Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles (trechos) Parte 1 Fala inicial Não posso mover meus passos, por esse atroz labirinto de esquecimento e cegueira em que amores e ódios vão: - pois sinto bater os sinos, percebo o roçar das rezas, vejo o arrepio da morte, à voz da condenação; - avisto a negra masmorra e a sombra do carcereiro que transita sobre angústias, com chaves no coração; - descubro as altas madeiras do excessivo cadafalso e, por muros e janelas, o pasmo da multidão. Batem patas de cavalos. Suam soldados imóveis. Na frente dos oratórios, que vale mais a oração? Vale a voz do Brigadeiro sobre o povo e sobre a tropa, louvando a augusta Rainha, - já louca e fora do trono - na sua proclamação. Ó meio-dia confuso, ó vinte-e-um de abril sinistro, que intrigas de ouro e de sonho houve em tua formação? Quem ordena, julga e pune? Quem é culpado e inocente? Na mesma cova do tempo cai o castigo e o perdão. Morre a tinta das sentenças e o sangue dos enforcados... - liras, espadas e cruzes pura cinza agora são. Na mesma cova, as palavras, o secreto pensamento, as coroas e os machados, mentira e verdade estão. Aqui, além, pelo mundo ossos, nomes, letras, poeira... Onde, os rostos? onde, as almas? Nem os herdeiros recordam rastro nenhum pelo chão. Ó grandes muros sem eco, presídios de sal e treva onde os homens padeceram sua vasta solidão... Não choraremos o que houve, nem os que chorar queremos: contra rocas de ignorância rebenta a nossa aflição. Choramos esse mistério, esse esquema sobre-humano, a força, o jogo, o acidente da indizível conjunção que ordena vidas e mundos em pólos inexoráveis de ruína e de exaltação Ó silenciosas vertentes por onde se precipitam inexplicáveis torrentes Romance II ou do ouro incansável Mil bateias vão rodando sobre córregos escuros; a terra vai sendo aberta por intermináveis sulcos; infinitas galerias penetram morros profundos. De seu calmo esconderijo, O ouro vem, dócil e ingênuo; torna-se pó, folha, barra, prestígio, poder, engenho.. É tão claro! - e turva tudo: honra, amor e pensamento. Borda flores nos vestidos, sobe a opulentos altares, traça palácios e pontes, eleva os homens audazes, e acende paixões que alastram sinistras rivalidades. Pelos córregos, definham negros, a rodar bateias. Morre-se de febre e fome sobre a riqueza da terra: uns querem metais luzentes, outros, as redradas pedras. Ladrões e contrabandistas estão cercando os caminhos; cada família disputa privilégios mais antigos; os impostos vão crescendo e as cadeias vão subindo. Por ódio, cobiça, inveja, vai sendo o inferno traçado. Os reis querem seus tributos, - mas não se encontram vassalos. Mil bateias vão rodando, mil bateias sem cansaço. Mil galerias desabam; mil homens ficam sepultos; mil intrigas, mil enredos prendem culpados e justos; já ninguém dorme tranqüilo, que a noite é um mundo de sustos. Descem fantasmas dos morros, vêm almas dos cemitérios: todos pedem ouro e prata, e estendem punhos severos, mas vão sendo fabricadas muitas algemas de ferro por eterna escuridão! Romance XIV ou da Chica da Silva Que andor se atavia naquela varanda? É a Chica da Silva: é a Chica-que-manda! Cara cor da noite olhos cor de estrela. Vem gente de longe para conhecê-la. (Por baixo da cabeleira, tinha a cabeça rapada e até dizem que era feia.) Vestida de tisso, de raso e de holanda - é a Chica da Silva: - é a Chica-que-manda! Escravas, mordomos seguem, como um rio, a dona do dono do Serro do Frio. (Doze negras em redor, - como as horas, nos relógios. Ela, no meio, era o sol!) Um rio que, altiva, dirige e comanda a Chica da Silva, a Chica-que-manda. Esplendem as pedras por todos os lados: são flechas em selvas de leões marchetados. (Diamantes eram, sem jaça, por mais que muitos quisessem dizer que eram pedras falsas.) Mil luzeiros chispam, à flexão mais branda da Chica da Silva da Chica-que-manda! E