CAPÍTULO V A história contra-ataca I aver, on the contrary, that by introducing the busy and the youthful to "truths severe in fairy fiction dressed", I am doing a real service to the more ingenious and the more apt among them; for the love of knowledge wants but a beginning - the least spark will give fire when the train is properly prepared; and having been interested in fictitious adventures, ascribed to an historical period and characters, the reader begins next to be anxious to learn what the facts really were, and how far the novelist has justly represented them. But even where the mind of the more careless reader remains satisfied with the light perusal he has offered to a tale of fiction, he will still lay down the book with a degree of knowledge not perhaps of the most accurate kind, but such as he might not otherwise have acquired. Walter Scott 1. Alquimias: História e (mcta)fic^äu históri(ográfi)ca Á ortodoxa ideia de História como narracäo de factos reais, tratados e batalhas, e ä rnais recente preocupacäo com aspectos näo factuais da Nova História deve, indnbitavelmetite, aerescentar-•-sc a producäo romanesca, sej a a cle temática historka, seja, täo somcnle, a de carácter ľiccional. s Com eťeito, a obra de arte literária evidencia virruais (porquc sujeitas a actualizacäo e a de.scodificaci.io) capacidades dc repre- 296 Post-Modemismo no Romance Portuguěs Contemporáneo sentaijäo, e reflecte, de modo mais ou menos evidente, como temos vindo a demonstrar, coordenadas geográficas, ideológicas e axioló-gicas do cenário social e hurnano que lhe dá origem ou, no caso do romance de temática histórica, da época ä qual se reporta, mesmo sendo elevado o grau de ficcionalidade introduzido pelo autor. A importäncia da literatúra como coadjuvante da reconstituicäo de certos elementos históricos é, inclusivamente, atestada e reconhe-cida por historiadores que, como Jose Mattoso, lhe atribuem um papel semelhante ao desempenhado por outras fontes históricas: Os documentos também nada dizem acerca do comportamento sexual normal das populacöcs. Mas nem por isso os historiadores se resignam a ignorar tudo a esse respeito. Estudam os penitenciais que registam as reparacöes exigidas dos pecadores, os sermöes que mencionam os vícios do tempo, os romances e poesias com as suas alusôes claras on ocultas. os símbolos e metáforas usadas para defi-nir a relacäo entre o masculino e o ferninino. e assim sucessiva-mente. (...) Os resultados podem ser magros mas alguma coisa se S consegue, A sua verosimilhan9a depende da articulacäo com os conhecimentos anteriormente adquiridos acerca da época. da re-giäo onde se observam os fenómenos. do estrato social a que sé i rcfcrem 1. A questäo que se pöe näo é, contudo, pacífica e linear, justifi-cando, por isso, a necessidade de a submetermos, previamente ao tratamento dos romances, a urna abordagem e a uma reflexäo teörica to relativamente alongadas. Um dos primeiros e mais importantes problemas a colocar, näo obstante o que acabamos de referir (ou, talvez, mais precisamente por causa de), diz forcosamente respeito ä mais lata e canónica distincäo entre História e ficcäo, num ensdjo de tarefa cuja consecucäo é, sempre e ainda, dificultada por dífc-icntcs concepefies sobre a ciencia histórica. A segunda questäo, mais restrita, mas näo menos importante c-complexa, pois duplamente se apresenta, refere-se äs čonexôes que, mesmo brevemente, cumpre estabelecer com uma linha roma-nesca que a tradicáo faz remontar a Walter Scott. Refere-se, ainda. i Jose Mattoso, A eserita da História. Teória e métodos. Lisboa: EstampH p. 26 (sublinhado tiosso). A História contra-ataca 297 ä delimitacäo de possíveis e sempre provisórias fronteiras subgeno-lógicas entre outros tipos de romance e o romance histórico, ou de temática histórica, numa tipologia menos incisiva e peremptória, mais do agrado de eseritores que, na esteira de José Saramago, rejeitam a estreiteza literária e ídeológica da etiqueta cujo uso vem fazendo norma: Cada vez tenho mais o direito de sacudir a etiqueta de romancista histórico porque o que tento fazer é inventár uma história e colocá-la no lugar da História. O romance histórico séria atento, venerador e obrigado. Pratico o anacronismo e a ignorancia de facto da História, que me permite usar atrevidas liberdades. A realidade é uma cintilacäo, näo se capta tal e qual2. A fragilidade e a instabilidade dos conceitos aparentemente täo diversos como História e ficcäo, problemática que ocupa indu-bitavelmente o centro dos debates coevos, radica, contudo (mais uma vez), segundo Paul Hamilton, nos remotos tempos da Antigui-dade Clássica. A tentativa para operar a diferenciaeäo absoluta en-l.tre ambos traduz-se em fracasso até mesmo para o proprio Platäo que acaba por cair nos erros que o haviam levado a propugnar a ! expulsäo dos poetas trágicos da sua República ideal. I De acordo com Hamilton, os mitos de cenários imaginários a que Platäo recorre para acreditar as suas teorias filosóficas acabam por redundar em ficcöes, pela auséncia de factos comprovativos da sua veracidade histórica3, assím se aproximando o verbo do filóso-fo da alegada ausencia de verdade imputada ao verbo dos poetas a ?r Interessante é também a posi§äo de Aristoteles que, eviden-ciando uma atitude em que claramente lemos a delimitacäo de fronteiras entre ambos os ofícios, o de poeta e o de historiador, oferece, todavia, a possibilidade de entendermos as potencialidades t . arquivo, n." 7, 1999 e ĽEvangile seton Philippe. Louvain: Imprimerie Oncntaliste, 1967 (Tese de doutoraincmo de Jacqucs-B. Ménurd): "(11 y en avail) trois (qui) inarchaiciit toujours avec le Seigneur: Marie, sa Mere, et sa soeur (de cette derniére) et Madeleine qui est appelée sa eompagne" (p. 61, sent.32); "El la eompagne du IFils est Marie-I Mad[leineJ. Ix; [Seigneur aimail MarieJ plus que [tous] les disci[ples et ilj ľembrassait [souvent sur la botiĽhe] (p. 71, sent.55). Cf. ibidem, p 55, sent. 17 para a referencia a Maria, mäe de Jesus. A apetencia de José Saramago pelo reeurso a fontes históricas marginais é também passível de ser encontrada no romance Memorial do Convento, principalmente no que diz ; fešpeito ä construcäo da personagem Blimunda (vide sobre o assunto, Ana Paula Arnaut, í Memorial do Convento. História, ftccäo e ideológia. Coimbra: Fora do Texto, 1996, pp. 63-69). 