I love my husband Fonte: http://www.releituras.com/npinon_husband.asp Nélida Pińon Eu amo meu marido. De manhă ŕ noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe ŕ porta tręs vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com afliçăo. Năo quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado. Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um păo sempre quentinho e farto. Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chăo, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis. A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele năo me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que năo faço outra coisa senăo consumir o dinheiro que ele arrecada no verăo. Eu peço entăo que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento. O que mais quer, mulher, năo lhe basta termos casado em comunhăo de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum. Comecei a ambicionar que maravilha năo seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranqüilo, gerisse o futuro. Decididamente, năo podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a năo precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe ŕ porta, arranhara suas paredes com inscriçőes e datas. Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do męs que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu năo podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até entăo estivera imersa. Entăo o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas măos, para minhas măos năo sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pęlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal? Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto ŕ verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para năo me ter inteira? De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. Năo é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no chăo logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo. Eu lhe disse entăo, se năo quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde ŕs vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa? Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, năo queria feri-lo, mas já năo mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsăo, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu năo sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pęlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava entăo o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d'água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças. O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chăo, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha vocę, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que vocę começa a chorar discreto, porque o teu orgulho năo lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado ŕ minha condiçăo de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para năo vę-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e tręs portarias. Nas reuniőes de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte. Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboraçăo, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tăo alto. Encarregava-me eu ŕ distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que năo se poderia contabilizar. Ele năo precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeiçăo dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos. Durante uma semana bati-lhe ŕ porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha măe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condiçăo feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo năo é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo. Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senăo o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata ŕ palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao năo se cumprir a história da mulher, năo lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude. Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. Eu năo sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coraçăo, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu năo ambicionara antes, por distraçăo talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até entăo sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmăo que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher. Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a măe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A măe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes. Meu coraçăo ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As măos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tăo felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família. Ele é único a trazer-me a vida, ainda que ŕs vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que năo faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Năo preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem săo aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Năo tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento. Assim fui aprendendo que a minha conscięncia que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar ŕs vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senăo para absorver meus sonhos, multiplicá-los no silęncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos. Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que năo é o meu, mergulho numa exaltaçăo dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que năo me envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensaçăo fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa. Estes meus atos de pássaro săo bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentaçőes. Ele parece perdoar-me ŕ distância, aplaude minha submissăo ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, năo sei como abrandá-la. Năo a menciono senăo para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas năo marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato. Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele năo suportaria o peso dessa confissăo. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razăo. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada. Năo posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versăo do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Năo sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que năo percebo. Mas, a verdade é que no fim do dia já năo sei quantos anos tenho. E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já năo visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente apreciados. Ŕs sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou ŕ sua espera. E quando a televisăo exibe uns corpos em floraçăo, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade ŕs vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que năo é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto entăo a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do păo comido ŕs vésperas, e que me alimentará amanhă também. Um păo que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido. Nélida Pińon, jornalista, romancista, contista, professora, é carioca de Vila Isabel, Rio de Janeiro, RJ. Nasceu em 3 de maio de 1937. Eleita em 27 de julho de 1989 para a Cadeira n. 30, na sucessăo de Aurélio Buarque de Holanda, foi recebida em 3 de maio de 1990, pelo acadęmico Lędo Ivo. Foi a primeira mulher, nos mais de 100 anos de existęncia da ABL, a integrar a Diretoria e ocupar a presidęncia da Casa de Machado de Assis, no ano do seu I Centenário. Sua produçăo literária está traduzida para países como Alemanha, Itália, Espanha, Uniăo Soviética, Estados Unidos, Cuba e Nicarágua. Contos seus encontram-se publicados em centenas de revistas e fazem parte de antologias brasileiras e estrangeiras. Recebeu vários pręmios literários: Pręmio Walmap, pelo romance Fundador (1970); Pręmio Mário de Andrade, pelo romance A casa da paixăo (1973); Pręmio da Associaçăo Paulista de Críticos de Arte e Pręmio Ficçăo Pen Clube pelo romance A República dos sonhos (1985); Pręmio José Geraldo Vieira, da Uniăo Brasileira de Escritores de Săo Paulo, pelo romance A doce cançăo de Caetana (1987); Pręmio Golfinho de Ouro, pelo Conjunto de Obras, conferido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro (1990); Pręmio Bienal Nestlé, pelo Conjunto de Obras (1991); Pręmio Internacional de Literatura Juan Rulfo, o mais importante da América Latina e do Caribe, concedido pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa (1995); Pręmio Menéndez Pelayo, concedido pela universidade espanhola de mesmo nome, em 2003. A escritora foi agraciada com o Pręmio Príncipe de Astúrias das Letras de 2005, concedido pela fundaçăo de mesmo nome, da Espanha. Obras: Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, romance (1961) Madeira feita de cruz, romance (1963) Tempo das frutas, contos (1966) Fundador, romance (1969) A casa da paixăo, romance (1977) Sala de armas, contos (1973) Tebas do meu coraçăo, romance (1974) A força do destino, romance (1977) O calor das coisas, contos (1980) A república dos sonhos, romance (1984) A doce cançăo de Caetana, romance (1987) O păo de cada dia: fragmentos, contos (1994) A roda do vento, romance infanto-juvenil (1996) Até amanhă, outra vez, romance (1999) Cortejo do Divino e outros contos escolhidos, contos (2001) O presumível coraçăo da América, discursos (2002) Vozes do deserto, romance (2004) Coraçăo andarilho (2009) O ritual da arte, ensaio sobre a criaçăo literária (inédito). O texto acima foi publicado no livro "O Calor das Coisas", Editora Record - Rio de Janeiro, 1998, e extraído de "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 451, seleçăo de Italo Moriconi.