■"'""í. A temática do adultério feminino na literatura Frederic W Lcvé: %ácÍM Tr0b . 19Q? Q man ™ Theodor Fota*-Eß Brief. Mülheim an derRulir Verlag an der Ruhr, 1999 A propósito da recusa pcla cämara de deputadoš franccsade urn projecto-lei sobre a remtroducáo do divórcio em Franca, Zola escrcvc em Le Figaro que a legaliza$áo do divórcio como solugáo pacific* dos problemas marrimoniais tornaria desnecessário o adultério e faria pcngar a existéncia de assunto sobre o qual escrever romances (apud Gay, 1987:188). Este comentáriojocoso, datado de 1881, será repetido sem grandes variajöes ao longo do nosso século por muitos dos mais interessantes estudiosos da literatura sobrc o amor e o adultério. Denis de Rougemont, na sua obra fundamental O Amor e o Oddente, esereve de forma lapidar: "Sem adultério, que seriam todas as nossas literaturas?" (Rougemont, 1982:14). Esta mesma importáncia do triangulo adulterino como forma geradora da literatura europeia é referida, ainda, entre outros, por autores como Tony Tanner (1979: 12), Peter Gay (1987: 187) e Peter von Matt (1989:13). Quando se fala da temática do adultério de uma forma geral, náo surge desde logo a distingáo entre adultério feminino e masculino uma vez que ambos säo tratados pela literatura desde o seu início. Todavia, se na vida real e em consequéncia da situaeäo específica da mulher na família e na sociedade só o adultério feminino era realmente relevante, também na literatura, se exeluirmos alguns casos, apenas o adultério da mulher me parece ser verdadeiramente produtivo. Embora náo ocupando lugar central, o adultério do hörnern surge frequentemente nos romances de aventuras e nos de formagio como parte integrante das provas e provacöes do herói, fazendo desencadear ou avangar a accao: lembre-se Ulisses seduzido por Circe e por Calipso. Neste contexto, a esposa traida apresenta-se como variagäo da mulher abandonada, e o seu destino só se torna trágico quando ela desenvolve, 3t A mulher e o adultério i A temática do adultério feminino na literatura 35 corrio faz Medeia, capacidades de vinganca verdadeiramente excepcionais. No geral, a mulher enganada é passiva, de acordo com o código de verosimilhanca e o seu estatuto sociopsicológico. Lembre-se que a mulher estava confmada ao concubinato na Antiga Grécia e entre os povos bíblicos, no Oriente näo abandonava o harém, e, mesmo já no Ocidente cristäo, vivia urna situacäo de menoridade social e psicológica. Nesta conformidade, a mulher enganada näo é nem urna figura cómica nem ridícula, a näo ser que, como nota Peter von Mart, se tenha anteriormente arvorado em todo-poderosa, isto é, se tenha investido de caracterís-ticas eminentemente masculinas (cf Matt, 1989:76). Pelo contrario, o adultério feminino, ao qua! se liga o motivo do marido enganado, detém grandes potencialidades quer trágicas quer cómicas e é, por isso, tema central e também secundário em géneros e subgéneros literários táo díspares como a farsa, a comédia, o conto, o romance, a tragédia, etc. Mais ou menos comum a todas estas obras é o esquema da acgáo bem como a constelagäo nuclear das figuras e até o jogo com obstáculos, intrigas e mentiras eriadoras de tensäo e sua eventual superaglo. Pode falar-se de uma constäncia de passos, como a seducáo, o adultério, as reflexóes sobre a culpa, a descoberta, a punicáo, a expiacáo e a morte, variando o peso e até a presenca de alguns destes momentos de acordo com o género narrativo em causa. A comédia, por exemplo, elimina as reflexöes acerca da culpa, bem como a punicáo, a expiagáo e a morte, momentos estes que a tragédia enfatiza, enquanto reduz osjogos ä volta da descoberta datraicáo. Parece-me ainda notório que a literatura de adultério mais antiga dá especial relevo ä vivěncia amorosa ou ä fase de vinganca do marido, eventualmente também ä do encobrimento/descoberta do adultério. O medo do hörnern de ser enganado pela sua mulher, cuja explicacáo mais logica se prende com o medo de uma gravidez extra-conjugal, parece, todavia, resultar de uma noeäo de honra intrínseca ao hörnern, já que, segundo Frenzel, tal noeäo náo decorre do pensamento filosófico nem de Platáo nem de Aristoteles ou Cicero sobre a honra, e surge materializada em literaturas primitivas de origens täo diversificadas como a charnanista, a egípcia e a indiána ou a greco-romana e a germanica (c£ Frenzel, 1980:164,165). Irei de seguida tragar em breves páginas a história da evolugäo da temática do adultério na literatura ocidental até aos finais do século XIX. Conferirei especial ateneáo ä segunda metade do século passado, näo só porque nela se inserem os romances que trato, mas também porque é no Rcalismo oitocentista que o romance de adultério se toma um fenómeno socioliterário de especial relevo em toda a Europa. Que esta apresentacäo será necessariamente lacunar, decorre desde logo da vastidäo do tema. Importa-me principalmente, no ämbito deste estudo, mostrar como o interesse da literatura de adultério se concentra no século XTX na figura J I feminina e na sua problemática, ao mesmo tempo que se aprofunda a dimensäo psicológica. Pelo contrario, a articulacäo do tema do adultério com o comporta-mento social, que é primordial no século XTX, parece surpreendentemcnte estar presente como problemática desde o início, embora, como é natural, com especificidades próprias de cada época. Na obra que dediča a temática do adultério no romance e em que estuda trés dos mais conhecidos romances que nos séculos XVIII e XTX desenvolveram este assunto, Tanner esereve que no início da literatúra ocidental se encontra um acto de transgressäo - o rapto de Helena por Paris - que se consubstancia numa história de adultério (cf. Tanner, 1979: 24). Nela dá-se especial relevo ä vinganga do hörnern, ä qual se liga o perdäo da adúltera. Ao contrario do que ocorrerá no século XK, onde esta questäo se torna primordial, a seducáo da mulher näo surge ainda problematizada, como o näo será também na Idade Média, nomeadamente na história de Tristáo e Isolda - na origem da seducäo está a intervengäo dos deuses. Pelo contrario, o motivo do rapto, que se prendia com hábitos matrimoniais antigos, surge ligado ao do amigo ou hóspede infiel, posteriormente desenvolvido pela literatúra em amplas variacóes (cf. Tanner, 1979:24-52). Interessante é também notár que Helena representa embrionariamente o conflito da mulher dividida entre dois homens, bem como a ambivaléncia da figúra, a qual, entre a culpa da inndelidade e a sua beleza triunfante, atrai, simultaneamente, gregos e troianos e é perdoada e aceite pelo marido. Ela representa, por um Iado, uma figúra matricial de sedutora demoníaca, e rnuitas säo as versÖes do mito que desenvolvem esta sua faceta, por outro lado, ela cativa näo só os anciáos de Tróia como muitos autores que däo á figúra um desenvolvimento mais positivo {cf Frenzel, 1970: 297-301). Tanner refere que, tal como muitas adúlteras das literaturas posteriores, nomeadamente as do sécuíoXTX, Helena vive como num sonho que lhe difieuita a distincäo entre amante e marido (cf. Tanner, 1979: 30). Todavia, Helena lamenta-se e tem consciéncia da sua culpa que justifica pelo destino trágico dela propria e dos homens que seduziu. Menelau é exemplo do marido enganado e a guerra e destruicäo de Tróia sáo talvez a mais terrívcl vinganca de enganado que alguma vez existiu, e atinge náo só o sedutor mas todo o seu povo. Assim sendo, nesta história o destino pessoal surge entrosado no colectivo, como será também proprio de muitas das histórias de adultério posteriores, nas quais a quebra dos votos particulares e da organizaeäo familiar e doméstka representa a ruptúra de toda a ordern social. A infidelidade c o adultério sáo, alias, relativamente comuns na mitologia clássica: lémbre-se a história de Atreu e a de Agamemnon. A mulher deste ultimo, 36 A mulher e o adultério A temática do adultério feminino na literatura 37 Clitemnestra, que náo só trai como mata o marido, inaugura, de acordo com Peter von Matt, um tipo de adúltera activa e vingativa (c£ Matt, 1989:92). Mas entre os Antigos nem sempře o adultério conduz necessariamente ä morte e ä tragédia. Von Matt considera que na origem da primeira farsa e das histórias e anedotas sobre rnaridös enganados enquanto figuras risíveis esta o mito de Hefestos, Afrodite e Ares, nařrado pelo cantor Demódoco no Canto VIII da Odisseia, num processo de "canto no canto" de fungäo premonitória e especular (cf. Matt, 1989: 54-58). E cérto que a recuperagäo de Afrodite, que retoma a sua dignidade depois de purificada peios deuses, parece apenas propria do mito e írrepetível na literatura posterior, mas a solucäo positiva da história, resolvida sem a desesperacäo de qualquer dos intervenientes, corresponde a numerosas versöes parodísticas do terna do adultério: Hefestos é pecuniarmente compensado e Ares desaparece logo que deixa de ser diegeticamente relevante. Também a mitologiajudaico-cristä trata, embora näo com muita frequencia, a questao do adultério feminino, registando-se entre o Velho e o Novo Testamente, como é sabido, uma evolucäo positiva no que toca a dignidade da mulher, que se reflecte indirectamente no tratamento dado ao tema que nos interessa. Equiparada aos escravos e äs ovelhas como mais um objecto possuído, a mulher detinha entre os povos bíblicos, tendencialmente poligamos, urn valor equivalente ä daqueles. Acusada de possuir toda a astucia para seduzir o hörnern (BS, Pr., 6,7), a mulher podia ser repudiada por diferentes motives que iam da esterilidade ä mera satisfacáo do capricho masculino. Nesta conformidade, o adultério feminino era punido como grave sublevacäo da mulher e como um atentado ä propriedade por parte do sedutor, sendo a adúltera, depois de denunciada para julgamento, publicamente delapidada. O Cristianismo representa uma proposta revolucionária no comportamento que propóe face ao adultério, proposta essa que se reflecte näo só na literatura religiosa como, indirectamente, na profana também. A exigéncia de um comportamento moral do hörnern - "Mas eu digo-vos mais: Todo aquele que olhar para uma mulher com más intengóes já cometeu adultério no seu corac,äo" (BS, Mt., 5,27-28) - alia-se o perdäo sugerido na täo conhecida parabola da mulher adúltera. Note-se que esta parabola näo propöe, todavia, a absolviclo da infideiidade conjugal, mas apenas o perdäo daquela mulher arrependida (BS, Jo., 8,1-12). De facto, segundo a norma crista desaparecem as outras causas referidas na lei de Moisés como justificativas do repúdio da mulher, restando o adultério como único motivo aeeite (BS, Mt, 5,31-32; Mt., 19,9; Ma, 10,11-12; La, 16, 18). Acresce ainda que o Novo Testamento mantém uma imagem desdassificada da mulher, nomeadamente ligada ao adultério, como no caso de Herodiadě, que faz pagar Joäo Baptista com a morte as repetidas críticas que o L profeta dirige ä traigáo de Herodes a seu írmáo (BS, .Vit, 14,1.12; Mc. 6,14-29; La, 9,7-9). A questáo do destino da literatura sem o adultério, que comecei por referir, parece quadrar-se especialmente ä literatura medieval, principalmente ä lírica cortés. na qual a minne dedicada ä dama tinha como destinatária a mulher casada, consti-ťuindo, assim, a literatura, pe!o menos tendencialmente, a apológia do adultério. Todavia, Joachim Bumke nota, a este propósito, que é apenas o motivo do secrerismo do amor, táo própno da linea cortés, que permite intuir tratar-se de adultério, e que o terna é muito raramente mencionado de forma explícitana lírica medieval. Os exemplos destas excepgôes que cita säo franceses e, segundo o mesmo autor, oadultério explicitamente assumido estácompletamente ausente na lírica medieval alemá. Este comedimento por parte dos autores alemaes detecta-se igualmente nas novelas em verso, em que o amor do cavaleiro pěla dama casada, relativamente comum, é mais frequente em Franca do que na Aiemanha (cf. Bumke, 1987:553-558). Quanto ao romance cortés, e muito embora nas narrativas do periodo clássico a minne conduza ao casamento e náo ao adultério (cf Greenfield, 1994: 188), a história de amor mais conhecida da literatura medieval, cuja dimensáo arquetípica é generalizadamente aceite, é uma história de adultério: refiro-me ao mito de Tristáo e Isolda, cujas varia$óes e recepjäo na literatura europeia atestam a riqueza e as potencialidades produtivas desta história1. No centro da narragäo está a atraegáo entre os amantes que se tornám verdadeiros mártires da sua paixäo. Reencontramos os passos comuns as narrativas de adultério e também nesta história a questäo da seducäo é desvaSorizada e explicada por um poder mágico, enquanto a punicio de Isolda sofre varia$óes e se mantém a disposicáo do Rei Marco para perdoar aos amantes traidores2. Importante é que o amor leva náo só Isolda ä ruptúra da íidelidade conjugaí como Tristäo a quebrar a fidelidade ao 1 Denis de Rougemont considera a história de Tristäo e Isolda um verdadeiro mito, ou seja, uma verdade colectiva que se sobrepóe äs vivéncias e aos vaiores de cada um. Segundo ele, sáo este mito e toda a poesia trovadoresca que com ele conflui que justificam a cisäo entre amor e casamento e o interesse pelo adultério como expressáo dessa incompatibilidade que percorre a literatura ocidental. Na sua origem encontrar-se-á, segundo Rougemont, a heresia maniqueísta dos Cátaros, inimigos de todo o amor enquanto acto eriador, que aspira ao Éxtase supremo da morte (cf! Rougemont, 1982:23-127). 