23 L.R. Torgal et alii, História da História em Portugal. Ed. cit., p. 196. 24 Cf. Paul Veyne, Como se esereve a História. Ed. cit., p. 33 e José Mattoso, A eserita da História. Ed. cit., pp. 20 e 23. 308 Post-Madernismo no Romance Portugues Contempor&mo_ acordo com White, que a forma(-estrutura) final sob a qual se apresentam esses acontecimentos seja encontrada e nao construida: Where the aim in view is the telling of a story, the problem of narrativity turns on the issue of whether historical events can be truthfully represented as manifesting the structures and processes of events met with more commonly in certain kinds of "imaginative" discourses, that is, such fictions as the epic, the folk tale, myth, romance, tragedy, comedy, farce, and the like. This means that what distinguishes "historical" from "fictional" stories is first and foremost their content, rather than their form 25. O romancista, por sen turno, liberto das grilhetas eticas e cstc-ticas, e se assim o entender (e, em nossa opiniao, sem que a obra pcrca totalmente as suas capacidades representativas), pennite-se baralhar e voltar a dar as cartas de um jogo que pode subverter semantica e formalmente. Ncste jogo e-lhe permitido manter ou nao as iraves-mestras de rcfercntes historicos, ou mante-las crft. maior on mcnor grau, optando por unia linguagcm mais aulo-cons-cicntemente poetico-literaria (jogos metaficcionais inclufdos) e/ou por um discurso mais abertamcnte parodico. F.m qualqucr das situacocs, c como ccrtilicarenios posterior^, mente, e possivel verificar que o romancista historico assegura um conjunto de caracterislicas/propriedades fundamentals que facultatn a recognoscibilidade das objectividades apresentadas, definidas por Roman Ingarden como "tudo o que e normalmenle projectado qualquer que seja a categoria objectiva e a essencia material" (coi- 25 Hayden White, 'The Question of Narrative in Contemporary Historical 'I heory", in The Content of the Form. Narrative Discourse and Historical Representation, Baltimore & London: Johns Hopkins, 1987, p. 27. Vide, ainda, idem, "Fictions of Factual Representation", in Tropics of Discourse. Ed. Cit., pp. 121-134. A expréssäo "romance real" é da lavra de Paul Veyne (cf. op. cit, p. 15) para quern a História interessa "porqjic nana, assim como o romance. Apenas distingue-se do romance num ponič essencia]. (...)", na História "o romance é verdadeiro, o que o dispensa de ser cativante (...)". "° historiador, esse, näo é nem um coleccionador, nem um estéta; a beleza näo Hie interessa, a raridade tampouco. Só a verdade". Para Paul Ricoeur {Temps et récit. T.I. fid. cit., p. 154), "Seule ľhistoríographie peut revindiqucr une reference qui s'inseilt dans.. ľ empiric, dans la mesure oü ľmtentionnalité historique vise des événements qui ototj rffectivemenl eu lieu" (itálico do autor). A História contra-ataca 309 sas, pessoas e, ainda, quaisquer sueessos possiveis, estados, actos pessoais, etc). Isto é, estes 'objectos' devem ser, no seu conteúdo, "de tal modo determinados que (...) poderiam «representar» as personali-dades reais, «imitar» o seu carácter, as suas accóes, as suas situa9Ôes de vida e proceder «inteiramente» como elas»"26. A representa9äo do modelo, täo fiel quanto possível, deveria, por cortseguinte, levar o leitor a praticamente esquecer que säo "«meras reprodu^ôesw". Ora, se no caso do romance histórico tradicional o objectivo parece traduzir-se no encobrimento e na substituifäo do reproduzido (pela tentativa de ocultar o mais possível as particularidades da reproducäo), assim dando, ainda, a ilusäo da inexisténcia de pon-tos de indetermina9äo, no caso da mais recente proditfäo post--moderaista a situacäo afigurar-se-á de indole bem diferente. Nesta, como veremos, e apesar de as objectividades apreseuta-das manterem aspectos recognoscíveis, o leitor será constantemente alertado para a impossibilidade de o discurso histórico (o literário e, extensionalmente, o científico) poder preencher, cabalmente, os pontos de indeterminagäo de um passado que apenas nos chega i textualizado. O jogo a instaurar transformar-se-á numa espécie de tekujäo interactiva que, seja através da exposÍ9äo do modo como PH constroem a História e a história, seja através de subversôes de Ijaez e grau diversos, dialoga com a enciclopédia do leitor, a individual e a colectiva. A revelacäo metaficcionaímente consciente da existencia de pontos de indetermina9äo na matéria narrada (a infrac§äo de uma linearidade semantica e formal que chegaria ä simula9äo quase pcifeita) conduzirá, pois, também, inevitavelmente, a um mais consciente questionamento do critério 'verdade' 21 . 76 Roman Ingarden, A obra de arte literäria. Trad. Albin E. Beau et alii. Lisboa: fjwid. Calouste Oulbenkian, 1973, pp. 241 e 266, respectivamente (itälicos do autor). Cf. : pp. 267 e 274 para as referencias seguintes. " l'ara Ingarden (ibidem, p. 329), verdadeira e "uma objectividade apresentada e iConieliida na funcäo de reprodueäo (ou as frases que a constituem) quando ela e uma rcpiaaucäo o mais possivel fiel de uma correspondente objectividade real imitada, quando i: fh e, portanto, uma «boa» cöpia, um «bom» retrato, com semelhanca" (itäücos do autor). 