Entrevista Mas o vosso portuguěs parece muito mais adaptável do que o nosso... Bern... Nós achamos que quem tern sotaque é sempře o outro [risos]. Voces parece que tem uma grande fome de vogal, comem-nas quase todas. Mas há grandes linguistas que dizem que os brasileiros tém uma lingua mais próxima de Camoes. Quando se lé o Lusíadas imitando o sotaque brasileiro, a sonoridade e o ritmo dos versos ganham outra grandiosidade. Acho fantástico o Portuguěs ser uma lingua muito criativa que se adapta sem perder a estrutura original. Nós, por exemplo, estamos mais abertos ao «internés» e ao inglés. Dizemos «mouse» e nao rato, conjugamos todas as formas do verbo «deletar», incorporámos o verbo «clicar»... Antonio Carlos Sartini 'A lingua se cria na rua' Construido nos longos corredores dos escritórios - trés andares com 4 332 mz - que davam apoio logistico äs remessas de café das fazendas, na Estacäo da Luz, o Museu da Lingua Portuguesa (único no mundo), onde se cruzam as tecnologias multimédia, a arte e o virtual, as palavras, o audio, a interatividade e o maior «teläo» do mundo, com 106 metres, situa-se numa zona emblemática. Aqui desembocavam os emigrantes que, pela primeira vez, tomavam contacto com 0 idioma - e que tanto contribuiram para o acrescen-tarem e renovarem. E como disse o ex-ministro da cultura Gilberto Gil, aquando da sua inauguracäo: «A lingua fala por si». POR ANA MARGARIDA DE CARVALHO, EM SÄO PAULO Como se tornou este museu de património imaterial um dos mais vistos do Estado de Säo Paulo (ao lado do museu do Futebol e da Pinacoteca)? No inicio houve reservas, como os adolescentes que ficavam na porta, desconfiados, achando que iam assistir a uma coisa chata, uma aula de gramática ou algo parecido... Mas depois, eles se fascinavam. É que este museu é um filho com muitos pais e muitas mäes. Eu näo dou certidäo de nascimento para ele. Nasceu de uma equipa multidisciplinar, de linguistas, historiadores, museólogos, antropólogos e artistas. Isso se refletiu no dinamismo do museu. Tal como a nossa lingua: sempře se reinventando em cada esquina. Parece invulgar dedicar um museu a algo que näo se vé nem se toca... Mas a lingua é täo orgänica. As pessoas usam-na no dia a dia e nem däo conta das suas transformacöes. É como respirar... 0 portuguěs do Brasil é muito mais inventivo do que o de Portugal. Näo é só questäo de inventividade, mas também de História. O Brasil tinha originalmente 1800 línguas indígenas. A partir de 1500, surge o portuguěs, os idiomas dos escravos africanos e, ao longo dos séculos, muitos emigrantes, cada um com a sua contribuicäo. Foiumanecessidade... B.I. PRODUTOR CULTURAL Diretor do Museu de Lingua Portuguesa, em Sao Paulo, que abriu as suas portas ao publico em 2006. Com formagao em Direito, ja foi membra dos conselhos Estadual de Cultura, Paulista de Cinema, Consultivo da Orquestra Sinfonica de Sao Paulo. Entre 1996 e 2002 ocupou 0 cargo de diretor tecnico do Departamento de Formagao Cultural da Secretaria de Cultura do governo do Estado de Sao Paulo. Os puristas da lingua brasileiros näo reagem? Aqui näo temos puristas! A grande maioria dos linguistas é favorável ä adaptagäo e evolucäo. As línguas que näo se adaptam, es-quecem-se. Os grandes linguistas do mundo encaram de forma saudável o processo de transformacäo. A lingua se cria na rua. E a lingua escrita tenta reproduzir a falada. A vossa/nossa lingua é ainda mais a vossa pátria? Sem dúvida que é o nosso fator de identi-dade, o nosso elo. Há trés coisas que unem os brasileiros: o futebol, as festas populäres, como o camaval, e a lingua portuguesa. Por isso, este acaba sendo o museu da nossa identidade cultural. É preciso ver que até 1750 menos de 20% da populacäo falava portuguěs, que só era utilizado para a burocracia. De resto, o corrente era o idioma geral criado pelos jesuítas. Em 1800,70% da populacao paulista usava esta mistura de línguas indígenas. O Marques de Pombal foi muito inteligente em propor ao rei que, sendo o Brasil um território täo vasto e as províncias täo distantes, se criasse o ensino obrigatório de portuguěs, sob o risco do território se fragmentar. A mesma logica pode funcionar agora, neste momento de globalizacäo inevitável? Sim, agora que todos no mundo se vestem de mesma forma, comem a mesma comida e até a arquitetura se uniformizou, os fatores culturais e a lingua ganham enorme impor-tancia. Já nem nos lembramos que Pessoa näo é brasileiro; é como se fosse