2 N&Estoire iniciál e na versäo de Eilhart von Oberge (ca. 1180) Isolda é primeiramente condenada ä morte, refugiando-se, após uma série de aventuras, com Tristáo na fioresta, sendo depois perdoada pelo marido e Tristäo desterrado. Em Thomas de Bretagne (1160-1165) e em Gottfried von Straßburg (ca. 3210) Isolda é ilibada numa ordália forjada, e Tristáo desterra-se voluntariamente (ď. Frenzel, 1970:740-746). Segundo a interpretacäo de Bumke, pode detectar-se na versäo de 38 A mulher e o adultério A temática do adultério feminino na literatura 39 "seu tio e rei. A ordem feudal e a ordem do amor anunciam-se como reciprocamente exclusivas, e a tragédia dos amantes decorre da impossibilidade de concretizarem o seu amor dentro do contexto social, isto é, da dificuldade de amar fora das normas e da sociedade estabelecida (c£ Ruh, 1967:43-52). O outro grande par de amorosos adúlteros da literatura medieval é Lancelote e Gweniver. A sua traigáo a Artur é paralela á de Tristáo e Isolda ao Rei Marco, e, como nota Tanner, as consequéncias sáo quase tlo catastróficas como o adultério de Helena de Tróia (cf. Tanner, 1979: 36). Muito embora o Rei Artur represente um tipo de maridoenganado revestído duma grande dignidade e disposto a sacri-ficar a sua felicidade pessoal ao bem publico, o adultério marca o ínício do fim do mundo da Tavola Redonda. A conclusáo retirada á vřvéncia de Tristáo e Isolda, de que o verdadeiro amor no periodo cortés nao pode ser vivido á margem da sociedade, articula-se com a ideia veiculada pela bistória de Lancelote e Gweniver, de que a transgressáo individual e a quebra da norma privada conduzem á desinte-gracao social. O amor de Lancelote e Gweniver náo atinge a dimensáo trágica do de Tristáo e Isolda, mas Lancelote é exemplo perfeito do cavaleiro e do apaixonado cortés e nessa qualidade é integrado nas literaturas inglesa, francesa, alemá, italiana, espanhola, portuguesa, etc. E interessante notár, no contexto děste trabalho, que Dante reteré ter sido a leitura da história de Lancelote que aproximou Francesca da Rimini de Paolo {apud Matt, 1989: 85), história esta que por sua vez, como a seu tempo assinalarei, Eca de Queirós integrou em O Primo Basílio (cf. OPB, 282-283). Mas nem sempře as histórias de adultério se apresentam revestidas děste espírito cavaleiresco. Alias, a alta opiniáo que a literatura cortés detinha da mulher poderá ter provocado, como reaccao, a desconfianca em relacáo á mulher e as suas artimanhas que surge na literatura renascentista e pós-renascentista. Ligado ainda á literatura alegórica medieval, mas simultaneamente um dos iniciadores do Renascimento, Dante (1265-1321) revela, como é sabido, uma sintomática ambivalencia face ao destino trágico do par adulterino. Paolo e Francesca sao condenados peb poeta ao voo trágico das sombras incorpóreas no segundo anel do Inferno, mas sáo simultaneamente absolvidos no momento em que o mesmo poeta, no final do relato de Francesca cai, "come morto", cheio de piedade pelo Gottfried urna erítica acesa ao casamento feudal tanto na sua dimensäo de acordo politico como na sensualidade gratuita do hörnern, ligada ä ideia da mulher como objecto possuído. Neste contexto, o adultério séria a expressáo de um mundo utópico sem falsidade e em que o proprio amor representaria a fidelídade (c£ Bumke, 1987:558). ■M destino dos amantes (c£ Matt, 1989: 82-86). É esta ambivalencia entre culpa e absolvicäo, entre condenaclo e transfiguracäo, que dá a esta história de adultério o seu carácter paradigmático e que a faz surgir como referéncia ao longo da literatura que se lhe seguiu. Bern diferentes děste tratamento dado por Dante ao tema do adultério e, principalmente, do amor sáo as propostas da novelística de cariz mais realista, destinadas a um publico ledor mais amplo e de origem tendencialmente burguesa. Os seus representantes principals seráo Boccacio (1313-75) em Itália e Chaucer (1340-1400) em Inglaterra, e também as representacöes carnavalescas, os entre-mezes e as farsas de recepeáo predominantemente popular, nas quais o adultério era pretexto para uma série de encontros e desencontros divertidos. Por vezeš o Renascimento propöe solucöes bem menos pacíficas. Elisabeth Frenzel lembra que o ressurgimento do conceíto de honra e de "boa fama" de tradicao aristotélica leva ao desenvolvimento de um cuidado código de honra para o hörnern nobre, do qual faz parte integrante o comportamento moral da mulher. Na literatura esta tendéncia plasma-se no reerudescer de obras narrativas e teatraís em que o marido, na tradigáo de Gianciotto da Rimini, vinga pessoalmente a honra ofendida, quer mediante a mořte imediata, encapotada ou pubiicamente assumida da mulher e do sedutor, quer mediante o duelo. Vejam-se, a este propósito, as numerosas versóes da história de Herodes e Mariana, que percorrem a literatura europeia da época, nas quais o rei infanticida se torna também símbolo do ciumento vingador (c£ Frenzel, 1970:304-307). Considerando agora os principals movimentos teatrais que surgem na Europa a partir do século XVI, e nos quais se destacam as figuras de Lope de Vega (1562--1635) emEspanha, Shakespeare (1564-1616) em Inglaterra e Moliěre (1622-73) em Franca, pode dizer-se que é com Vega que o motivo do adultério e da vinganga se torna especialmente produtivo. E interessante notár que nas pegas de Shakespeare sobre o adultério e ao contrario do que, como veremos, acontece no teatro espanhol, as mulheres sáo acusadas injustamente (ex. Shakespeare, The Tragedy of Othello, the Moot of Venice (ca. 1603), Cymbelíne (1608-1609) e The Winter's Tale (1611)), e que, sendo todas elas condenadas ä mořte, só em The Tragedy of Othello esta se concretiza. Inversamente, em Moliěre, o adultério quer real quer imaginário nlo acarre-tava um destino trágico, de acordo com o sub-género dramático em que se inseria, a comédia, e o pensamento da corte, a quern as pegas primeiramente se dirigiam. Como já notei, é Lope de Vega que maior atencáo irá dedicar a temática do adultério. Entre as mais de duas mil pegas de teatro que escreveu, e onde o "ponto de honra" levanta conflitos e equfvocos ä hombridade dos protagonistas, levando 40 A mulher e o adultério A temátiea do adultério feminine na literatura 41 duelistas e vingadores a baterem-se em palco, avulta o adultério feminino, surgindo o rei como autoridade maxima em questóes de honra, a apoiar o castigo do sedutor e da adúltera - (c£ Lope de Vega, El médko de su honra (1637), Los comendadores de Córdoba (1548), e.o.) -, mas também zelando para que náo se instale o hábiío generalizado de vinganca gratuita face a qualquer suspeita. Também Calderón e TTrso de Molina Mo tratar este motivo, constatando Frenzel no seu capítulo dedieado ä "honra conjugal ferida", náo sem uma čerta indignagäo, que no drama espanhol deste periodo domina a represália cruel, mas que se revela merecida, do marido enganado, pois nos dramas em que náo se comprova a infidelidade da mulher verifica-se um final feliz (cf. Frenzel, 1980: 170)3. Em Portugal, nesta época, o adultério surge geralmente em farsas e comédias, predominando, por isso, os finais felizes. Na tradigäo das farsas medievais, o teatro vicentino trata o terna especialmente no Auto da índia (1509) e na Farsa de Ms Pereira (1523), onde, de acordo com uma tendencia generalizada em Gil Vicente, se pretere a análise psicológica e a análise de conflitos a favor da satira social. As adúlteras representam, pois, tipos epocais e agem segundo as suas condicôes específicas: a protagonista do Auto da India é a mulher de um soldado que o engana enquanto este viaja para a índia e que, mal ele chega, náo pára de carpir a solidáo em que viveu. Nos séculos XVI e XVII e em consequéncia da Contra-Reforma e da accäo censóna da Inquisicäo bem como da perda dc independence nacionál, a literatura apresenta uma fisionomia predominantemente clerical. Há, todavia, a assinalar uma forte recepgáo da literatura espanhola, nomeadamente do teatro de Vega, Calderón e Molina, facilitada pela situa$äo política e peio bilinguismo do publico portuguěs (cf Óscar Lopes e A. J. Saraiva, 1996:216-218). A ligagäo do adultério com a erítica epocal e neste caso mesmo política surge' na comédia camoniana El-Rei Seleuco (1645), que, tal como Anfitrioes (1587), constitui uma peca centrada no ciúme do marido enganado. S obre a literatura de adultério desta época em Portugal, cite-se ainda Antonio Ferreira, o paladino do ressurgimento da tragédia clássica entre nós, o qual desenvolve, sem grande arito, na sua comédia Cioso (1622) o motivo boceaciano do marido ciumento duplamente enganado. No Iluminismo, o adultério, como ameaca á ordern familiar e social, é deci-didamente condenadcyÄspncepcäo utilitária do casamento propria deste período e também a fé optimista no primado da razáo levam a literatúra de uma forma geral, e o romance enquanto género literáno pnvilegiado na cpoca, em particular, a tender para o casamento, na sua qualidade de instituicáo basilar da sociedade. I: Faz-se a apologia da mulher inteligente e operance que age para tömar possível o seu amor^de que Minna von Barnhelm é exempío paradigmátíco na literatúra aleml :,:f- *~~ O romance de Geliert Das Leben der schwedischen Gräfin von G. (1747-48) é exemplo de uma solueäo ituminista para um caso de adultério, necessariamente invoiuntirio. Quando, numa situacao que íembra a história bíblica de David e Urias (cf. BS, 2 Sa, 11), o marido da condessa é mandado para a frente de batalha II pelo principe que lhe pretende a mulher, esta ve-se obrigada a fugir perante o assédio do soberano. Informada da morte do marido, ela casa com o amigo que a ajudara na fúga. Quando o marido regressa, ambos esíäo dispostos a prescindir da mulher que !hes é comum, mas o segundo marido/amante, argumentando de forma racional e altruista, convence o casal a retomar a sua antiga relagäo, quedando-se ft ele proprio a coabitar com eles, na qualidade de amigo da casa, onde virá a ser I .. aceite também a antiga amante burguesa do conde. Esta solugäo que, contrariamente \ ao que poderá sugerír o resumo, nada tern a ver com um desenlace cómico, ao gosto da farsa boccaciana (c£ Boccacio, 8.a novela, 8.° dia), é, pelo contrario, f? expressäo do eudemonismo iiuminista, da gestáo racional e contida dos sentimentos I e da orientagío do comportamento para o bem. Lembremos a este propósito o I drama garrettiano Frei Lutz de Sousa (1843), que ilustra o tratamento que o Romantismo faz deste mesmo rnotivo do regresso do marido guerreiro. i ^pŤemporalmente qoincidente com a cultura da razáo e com ela concordante taiiíbém no que respéita ä erítica ä degradacäo moral das cortes, situa-se uma I literatúra acentuadamente sentimental e moralistajque teve nos romances de Richardson Pamela (1740) e Clarissa (1749) e em La vie de Marianne (1731-42) de Marivaux alguns dos seus mais paradigmáticos modelos e que rapidamente floresce nos países do Centxo da Buropa4|Dedicados a um publico receptor burgues e í pequeno-burgues, cuj a cultura literária era predominantemente bíbiica e se ligava 1 a fbrmas individualistas e sentimentais de vivéncias religiosas - de acordo com tendéncias religiosas de que o Pietismo é exemplo na Alemanha -, florescem as 3 E interessante notár, a este propósito, que em Eft Briest o motivo da honra conjugal ferida e da vinganca do marido enganado surge predsamente numa balada de Heine com motivo espanhol, a balada de "Pedro, o Cm" (c£ EB, 142-143). 4 Sobre a atitude amoral propria das cortes inglesa e francesa bem como sobre a oposicáo que a este comportamento se foi desenvolvendo entre a burguesia puritána e os filósofos ingleses e ainda o eco desta nova tendencia na literatura inglesa e, por influéncia dela, na francesa e na alemá, vd. Kluckhohn, 1922: 64-119. 