez melhor". A arrogáncia é um luxo a que Antonio Lobo Antunes se pode dar, como poucos. E dá, com um qué de quem sobretudo se diverte a ver a cara dos outros. Ainda escreve cada vez melhor, podia ele acrescentar. E a cada livro que estende o limite. Näo vé muitos para a frente e tem horror ä decadéncia. Entre o dia em que esta entrevista aconteceu (segunda-feira) e hoje, aconteceram, pelo menos, a sessäo de langamento do novo livro, "Ontem näo te Vi em Babilónia", com José Eduardo Agualusa e Ricardo Araújo Pereira, a publicacäo de uma entrevista e a transmissäo de outra.