310 Post-Modernismo no Romance Portugués Conientporaneo_ Demonstrado, como pensamos, que, apesar de tudo, História e ficfäo partilham certos trafos corauns e certos meios de exposi^äo narrativa, embora visando diferentes fins28, parece-nos proficuo (e antes de procedermos ä ilustrasäo prática destes aspectos) estreitar e pormenorizar o campo das comparacôes que vimos tecendo. Ou í seja, apesar de termos presentes as imanentes capacidades históri-cas de todo e qualquer tipo de ficcäo, consideramos que é, eviden-temente, a ficcäo histórica que, mesmo parodicamente, mais e me-. U lhor se identifica com o conteúdo da História que, de um modo ou de outro, sempre tende ä recuperafäo do passado. "■' % A questäo que agora se deve discutir é, näo só mas também, de ordeni cronológica; isto é, em que ponto do passado deve a trama romanesca ser colocada para que o romance seja considera-do como histórico? Ou, nas palavras de Fatima Marinho, que hiato temporal deve marcar "a distanciacäo suficiente näo só para criar uma boa perspectiva, mas também para afastar o momento da enuncia§äo (...) do tempo em que decorre a accao"29? Para Avrom Fleishman, qualquer romance que se refira a urn passado distance de duas geracóes (40-60 anos) é passive! de scr encarado como histórico, enquanto aqueles que se referem a tempos mais próximos e, por isso, porventura vividos pelo leitor, devem ser apodados de "romances do passado recente". Sendo evidente que este näo é um critério linear e por si só suficiente, atč porque a ancoragem num cenário real é característica de qualquer tipo de ficcäo, o autor aduz a necessidade da presenca "of a specific link to history: not merely a real building or a real event but a real person among the fictions ones"30. Entendemos, todavia, que o critério apontado näo deve ser a única e exclusiva condicäo para permitir a insercäo de um romance -- 28 Cf. Joseph W. Tomer, 'The Kinds of Historical Fiction: An Essay, in Definition and Methodology", in Genre, vol.XJJ, n.° 3, Fall, 1979, p. 334. Vide, também a propositi) da dislinyao entre História e ficcäo, Christos S. Romanos, Poetics of a Fictional Historian: -New York: Peter Lang, 1985, em especial pp. 47-54. 29 Maria de Fatima Marinho, O romance histórico em Portugal. Ed. cit., p- H-Cf. também Joseph W. Turner, art. cit., p. 333. 30 Avrom Fleishman, The English Historical Novel. Walter Scott to Virginia Woolf. Baltimore & London: Johns Hopkins, 1971, pp. 3-4. A História contra-ataca 31! no campo dos históricos. A "pessoa real" podo näo exislir nas páginas da obra mas, segundo julgamos, o facto de a narrativa ser paulada e enquadrada, de modo sistemático, por um leque de acontecimentos cuja dimensäo e importäncia se encontram atesta-das nas Histórias oficiais torna-se pertinente, também, para estabe-lecer uma catalogacäo genológica idéntica. Esta, todavia, nunca poderá ser muito rígida e definitíva, principalmente, como já vimos no capftulo III, neste coevo cenário literário em que a diluifäo de fronteiras de género se impôe como característica de fundamental importäncia. Decorre do exposto que näo julgamos como útil a delimitacäo cronológica de Fleishman e, eo ipso, a diferenciacäo entre roman-: ces históricos e "romances do passado recente". Se existe já uma História escrita, praticamente alargada até aos nossos dias, que I permite as referéncias cruzadas passíveis de determinar 'historici-dades' (pessoas, factos e eventos incluídos) - subvertidas ou fiéis, näo interessa agora -, por que näo aceitar a capacidade romanesca i. para representar os mesmos lapsos de tempo? Fatima Marinho, apesar de aceitar a delimitacäo proposta por Avrom Fleishman, opta por "uma solugäo de compromisso" no caso dos romances/sagas familiäres, pois estes, embora aludindo no final ao "nosso tempo", apresentam um percurso geracional 'em comunhäo estrita com os sucessos piiblicos" que pertencerarn a um passado mais remoto. O passado recente "só é aí tratado, uma vez que ele se apresenta numa sequéncia que tern a sua origem mais de cem anos antes", acrescentando, por isso, que "Interessant-nos menos as alusöes ao nosso tempo do que a forma como se textuali/.ou e assimilou o passado". Se, por um lado, concordamos com a inclusäo de sagas familiäres no grupo dos romances históricos, desde que, como bem svibiinha a autora, "o percurso familiar" se estabeleca "em comunhäo estrita com os sucessos públicos", näo nos parece legítimo admit i r, por outro lado, c de acordo com o que vimos expondo, que se conceda menor atencäo e se dé menor relevo ao nosso presence. A propósito de um dos romances/sagas familiäres aponta-dos por Fatima Marinho, Levantado do Chäo de José Saramago, pensamos, por exemplo, que as ultimas referéncias ä geracäo de Joäo Man-Tempo, bem como ä de Gracinda ou ä de Maria Adelaide 312 Pnst-Modernismo no Romance PortuguSs Contemporäneo _-- (ilustrativas de um tempo bem proximo do da escrita e publicacäo do livro), säo täo importantes e re-criativamente válidas como aquelas que tracam o percurso familiar da geracao de Domingos Mau-Tempo e de Sara da Conceicäo que, em initio do século XX, iniciam a saga31. A questao pode ser resolvida näo tendo em conta a distancia-cäo relativamente ao passado que se revisita mas, antes, atentando no modo como se precede a essa operacäo de recuperacäo, em estreita alianca com os usos que o escritor faz da História. Neste sentido, säo duas as propostas que, por caminhos diferentes mas complementares, consideramos de útil