nosso. Já o incorporámos também [risos]. S3 18 VISÄO 9 DE AGOSTO DE 2012 OPINIAO CRÓNICÄ Jose Luis Peixoto Existencialismo Eu tinha trés caixotes cheios de livros no carro. Na noite anterior, já tarde, depois de um dia inteiro, tive preguica de carregá-los até ao elevador e, após sete andares, abrir-lhes a porta de casa. Ainda cedo, em calcöes e chinelos, a primeira coisa que me lembrei de fazer foi ir buscar os livros, antes que a manhä aquecesse demasiado. No elevador, desci sério e despenteado, reflectido por espelhos. Äs vezes, penso: ese um dia acordasse no corpo de outra pessoa? A minha consciéncia tal como é, mas no corpo de outra pessoa. De repente, acordar, espreguicar-me e ter, por exemplo, o corpo do Cristiano Ronaldo, a vida do Cristiano Ronaldo, as pessoas vira-rem-se para mim e chamarem-me Cristiano Ronaldo, falar com a voz dele, aproximar--me de urna bola e, sem esf orco, fazer aque-les truques. E depois? E o que é que faria, sendo o Cristiano Ronaldo, mas tendo os meus pensamentos e estando na minha casa? Se saísse ä rua, toda a gente se havia de admirar: o que estava o Cristiano Ronaldo a fazer ali sozinho? Havia de juntar-se uma multidäo. E será que as minhas roupas lhe serviam? Duvido. O Cristiano Ronaldo, no meu bairro, embrulhado num lencol, daria notícia čerta no telejornal. O lado positi-vo desse escändalo, séria a possibilidade retomar a vida, voltar aos treinos. Ao acordar na minha casa, dentro do seu corpo, näo teria os seus números de telefóne. E a minha vida? Havia de sentir muita falta dela. Será que, algures, existiria o meu corpo habitado pela consciéncia do Cristiano Ronaldo? Essa troca näo sériaboa para nenhum dos dois. Como Cristiano, mas com a minha consciéncia, imagino-me terrivelmente só, sentado num sofá enorme, os seus cunhados afala-rem para mim e a serem-me desconhecidos. Naquela manhä, ainda antes de sair, através do vidro da porta do prédio, vi um cachorrinho branco deitado sobre a calcada, um caniche de pélo encaracolado, muito sereno e perfeito, com as pernas muito direitas, com um casaquinho azul. Enquanto abria a porta, pensei que era uma pena näo ter trazido o meu telemóvel. Aquela imagem '...) tambémpoderia acordar no corpo de uma chinesa ou de uma indiána. Nesse caso, haveria dificuldades de outra ordern daria uma bela foto: o fundo geométrico da calcada e a tranquilidade terna do cachorrinho. Aproximei-me para lhe fazer uma festa e vi que tinha os olhos meio abertos, a boca estava meio aberta e o topo da cabeca escor-ria um fio de sangue já coagulado. Acordar no corpo do Cristiano Ronaldo séria uma probabilidade remota. A acordar no corpo de alguém, se a matemática esti- ver minimamente čerta, seria muito mais provável que acordasse no corpo de um chinés ou de um indiano. Nesse caso, existiria a dinculdade da lingua e dos alfabetos. Seguindo o mesmo raciocínio também poderia acordar no corpo de uma chinesa ou de uma indiána. Nesse caso, haveria dificuldades de outra ordern. A porta do meu prédio, olhando para cima, estäo as varandas de oito andares. O mais certo é que o cäo estivesse numa delas e, desconhe-cendo a altura que o esperava, tenha saltado. Assim que vi a sua boca semiaberta, a mostrar uma tira da lingua, fui logo capaz de imaginär todos os detalhes, como se passasse instantaneamente para o seu corpo: - Era urn animal brincalhäo, daque-les simpáticos, que abanam o rabo de roda das pessoas, daqueles que saltam. - O momento do seu voo no ar. A imagem da sua queda vista pelos seus olhos. E vista de longe: urn caniche branco, com urn casaquinho azul, a cair de uma varanda, lenta e longamente, uma imagem parada. - O seu choque com o chäo: o som da carne. Um som isolado de todos os outros, como se acontecesse um momento de siléncio absoluto para se escutar apenas aquele som, o som da carne. - E depois, no chäo, näo ficou logo naquela posicäo täo direita, esperneou. Em momentos da adolescéncia, passou-me pela cabeca a ideia de que talvez fosse imortal. Nada me garantia que viesse a morrer. Daqui a um més faco 38 anos. A esse respeito, em concreto, näo tenho mais garantias do que tinha. Por trés vezes, carregado com caixotes cheios de livros, passei ao lado do caniche. Näo tive coragem de tirá-lo do meio do passeio. Tentei näo olhar para ele, mas nunca fui capaz. Acabei sempře por vé-lo na fronteira do meu campo de visäo, o seu vulto. Em cada uma dessas vezes, imaginei-me nolugardele.H 10 VISÄO 9 DE AGOSTO DE 2012