42 A mulher e o adultério A temática do adultério feminino na literatura 43 comčdias c os melodramas scnrimentais e lacrimcjantes. Neles, nao difsrcntemente das ideias patriarcais desenvolvidas nos semanários moralizantes, faz-se a apologia da virtude- e a sua finalidade é o casamento, baseado no respeito e na amizade mutual) "Amor často" é um Leitmotiv da literatura mglesa dos séculos XVIII e XJX, tendo esta ťenděncia os seus principals representantes em %ung, Lillo e, principalmente, Richardson (cf. Kluckhohn, 1922:75); o adultério, quando surge, é rňasculino e é superado pela atitude de magninima bondade e pela virtude da mulher iegitima (ex. Cibber, The Careless Husband (1740), e Vanbrugh, Relapse or Virtue in Danger (1696)). Enquanto em Inglaterra o sentimentalismo se prende, pois, a uma ideia moralizante, em Franga crescem as manifestagoes de forte sensualidade. A mulher torna-se guia nesta apologia do sentimente e da paixao que tern por base vivéncias religiosas mfsticas cujas origens remetem, segundo Kluckhohn, para as literaturas espanhola e portuguesa, nomeadamente para as Lettres Portugaises, pubiicadas em 1669 (c£ Kluckhohn, 1922: 84). O prémio.do amor sem limites da mulher é, por vezeš, o regresso do marido ou do amante traidor. Todavia, o amor tem, geralmente, consequéncias trágicas ou conduz a uma atitude de resignacao depois de os amantes se térem entregado a uma paixao que surge em oposigao ao seu sentir ético. Neste ambiente e, também, no romance burgués que se desenvolve a partir de meados do século XVIII como género privilegiado, se integra a Nouvelle Heloise (1764) de Rousseau, na qual se faz a apologia incondicional do sentimente amoroso, que se revela inconciliável com o casamento. A crítica tem chamado a atengáo para a ambiguidade que se detecta neste romance rousseauiano face á forma como valorizar a dimensao sensual, já que a renúncia e a espiritualizacao que caracterizam a segunda parte do romance se op5em ao híno á sensualidade que a primeira parte dedica a. consumacio do amor entre a protagonista e o amante. Esta ambivalencia, a que mo será alheia a moda moralizante de origem inglesa, prevalecerá na literatura francesa até ao final do século XVIII, tornando-se, todavia, cada vez mais notória a tendencia para enfatizar a dimensao erotica que surge ligada ao sentimente. Esta tendéncia está na origem da evolucao posterior dos romances e do teatro francés em que o crescente sensualismo se alia a temas que contrariam a moral insti-tuída e entre os quais o adultério é considerado recorrente (cf. Gay, 1987: 164)5. 5 Segundo Chantal Gleyses escreve em Lafimme coupabk. Petite histoire de I'epouse adulters au XIX1 stick, o adultério seria assunto de eleigáo dos romancistas franceses do século passado, ocupando lugar de destaque náo só na obra de autores como Flaubert, Paul Bourget, Alexandre Dumas Filho e Guy de Maupassant, como também na de uma série de autores menores mas de grande divulgaeao na época (cf. Gleyses, 1994). Na Alemanha, no movimento literário do Sturm und Drang, com a apologia da vivéncia de sentimentos e paixôes, a temática do amor adúltero e também o da vinganga do marido enganado recrudesce de interesse, articulando-se de forma trágica com o ideal burgués da mulher angelical. Em Das leidende Weib (1757), de Klinger, o adultério é vivido como grave culpa náo só pela seduzida como pelo sedutor que experimenta o conflito trágico de ter forgado ä queda a mulher-anjo que ele simultaneamente amava e admirava, e cuja honra se firmava precisamente nestes valores burgueses de moral e virtude que a sua família opunha ä imoralidade da corte. A relagio triangular termína com a morte do marido, da mulher, do sedutor e de outro pretendente preterido, o qual está na origem deste desfecho fatal. No final, a família da adúltera encontra a paz num mundo idflico, na tradigäo de Rousseau. (Um dos mais interessantes fenómenos literários da segunda metade do século XTX é. sem dúvida, o alastrar por teda a Europa de um surto de romances de adultério, tornando-se alguns deles verdadeiras obras-primas da literatúra mundial. Sem contestar o carácter matricial que é generalizadamente atribuído ao romance" de Flaubert, parece, todavia, demasiado simplista buscar no enorme éxito obtido por Madame Bovary a razao desta moda literária. A sua explicagáo encontrar-se-á, principalmente, no facto de o romance de adultério no século XIX se tornar um tipo privilegiado de romance de época e de crítica social. Nesta conformidade, Horst S. e Ingrid Daemmrich afirmam na sua análise, s.v. Ehebruch [adultério], que as mais conhecidas história^ de adultério sáo aquelas em que o social se espelha no individual. Osrexemplos^ue aduzem säo os romances do século XTX. de Die Wahlverwandtschqjien~(iBQ9)\"de Goethe a Die Dame:mit dem Hund (1899) de Tchekhov, passando por Madame Bovary (1857) de Flaubert, Anna Karenina [1875-77) de Tolstoi e Effi Briest (1894/5) de Fontane. Nesta listagem caberiam certamente ainda, entre outros, O Primo Basilio (1878) de Ega de Queirós e La Regenta (1884-85) de «darin». A tendencia para enfatizar a dimensao social nos romances'de adultério está já presente, como Müller-Seidel o refere, em obras alemäs do imeio do século: claramente enfeudadas ao Romantismo-veja-seDie Wahlverwandtschaften t Armut, Reichtum, Schuld und Busse der Gräfin Dolores (1810) (cf. Müller-Seidel, 1975: 342--344). Como nota Peter Gay, ja Madame de Staei c William Haziitt haviam chamado a atengäo para a relagáo de especularidade entre romance e sociedade, questäo a que as teorias de Taine daräo novo alento até se tornar um lugar comum (cf. Gay 1987: 144-145). Tal tendencia tornar-se-á muito mais explicita a partir de •neados do século nos romances do Realismo e do Naturalismo. 44 A mulher e o adultério A temática do adultério femmino na literatura 45 De facto, tanto Arnim como Goethe enfatizam as questöes sociais do tempo como elemento motivante do adultério, mas, ao contrario do que ocorrerá no final do século, onde a ruptura dos lagos matrimoniais reflecte uma fragilizagäo das estruturas sociais, transparece nos romances do inicio do século uma alta concepgäo do casamento enquanto comunháo de corpo e espírito, como é proprio do pensamento romäntico. No final do romance de Arnim, Dolores, fortemente abalada pela tentativa de suicídio do marido após a descoberta do adultério, e convertida ä religiío, assume uma série de compromissos familiäres e sociais e consegue realizar a síntese entre amor espiritual e amor carnal que o Romantísmo considera conditio sine qua non de qualquer casamento digno de tal nome. A heroina arnimiana torna-se, depois de fortes problemas morais, numa verdadeira Tugendheldin "heroina de virtudes". Pelo contrario, em Die Wahlverwandtschaften essa síntese náo se realiza. Partilhando com o romance de Arnim o entrosamento entre o social e o privado, o casamento encontra-se ä mercc do destino e das forgas da natureza, acerca das quais o estudo das ciencias tinha feito ä época importantes revelacöes (c£ Müller-Seidel, 1975: 342-344). Nestes dois romances alemíes do principio do século XK o casamento enquanto conflito epocal está no centro da acgáo, podendo, por isso, dizer-se que säo mais romances matrimoniais [Eheromane] do que romances de adultério. Faha neles também o interesse especial pela figura feminina nas suas coordenadas tanto sociais como psicológicas, morais e mesmo fisiológicas, que é proprio dos romances de adultério europeus do Realismo. O privilégio concedido ä perspectiva da heroina, introduzido por Flaubert em Madame Bovaty, torna-se marca distintiva do romance realista de adultério, como muitos títulos centrados na figura da adúltera o comprovam {Madame Bcvary,Anna Karenina, LAdultera, La Regenta, Cecile, Effi Briest, Die Dame mit dem Hund)6. A figura da mulher caída do romance realista do 6 Ao contrario do que ocorre em muitos outros romances de adultério e de mulher, o título do romance de Eca de Queirós náo referenck o nome da heroina mas o do sedutor. Jean Girodon pensa poder intuir děste facto que o intento de Ega seria "pintar mais o conquistador que o conquis-tado", mas que o centro de gravidade se terá deslocado (cf Girodon, 1949:219). Parece-me esta condusáo apressada e alheada das verdadeiras implicacöes semänticas da expressäo "O Primo Basílio". De facto, embora nela se refira a figura do amante, o centro de orientagáo da perspectiva é Luisa: é dela que Basílio é "o primo". Assim sendo, e embora de forma indirecta e irónica, é Luisa a vísada por esta formula. Acresce ainda que a mencáo de uma relacaa familiar sem quaisquer outras referencias, remetendo para um elemento temático que o leitor náo possui. envia para duas máximas populäres que ilustram bem o espago soriocultural portugués, de que o romance se propöe ser caricatura. Trata-se da mentalidade canhestra e fechada de uma terra onde "Todos säo primos e primas" e na qual, como sugere Juliáo, "Basílio é primo, logo... sabes o século XIX, furtando-se aos cánones dicotómicos da mulher anjo ou mulher demónio do Romantísmo, adquire tragos paradigmáticos, mas, enquanto no Romantísmo o conflito se desenrolava predommantemente no piano ético, o julgamento da prevaricagáo é agora dimensionado em termos sociais. No romance realista de adultério da segunda metade do século X3X o ideal romäntico da necessidade de jigar amor e casamento é um dado adquirido e deixa déčonsdtuir tese_a demonstrar. Na mira dos escritores está, antes, a denúncia dos rríotivos que levam ä náo concretizagäo dessa premissa necessária a félicidade -.coÉjúgal, a descrigäo da. forma pela qual os membros do casal se váb progressi-,íWmente.alheandp^m.coálO.Í!Jíaatedpsmotř*os-que conduzem ao adultério. Ápreienta-se-o.mátrimónio b.urgués earistocrático natrádigáo dos casamentos--vendas e revela-se o papel limitado que nele e na šociedade em geral cabe ä mulher, em parte como consequéncia da suá faítade instrugäo e deficiente prepara-Säö;-Ketrata-se_ainda a existéncja. de .urna dupla mora! sexual na sociedade hurguesa . de matriz vitorianafque mäo'permite ao hörnern e tüdo prořbe ä mulher. Ao contrario dos romances de amor do séculp XV! li e XIX que terminam no casamento,n5T^mäncF3e adultério comega in medias res - com o casamento a emtraTnu^jLoya fäse, contando-se. depois rapidameriťe a história previa do casal .(c£~ p. ex., O Primo Basüio),- ou com um casamento sem grande história previa (cf., p. ex., Madame Bovary ou Eß Briest). Trata-se. em todos eles, de um casamento de conveniéncia, o qual nos surge náo só sob a tradicional forma de casamento sócialmente favorável, arranjado pelos pais ou seus representantes (cf., p. ex., £p Briest), como sob a forma indirecta de concretizagäo de um anseio despertado pela sociabiíizagáo feminina (cf, p. ex., Madame Bovary e O Primo Basílio)3. Entre as razoes que conduzem ao alheamento entre o casal e levam a mulher ao adultério eňcoritra-sé tóda uma reflexäo sobre a situagáo feminina na época e que vai da denúncia das consequéncias da sua exclusäo da vida activa e do seu confmamento ao meio familiar a refsréncias a uma vaga ánsia dc aventura ou de feíícidade que se alarga a uma dimensáo metafísica. As diferengas entre o casal, de gostos, de tendéncias e dé ideias sobre a realizagáo pessoal, revelam-se das formas mais comezinhas äs silogismo, Sebastiáo (...)" (OPB, 136). Desta feita, paralelamente com a informacáo de uma proximidade familiar que se indicia poder conduzir a envolvimentos eróticos, o título aponta para a mentalidade provinciana que irá favorecer a intriga. Poderá ainda sugerir uma intencao de crítica ao sedutor que aqui é posto em destaque. 7 Sobre as alteracöes operadas na figura da heroina dos romances de adultério oitocentistas, vd. Müller-Seidel, 1975:339-346, e ainda K. Richter, 1979: 44-51. 8 Cite-se, a este propósito, o estudo de René Girard, Deceit, Desire and the Noveí, o qual pöe em evidéncia a importäncia dos elementos mediatizadores de gostos e desejos (c£ Girard, 1984). 