referencia. Joseph Turner, embora admitindo de modo extremamente pertinente que "all we can say in general about the genre is that it resists generalization", considera a existencia de trés tipos de romances históricos: "those that invent a past, those that disguise a documented past, and those; that re-create a documented past"32. Neste ultimo caso, no ámbito das designadas "documented historical novels", é possível 1er ecos dessa proposta de Fleishman relativa ä aceitacäo da existencia, na tessitura narrativa, de u ma pessoa real como condicäo sine qua non para a insercäo no género do romance histórico. Se aqui parece ser notória a ligacäo próxima que se estabelcce com a História, nos romances do seguudo tipo ("disguised historical novels") o vinculo parece atenuar-se, sem, contudo, se reduztr a urna auséncia total e absoluta, em virtude da inexisténcia de personagens ou de acontecimentos acreditados. Embora; páre ja prevalecer a vertente mais fantasiosa da ficcäo, há elementos que permitem estabelecer nexos de correspondéncia com personagens ou cenários históricos. 31 Cf. M. F. Marinho, op. cit., p. 149. É também esta a posicäo de Helena Kaufman que. derrogando a delimilacäo de Fleishman, ou a de II. Henderson, para quem a delimitacäo cronológica respeitaria ao mundo "that existed before the author, was born' (cf. Versions of the Past: The Historical Imagination in American Fiction. N. Y. ft Oxford: Oxford UP, 1974, p. xvi), inclui no corpus analisado obras que aludem a um passado bem recente, caso de Tetralogia Lusitana de Almeida Faria, ou de 0.s Cits de Judas de Lobo Antunes (cf. Ficcäo histórica portuguesa do pós-revolucäo. 'lese de Doutoramento apresentada ä Universidade de Madison-Wisconsin, dact., 1991). 32 Joseph W. Turner, art. cit., p. 335 (pp. 337-347 para o desenvoivimenlo e comentário da tipologia apresentada). A História contra-ataca 313 Na categoria da ficcäo histórica inventada, pelo contrario, abre-se a entrada a universos totalmente imaginários, percorrtdos por personagens e emoldurados por acontecimentos cuja existencia näo encontra qualquer tipo de certificaeäo fora do texto. No entanto, a cor local e a insercäo da accäo em muito remotos tempos do passado acabam por accionar e criar no leitor contemporäneo um sugestivo e plausível efeito histórico. A História acreditada näo pode, de facto, ser tida como ponto de referencia, mas as arquetípi-cas ideias sobre gentes e cenários longínquos (que, precisamente por o sérem, se envolvem em uma aura de mistério sedutor) possi-bilitam e validam o estabelecimento de um pacto histórico, mesmo que ficcional. Näo é, contudo, apenas em virtude do expos to que Turner justifica a existencia desta terceira categoria. Aduz, numa correspondéncia a desenvolver com um dos usos da História de Harry Shaw (passível de complementar esta ou outra tipologia sobre o /romance histórico), a ideia de que, de alguma forma, este tipo de ■ romances instaura uma linha de reflexäo sobre o modo como se conhece a História. De facto, a abordagem proposta por Harry Shaw näo apenas parece coincidir com a que é delineada por Turner, como também a completa. Segundo este autor, é o conceito de probabilidade ficcio-nal que permite a definicäo e a identificaeäo da ficcäo histórica: We can say that while in most novels probability stems from our general ideas about life and society, in historical novels the major source of probability is specifically historical. Though many kinds of novels may incorporate a sense of history, in historical novels history is, as the Russian Formalists would put it, 'foregrounded'. When we read historical novels, we take their events, characters, settings, and language to be historical in one or both of two ways. They may represent societies, modes of speech, or events that in very fact existed in the past, in which case their probability points outward from the work to the world it represents; or they may promote some sort of historical effect within the work, such as providing an entry for the reader into the past, in which case the probability points inward, to the design of the work itself33. *3 Harry Shaw, The Forms of Historical Fiction. Sir Walter Scott and His Successors. 2"d ed., Ithaca & London: Cornell University Press, 1985, p. 21. "Probability involves our sense of a novel's 'fit', both the way it fits the world it imitates and the way i's pais fit together to produce a unified whole". 314 Post-Modernismo no Romance PortuguSs Contemporäneo Para alem de o primeiro conjunto parecer apontar para os dois Ultimos tipos de ficcäo historka de Turner, enquanto o segundo parece encontrar correspondéncia nas "invented historical novels", a verdade é que a tese deste autor apresenta uma mais valia impor-tante para a compreensao da qucstäo em apreco. Referimo-nos ä posicäo que decorre da ideia de que näo é possível extrair sentido da ficcäo histórica se näo re-conhecermos o papel desempenhado pela História na tessitura narrativa que se nos apresenta. Assim, numa alianca de perspectivas que nos iräo permitir abrir caminho para o estabcJecimcnto de fronteiras entre uma linha ficcional ä la Scott e a mais recente linha de desenvolvimento e aproveitamento post-modernista de dados históricos, Harry Shaw admite, numa gama de diferentes designacôes cujos sentidos näo : obrigam a que mutuamente se excluam, que a História pode ser usadá como "pastoral", como "drama" ou como "sirjeito". O mesmo é dizer, de acordo com os dois primeiros usos aporii tados, que a História é, por vezes, utilizada como urna espécie de instrumento didáctico, de forma a que o recuo ao passado especule os problemas e as preocupacöes do presente de enunciacäo, oň;:, num