curvam-se, humildes, fidalgos farfantes, à luz dessa incrível festa de diamantes. (Olhava para os reinóis e chamava-os “marotinhos”! Que viu desprezo maior?) Gira a noite gira, dourada ciranda da Chica da Silva, da Chica-que-manda! E em tanque de assombro veleja o navio da dona do dono do Serro do Frio. (Dez homens o tripulavam, para que a negra entendesse como andam barcos nas águas.) Aonde o leva a brisa sobre a vela panda? - A Chica da Silva: à Chica-que-manda. A Vênus que afaga, soberba e risonha as luzentes vagas do Jequitinhonha. (À Rainha de Sabá, num vinhedo de diamantes poder-se-ia comparar.) Nem Santa Ifigênia, toda em festa acesa, brilha mais que a negra, na sua riqueza. Contemplai, branquinhas, na sua varanda, a Chica da Silva, a Chica-que-manda! (Coisa igual nunca se viu. Dom João Quinto, rei famoso, não teve mulher assim!) Parte 2 Romance XXVII ou do animoso Alferes Pelo Monte Claro, pela selva agreste que março, de roxo, místico enfloresce, cavalga, cavalga o animoso Alferes. Não há planta obscura que por ali medre de que desconheça virtude que encerre, - ele, o curandeiro de chagas e febres, o hábil Tiradentes, o animoso Alferes. Por aqui, descansa; ali, se despede, que por toda parte o povo o conhece. Adeuses e adeuses, sinceros e alegres: a amigos, mulatas, cativos e chefes, coronéis, doutores, padres e almocreves... Adeuses e adeuses, - que rápido segue, a mover os rios, a botar moinhos e barcos a frete, lá longe, lá longe, o animoso Alferes. A bússola mira. Toma para leste. Dez dias de marcha até que atravesse campinas e montes que com os olhos mede: tão verdes... tão longos... (E ninguém percebe como é necessário que terra tão fértil, tão bela e tão rica por si se governe!) Águas de ouro puro seu cavalo bebe. Entre sede e espuma, os diamantes fervem... (A terra tão rica e - ó almas inertes! - o povo tão pobre... Ninguém que proteste! Se fossem como ele, a alto sonho entregue!) Suspiram as aves. A tarde escurece. (Voltará fidalgo, livre de reveses, com tantos cruzados...) Discute. Reflete. Brinda aos novos tempos! Soldados, mulheres, estalajadeiros, - a todos diverte. (Por todos trabalha, a todos promete sossego e ventura o animoso Alferes.) No rancho descansa. Deita-se. Adormece. Penosa, a jornada, mas o sono, leve: qualquer sopro acorda o animoso Alferes. Deus, no céu revolto, seu destino escreve. Embaixo, na terra, ninguém o protege: é o talpídeo, o louco, - o animoso Alferes. Mas, dourado e roxo, o campo alvorece. Desmancham-se as brumas nos prados celestes. Acordam as aves e as pedras repetem músicas, rumores, do dia que cresce. Move-se a tropilha: que outra vez se apreste o macho rosilho do animoso Alferes. Adeuses e adeuses... Talvez não regresse. (Mas que voz estranha para a frente o impele?) Cavalga nas nuvens. Por outros padece. Agarra-se ao vento... Nos ares se perde.. (E um negro demônio seus passos conhece: fareja-lhe o sonho e em sombra persegue o audaz, o valente, o animoso Alferes.) Que importa que o sigam e que esteja inerme, vigiado e vencido por vulto solerte? Que importa, se o prendem? A teia que tece talvez em cem anos não se desenrede Toledo? Gonzaga? Alceus e Glaucestes? - Nenhum companheiro seu lábio revele. Que a língua se cale. Que os olhos se fechem. (Lá vai para a frente o que se oferece para o sacrifício, na causa que serve. Lá vai para sempre o animoso Alferes!) Adeus aos caminhos! - montes, águas, sebes, ouro, nuvens, ranchos, cavalos, casebres... - Olham-no de longe os homens humildes. E nos ares ergue a mão sem retorno que um dia os liberte. (Pois que importa a vida? aqui se despede do sol da montanha, do aroma silvestre: - venham já soldados que a prender se apressem; venham já meirinhos que os bens lhe seqüestrem; venham, venham, venham.. - que sua alma excede escrivães, carrascos, juízes, chanceleres, frades, brigadeiros, maldições e preces!. Venham, venham, matem: ganhará quem perde. Venham, que é o destino do animoso Alferes.) De olhos espantados, do rosilho desce. Terra de lagoas onde a água apodrece. Janelas, esquinas, escadas... - parece que há sombras que o espreitam, que há sombras que o seguem... Falas sem sentido acaso repete, - pois sente, pois sabe que já se acha entregue. Perguntas, masmorras, sentença... Recebe tudo além do mundo... E em sonho agradece, o audaz, o valente, o animoso Alferes. Romance XXVIII ou da denúncia de Joaquim Silvério No Palácio da Cachoeira, com pena bem aparada, começa Joaquim Silvério a redigir sua carta. De boca já disse tudo quanto soube e imaginava. Ai, que o traiçoeiro invejoso junta às ambições a astúcia. Vede a pena como enrola arabescos de volúpia, entre as palavras sinistras desta carta de denúncia! Que letras extravagantes, com falsos intuitos de arte! Tortos ganchos de malícia, grandes borrões de vaidade. Quando a aranha estende a teia, não se encontra asa que escape. Vede como está contente, pelos horrores escritos, esse impostor caloteiro que em tremendos labirintos prende os homens indefesos e beija os pés aos ministros! As terras de que era dono, valiam mais que um ducado. Com presentes e lisonjas, arrematava contratos. E delatar um levante pode dar lucro bem alto! Como pavões presunçosos, suas letras se perfilam. Cada recurvo penacho é um erro de ortografia. Pena que assim se retorce deixa a verdade torcida. (No grande espelho do tempo, cada vida se retrata: os heróis, em seus degredos ou mortos em plena praça; - os delatores, cobrando o preço das suas cartas...) Romance XLI ou dos delatores O que andou preso me disse que dissera o Carcereiro, que dissera o Capitão.. (Mas pareceu-lhe parvoíce, e não delatou primeiro porque não teve ocasião...) E mais: porque o Carcereiro depois passara o Meirinho... E o Capitão, do Ouvidor fora sempre companheiro... E que, por esse caminho, ia-se ao Governador... Mas agora, que o Meirinho, o Capitão mais o preso são da mesma condição... Já que não têm mais padrinho, posso fazer com desprezo a minha declaração. Digo o que me disse o preso, que de outro já o tinha ouvido, que o ouvira de outro... Não são máximas de grande peso: mas tudo, bem entendido, pode envolver sedição. Eu digo - por ter ouvido - que os filhos do Reino, em breve, cativos aqui. serão Tenha ou não tenha sentido, quem a dizê-lo se atreve merece averiguação. A minha denúncia é breve, pois nem sei se houve delito, nem se era conspiração. Mas, se ninguém os escreve, aqui deixo, por escrito, os nomes que adiante vão. Haja ou não haja delito, esses nomes assinalo, e escrevo esta relação. O que outros dizem, repito. E apenas meu nome calo, por ser o mais fiel vassalo, acima de suspeição. Parte 3 Romance XLIX ou de Cláudio Manuel da Costa “Que fugisse, que fugisse... - bem lhe dissera o embuçado! - que não tardava a ser preso, que já estava condenado, que, os papéis, queimasse-os todos... Vede agora o resultado: mais do que preso, está morto, numa estante reclinado, e com o pescoço metido num nó de atilho encarnado. - Isto é o que conta o vizinho que ouviu falar o soldado. Mas do corpo ninguém sabe: anda escondido ou enterrado? Dizem que o viram ferido, ferido, e não sufocado: de borco em poça de sangue, por um punhal traspassado. - Dizem que não foi atilho nem punhal atravessado, mas veneno que lhe deram, na comida misturado. E que chegaram doutores, e deixaram declarado que o morto não se matara, mas que fora assassinado. E que o Visconde dissera: “Dai-me outro certificado, que aquele ficou perdido por um tinteiro entornado!” E quem vai saber agora o que se terá passado? - Talvez o morto fosse outro, em seu lugar colocado. A sombra da noite escura encobre muito pecado. Talvez pelo subterrâneo fosse ao Palácio levado... Era homem de muitas luzes, pelo povo respeitado; Secretário do Governo, que vivia em grande estado: casa de