46 A mulher e o adultério A temátka do adultério feminino na literatura 47 raais elaboradas, como a mentira e o siléncío que se instalam entre o casal na sua_ qualidade de prenúncio da crise de linguagern e de comunícagáo que o final do secüIö'vjyeFi generalízadamentepTmulher lanca-se nos bragos de um outxo Hörnern por motivos rnú^plgs.juT^o^tédlo 1 änsiaje3yenturas_e_ao prazer em contranar a moral instituída, mas dos quais está quase sempře ausente oamor énquanto förga para alémdo Bern e do Mal. Ö amanťS äcä'ba gelralmente por se lhe tornarjhdjfere^^ nö seu destino, que é propria' do romance realista de adultério do século XK, íaz diminuir o interesse peios outros dois vertices do tmngulo amoroso, que surgem tendencialmente funcionalízados. O amante ganha frequentemente tragos de sedutor demoníaco e é comnmo seu''3esinter^FplliTmiiil}^, que assinTševě ' conrinada á situagáo deseduzida e abandonada. Este abandono 11 enáo.Tónsiderado como parte int^ämeT^^n^^'devida por uma culpa que as protagonistas "tteštěs romances, embora de maneiras muito HSpareŠTnSo"Hěižím^is ašsumir. Äs qüestoes a vöK'dä sua sitüagäö e da sua culpía que" as "heroíňas aďúíterasnáo conseguem eximir-set sáo outro dos focos de interesse generalizado nos romances de adultério do século XK. Com elas se articula a questäo da punicäo que é, como notám Horst S. e Ingrid Daemmrich, muito mais subtil do que até entäo. As gnndes vingangas próprias da literatura dos séculos anteriores, decorrentes do sentimente de óďio dcsmedido por parte do mando enganaďo e cenmidas no šeu corripořtamento, deixam de ser conciliáveis com os códigos dc verosírmlhanca social epsicológica. Pelo contrario, é frequente termos no centrodajoarrägfonäo a vihganga do maricfčnrias o seu^^ sobre a "muTher. O motivo da honra fenda que em algumas classes socíais conduz ao due&tende a tornar-se pouco convincente enquanto motivo trágico e é, inversamenteVdenurí-ciado cómo parte integrante dařorca social (cf Daemmrich, 1995:107 í.Ápjiiiicac^ náo demLtodavia,_de_ ser; eficaz: o destino da adúltera é geralmenteí mortéj Privada do seu papcl na sociedade, situagio a que se alia a perda delďentidade, a mulher mata-se ou deixa-se morrer. O seu destino funesto "tem Tausas pnmordialmente sociais, como se torna bem evidente, por exemplo, no suícíďío de Ema Bovary. De facto, talvez a maior tragédia da mulher adúltera do século XK seja o facto de elä iiáo morrer já nem de amor nem por causa do amor/ódio dos maridos vingadores, tal como o que a fez trair o marido näo foi já, como vimos, um amor para alem do Bern e do Mal, mas uma situagáo na quaí confluíram 9 Dos exempios atrás apontados como próprios do romance realista de adultério apenas em L!Adúltera de Fontane a heroina consegue uma reintegracáo feliz, embora custosa, na sociedade. diferentes coordenadas psicolögicas e sociais, que surgem em ligagäo intima com uma sociedade abalada nas suas estruturas. .....Öuträ questäo" comum aos 'romances de adulterio do seculo XK prende-se com a sua recepgäo pelo publico leitor. E sabido que ja os romances sentimentais, cheios de tiradas moralizantes eram entendidos como um convite ao sentimenta-lismo e ä sensualidade, sendo os efeitos deleterios destas leituras tematizados nos romances e nas revistas da epoca. Lembrem-se, a este proposito, dois exempios especialmente importantes no contexto deste trabalho - Erna Bovary, induzida, como se sabe, a cometer adulterio pelas leituras de romances sentimentais, e, a nivel ensaistico, as criticas de Eca de Queiros e Ramalho ä influencia nefasta das leituras sentimentais cmAsFarpas {vd. infra, p. 109). Todavia, as advertencias quanto aos perigos constituidos pela leitura de romances principalmente para as mulheres e as raparigas agudizam~se mais ainda no caso de romances que, como Madame Bovary ou O Primo Basüio, se pretendiam de critica ao sentimentalismöfTio que diz respeito äs intrigas do adulterio, cresce com a implementagäo dos movimentos literarios do Realismo e do Naturalis-mö o nümero de autores que anaüsam e descrevem de forma tendencialmente objectiva nao so as condicionantes principalmente sociopsicolögicas do adulterio feminino como as suas cenas fntimas. Acresce ainda que estes autores, comoveremos em 0 Primo Basüio e em Eß Briest, se furtam a um discurso moralizante explicito, omissäo esta que grande parte do publico ledor, habituado ä voz intervenüva de um narrador-mentor, recebe com desconfianga e repüdio. A acreditar nas vozes que se erguiam um pouco por toda a Europa, era principalmente em Franga que a literatura mais atentava contra o pensamento moral da burguesia. Porem, mesmo ai sao bem conhecidos os processos judiciais movidos contra autores e frequentemente tambem contra os editores10. No que toca a 0 Primo Basüio, sabe-se que o romance provocou o repüdio de muitos dos seus contemporäneos, repüdio esse que se manifestou quer pelo silencio ostensivo de grande parte da critica 10 É sabido que Tolstoi considerava Paris como Sodoma e Gomorra e também que o Kaiser Wilhelm II afirmou ao chanceler Caprivi ser Paris o grande bordel do mundo. Quanto a literatura francesa, até mesmo Alexandre Dumas Filho, ä época um dos seus mais paradigmáticos autores, escreve que todo o mundo estaria de acordo em considerar a literatura francesa como a mais imoral do mundo (cf. Gay, 1987: 83). De assinalar também, neste contexto, o processo de que foi alvo Flaubert em 1857, acusado de atentar contra a moral publica e contra os bons costumes com a publicagäo de Madame Bovary. Também em Portugal, embora tradicionalmente dependente da literatura que vinha de Franca, se léem nas revistas da época referéncias i imoralidade dos romances franceses (vd., p. ex.,Revista Universal Lisbonense, 1842-43: 458-459). 48 A mulher c o adultério A problemática feminina na segunda metade do século XK 49 especializada, quer pelo ataque frontal de que e exemplo o texto de Machado de Assis (cf. supra, p. 26), quer peias delicadas admoestagöes do proprio pai do escritor11. Mas nlo e apenas do espago linguistico portugues que provem uma atitude cautelosa face ao romance queirosiano. As primeiras tradugöes alemä e norte-americana de 0 Primo Basüio, conternporäneas do romance, revelam uma tendencia semelhante para elidir cenas que pelo seu cariz erotico pudessem chocar o leitor, o que prova que apruderie vitoriana era comum ä Europa e aos E.U.A.12. O comentärio de Ramalho Ortigao que sugere em As Farpas näo ser o romance queirosiano proprio para ser lido por mulheres (AF, Fev.-Maio, 1878) estä muito proximo do que Fontane escreve sobre si proprio em carta de 20.1.1888 a Joseph Kürschner: "Ich bin kein Schriftsteller für den Familientisch mit eben eingesegneten Töchtern" (Fontane, 1986:173) ["Näo sou escritor para a mesa de famflia com filhas acabadas de fazer a Comunhäo (•••)"]. Este comentärio näo se refere a Eß Briest, mas aos romances Irrungen Wirrungen (1887) e Stine (1889-1890), que provocaram viva polemica aquando da sua publi-cagäo (c£ Plett, 1995:256 e 262-263). Ele näo deixa, por6m, de ser demonstrative de como mesmo Fontane, apesar das suas tendencias harmonizantes e de discrigäo, nao deixou de chocar alguns leitores do seu tempo. Desta breve exposigäo sobre o tratamento literärio do adulterio tornou-se claro que estc, näo sendo de forma alguma temätica exclusiva do seculo XIX, desenvolveu no periodo do Realismo oitocentista especiais potencialidades de crftica social e de anälise da figura feminina. Se, com Roland Barthes e Wolfgang 11 A carta do Dr. Teixeira de Queiroz vem transcrita nas primeiras paginas do volume que integra o romance O Primo Basüio na coleccao Livros do Brasil (cf E.Q., 19 69:7-9). 12 Peter Gay refere, como ilustracao da obsessäo pelo decoro que detectava em grande parte dos leitores de paises anglo-saxonicos, que Mary J. Serrano, tradutora de O Primo Basüio, sendu necessidade de exeluir as cenas do romance que considerava sexualmeme mais ousadas. Ignorando a recepgäo reticente e as criticas as refertacias erdncas que o romance suscitou em Portugal, que Peter Gay näo menciona tambem, Mary Serrano justifica as elisöes a que procedeu explicando que o publico culto portugu£s, habituado aos romances Franceses, estaria preparado para cenas que o puritano leitor americano näo suportaria (cf. Gay, 1987: 199). Foi, alias, tambem esta tendSncia para cortar passos que pelo seu cariz erötico pudessem chocar o leitor uma das ideias que nortearam o primeiro tradutor alemäo de O Primo Basüio, Conrad Alberti, como tive ocasiäo de o escrever ja na anälise do romance Eine wie Tausend, que constitui a primeira versäo em lingua alemä deste romance queirosiano (cf T. Oiiveira, 1990: 183-190). t Iser, encararmos, como nos propusemos, o texto literário simultaneamente como sinal da história e reaccáo a ela (c£ Iser, 1976: 123), fácil nos šerá considerar o movimento dos romances de adultério que se generaliza na Europa oitocentista como testemunho de uma variagäo nos "modelos de realidade" daquele tempo. Alias, o romance de adultério näo é de modo algum a única forma pela qual o casamento e o adultério se tornám objecto de discussáo no século XTX. Segundo uma tendéncia iniciada já no século anterior, filósofos e pensadores, entidades jurídicas, eclesiásticas ou sociais reflectem sobre eles, íntegrando tal reflexao numa mais vasta problematizagäo da situacäo da muíher numa época pródiga em alteragöes radicals, em ämbitos táo alargados como o sociopolítico e o cultural, o filosófico, o jurídico e o religioso. E, de facto, säo todas essas normas que surgem seleccionadas no texto, visando, no dizer de Iser, revelar a fragilidade do sistema e colmatar défices que este procura esconder ou que näo logrou aínda resolver (cf. Iser, 1976:123). Por isso vai para elas o meu primeiro olhar. 2. A problemática feminina na segunda metade do século XIX e a temática do adultério 2.1. Situagäo socioeconómica e educacional da mulher 2.1.1. Alteragoes no piano social e económico e suas consequéncias para o viver feminino Na segunda metade do século XJX, com a Europa Central dominada pela instauragäo de governos de carácter conservador aliada ä expansäo e ao consolidar da industrializacäo, Portugal e a Alemanha vivem, no que toca ä situacäo política e económica, tendencias, marcadamente antagónicas. Em Portugal verificava-se um grande atraso na evolugao tecnológica e industrial, que näo acompanhava as medidas políticas liberalizadoras13. Na Alemanha, 13 Para indicacoes mais precisas sobre Portugal durante o regime fontista, nomeadamente sobre a situacáo económica e industrial portuguesa comparativamente aos níveis de desenvolvimento europeus, vd. Rui Ramos, 1989, II: 125-146, e Amado Mendes, 1993, V: 419. A este propósito refira-se também o comentário de Pedro Lains, que, a propósito do crescimento populacional relativamente elevado de Portugal oitocentista e comparando-o com o de outros paises europeus, nota nao signifícar a relativa semelhanca da taxa de expansao demográfica urna situagáo de desenvolvimento económico semelhante (cf. Lains, 1989, II: 148). 50 A mulher e o adultério if inversamente, registava-se uma grande evolugáo industrial e económica e o decorrente poderio financeiro da burguesia, acompanhado de urna política avessa äs grandes transformagôes que a partír de Franga alastravam por toda a Europa. Ora, a redefmiglo do tecido social e o que ela impíica de alteragöes na vida da f mulher é, antes do mais, consequéncia das mudangas socioeconómicas que a j Revolugäo Industrial desencadeou. Por isso se pode intuir, desde logo, que as muta-gôes seräo muito mais radicals e de rápido efeito na Alemanha do que em Portugal. jj A comparagáo dos indices populacionais e socioeconómicos Portugueses com os alemáes é bem eloquente da dimensäo e do grau de desenvolvimento de '> cada um dos paises. Ö crescimento demografie© portugués processa-se a um ritmo evidente, S embora mais lento que o alemäo: o primeiro recenseamento populacional organi- 1 zado pelo estado data de 1864 e revela a existencia de pouco mais de 3 800 000 Ä habitantes em Portugal continental, numero esse que irá crescer em 1900 para cerca de cinco milhóes1'1. Na Alemanha corresponde ao boom económico e industrial I uma verdadeira "explosáo populacional" - o numero de habitantes passa de 35 j milhöes em 1850 para 56 milhóes na viragem do século-, a fazer sentir-se princi- i palmente nas cidades, um pouco por toda a Alemanha13. A migragáo para as cidades é manifestagäo paralela nos dois países, embora o crescimento urbano em Portugal . s j se confine, essencialmente, a Lisboa e ao Porto, que nos anos setenta congregam respectivamente 187 000 e 87 000 dos 490 000 habitantes urbanos do pais16. Quanto ä distribuigao social e económica da populagio, detecta-se nos dois vj países a existencia de estruturas em mutaglo. Sobre a distribuígäo socia! dos Portugueses, Irene Vaquinhas e Rui Cascáo concluem que os burgueses - ou sej a, a classe média - rondariam em Portugal na segunda metade do século XK cerca de j 14 Os números exactos indicados por Rui Cascáo sáo os seguintes: 1864 - 3 829 618; 1878 - 4160 315; 1890 - 4 660 095. Sobre o crescimento demografico em Portugal no século XK e sobre os seus ritmos e factores condicionantes, em articulagäo com os padrôes europeus, vd. Cascáo, 1993, V: 425^-39. 