sentido que julgamos muitas vezes poder mesclar-se com*: este, como meio para intensificar a forca imaginativa do romance, numa tentativa de atingir um certo efeito catártico34. Näo nos parece dii'ícil ler nestas assuncôes uma identificacäo V quer com os romances escritos por Almeida Garrett e Alexandre Herculano no periodo áureo do nosso Romantismo de oitocentos, quer com mais recentes producöes romanescas do século XX. Nes tes casos, identificados com a linha de um romance histórico de tipo tradicional, o efeito de probabilidade histórica (e, em consc-quéncia, a instauraeäo de uma maior equivaléncia com o discurso historiográfico acreditado que, por sua vez, conduz a um pacto de ieitura onde a deserenca voluntariamente se suspende) advčm, cer-tamente, de dois factores essenciais. Por um lado, no que podemos apodar de motivacao intrínseca; o efeito de probabilidade histórica decorre do facto de o principal objectivo de quem da História quer fazer literatura se traduzir no en sej o dc re-eserever o mais fielmente possível os tempos passa- A História contra-ataca 315 34 Cf. ibidem, pp. 81-82 e, também a propósito, pp. 52-56. dos. Nas palavras de Rebelo da Silva, onde sem duvida perpassatn ecos do credo scottiano, Em assuntos historicos, o dever do romance consiste em cunhar com a verdade mais aproximada a expressao do viver e crer de Portugal, ou de outra qualquer nacao, n'uma designada epoca35. Posicao que, alias, perpassa tambem pela concepcao de romance hist6rico veiculada por Helen Maud Cam. Para esta, The function then, of the historical novel is to awaken the incurious, especially the young, to interest in the past, widening the horizons of all and enticing a minority to serious study. For such it can arouse the critical faculty and stimulate investigation for the verification or disproof of familiar facts, leading to first-hand acquaintance with original sources. It can enlarge the sympathies by compelling the reader to see abstract generalizations, whether political, social or economic, in terms of the human individual. The historical novelist has resources (...) from which the scientific historian is debarred. He may fill in the lamentable hiatuses with his own inventions. But he must keep the rules. His inventions must not be incompatible with the temper of the age - its morals and its psychology no less than its material conditions - and they must not be incompatible with the established facts of history. The novel that can do all this is a good historical novel36. Por outro lado, e como consequencia do que acabamos de apontar, esse mesmo efeito decorre do facto de a utilizacao de meios artfsticos proprios a ficcao nao obstar, na urdidura da teia narrativa, a demonstragao e exposicao da realidade historica con-: forme ela tern sido transmitida37. Assim, mesmo aceitatido que \. 35 Apud Fatima Marmho, O romance historico em Portugal. Ed. cit., p. 18. 36 jre]en Maud Cam, Historical Novels. London: Routledge & Kegan Paul, 1961. 1 p. 19 (sublinhado nosso). 37 De acordo com Georges Lukacs, Le roman historique. Trad. Robert Sailley. Paris: Payot, 1977, p. 45, o que importa ao romance historico e "de'montrer par des moyciis artistiques que les circonstances et les personnages historiques ont existe preci-sement de telle ou telle maniere. Ce qu'on a appele chez Scott tres superficiellement l'«authenticite de la couleur locale», e'est en realite cette demonstration artistique de la realite historique. C'est la figuration de la large base que constituent les everiements j historiques dans leur enchevetrement et leur complexity, dans leurs multiples interactions avEc les personnages" (italicos do autor). 316 Pnst-Modermsmo no Romance Porlugués Contemporary A História contra-ataca 317 sempre se procede a uma ressurreicäo poética de seres humanos que figuraram em certos acontecimentos históricos e que algumas personagens, embora inventadas, tomam o primeiro piano da narra-tiva, näo podemos olvidar que estas säo ainda "créées selon les mémes principes artistiques que les figures historiques familiéres"3S. Além do mais, a "inclusäo de dados rigorosamente históricos no meio da intriga"39 e o aparecimento, mesmo que esporádico, de conhecidas figuras históricas (que, na sua verdadeira grandeza, cumprem a sua missäo já atestada nos anais oficiais) garantem, também pela completude das informacôes facultadas através de um narrador responsável por um discurso linear e pela seriedade de torn que o norteia, o estabelecimento de universos credíveis e vero- ; simeis. O que o terceiro uso da História mencionado por Harry Shaw traz de novo e de importante é a possibilidade de, alargando, ou melhor, aproximando ao nosso presente o ämbito cronológico do corpus proposto, nos permitir comecar a estabelecer um diferenciál entre esta linha tradicional e os novos rumos da ficcäo histórica. A designacäo de "História como sujeito" advém, pois, do reco-nhecimento de que alguns romances näo se limitám a incorporar visóes da História, antes a tomam para seu assunto, represent ando ou comentando o processo histórico, normalmente através de mcios simbólicos e/ou alegóricos que, sem dúvida, dificultam a lineandade da leitura: Historical novelists whose works center on history are usually not content to give a panoramic view of an age. They wish to understand, evaluate, and sometimes to rebel against or accommodate themselves to what they have presented. They are faced, in ofhi r words, with the problem of giving not only shape but meaning to history. One way in which this can be done is by inserting essays, brief ot long, into a novel, but: many audiors are not satisfied with this solution. They wish to use their plotted actions and characters to dramatize directly the meaning they have discovered in historir cal process. Because of the state of literary theory and practice 1 »Ibidem, pp. 39, 43-44. 