trinta aposentos, muito dinheiro emprestado, e do velho João Fernandes, dono do Serro, afilhado! - Não creio que fosse morto por um atilho encarnado, nem por veneno trazido, nem por punhal enterrado. Nem creio que houvesse dito o que lhe fora imputado. Sempre há um malvado que escreva o que dite outro malvado, e por baixo ponha o nome que se quer ver acusado... Entre esta porta e esta ponte, fica o mistério parado. Aqui, Glauceste Satúrnio, morto, ou vivo disfarçado, deixou de existir no mundo, em fábula arrebatado, como árcade ultramarino em mil amores enleado. Romance LII ou do carcereiro Isso é o que diz o embargo. Mas eu, cá para mim, acho que, nesta história, ele vai ter mau fim. A esse é que levarão, pelas ruas afora, com baraço e pregão. Nunca lhe deram nada. Quem lhe daria agora perdão? Nunca o escrivão escreve o que a vítima diz. Não tem lei nem justiça quem nasceu infeliz. A verdade não vem defender acusados... Não se entende ninguém. Tudo isto é enredo grande, e, por todos os lados, falsidades se vêem. A roda anda e desanda, e não pode parar. Jazem no fundo, as culpas: morrem os justos, no ar. Romance LV ou de um preso chamado Gonzaga Quem sabe o que pensa o preso que todas as leis conhece, e continua indefeso! Aquele magistrado que digno fora, e austero, agora te aparece criminoso. E pondero: Tudo no mundo mente. (Daqui nem ouro quero...) Pode ser que assim falasse e pode ser que corressem lágrimas, por sua face. No remoto Passado fica o semblante vero, do que hoje aqui padece. Mas não me desespero, que a vida é sem Presente. (Daqui nem ouro quero...) Mas eram falas perdidas, que havia léguas e léguas de sua vida e outras vidas... Inocente, culpado? Enganoso? Sincero? Por muito que o confesse, o amor não recupero. No entanto, ó surda gente, daqui nem ouro quero... Parte 4 Romance LXXI ou de Juliana de Mascarenhas Juliana de Mascarenhas que andas tão longe, a cismar, levanta o rosto moreno, lança teus olhos ao mar, que já saiu barra afora, grande e poderosa nau, Senhora da Conceição, Princesa de Portugal. Vai para o degredo um homem que breve irás encontrar - claros olhos de turquesa, finos cabelos de luar. Vai para o degredo um poeta que se não pôde livrar de Vice-Reis e Ministros e Capitão-General. E era a flor do nosso tempo! E era a flor deste lugar! Lá se vai por essas ondas, por essas ondas se vai. Seca-lhe o vento nos olhos perolazinhas de sal; seca-lhe o tempo no peito sua força de cantar; as controvérsias dos homens secam-lhe no lábio os ais; e as saudades e os amores não sabe o que os fez secar. Juliana de Mascarenhas, distante rosa oriental, estende os teus negros olhos por essas praias do mar: vê se já não vai baixando, vê se já não vai baixar, dentre as velas, dentre as cordas, dentre as escadas da nau, aquele que vem de longe, aquele que a sorte traz - quem sabe, para teu bem, - quem sabe, para seu mal... Ai, terras de Moçambique, ilha do fino coral, prestai atenção às falas que vão correndo pelo ar: “Aquele é o que vem de longe, que se mandou degredar? Por três anos as masmorras o viram, triste, a pensar. Os amigos que tivera, amigos que não tem mais, foram para outros degredos; - Deus sabe quem voltará! A donzela que ele amava, entre lavras do ouro jaz; na grande arca do impossível deixou dobrado o enxoval, uma parte, já bordada, outra parte, por bordar. Muito longe é Moçambique.. - Que saudade a alcançará?” Juliana de Mascarenhas, Deus sempre sabe o que faz: põe teu vestido de tisso, bracelete, anel, colar. Mais do que Marília, a bela, poderás aqui brilhar. Vem ver este homem tranqüilo que mandaram degredar. Romance LXXIII ou Da Inconformada Marília Pungia a Marília, a bela. negro sonho atormentado: voava seu corpo longe, longe, por alheio prado. Procurava o amor perdido, a antiga fala do amado. Mas o oráculo dos sonhos dizia a seu corpo alado: “Ah, volta, volta, Marília, tira-te