15 Lembre-se, a este pxopósito, que o numero de cidades alemäs com más de 30.000 habitantes é em 1900 sete vezes maior do que em 1800. Berlim terá decuplicado de habitantes entre 1848 e 1914, altura em que atinge os quatro milhóes. F. W. Henning aponta os seguintes dados sobre a populacáo alemä: 1780 - 21 milhóes; 1800 - 23 milhóes; 1850 - 35 milhóes; 1875 - 43 milhóes; 1900 - 56 milhóes (cf. Henning, 1978; 17 s.). 16 A percentages dapopukcáo Urbana cresce emPonugal de 11,4% tľa 1864 para 12,2% em 1878 e 16% em 1900. É principalmente Lisboa, cujo numero de habitantes duplica até 1890, que regista a mais notória taxa de crescimento. Sobre estes indices, c£ Joel Serräo, 1980; 27, e 1988:167-174, esp. 168. A problemática feminina na segunda metade do século XK 51 12% da populagäo (cf Vaquinhas e Cascio, in: Mattoso, 1993, V: 443-444). Segundo Golo Mann, no final do século XTX seria um grupo pequeno o dos "muito ricos" na Alemanha; um quarto da populagäo (ca. de 14 milhöes) corresponderia ä classe média, enquanto que perfazeriam 35 milhöes (mais de 2/3 da populagäo) aqueles que, trabalhando quer na agricultura, quer na indústria, quer ainda no sector terciário, näo ultrapassariam pelos seus proventos o nível proletário (cf. Golo Mann, 1982:406-408)17. E, todavia, é possível detectar em Portugal e na Alemanha fortes paralelismos no que toca ä reorganizagäo social, mormente ao nível da aristocracia e da burguesia, classes a que darei maior importäncia uma vez que é nelas que radicam os romances a analisar. Será também considerado o grupo social dos criados que, como assinalarei, detém nos dois romances certa releväncia, principalmente em O Primo Basüio com a figura de Juliana. Entre burguesia e aristocracia regista-se, nos dois países, um processo de capilaridade desconhecido até entäo, fruto da capitalizagáo económica por parte da classe burguesa, acompanhada da preservagäo do fascinio que sobre eh exercem os modelos aristocráticos. Tal fascinio, que parece justificado na Alemanha pelo facto de o poder real continuar de facto nas mäos de uma aristocracia quase feudal, denota em Portugal, como Joel Serrlo bem assinala, uma "efectiva fragilidade da burguesia nacionál" e "impoténcia para conduzir sozinha os negócios públicos" (Serräo, 1979: 159-161). No romance queirosiano, em que numerosas figuras ocupam uma franja da sociedade entre a baixa nobreza arruinada e a burguesia, como é o caso de Leopoldina e de Dona Felicidade e, eventualmente também, de Basüio, é bem patente o fascinio que sobre muitas personagens exercem os modelos de vida e as figuras aristocráticas. Atente-se em Luisa, seduzida pelo comportamento "fidalgo" de Basilio (c£ OPB, 63, 69-71 e 96-97), em Dona Felicidade, que repetidas vezes menciona as suas relacöes aristocráticas (c£ OPB, 91, 201), e no conselheiro Acácío, rendido ao encanto do casal regio (cf OPB, 41 e 372). Em Eß Briest säo a protagonista e a mäe a revelar coma maior franqueza e desde o primeiro capítulo o quanto a representagäo e a ascensäo social se lhes afiguram importantes. ; ■' Da aná.isc adiantada por F.W Henning decorre que o ultimo quarrel do séculoXIX corresponde na Alemanha i pr:me:ra parte do periodo que Fourastié dassiíica de transicáo cn:re a eivilizaeáo primaria (agraria) e a terriária (de prestacáo de servieps), com os indices da populacáo activa no sector agrícola a passar dos 6! por cento em 1800 para os 32 por cento no final do século, valor que o sector secundário atinge na mesma época. em subsíituicáo Jos cerca dc 20 por cento que ocupava no final do séculoXVin (cf Henning, 1978:265-267). 75 102 A mulher e o adultério A problemática feminina na segunda metade do século XK 103 alheios a política conservadora concertada com a influéncia da tradiglo idealista e com as ideologias burguesas patriarcais102. Dentro da linha burguesa do movimento feminista distínguem-se ainda posturas antagónicas que relevam de divergentes opinioes sobre o papel da mulher: urna mais radical, cuja mentora foi Hedwig Dohm (1833-1919) e outra mais moderada, liderada por Helene Lange (1848-1930). A primeira procurou ir ao en-contro das tendéncias cientificistas da época, copiando-lhe os métodos e contra-riando-lhe as opinioes: insurgindo-se contra o pensar dos filósofos e médicos da mulher, faz basear em estudos sobre a fisiologia da mente feminina as exigencias da absoluta igualdade profesionál e política entre os sexos103. Inversamente, para o grupo moderado a natureza feminina tem especificidades biológicas condicionantes: Helene Lange näo pretende, por isso, alterar o papel de anjo tutelar da mulher esposa e máe e apenas prevé o exercício de urna actividade profissional pela mulher solteira ou casada sem filhos. Comum äs duas facgôes do movimento burgués era a exigěncia de medidas que fortalecessem a família, mormente naquela época em que esta se via limitada a urna estrutura unicelular. Simultaneamente lutavam pela possibilidade de a mulher exercer urna actividade profissional e de auferir para tanto de urna instrugäo específica, como atrás referi. Regista-se, assim, na Aiemanha uma grande diversificagäo de modelos femininos, constituindo propostas claramente antagónicas. As duas vertentes de tratamento da mulher considerada fisiologicamente fraca - apologia versus desclassí-ficagáo -, que em Portugal näo chegam a extremar-se, evoluem na Aiemanha para posigôes claramente opostas, nomeadamente na valorizacäo da mulher que encarna 102 Nos anos 40 do seculo XIX e ate ä derrota da revolucäo liberal, Louise Otto-Peters (1819-95), seguida por Louise Aston (1814-71), Fanny Lewald (1811-89) e Louise Mühlbach (1814-73) e. o., däo voz äs primeiras exigencias feministas na Aiemanha, pedindo igualdade de direitos para as mulheres. Em 1865 tern lugar a primeira conferencia feminina em Leipzig, na qua! e criado o Allgemeiner Deutscher Frauenverein. Com a subida ao poder das forjas conservadoras e retirado ä mulher o direito i associacäo e ä expressäo atraves da imprensa. O movimenta feminista impöe--se como elemento decisivo da vida social alemä entre os anos de 1865 e 1910, alcangando o seu apogeu naviragem do seculo (1890-1908). Como "especificidade alemä" do movimento feminino deve apontar-se a sua divisäo numa linha de orientagäo proletäria e outra burguesa, consequencia näo so do empenhamento por parte das burguesas em manter afastados os ideais socialistas que näo deixariam de activar a repressäo bismarckiana, mas tambem da arreigada consciencia de classe que elas pröprias possuiam. Sobre este assunto, vd. Frederiksen, 1981: 12, e, tambem, Brinker-Gabler, 1983: 53-85, especialmente 53. 103 Veja-se a Serie de poiemicos artigos de Hedwig Dohm coligidos em Der Frauen Natur und Recht (1876). S as virtudes burguesas e na critica schopenhaueriana a este padrao. Surgem também, por influéncia socialista, principalmente de Bebel, impulsos para a igualizaclo dos dois sexos. Esta mesma luta foi, alias, empreendida com um éxito crescente pelos movimentos de emancipagáo feminina, cuja acgáo sociopolitica em prol da mulher se conta entre as mais importantes da segunda metade do século XK na Aiemanha. 2.3.2.2. A imagem feminina de Ega de Queirós nos folhetins da Gazeta de Portugal (1866 e 1867), nas crónicas do Distrito de Évora (1867) e tm As Farpasm. Ao contrário do que acontece com Antero, a questáo feminina será um motivo central na obra de Ega de Queirós. Também diferentemente de Fontáne, Ega náo se limita a abordar a questáo feminina na sua obra romanesca. É em AsFarpas, onde expóe as ideias que viriam a nortear a sua produgáo entre O Crime do PadreAmaro e Os Maias, que melhor se plasma a imagem da mulher que Ega detém nesta fase, bem como onde melhor se detecíaráo as influéncias a que foi sensível105. Quase náo há um numero de As Farpas em que a problemática feminina náo seja mencionada ou mesmo explanada em largas págjnas de comentários e críticas, ocupando lugar nuclear nas publicagÔes de Margo e de Setembro-Outubro de 1872, As Farpas importam-me, aiiás, náo só como documento do pensamento de Ega, mas também, a partir de 1873 na qualidade de fonte de informagáo do romancista. Recorde-se que depois do final de 1872, data em que cessa a colaboragáo do autor de O Primo Basílio na revista, ele continua a recebé-Ia no estrangeíro, constituindo, assim, um elo de ligagáo de Ega aos acontecimentos nacionais através do olhar atento de Ramalho506. 104 Para esta analise, dei especial atencao aos textos de As Farpas que constam tambem de L'n:a Catnyanka Aiegre (1903) e cue constituent a producao eciana. Os rahetins da rssponsr.bili-dade de Ramalho Ortigao serao apenas mencionados quando o seu conteudo permite ilustrar com maior precisao o pensamento de Eca de Quciros. -05 Documents da perspectiva de Eca sobre a questao da niuiher nesta fasc sio tambem as cartas que escrevcu a Teofilo Braga e a Rodrigues de Freitas, rcspectivamente de 12.3.78 e de 30.3.78, em que o escritor comcnta as intencoes eticas e estedcas de O Prime Bastlio (cf. E. Q., 1983: 133-13c 14u-142). A este propositc vejam-sc os comer.tirios entices de Mario Sacramento, 1945: 182 s. 106 As cartas ce Eca a Ramalho, escrios em Havana .Janeiro de 1873) e em Newcastle (Fcvcrciro de 1875), documentam essa ieitura interessada id E.Q., 1983:70-72, c 90-94). L 100 A mulher e o adultério A problematics, ferrúnina aa segunda metade do século XfX 101 "Du gehst zu Frauen? Vergiß die Peitsche nicht!" (Nietzsche, 1980, IV: 86) ["Vais ter com as mulheres? Näo te esquegas do chicote"]99. Todavia, nesta obra lembra-se que o casamento pode representar uma forga destruidora para a mulher e aconselha-se a que a mulher fuja a uma acomodagäo pela mentira, mesmo que esta fuga signifique a queda em adultério: "Und besser noch Ehe brechen als Ehe biegen (...) (Nietzsche, 1980, IV: 264) [E ainda é melhor quebrar os lacos matrimoniais do que torcé-los (...)]. Resumindo, notarei que tanto os pensadores positivistas como os determi-nistas, bem como Nietzsche, que integrando já o «post-positivismo» inaugurara uma nova época de reflexäo filosófica e sociológica, tém ein comum um discurso em que a mulher surge desciassificada em relagäo ao hörnern e numa posigáo de inferioridade e subordinagäo perante ele. Ideias realmente novas sobre a mulher seräo introduzidas na Alemanha a partir de meados do século pelas tendéncias de inspiraglo socialista, muito particularmente por August Bebel. É principalmente no seu iivro Die Rau und der Sozialismus que Bebel expöe as suas ideias inovadoras. Como antes dele Marx e Engels, compara a situacäo de submissäo da mulher em relagäo ao hörnern äquela de que o proletariado é vftima, mas, diferentemente dos seus companheiros de ideológia, que integram a questao feminina de uma forma generalizada na problém ática do proletariado, incita as mulheres a näo confiarem aos homens os interesses que säo só delas (cf Bebel, 1895:137-140), Como prova do éxito do seu postulado bašta lembrar que esta obra, publicada a primeira vez em 1883, teve cinquenta edigôes até 1910 e foi o livro socialista mais lido na época100. Nele se sustenta que a inferioridade intelectual da mulher, que é considerada uma realidade, se deve näo äs caractcrísticas fisiológicas nem intelectuais femininas, mas ä discriminagäo de que a mulher é vítima face ao hörnern e também ä sua degradagäo a mero objecto, tendo em vista a manutengäo dos podereš vigentes. Com uma lucidez clara, Bebel analisa a hipertrofia emocional e fantasista da mulher, bem como o seu exagcrado nervosismo. Conclui ser tal hipertrofia o resultado de uma educagäo deficiente, que mais näo fazia que promover csses estados de änimo pelo culto exclusivo da música, belas letras, arte e poesia, enquanto ao hörnern se possibilitava, pelo menos em teória, o desenvolvimento intelectual e se lhe procu-rava promover o sentido critico (cf. Bebel, 1895:137-140). Sobrc o casamento, Marx c Engels opinam que o burgués o reduziu a uma simples relagäo monetária, despida de qualquer véu de sentimentalidade, ao transformar a mulher num mero instrumento de produgáo. Mas Bebel vai mais longc: tornando-se um dos primeiros a denunciar a rígida moral sexual da burguesia como elemento constituinte de repressäo social, analisa a desvantagem da mulher, obrigada a esperar por uma proposta de casamento que a livre do estigma e das dificuldades do celibato101. Bebel prevé, por isso, que numa sociedade socialista o casamento e a sexualidade feminina seráo assunto privado, bem como a dissolugäo das ligagöes um imperativo moral no caso de incompatibilidade dos seus membros (cf. Bebel, 1895:137-140). Todavia, nos avisos sobre os perigos atinentes ao basear do casamento em mera paixäo, Bebel näo se afasta nem dos ideólogos conservadores nem das doutnnas de ťroudhon, o que leva Mechthild Mehrfeld, que analisa as erítieas bebelianas ao adultério e a toda e qualquer variagäo nos padrôes da sexualidade, a denunciar o fundo conservador da sua moral (cf Mehrfeld, 1983: 47-52). Elemcnto decisivo na vida social da mulher alernl c, por isso, iniluenciando o pensaniento sobre a mulher principalmente a partir do ano de 1865, é o movimeiito feminista, que, como referi já, chega á Alemanha com um certo atraso em relagäo a Franga, Inglaterra e aos Estados Unidos da America, atraso esse a que näo säo 99 Sobre a recepgäo controversa que a imagem feminina nietzschiana provocou na sua epoca, nomeadamente entre as pröprias mulheres, vd., p. ex., R. F. Krumme], 1983:90, 116 145-146 el72. 