7 para » Fatima Marinho, op. cit., p. 20. Cf. Georges Lukacs, op. at., pp. ™, 6/, jg: as referéncias seguintes. during the period in which the works with which I am concerned were written, this dramatization is likely to depend upon characters and scenes that function as historical symbols 40. E se as obras sobre que se debruca dizem essencialmente res-petto ao século XIX, condicionadas, pois, por uma determinada prática literária moldada pela moda e pelos gostos da época, em relacäo aos quais este tipo de representacäo simbólica do processo histórico era, apesar de tudo, uma inovaeäo, näo podemos deixar de registar, como bem subUnha Harry Shaw, que "In most respects, historical fiction depends upon the formal techniques and cultural assumptions of the main traditions of the novel"4'. Deste modo, de acordo com os novos rumos da ficcäo con-temporánea post-modernista (cujas fronteiras se iniciam em Portugal com a publicacäo de O Delfim, como propomos no capítulo II desta dissertacäo), o carácter metaficcional da produgäo romanesca, lato sensu entendida, näo pode deixar de estender-se ä ficcäo histórica em particular. Significa o exposto que esta ultima tipologia de Shaw pode e deve ser actualizada de modo a que nela caiba essa outra variante em que a História é usadá como assunto näo apenas simbolicamen-I tc, mas também em sentidos que se desdobram quer por veios semanticamente subversivos, de nítidas implicates ideológicas, quer pela propria problematizacäo e reflexäo sobre o modo como a conhecemos ou sobre a forma como ela tern vindo a ser construída c registada pela historiografia. Segundo Helena Kaufman, A modificacäo do termo "ficcäo histórica" para "ficcäo historiográ-H fica" subtinharia a sua característtca predominante: o tom reflexivo que questiona as várias versôes ou os próprios factos da História42. O questionamento apontado por Kaufman afigura-se~nos, todavia, susceptível de ser duplamente aplieado. Por um lado, em 4D Harry Shaw, The Forms of Historical Fiction. Ed. cit., p. 101; cf., também, Pp. 102 e 117 (sublinhado nosso). f Ibidem, p. 23. *' Helena Kaufman, Ficcäo histórica portuqiiesa do pés revolugäo. Tese citada, p. 40. ^f.Mn^rnhmoHoRomance PonuguĚs_CorMmpor^- 318 alguns romances post-modernistas que tomam a História por assunto, a reflexäo e posterior problematizacäo advém da aplica-cäo e contaminacäo de diversos procedimentos metaficcionais ao modo como se vai tecendo a narrativa. Estes, ao chamarem a aten-cäo para o carácter ficcional do que se escreve e narra (sej a, entre outros, através de intromissöes do narrador que, muitas vezes, adopta o ponto de vista dos mais fracos numa nitida violacäo das converses da historiografia, seja por estratégias que visam o risí-vel e a consequcntc instauracäo de urna linha paródica), indirecta e enviesadameníe contaminam a reflexäo sobrc a História, acabando por alertar para o facto de que também os dados históricos faculta-dos säo/podem ser manipulados e rnanipulávcis43. Por outro lado, por vezes era estreita e tácita conexao com a modelizacäo paródica do passado (figuras, cenários, lingua;, o pro-cesso é levado mais além e a exposicäo clara, objcctiva c, por isso, mais ou menos ostensiva do carácter lacunar das ťontes, ou da imanente parcialidade a que o registo histórico pode estar sujeito, implica, mais do que o desvendamento do modo como se orquestra a história, o desnudamento da forma como se constrói a História. De acordo com Brian Mcllalc, enquanto as ficcôes hisfóricas tradicionais "typically involve some violation of ontological boundaries", tentando sempre, no entanto, "to supress these violations, to hide the ontological 'seams' between fictional projections and real world facts"44, no caso da ficcäo histórica post-modernista as 'costuras' ontológicas säo, precisamente, o que se pretende ostensi-vamente mostrar. Todavia, a verdade é que a suspeicäo instaurada em relacäo ä veracidade da História pode favoravelmente jogar, era qualquer dos casos apontados, na imposicao do universo narrado como mais urn universo possível. Afinal, como diria Eca, näo eslti-vamos lá para ver. A História contra-ataca 319 « Linda Hutcheon era Poelica do Pos-Modernismo. Ed. cit, p. 131, esaCTe: ^Autoco—ente. a metafile historiografica nos ^ memos tenham mesmo ocorrido no passado real empmco ^enS mos esses acontecimentos como fatos histoncos por me.,0 da selecao e do posiuo narrativo". ,., . ,, 17 a/. , 44 Brian McHale, Postmodernist Fiction. Bd. cit, pp. 10-1 Assim, de acordo com o exposto, pensamos ser mais correcto designar estes romances com o mais pormenorizado termo de metaficcao historiografica proposto por Linda Hutcheon (pois, de facto, e o prefixo 'meta-' que confere uma maior carga distintiva em relacao a uma linha tradicional do romance historico), indepen-dentemente de esta nova ficcao poder ser identificada com qual-quer uma das tipologias apresentadas45. Registemos, ainda, a tipologia de Elisabeth Wesseling, muito semelhante em termos de definicao a delineada por Linda Hutcheon, dela divergindo, essencialmente, pelo facto de proceder a sua rami-ficacao: The first enlarges the generic repertoire of the historical novel with strategies that turn epistemological questions concerning the nature and intelligibility of history into a literary theme. Self-reflective historical fiction not only represents the past itself, but also the search for the past, and can be regarded as a conflation of the historical novel and the detective. (...) Postmodernist