desse cuidado, que teu pastor não se lembra, de nenhum tempo passado... E ela, dormindo, gemia: “Só se estivesse alienado!” Entre lágrimas se erguia seu claro rosto acordado. Volvia os olhos em roda, e logo, de cada lado, piedosas vozes discretas davam-Lhe o mesmo recado: “Não chores tanto, Marília, por esse amor acabado: que esperavas que fizesse o teu pastor desgraçado, tão distante, tão sozinho, em tão lamentoso estado?” A bela, porém, gemia “Só se estivesse alienado!” E a névoa da tarde vinha com seu véu tão delicado envolver a torre, o monte, o chafariz, o telhado..., Ah quanta névoa de tempo, longamente acumulado... Mas os versos Mas as juras Mas o vestido bordado! Bem que o coração dizia - coração desventurado - “Talvez se tenha esquecido... “ “Talvez se tenha casado...” Seu lábio, porém, gemia: “Só se estivesse alienado!” Parte 5 Retrato de Marília em Antônio Dias (Essa, que sobe vagarosa a ladeira da sua igreja, embora já não mais o seja, foi clara, nacarada rosa. E seu cabelo destrançado, ao clarão da amorosa aurora, não era esta prata de agora, mas negro veludo ondulado. A que se inclina pensativa, e sobre a missa os olhos cerra, já não pertence mais à terra: é só na morte que está viva. Contemplam todas as mulheres a mansidão das suas ruínas, sustentada em vozes latinas de réquiens e de misereres. Corpo quase sem pensamento, amortalhado em seda escura, com lábios de cinza murmura “memento, memento, memento...”, ajoelhada no pavimento que vai ser sua sepultura.) Romance LXXXIII ou da Rainha morta Ah! Nem mais rogo nem promessa nem procissão nem ladainha: somente a voz do sino grande que brada: “Está morta a Rainha!” Ai, a neta de Dom João Quinto! Ai, a filha da Marianinha! Tão gasta pela idade, apenas a amarga loucura a sustinha. E eram ecos da artilharia, dos navios, das fortalezas... Bandeiras tristes, vasto pranto de criados, fidalgos, princesas... No altar, a cruz a abrir os braços para a miséria das grandezas. Em redor da cama, os tocheiros, com chorosas tochas acesas. Ordens de Cristo, Avis, São Tiago, cobrindo-lhe o negro vestido. Manto de veludo encarnado, de estrelas de ouro guarnecido. O braço esquerdo, sobre o peito, O outro, nas sedas estendido: e toda a corte prosternada, nesse beija-mão comovido. Em caixões de lhama e de chumbo, foi seu velho corpo guardado. Mil perfumes o socorriam para manter-se embalsamado. E o resto eram franjas e borlas e veludo preto agaloado e o cetro e a coroa marcando o fim de um trágico reinado. Era o clero, a nobreza, o povo e, entre aspersões e responsórios, estolas, reverências, velas, a oscilação dos incensórios. E cavalos de mantas pretas levando a vagos territórios um pequeno corpo sozinho, perdido em régios envoltórios. O resto era a noite, a lembrança daquela mão, póstuma e pura, que causara degredo e morte com sua breve assinatura, e logo lavara o seu gesto no eterno fogo da loucura. Coches negros nas ruas negras. Lento ritmo de negros vultos. Deslizava o enterro solene. E, no enorme silêncio ocultos, os pensamentos recordavam tempos e rostos insepultos... Fala dos inconfidentes mortos Treva da noite, lanosa capa nos ombros curvos dos altos montes aglomerados... Agora, tudo jaz em silêncio: amor, inveja, ódio, inocência, no imenso tempo se estão lavando... Grosso cascalho da humana vida... Negros orgulhos, ingênua audácia, e fingimentos e covardias (e covardias!) vão dando voltas no imenso tempo, - à água implacável do tempo imenso, rodando soltos, com sua rude miséria exposta... Parada noite, suspensa em bruma: não, não se avistam os fundos leitos... Mas, no horizonte do que é memória da eternidade, referve o embate de antigas horas, de antigos fatos, de homens antigos. E aqui ficamos todos contritos, a ouvir na névoa o desconforme, submerso curso dessa torrente do purgatório... Quais os que tombam, em crime exaustos, quais os que sobem, purificados? FIM