100 A primeira edicäo foi impressa e divulgada clandestinamente, seguindo-se-ihe uma segunda em 1883, com o titulo Die Frau in Vergangenheit, Gegenwart und Zukunft, e depois muitas outras. Em 1890, sob influencia do trabalho de Engels sobre a origem da famllia, do ano de 1888, Bebel procede a uma revisäo da sua obra, seguindo-se-Ihe alteracöes de menor envergadura, que visavam manter o texto actual. Sobre a difusäo deste escrito de Bebel na epoca, vd. Mehrfeld 1983: 47-53. 10 i EmDif Frau und der Soziaiismus, le-se a este propösico: 'Der Charakter der Ehe als\fersorgungsanstalt, die weibliche Überzahl, die Sitte, verhindern die Frau, ihren Willen kundzutun, und zwingen sie abzuwarten, ob sie gesucht wird. In der Regel greift sie bereitwillig 2u, sobald sich die Gelegenheit bietet, einen Mann zu finden, der sie vor der gesellschaftlichen Achtung und Vernachlässigung rettet, die dem armen Wesen alte Jungfer zuteil wird" (Bebel, 1895: 199) [O caräeter do casamento como instituicäo de assistencia, o nümero excedentano de mulheres, os costumes, impedem a mulher de manifestar a sua vontade e obrigam-na a esperar ser procurada. No geral ela aeeita de boa vontade logo que se oferece uma oportunidade de encontrar um hörnern que a salve do desprezo e da negligentia social que säo dispensados ä velha solteirgga].^ 104 A mulher e o adultério Lembre-se, porém, antes de empreendermos a análise da perspectiva que Ega detém da mulher e também das razöes que estáo na origem do comportamento social que ela evidencia no casamento e no adultério, que Aí Farpas näo se debru-garam sobre a mulher ou sobre a problemática Feminina de uma forma geral. Integrando um generalizado programa de crítíca aos costumes, äs instituigôes e ao espírito da época em Portugal, e tendo em vista a morigeragäo pelo riso, que Ega anunciará também na sua Conferincia do Casinoim, o retrato que os dois autores de As Farpas esbogamvisa a burguesa citadina, principalmente a lisboeta108.0 quadro crítico abränge todo o percurso formativo desta mulher, de crianga a dona de casa e mäe, e problemáticas täo diferentes como a formagäo intelectual e a religiosa, a moda e a alimentagäo, os hábitos quotidianos e a estrutura moral. Como ponto de partida para o estabelecimento deste retrato da mulher tal como Ega a viu, e tendo em mente as propostas de Proudhon, Taine e Michelet, que se revelaräo os seus principals inspiradores109, assinale-se que, como aqueles pensadores, o autor portugués aceita a polarizagäo dos caracteres sexuais110, mas näo se preocupa em analisar a mulher nas suas especificidades biológicas próprias. Ega de Queirós näo deixa de mencionar, proudhonianamente, a incapacidade 107 Ega profere a sua famosa corďercncia 'Ä literatura nova. O realismo como nova expressáo da Arte" em 12.6.1871, umm&ap&oiruciodapublicagáode^jfíiřpíif (cf. Salgado Junior, 1930). 108 Sobre as mulheres de urna forma geral, Egacomenta: "No fim de tudo, as mulheres virtuosas, as mulheres dignas formám ainda na sociedade portuguesa urna maioria inviolível! Se alguma coisa finalmente codemos dÍ2er profundamente verdadeira é que elas valem muito mais do que nós" (,AF,Maio,1871:43). 109 A influéncia combinada de Taine e Proudhon na estética realista queirosiana é posta em relevo, entre outros, por J. G. Simóes, 1973: 300 e 308, e por Pierre Hourcade, 1978: 21-87, esp. 30. Sobre a influéncia de Proudhon em Ega, vd. Petrus, 1961-1965: 171-224, e ainda, no que respeita ä imagem forainina, VH-jne Bourdin, 1981-82: 151-178. Orlando Grossegesse, que baseia as suas reflexóes sobre o estudo da "causerie" no romance queirosiano principalmente na influéncia tainiana em Ega de Queirós, náo se limita a considerar a influéncia das teorias sobre a raga, o meio e o momento colhidas no prefácio a Histoire de la littérature anglaise; refere ainda a perspectiva dandesca encontrada nas estratégias discursivas de Notes surlhris e também a influéncia de Taine em diferentes arďgos de Ega tanto na Gazeta de Portugal como nas crónicas do Distňto de Évora, no qual se inicia a 10.1.1867 a publicagäo de urna tradugäo de Voyage en Itálie de Taine (cf Grossegesse, 1991:59-66). A mesma influéncia se patenteia, como é sabido, na sua conferéncia A literatura nova. O realismo como nova expressáo da arte, 110 Lembre-se, por exemplo, o papei que Ega atribui a mulher no comentário: "Proudhon disse que a mulher só tem um destino - ménagére ou courtisane - dona de casa ou mulher de prazer. Séria longo explicara alta meral que estapalavia encerra;(...)" (AF, Set.-Out, 1872: 28). A problemática feminina na segunda metade do século XľX 105 iritelectual feminina e a redugäo na mulher do dever ao pudor111, mas näo concede :: a esta questäo importancia especial. Näo dirá, como Proudhon, que sozinha a : ^ mulher é fisiologicamente fraca - debilitagäo que os processes atinenr.es ä maternidade mais prejudicam ainda - e que a debilidade intelectual correspondente a esta fraqueza fisioiógica faz o pensamento feminino cristalizar no estado místico, incapaz de pensamento conceptual autónomom. Näo reportará a moral feminina lifM ä sua capacidade física e intelectual para concluir que, entregue äs suas inclinagôes ■' naturals, a. mulher é lasciva e preša fícil de caprichos físicos e anímicos II!!* (cf Proudhon, 1860:28-34). Alvo de c ritka emAs Farpas é tudo quanto possa comprometer a dedícagäo llfli':: ■ total e eficaz da mulher ao homem e ä família, já que a sua finalidade ultima é a de \":v- ser esposa e mäe, papéis para os quais se deve orientar a sua preparagáo. ;;:■'■ As atribuigôes que lhe cabem säo a orientagäo do governo da casa, o marido e os lliŕí filhos113. Quanto aos seus atributos ideais, eles näo se afastam daqueles que o modelo burgués impôe na Európa e que Michelet e Proudhon se náo cansam de louvar: simpiicidade, pureza, bondade, surgem como sentimentos dignifieadores daquela que é classificada, repetindo Michelet, como a primeira iniriadora do : homem (cf AF, Mar, 1872:43). Éfe- A imagem feminina de As Farpas revela, pois, uma componente fortemente tradicional no que se refere ao papel da mulher na sociedade. Tradicional será ll& também a dicotomia inerente ä imagem da mulher que percorre As Farpasm, 111 "Nadá a prende ao colégio: nem a serenidade da vida (...), nem o estudo - porque a mulher, pels, constituigäo do seu cérebro näo adere aos interesses do estudo e da ciencia -, nem a satislagäo de cumprir o dever - porque (...) a compreensäo fllosófica do dever náo ;em preša sobre o espírito feminino. Amulher, do dever, só compreende um lado, e esse admiravelmente - o pudor' (AF, Mar, 1872: 74). 112 Proudhon considera que a mulher é tisicamente inferior ao hom em, numa percentagem de 3:2, porque. prň'ada de forga geradora da qual advén; a íbrga física e intelectual masculina, é um "simples inserumento de reprodugäo, dotada dc cstreitcza cerebral, um;, cspčcic de meio termo entre ele [o homem] e o resto do reino animal" (cf. Proudhon, 1860: 3-26, esp. 6,22 e 23). 113 Ega de Queirós considera a família como um "pequeno mundo moral", "elemento natural da mulher, "infinito domínio, o mais profundo, o mais belo, o mais grave' (AF, Mar., 1872: 67). Por seu turno, Ramalho faz a apologia da preparagáo profesionál que as estrangeiras obtem, mas, também para ele, é a domesticidade que deve caracterizar o viver feminino, e louva a vida familiar em parses como a Aiemanha, a Suíga e a Holanda (cf AF, Out.-Nov, 1873: 80-84). Anos mais tarde, já sob notória influéncia comtiana, Ramalho considera "a condigäo essencial 6a nobreza e da dignidade da mulhe: - a compreensäo do ménagt, o culto do sanruário doméstico" (AF, Maio-junho, 1877: 91). 114 António Coimbra Martins, que no seu ensaio "Eva e Ega" analisa a obra eciana, detectando modelos femininos e concepgóes amorosas, refere também a presenga dc uma ideia maniqueísta da mulher e mostra, através de uma pertir.ente exemplificagáo, que Ega valoriza a vertente 106 A mulher e o adultério í. A problemática feminina na segunda metade do século XK 107 muito embora o interesse de Ega se concentre naturalmente nas características de recorte negativo, e, atendendo äs intengöes morigeradoras do jornal, naobservagáo da mulher da burguesia ä luz das novas teorias deterministas e sociomorais. A figura da burguesa citadina da Regeneracäo, encarnagäo dos vícios da sua época, opöem-se também imagens positivas de carácter modelář. Este padráo feminino positivo, corporizado principalmente na mulher estrangeira, reveste-se de um recorte romántico no que toca ä valorizagäo da alteridade. Das numerosas referéncias ä maneira de viver da mulher estrangeira cite-se a descrigäo das duas raparigas inglesas que Ega terá encontrado durante a sua estadia em Jerusalem (cf. AF, Mař., 1872: 58-59). Pelos tragos románticos que revestem estes retratos e pelas situagöes narradas, eles poderiam integrar um romance de aventuras ou de viagens, tlo ao gosto da época. Este panegírico da estrangeira, nomeadamente da inglesa, näo aguenta, alias, um conhecimento mais directo, e desaparece pouco depois da estada de Ega em Inglaterran5 - facto que confirma o carácter irreal e idealizado da vertente positiva do modelo feminino queirosiano. Igual idealizagäo cobre a descrigäo da mulher portuguesa da classe social mais baixa, a qual, no seu papel vigilante de esposa e máe, adquire tragos poético--religiosos marianos (ď.AF, Set.-Öut. 1972:25-26). Como nota de modernidade relativamente aos modelos románticos, repare--se que Ega - ao contrario de Michelet, para quem a mulher é uma eterna doente e que tem na sua fragilidade física justificagáo para a sua inactividade116, - se baseia em Taine e afirma que a primeira obrigagäo da mulher é ser saudável'17. Faz, por negativa da imagem feminina e que a desconfianca em relagáo a mulher e ao Ens subjaz eripticamente aos seus textos (cf C. Mairins, 1967-68:287-325). 115 Atente-se na carta de Eca a Ramalho: "A inglesa é uma, vista através das litografias dos anjos louros ou de amazonas radiosas de Hyde-Park - e outra, vista na Inglaterra. O continente, sobretudo o sul, conhece - pelos romances, pela gravura, pelos versos, pela legenda - uma čerta inglesa risonha, pura, loura, casta como a neve, boa amiga, sábia, boa caminhadora, cheia de duches de água fria t de princípios morais: esta é a inglesa de lá. Agora a inglesa de cá é outra coisa: náo faz muita diferenca da mulher, tal qual a tem feito, no século XK, a literatura, o romantismo, a música, as modas, a ociosídade, a riqueza, o abuso da domesticidade, a centrab.zacio. etc., etc, (...) - e V compreenderá que r.ada hajá igual a »bssta» que estes ;r»jos tém dentro de si" (E. Q., 1983:104-105). 116 Leia-se, a este propósito, Jules Michelet, UAmour, 1865:52-58, e 59-62. Os tltulos dos capítulos II - "La femme est une malade" e III - "La femme doit peu travailler" sáo, por si só, sobejamente ilustrativos. 11 / Tracando o recato das rr.eninas solteiras de Lisboa, Ega esereve: "O primeiro sinal saliente é a debilida.de e a anemia. Taine diz, pintando o solido vigor mglěs - que o primeiro dever de uma menina é ter saúde. É. A saúde é a explosáo física da ínocéncia. Ä saudável perfeigäo do corpo corresponde a lúclda simpíicidadc do espírito. Mens sam in corpore sáno" (dř.Mar., 1872: 46). isso, com Ramalho118, a apologia do vigor tisico, de novo da mulher estrangeira, principalmente da inglesa mas também da alemá, bem como da sua diligéncia e actividade, que considera frutos de uma educagáo sá, em contacto com a natureza, e base de honestidade, rectidäo e determinagáo caracteriológica119. Das principals críticas de Ega as burguesas de Portugal é a sua inactividade e o seu ócio120, tendéncias que o autor ácOPrimo Basůio justifica, deterministicamente, pela confluéncia de tendéncias atávicas com uma errada educagáo, denotando o seu discurso crítico frequentes ecos de Taine e de Proudhon121. Esta opiniao vem ainda ao encontro da leitura que, nesta mesma época, Ega faz de Madame Bovary de Flaubert, cuja protagonista é, sabidamente, um dos modelos femininos condicionantes do romance O Primo Basíliom. 