novelists, however, also depart from the traditional historical novel by inventing alternate versions of history, which focus on groups of people who have been relegated to insignificance by official history. (...) These apocryphal histories inject the Utopian potential of science 45 Deste modo, também os diversos tipos da mais vasta categorizacäo proposta por ..... Maria de Fátitna Marinho na obra que já citámos - saga familiar, biografia de persona-gens referenciais, autobiografia frctícia, focalizacäo heterodoxa, romance sob o signo da 1 irónia, Histórias alrernativas c subversivas, romance de anulacäo do tempo e da morte e *; romance sobre o signifieado da História -, assiimir-se-äo como típicas formas post--modernistas do romance histórico se facultarem o registo metaficcional (cm qualquer um }i dos modos e formas propugnados por Linda Hutcheon, cf. supra, Capftulo IV, pp. 262--264) e o consequente questionamento do status ontológico e epistemológico do(s) facto(s) histórico(s). ÍJ De acordo com a defínicäo proposta por Linda Hutcheon, op. cit., pp. 21-22, o termo refere-se "äqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, säo intensamente auío-retlexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apro- " priam de acontecimentos e personagens históricos (...). Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a narrativa - seja na literatura, na história ou na teória (:;:ttque te.mconstituído o principal focode ateneáo. Ametaficcäo historiograficaincorpora .;; fodos esses trés domínios, ou seja, sua autoconsciěncia teórica sobre a história e a ficcäo como criacôes humanas (metóficcäo historiogrtž/i'ca) passa a ser a base para seu repensar ■ e sua reelaboracäo das formas e do conteúdo do passado" (itálico da autora). 320_P osl-Modernismo no Romance Portugues Contemporäneo_ fiction into the generic model of the historical novel, which produce a new form of narrative fiction one could call "uchronian" 46. As novas variantes do romance histórico postmodernista sab, assim, repartidas pelos polos das ficcôes históricas auto-reflexivas (num alargamento do ämbito da contaminacäo a que acima fize-mos referencia) e das ficcôes históricas ucrónicas, em termos que, segundo cremos, e como o prova a História do Cerco de Lisboa de José Saramago, se näo excluem mutuamente. Parece ser claro, pois, que o uso da história típico de um cenário post-modemista se afasta do que caracterizou, e caracteriza, uma linha tradicional. Se, como afirma José Saramago, Duas seräo as atítudes possíveis do romancista que escollieu, para a sua ficcäo, os caminhos da História: uma, discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto por ponto os factos conhecidos, sendo a ficcäo mera servidora duma fidelidade que se quer inatacá-vel; a outra, ousada, levá-lo-á a entretecer dados históricos näo mais que suficientes num tecido ficcional que se manterá predorni-nante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, ä primeira vista incon-ciliáveis, podem vir a ser harmonizados na inštancia narradora47, a verdade é que essa harmonizacäo deixa de passar por um retomo e por uma recuperacäo pedagogicamente nostálgica do pass a do revisitado. O tempo perdido da nossa História toma-se, agora, ma- t 46 Elisabeth Wesseling, Writing History as a Prophet. Ed. cit., pp. vii-viii. A ficcäo ucrómca é entendida como uma subespécie do que designa por ficcäo históricä 1 contrafactual ("fiction that deliberately departs from canonized history", p. 102). Esta é, ,t por sua vez, dividida em paródias da História negativas ("negational") e confirmätivas s ("confinnational"): "The first category comprises novels which haphazardly nansforrn f history. The second category includes works which unfold alternate histories inspired, with varying degrees of emphasis, by emancipating Utopian ideals" (p. 157). 47 lose Saramago, "História e Ficcäo", in Jornai de Letras, Artes & Ideias, 6 de : Marco, 1990, p. 19. Vide a propósito da doutrina históricä do autor, Carlos Reis, Diálô- f gos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998, em especial o Didlogo 111, "Sobre a História como cxperiéncia" (pp. 79-89), "Onde se fala do tempo e da História e ónde o escritor reclama, para a memória históricä, gente anónima que povoa o passado e que nele deixou ténues iuarcas; e também onde a ficcäo desafia a Históriu como discurso que a rcinventa e compensa a sua parcialidade. E ainda: ondc se refuta o fim da História, como mistiiicacäo". A História contraatarn téria-prima de um jogo onde, pela ironia e pela metaficfao, se implodem sentidos canonicamente transmitidos48. Os romances Historici do Cerco de Lisboa de José Saramago, e A Paixao do Conde de Fróis de Mario de Carvalho, afiguram-se--nos, pois, como ilustracoes perfeitas destas novas tendéncias que parecem considerar que "o trabalho de emendar é o único que nunca se acabará no mundo", até porque "o reino da terra é dos que tem o talento de p6r o náo ao servi$o do sim"49, mesmo que esse "nao" surja apenas travestido de problematiza?áo mais do que de negacáo absoluta. lim qualquer dos casos, as emcndas semánticas e. formats, os acrescentos da lavra da imaginacao de quem escreve, sempře ser-vem e cumprem a sua funcao de preenchimento das auséncias (da mais variada indole) que se sentem na História. 2. Viagem ao centro da escrita: irreveréncia e subversäo da H(h)istória História do Cerco de Lisboa é um romance exemplar e emble-; mático näo apenas no que diz respeito äs capacidades e modos de representa?