118 Refira-se, comparando os dois autores de As Farpas, que em ambos coincidem os louvores äs raulheres saudáveis e activas. Tbdavia, Ramalho refere-se encomiasticamente tanto ä dona de casa estrangeira como äs provincianas portuguesas. Recorrendo ä sua propria experiěncia biográfica, lembra mulheres da sua família que, " (...) sem térem lido nunca Proudhon ou Tiine sem conhecerem nenhuma das teorias dos modernos maralistas tinham todavia compreendído e assimilado por um instinto cheio de lucidez, os dois principals deveres de uma mulher: primeiro, ser saudável; segundo, näo ser conhecida. No interior de sua casa, eram admirávcis exemplos de dignidade, de trabalho, de ordem, de economia, de bom humor (...)" até ao folhetim Onfália Benoiton e ä novela O Réu Tädeu, publieada no Distrito de Évora entre 18 de Junho de 1867 e 20 de Junho de 1867141. 140 Lembre-se, a este propósito, que o folhetim Notas Marginais é publicado em 23 de Marcp de 1866, ou seja, seis meses antes do início da publicacao das outras crónicas, em 7 de Outubro de 1866. Parece, por isso, bem plausível que este eserito date, como pertinentemente nota Maria Manuela Delille, dos últimos meses de Ega em Coimbra, de onde terá sido enviado para publicacao na Gazeta de Portugal (c£ Delille, 1984: 259-260). - 41 A novela fot depois publicada no volume Prosa-Esquea&as I, c.á. organizada por A. Machado da Rosa, Lisboa, 1965. 116 A mulher e o adultério A problemática feminina na segunda metade do século xrx 117 No primeiro folheúm lamenta-se, corao já referi, a perda dc ligacäo ao mundo fantástico e primitive que surge como lugar paradisíaco de amor iniciál, a um tempo sensual e puro. Imediatamente a seguir, o folhetimXIV conclui, retratando a mulher no Portugal regenerado: Por fim, tu eras simplesmente uma alma preguícpsa, e uma pele maria. (...) Abafavas burguesmente a música do teu corpo emxales pesados, e largas saias: e a seda dos teus vestidos tinha um frémito indeŕinido de sarabanda, c de cachucha (PB, 55). Note-se o paralelismo ä crítica da mulher burguesa que integrará^lí Farpas, na denúncia da ociosidade e vacuidade interior, do motivo da comédia social, da sensualidade hipocritamente reprimida e por isso degradada e aviltada. Também nas poucas erónieas do Distrito de Évora que tratam a questäo feminina é retomado o motivo da traigäo amorosa, nomeadamente na vertente da amada materialista e ladra, motivo esse que Ega irá tratar também no conto da primeira fase realista Singukridades de uma Rapariga Loira (1874)142. A novela aparentemente fragmentária O Réu TadeuAi, publieada seis meses antes de Onfátk Benoiton, quase no terminus da colaboragáo de Ega no Distrito de Évora, interessa-me especialmente porque nela se encontram motivos que Ega 142 Na erónica inserida no n° 8 do Distrito de Évora, de 31 de Janeiro de 1867, na rubrica Comédia Moderna, assinada pelas letras A Z, ultimas do nome Eca de Queirós, que assim se escuda por detrás de um pretenso correspondente literário de Lisboa, narra-se urna história com "graca e perversidade", que gira ä volta de urna brineadeira feita por dois rapazes a um seu vizinho de quarto. Este homem, um velho e fogoso chileno, tinha sido roubado e abandonado por urna amante jovem e ladrá (DCDE1,282-284). Também na erónica n° 42, de 2 de Junho de 1867 se conta a história da paixáo fu'nesta de um velho inglés por uma mulher jovem e cruel na indiferenca que vota ao apaixonado, o qual acaba por enlouquecer (cf DCDE I, 157-158). Na erónica n° 10, de 10 de Fevereiro de 1867, surge, a propósito de uma criada que mata a ama, uma imagem dicotómica da mulher: "A mulher, que nós dizemos ser a nossa consolacáo na adversidade, o nosso conforto nas grandes dores, a ideia, o pensamento fixo da adolescéncia, que é a única alegria real e duradoiia, a única e adorável felicidade da juventude, o amparo, o arrimo da velhice, da decrepitude; a mulher transmudada assim numa víbora, num canera da sociedade, num ílagelo desoiador! Porque náo seri a mulher, sempře, a numei de esperancas, a emanacäo mais pura e sublime da divindade?" (DCDE, 1,133). 143 A novela O Réu Tadeu é composts por dois folhetins que foram publieados nos n™ 54 e 55 do Distrito de Évora, em 18 e 20 de Julho de 1867, respectivamente. Dedicados a "L.M.", integram a secgäo "Leituras Modernas", e, de acordo com a inscricäo "continua" que se encontra aposta ao segundo folhetim, foi elassifieada de incompleta pela crítica queirosiana (c£ Machado da Rosa, in, PE I, 35), classificacáo essa que é questionada por Maria Manuela Delille, que nota a necessidade de se fazer urna reavaliacáo de tal designaeäo (cf Delille, 1884:346, nota 2). Para a interpretacäo de O Réu Tadeu, vd., especialmente, Serráo, 1985:123-133). .retomará, desenvolvendo uns, esbatendo outros, em O Primo Basílio. Refiro-me primeiramente ä traigáo amorosa já consubstanciada no adultério, mas também ä íligagäo familiar neste caso entre o marido e o amante e ainda ao satanismo que envolve a dupla sedutor/seu alter-ego, oposta a um marido investido de qualidades burguesas de amor ao estudo e ao trabalho e cheio de ideais familiäres igualmente burgueses (cf. PE I,52). Também como em O Primo Basäio, a imagem feminina é na novela fortemente dicotómica e também claramente dependente da perspectiva ,das diferentes personagens. Lembrem-se as figuras femininas contrastantes que ida.mesma janela e olhando o mesmo espago da trapeira é dado ver aos dois irmäos í xiepois a Tadeu com o seu demoníaco amigo Stanislau, e leiam-se, principalmente, ■as alusöes ao ideal burgués e simultaneamante romántico da mulher esposa, dona de casa e mäe, idealizado por Simäo e as longas consideragóes de Stanislau sobre a mulher que casa para logo caiŕno tédio, no desleixo das suas obrigagóes familiäres e no adultério (cf. PE I, 51 e 52),+4. De referir ainda a presenga em O Réu Tadeu de modelos femininos de recorte romäntico que assumem cariz leitmotívico na prosa desta primeira fase literária de Ega: trata-se da mulher-crianga encarnada na personagem da filha do carcereiro distribuindo flores aos presos (c£ PE I, 42 e 43), figura que surgira já na farsa A Filha do Carcereiro, publieada na Gazeta de Portugal (cf PB, 134) e a figura da mäe (cf PE I, 55), cuja morte lembra a morte da mäe de Estéväo Blasco em Onfália Benoiton (cf PB, 257-268) e que é na novela idealizada e poetizada até á sacralizagáo, ao contrario do que acontece nos romances da fase realista, onde a figura da mäe passa a ser analisada quanto äs suas qualidades de educadora e iniciadora. Abrirei ainda um paréntesis para notár uma tendencia onomástica que coloca O Réu Tadeu no início de urna cadeia de textos com figuras femininas de adúlteras ou traidoras de nome Luisa. Tadeu aconselha a filha do carcereiro a dar este nome á alma da sua pomba morta, podendo o leitor inferir que se trataria, provavelmente, do nome da sua eunhada e amante145. 144 Joel Serräo classifica de "misoginicamente satánica" a visáo feminina de Stanislau (cf. Serräo, 1985:126). 145 Näo me parece ser Jerónima, a mulher a quem Tadeu esereve despedindo-se na véspera da sua execucäo; a sua amante. Ela, que velou o seu sono de crianca e que Tadeu confessa ter "estimado" afigura-se-me encarnar, pelo contrário, uma figúra maternal (talvez urna velha criada), como a Virgem enearregue de seguir o cortejo do condenado. A ela o liga uma relacáo mista de confianga e de sentido de responsabilidade que dificilmente se relaciona com a mulher traidora profeticamene descríta por Stanislau, no relato que, em articulagäo com a descoberta do crime e da condenacäo, nos permite compreender a história de adultério e crime. 118 A mulher e o adultério A problemática feminina na segunda metade do século Xrx 119 Luisa será ainda a protagonista ladra de Singularidades de uma Rapariga Loira e a Condessa de W. de O Místério da Estrada de Sintra antes de ser o nome da heroina de O Primo Bazíiio14i. ORéu Tadeu revela, pois, tanto no que respeita ao motivo do adultério, como no que toca á imagem feminina, como ainda no que conceme a utilizagáo de alternancias perspectívicas, tendéncias que serao retomadas e desenvolvidas em O Primo Basíiio. Também a crítica a sociedade contemporanea táo importante em O Primo Basíiio surge esbocada na crítica satámca de Stanislau. Maria Manuela Delille, que equaciona o satanismo presente no conto eciano com o mesmo motivo em Heinrich Heine, considera que em Ega de Queirós os pressupostos satanicos sáo explorados "até as ultimas consequéncias", fazendo-se," - alias com manifesta intengao de satira aos valores morais burgueses - a justificagáo e sublimagáo do crime, a apologia do mal" {Delille, 1884:347-348). De facto, nos folhetins da Gazeta de Portugal e nas crónicas doDistrito áeÉvora, o jovem Eca parece acreditar que a mulher em contacto com a sociedade coeva ou se entedia, aburguesa e trivializa147 ou, levando o aviltamento as ultimas consequéncias, assume o materialismo em todas a sua crueza e transforma-se num ser satánico, de que Onfália Benoiton é paradigma. Ao homem, idealista e apaixonado cabe-lhe sofrer. Quanto ao poeta, resta--lhe um percurso que passa pela náo integragao social, pela recusa de uma natureza esvaziada pela industrializagáo, pela impossibilidade de encontrar na mulher o eco do seu amor puro, e que conduz ao tédio e ás novas formas (cf Poetas do Mal (PB, 89-94)). No caso do próprio Ega, conduziu~o, por certo, ao papel de observador satánico, prenunciado na ilustragáo que introduz As Fctrpas. Se nos questionarmos sobre quanto děste espírito romántico-satánico se encontra ainda na imagem crítica de Eca cm As Farpas, nomeadamente na crítica á mulher e ao adultério, iremos concluir que tal componente subjaz a todo o texto, 146 Que Ega parece ligar este nome ä mulher traidora torna-se ainda claro a partir da observagáo do texto O Primo joäo de Brita que, como se sabe, serviu de esboco a O Primo Basäio, e onde a protagonista é designada par Amelia nas primeiras cenas (c£ C. Reis e M. R. Milheiro, 1989: 221-246) e que depois de uma fase de índecisäo entre os dois nomes, passa definitřvamente a Luisa quando o texto relata já a corte como preparativo para a sedueäo (cf. C. Reis e M.R. Milheiro, 1989:254-284). 147 Ao encontro desta interpretácie vem, creio, o comentário de Mário Sacramento que, no seu capítulo 'Ätravés da superacäo iróníca: A reducäo do Bovarismo ou «0 Primo Basílioti", considera que neste romance o adultério, que apenas o tédio justifica, "assume carácter de alta comédia, que a propria morte de Luisa mal consegue abalar" (Sacramento, 1945:185). ■ nomeadamente no recurso a uma estética de provocagáo de matriz heiniana e baudelairiana, que vem a ser explicitada, como referi, por Ramalho. Na imagem feminina de As Farpas, o satanismo surge tal como foi prenunciado no numero XIV das Notas deAbertura. Transvertido na versáo da mulher pequeno-burguesa e mediocre, e abafado na mera potencialidade do vício e do mal, de que a vacuidade interior e o pendor para a lassidáo e o tédio slo sintoma, o satanismo coincide, afinal, em grande parte com a crítica de pendor realista. O motivo do engano/ /desengano amoroso, táo comum no Romantismo satánico, cruzado também com tendéncias realistas e de observagáo da sociedade, surge banalizado no casamento e no adultério. Resumindo, notarei que a análise dos modelos femininos de Ega zmAs Farpas, bem como a sua relacionagáo com a imagem da mulher nos folhetins da Gazeta de Portugal, nas crónicas do Distrito de Évora e no conto O Réu Tadeu publicado também no bissemanário eborense, revelaram que, no que concerne ao papel da mulher na sociedade, Ega oscila entre uma visáo tradicional e uma perspectiva progressista. Se a posigáo de Ega é basicamente tradicionalista e avessa a qualquer nota emanci-padora no que respeita ao papel da mulher na família e na sociedade, regista, paralelamente e como traco de modernidade, a apologia do vigor físico e do exercício, e a condenagáo do sentimentalismo ultra-romántico e do tédio. Igual hibridismo revelaram os modelos femininos eufóricos e disfóricos, numa polariza-gáo de matriz romántica. O vector negativo revelou-se, todavia, de especial impor-táncia, devido náo só ao peso narrativo que o autor lhe confere como ao entrosa-mento com a realidade epocai que lhe garante auíenticidade, bem como porque as diferentes ideias surgem sustentadas pelas novas teorias ético-sociais e deterministas. De facto, para a caracterizaeáo da burguesa citadina que a imagem negativa da mulher encarna no Portugal restaurado, Ega recorre frequentemente ao modelo feminino de Proudhon, cruzando-o com o determinismo tainiano, numa perspectiva morigeradora confluente com directrizes igualmente proudhonianas. É também nesta imagem negativa da mulher e na concretizagáo desta no adultério enquanto variante do motivo da traigáo romántica que frequentemente se fazem sentir ecos do satanismo eciano que se cruza com a caracterizagao realista e a corrobora. Ao lado desta múltipla e convincente caracterizagao de pendor disfórico desvanece-se a imagem positiva da mulher, reduzida a pouco mais de meras alusóes, idealizada e de recorte pouco real. Nas referéncias á mulher ideal -companheira, máe, esposa, dona de casa - trai-se ainda uma visáo romántica, á qual se juntám ecos de textos micheletianos e a aura romántica da heroina dé romances de aventuras e viagens. Igualmente romántica me parece a tendéncia 120 A mulher e o adultério A problemática feminina na segunda metade do século XIX 121 para a exotizagäo, que o encarnar do ideal feminino na mulher estrangeira revela. Lembre-se, a terminar, que Ega se näo dištancia da mesma forma que Ramalho das manifestagöes de dandismo, mormente no que concerne o homem, para com o qual a sua crftica se dilui em benevolencia. Quanto ao adultério, ele surge lígado äs características negativas que a mulher desenvolve na sociedade coeva. Por isso, ele é resultado conjunto de uma errada educagäo e instrugäo, e consequéncia do contacto exacerbado com o sentimen-talismo ultra-romäntico, é resposta ao tédio e ao ócio e também efeito de um errado relacionamento entre homem e mulher na fase de preparagáo para o casamento. Concluindo, poderá dizer-se que ele é sinal da deficiente sociabilizagío da mulher e da errada forma como ela entende o lugar que lhe cabe na sociedade. 2.3.2.3. A mulher no discurso näo ficcional fontaniano Quanto ä problemática feminina tal como a viu Theodor Fontane e ao lugar que lhe cabe dentro da obra fontaniana, cumpre assinalar que ela ocupa, enquanto discussäo da situagäo da mulher na família e no casamento e desta como espelho de problemáticas sociomorais, a maior e melhor parte da sua obra romanesca. Todavia, muito embora, como ele proprio escreveu, a mulher o tenha sempre entusiasmado148, a questäo feminina näo o parece ter interessado muito fora do ämbito ficcional: os depoimentos fontanianos sobre este assunto säo poucos e prendem-se, quase exclusivamente, quer com comentários aos seus próprios textos quer com críticas a textos de outros149. 148 Em carta de 6.12.1894, a Paul e Paula Schienther, Fontane escreve: Wenn es einen Menschen gibt, der für Frauen schwärmt und sie beinah doppelt liebt, wenn er ihren Schwächen und Verirrungen, dem ganzen Zauber des Evatum, bis zum infernal Angeflogenen hin, begegnet, so bin ich es [apud Mendel, 1980:183) [Se há pessoa que se entusiasme com as mulheres e que quase as ame duplamente quando encontra as suas fraquezas e as suas faltas, todo o encanto da esséncia de Eva até ao demoníaco que nos atinge, essa pessoa sou eu]. 149 Norbert Frei, que assinala também a auséncia entre os escritos teóricos fontanianos de comentários ä situagäo da mulher na época, nota que na correspondéncia particular e nos relatos de viagens Fontane encarna em figuras femininas as suas observacôes do mundo cireundante (cf. Frei, 1980:80 ss.). Dos trabalhos dedieados ä imagem feminina em Fontane, principalmente em Effi Briest, destaquem-se, como notei já, para além dos estudos fundamentals de Walter Müller-Seidel (1975) e de Hans Heinrich Reuter (1963), o acima mencionado estudo de Frei, e os trabalhos de Thomas Degering (1978), de Hanni Mittelmann (1980), e de Ziegler (1996: 219-231). ■m Por isso me limitarei a referir sumariamente alguns comentários fontanianos sobre a mulher e o casamento, remetendo desde já para o capítulo "Die Säkularisierung der Ehe'' ['A secularizagäo do casamento"] na já referida obra dc Müllcr-^Scide! Theodor Fontane. Soziale Romankunst in Deutschland (Müller-Seidel, 1975: 332-377), onde o autor analisa a imagem da mulher na prosa näo ficcional de Fontane de forma clara e sucinta. Adiantarei também que, como pertinentemente escreve Reuter na sua biografia fontaniana, Fontane estavaperfeitamente consciente da problemática feminina na sociedade do seu tempo e por isso considerava que o destino das mulheres se tomava facilmente imagem de vivéncias sociais dc carácter mais geral (cf. Reuter, 1968, II: 641-655). Os comentários fontanianos ä situagäo da mulher mais reveladores prendem--se com a critica ao teatro ibseniano. Fontane, muito embora tradicional defensor do teatro de Henrik Ibsen e da dramaturgia naturalista que na sua qualidade de erítico tcanal ajudou a promover na Alemanha15'-1, näo pode concordar com as teses sobre o casamento que o autor noruegués defende nos seus dramas. Entre as diferentes críticas que a pega Os Espectros lhe mereceu'51, sobressai a reeusa do que apelida de "Evangclho ibseniano". Retomando uma argumentagäo que de algum modo se reporta äs disputas entre os defensores do racionalismu iluminista e os prosélitos do Romantismo, Fontane reeusa ao amor o lugar primeiro entre as condigôes necessárias ao bom éxito de um casamento, e lembra os com-provados resultados positivus de numerosos casamentos de conveniéncia. Igual-mente condena como exagerada e geradora dc instabilidade emocional, moral c social a filosofia do divórcio facti, defendtda por Ibsen (cf Fontane, 1969: 711-714). Como bem notou Müller-Seidel, muitos dos que conhecem o programa fontaniano de critica social e iiterária se sentiräo surpreendidos e mesmo defrau-dados com estas suas teorias sobre o casamento (c£ Müller-Seidel, 1975: 348). 150 A apresentacäo do drama de Ibsen Času de Borna, em 1880 em Munique, provocou uma grande indignagáo, mas consutuiu simultaneamente uma verdadeira pedrada no charco, a partir da qual náo sú o autor noruegués conquistou os palcos alemäes para os seus dramas de mulher, como influenciou decisivamente uma geracäo de novos dramaturgos naturalistas. Casa de Boneca foi um dos primeiros e decisivos contributos literários da época para a questäo da emancipacáo feminina. As reservas dos meios alemäes mais conservadores em relagäo a este tipo de dramas elevam-se a verdadeira escíndalo com z apresentagäo de OsEspedros (em 1886 no Stadttheater de Augsburgo e em 1887 no Residenztheaíer de Berlim), que deixará também perplexa grande parte da burguesia liberal e entre ela o proprio Theodor Fontane (cf Müller-Seidel, 1975:347-348). 151 Fontane expressa a sua opiniäo sobre o drama quer no seu diário, quer em carta de 12.1.1887 a Georg Friedländer (cf Fontane, 1954: 65-66) quer numa critica mais exaustiva publicada na VossischeZeüungem 13.1.1887(cf Fontane, 1969: 711-714). 122 A mulher e o adultério A problemática feminina na segunda metade do século XK 123 Näo se Ieia, todavia, nestas críticas a apologia incondicional da preservacáo do casamento. Elas comprovam, pelo contrario, o cepticismo fontaniano face a posturas radicals: äs de Ibsen tanto como äs dos defensores das "tragédias matrimoniais". Fontane aceita o divórcio para os casos em que o viver comum se tornou demasiado penoso - vejam-se os comentários sobre a separatio do seu amigo Bernhard von Lepel que Müller-Seidel transcreve a este mesmo propósito152. Também os comentários ä figura de Ottilie no romance goethiano Wahlverwandsdtaften (1809) atestam a recusa de posígóes moralmente rígidas quanto ä indissolubilidade do casamento (cf Müller-Seidel, 1975: 350). Fontane considera que há uma ligagáo intrínseca entre o adultério e a situaglo epocal, que pensa ser de considerar na posi-gáo a tomar face ä culpa. Em carta de 21.04.1888 a Otto Brahm le-se, a este propósito: Du sollst nicht ehebrechen, das ist die Norm, und wohl dem, der nicht in Versuchung und nicht in Kampfe geführt, dieser Norm entspricht; aber der Kompliziertheiten modernen Lebens sind so viele, daß das Gesetz jeden Tag und jede Stunde durchlöchert wird, weil es durchlöchert werden muß, wodurch wir wollend oder nicht, unsere Stellung zur Schuldfrage beständigen "Wandlungen unterworfen sehen (Fontane, 1969: 663) [Náo cometerás adultério, esta é a norma, e feliz aquele que, näo tendo cafdo em tentagäo nem em lutas, cumpre esta norma; mas as complicacies da vida moderna säo tantas que a lei é violada todos os dias e todas as horas, porque tem que ser violada, pelo que nós, quer queiramos quer näo, vemos a nossa posicäo face ä questlo da culpa submetida a constantes metamorfoses]. Sabe-se que a emancipagäo feminina riäo valeu a Fontane grande simpatia, como o comprova o comentário sobre a falta de sentido do voto feminino, em carta de 6.5.1870 a Emili Fontane (cf Fontane, 1924:188). Todavia, é conhecida a 152 Fontane escreve no final de 1872 a Mathilde von Rohr sobre a atribulada separacäo do amigo comum Bernhard von Lepel: "Bei allem höchsten Respekt vor Frau von L., hab ich doch die Ansicht, daß man aus Prinzipienreiterei nicht Menschen an ihrem Glück behindern soll, oder an dem was sie, wohl oder übel, als ihr Glück ansehen. Von strengsten kirchlichen Standpunkten aus, muß man sich natürlich anders zu dieser Frage stellen, aber diese strengen Standpunkte sind eben nicht die meinigen. Einfach menschlich mußte man sagen: sie sind innerlich und äußerlich längst geschieden; warum also die Kette nutzlos weiter durchs Leben schleppen? (apud Müller-Seidel, 1975: 349) [Com todo o maior respeito que tenho por Frau von L., sou de opiniäo que por uma "rigorismo de princípios" náo se pode pör impedimento ä felicidade das pessoas, ou äquilo que elas, bem ou mal, véem como a sua felicidade. Do mais severe ponto de vista religioso temos, naturalmente, de ter uma posicäo diferente face a esta pergunta, mas precisamente esses pontos de vista rígidos näo säo os meus. De forma simplesmente humana, dever-se-ia dizer: eles estäo há muito tempo interior e exteriormente separados; porque entäo continuar inutilmente a arrastar as cadeias pela vida fora?]. ft M: I -í: & dureza da condenagio de Fontane ao texto schopenhaueriano sobre as mulheres, que considera o reŕlexo da amargura casmurra e preconceituosa de um velho, indignando-se, principalmente, com a apologia da poligamia, atentatória dos direitos e dignidade humanos: (...) Den Harem und seine Wirtschaft über unser okzidentales Frauenleben stellen wollen heißt überhaupt gegen Freiheit, Menschenrecht und Menschenwürde sich flau und selbst gegensätzlich stellen. (...) (Fontane, 1961: 710 s.) [(...) Querer colocar o harém e a sua organizacäo acima da nossa vida ocidental das mulheres significa ter uma postura fraca e mesmo contraria ä liberdade, aos direitos e ä dignidade humanos. (...)]. Pelo contrario, a mulher afigura-se-lhe um elemento estabilizador e mode-rador, tanto no piano económico como no emocional e no familiar153. Mas as suas heroinas, por quern se confessa apaixonado, näo säo exemplos de virtude burguesa. Numa carta de 10. 10. 1895 a Colmar Grünhagen, ele proprio as apelida de modelos de humanidade e de naturalidade: Der natürliche Mensch will leben, will weder fromm noch keusch noch sittlich sein, lauter Kunstprodukte von einem gewissen, aber immer zweifelhaft bleibenden Wert, weil es an Echtheit und Natürlichkeit fehlt. Dies Natürliche hat es mir seit lange angetan, ich lege nur darauf Gewicht, fühle mich nur dadurch angezogen, und dies ist wohl der Grund, warum meine Frauengestalten alle einen Knacks weghaben. Gerade dadurch sind sie mir lieb, ich verliebe mich in sie, nicht um ihrer Tugenden, sondern um ihrer Menschlichkeiten, d.h. um ihrer Schwächen und Sünden willen. Sehr viel gilt mir auch die Ehrlichkeit, der man bei den Magdalenen mehr begegnet als bei den Genoveven. Dies alles um Cécile und Effi ein wenig zu erklären (Fontane, 1986: 382) [O ser humano natural quer viver, näo quer ser nem devoto, nem casto, nem moral, tudo produtos artificiais de um certo mas sempře duvidoso valor, já que Ihes falta veracídade e naturalidade. Essa naturalidade atrai-me de há muito, só a ela dou importäncia, só por ela me sinto atrafdo, e essa é, por certo, a razäo pela qua! todas as rninhas figuras femininas tém uma "falha". Precisamente por isso é que elas me säo queridas, apaixono-me por elas näo pelas suas virtudes mas pelo 153 Reuter chama a atencäo para o facto de Fontane aderir numa primeira fase ao generalizado entusiasmo por Schopenhauer, para mais tarde se distanciar do filosofa do pessimismo. Segundo Reuter, essa ruptúra é de tal forma radical que marcará a viragem de Fontane para um romance em que a problemática feminina é elevada a um postulado politico-social, apresentando a mulher näo só como vítima mas também como denunciadora de uma ideológia masculina repressive e regressiva. Na recusa dessa ideológia iníegra Reuter a aversáo corajosamente assumida de Fontane a Richard TOgner (cf Reuter, 1968: 653).