äo post-modernista de cenários históticos. Ele reveste-[ -se também de fundamental importäncia porque o seu tecido literá- rio-ficcional é percorrido pela singular e pormenorizada dramatiza- fäo das recentes preocnpa9Óes que (já o dissemos em início do * capítulo) tém ocupado o centro dos debates sobre historiografia. As realidades que se reflectem säo, pois, múltiplas e diversas. Por um lado, a narrativa primeira do narrador principál faculta o conhecimento da Lisboa coeva50 e, através do percurso diegético 48 Cf. José Saramago, art. cit., p. 20 e Linda Hutcheon, op. cit., p. 127. 49 José Saramago, História do Cerco de Lisboa. Lisboa: Caminho, 1989. pp. 14 e .330, respectivamente. 50 Mesmo afirmando que "eu näo posso fazer nada sem ver, mesmo que aquilo que eu vej.i näo seja aquilo que está agora ali", num notório entxetecimento entre imaginacao e .; rcalidade, é o propria autor quem reconhece a preocupacäo com o estudo prévio da topografia local, bem como de alguns espacos interiores (caso do quarto 201 no Hotel Bragarca em O Ano da Morte de Ricardo Reis), cf. "Entrevista a José Saramago", eonduzida por Manuel Gusmäo, in Venice, 14 Maio, 1989, p. 91. do par de personagens Raimundo Silva/Maria Sara, alguma coisa dos hábitos e das mentalidades de um determinado grupo social. Por outro lado, ä medida que o herói vai progressivamente ganhan-do estatura moral e afectiva e, por consequéncia, nome propria51, abre-se, ou melhor, alarga-se a entrada para esse outro tempo do século XII que, gradual e sistematicamente, se entrecruzará com o presence52 através de uma narracao onde se mesclam as vozes dos dois narradores. Esta narrativa segunda, onde diversamente se demonstra o claro controlo que o narrador principal exerce sobre o universo diegético, é provocada pelo deliberado acto de rebeliäo de Raimundo Silva quando, subindo "acirna da chinela", com mäo firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra ä página, uma palavra que o historiador näo escreveu, que em nome da verdade historka näo poderia ter escrito nunca, a palavra Näo (...), os cruzados Näo auxiliaräo os Portugueses a conquistar Lisboa53. Gesto iniciático este que, posteriormente, se traduzirá numa paralela evolucäo da personalidade intelectual, física e afectiva,: levando-o, numa atitude quase inconsciente de protec^äo da 'cria', a esconder o seu livro da chůva, a deixar de pintar o cabelo ou a desejar que o tempo passe para "conhecer a sua verdadeira cara'': de "homem novo" "que olhando-se num espelho [ainda] näo se reconhece" 54. 51 A identificacäo da personagem pela utilizagäo do nome proprio só ocorre no ; infcio do terceiro capftulo do romance, p. 31, quando, de modo mais premente, se comeci a manifestar a sua rebeliäo contra a autoridade magistral da História. 52 Sobre este assunto, vide Maria Alzira Seixo, "História do Cerco de Lisboa ou a respiracäo da sombra", in Lugares da ficcäo de Jose Saramago. Lisboa: IN-CM, 1999, pp. 73-82. 55 História do Cerco de Lisboa, p. 50 (p. 14 e passim para a citacäo anterior). 54 Cf. ibidem, pp. 111-112, 121, 132 e 241, respectivamente. A transformacäo, ou a evolucäo, de Raimundo é, ainda, simbolicamente passível de ser detectada quando, depois da ida ä editora e do 'banho de chuva purificadora' a que se sujeita no regresso a casa, veste a gabardina que havia usado na véspera e se sente "como se estivesse a enfiar--se na pele dum animal morto"(p. 131). Note-se que, antes, já havia aceite a tarefa, proposta por Maria Sara (responsável, também, pela evolucäo da personagem); de; re-escrever uma nova H(h)istória em que os Cruzados näo ajudaram o rei (p. 109); Antes da ousada inscrifäo do Näo. porém, já a insubmissäo perante os relatos acreditados havia sido embrionariamente mani-festada. Referimo-nos näo apenas ao diálogo iniciál com o historiador55 mas também ao momento em que, mentalmente, corrige o texto que lhe cumpre rever, acrescentando "o miúdo pormenor [que] näo interessaria ä história". As correccöes feitas por Raimundo (o "formoso acordar de almuadem na madrugada de Lisboa, com tal abundáncia de porme-nores realistas que chega a parecer obra de testemunha aqui presente", a existencia "no parapeito das varandas das almádenas" de "sinais na pedra que apontariam, provavetmente na forma de setas, a direccäo de Meca", os mouros "vivendo paredes meias com a canzoada"56) permitem, pois, em simulcaneo, indirectamente cha-mar a atencäo para a liberdade interpretativa da literatura e iniciar, irónica e criticamente, a problematizacäo do modo como säo trans-mitidos e aproveitados os factos e o conhecimento históricos: Trctnemos só de imaginär que aquela dcscriijäo do amanhecer do almuadem poderia lomar lugar, abusivo, no científieo texto do autor, frutos, um e outro, de estudos aturados, de pesqtiisas proťun-das. de confrontaföcs minuciosas. (...) Está demonstrado, portanto, que o revisor errou, que se näo errou confundiu, que se näo confundiu imaginou, mas venha atirar-lhe a primeira pedra aquele que näo tenha errado, confundido ou itnagi-nado nunca 5/. Destarte, a verdade é que o gesto de negacäo/inversäo da História protagonizado por Raimundo Silva (esse que claramente ins-taura a remodelacito ťiccional), refor^ado e ratificado intratextual-I mentě por uma sua reduplicacao menor, o reiato de Mogueime a 5 propósito da tornáda de Sancarém, num cpisódio em que teria sido ií.ele a subir "aos ombros de Mem Ramircs para prender as escadas ' 5Í "O meu livro, recordo-lho eu, é de história, Assim realniente o designariam segundo a claxsificacäo tradicional dos géneros, porém, näo sendo propósilo metl apontar : outras contradicöcs, ein iiiinha disereta opiniäo, senhor doutor, tudo quanto näo fór vida, ;: é literatura, A história também, A históna sobretudo, sein querer ölender", ibidem, p. 15. i 56 Ibidem, pp. 17-19. 22-23, 25. 57 Ibidem, p. 25. ,;........