1. ITALO MORJCONI Organiza^áo, Introdu^äo c Referenda Bíbliográficas i Os Cem Melhores Contos *o*> fi^an^A /TaJpj^c4^ ! Brasileiros do Sécuio osmiu Bernardo Carvaľno Estäo apenas ensaiando Bernardo Carvalho Estao apenas ensaiando. Ao mesmo tempo em que os dois arores avancam pelo palco, saindo das coxias a esquerda para o centro da cena, um homemenrranasalaescura;ecomeleuma nesgadaluzdas cincopela-fires ta da porta que entreabriu ao fundo e que separa a plateia do hall e da rua, onde o dia segue o seu curso com um burburinho de buzinas, motores e sirenes. O direror, na quinta fila, procura com a mao, tateando, a coxa de sua assistente, para Ihe dizcr alguma coisa ao ouvido, e o iluminador interrompe a piada que ia sussurrando ao tecnico a seu lado, no mezanino, ja que retomam a cena. Quando os dois arores colocam os p& de novo no palco, avancando das coxias a esquerda para o centre, e interrompendo tambem o que sussurravam um ao outro nos bastidores, para passar em alto e bom som ao dialogo que decoraram, o homem que acabou de entrar ao fundo e ainda menos que um vulto sem rosto, porque ja nao rem nem mesmo a nesga de luz das cinco para destaca-lo da penumbra, agora que a porta que separa a sala escuta do hall e da rua se fechou. O diretor com a mao na coxa da assistente, depois de lhe sussurrar qualquer coisa ao ouvido, que a faz rir baixinho, controlada, espera ansioso, e pela enesima vez, que a fala seja dita pelo aror com a entonacao desejada, e o iluminador, no mezanino, aguarda por seu turno uma nova interrupcao — no fundo, mesmo que inconscien-temente, torce por mais um fracasso da interpretacao, para poder terminar de uma vez por todas a piada que contava ao tecnico. Um ator diz ao outro, no centro do palco: "Vocé é o malfeitor; e por isso precíso saber quem é vocé, onde está, de onde vem, do que é capaz para ter tamanho poder e me provocar sem prevenir, devastando o meu pasto verdejante, e minando, para derrubá-lo, o meu muro de arrimo." E é quando o outro, que embora sem a foice ou o manto (estäo apenas ensaiando) responde pela morte, vai abríndoaboca, que o diretor mais uma vez, tirando a mäo da coxa daassistente, interrompe a cena com um gesto, para perguntar num tom propositalmente inaudível, de ráo irritado que está, quantas vezes mais vai tet de explicar. Ele repete, como se falasse para dentro, que se trata de um texto do século XV, que o humilde lavrador invoca a morte (aqui tepresenrada por um homem} com as palavras que Ihe restam como último reeurso, quer que ela se compadeca dele e Ihe devolva a muiher adorada, vítima das arrocidades da guerra. O diretor repete irritado que falta vigor ä intetpretacäo do aror, e desespero, náo parece que o humilde lavrador esceja realmente sofrendo ou indignado pela injustica da morte da muiher na flor da idade. Diz isso aos dois atores e depois, enquanro eles voltam para as coxias, sussurra a mesma coisa ao ouvido da assistente, arrematando com uma gracinha que a faz sacudir num risinho sineopado. De volta ás coxias, o ator que interpreta o humilde lavrador aproveita para retomar com o oucro que interpreta a morte o sussurro que havia inrerrompido. Desanca o diretor, diz que náo dá para mostrar desespero com um texto daqueles, inverossímil, ninguém vaífalarcom a morte daquelejeito depois de perder a muiher de uma maneira violenta. Resmunga baixinho qualquer coisa sobre o tipo de representacao que aquela cena exige, na sua opiniáo, e que tem a ver com um certo distanciamento. De repente, no meio da frase sussurrada, olhando o relógio (nSo precisa tirá-lo, estäo apenas ensaiando), exclamaahoranum murmúrio, fala qualquer coisasobre o arraso da própria muiher, que ela já devia ter chegado, e ao mesmo tempo em que diz isso, o iluminador no mezanino tenta inutilmente sussurrar o final da sua piada, porque mal esboca o desenlace cômico e os dois atores já estáo de volta ao palco, seguindo os sinais mudos da assistente do diretor, e o homem ao fundo da sala, após uns ínstantes parado indistinto dentro da sombra, já avanca alguns passos pelo corredor lareral da platéia. O ator que interpreta o humilde lavrador vira-se para o outro, que interpreta a morte, embora sem foice ou manto (estáo apenas ensaiando), e vai abrir a boca quando percebe que, em vez de olhá-lo, o diretor, sempre com a mao na coxa da assistente, cochicha algo ao seu ouvido que a faz levar a mao aos lábios para impedir que o riso tnmsborde. Percebe o diretor, que 592 Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século 593 I Estöo openas ensaiando esta na centra da sala, na quinra fila, mas näo o vulto que avanca pelo lado, na penumbra. Irn'rado, o ator repete a cena identica ä que tinha feiro antes, declamando sua fala com o mesmo distanciamento que Ihe parece t5o apropriado, ao que o diretor enfurecido se levanta e, balancando os bracos c sacudindo a cabeca, mudo, da a entender que esta pessimo. Com a nova interrupcao, o iluminador trata de retomar do infcio a piada que contava ao tecnico, porque, a cada vez que a recoma, volta sempre ao comeco com medo de que a quebra interfira no efeito cömico. Seu sussurro agora e mais corrido, rentando razer caber a piada inteita no espaco de cempo enire a interrupcao do diretor e o retorno dos atores ao palco. Nas coxias, enquanto olha o relögio (estäo apenas ensaiando), o ator que faz o humilde lavrador repete baixinho ao outro, que faz a morte, que a mulher a esta altura ja deviater chegado, como tinhamcombinado, porque ele proprio lhe dissera que tudo terminaria äs cinco, näo podia imaginär que o diretor se revelasse urn tamanho idiota justameme com esse texto inverossi'mii, e que o ensaio se arrasrasse tanro. A assistente dä o sinal mudo para que recomecem e o iluminador inrerrompe inconformado, mais uma vez, ja quase no fim, a piada que sussurravaao tecnico no mezanino, eque corre o risco dc perdera graca pehi repeticäo. O hörnern que vinha avancando lenramente pelo corredor lateral agora para ä altura da quinta fila ao ver os dois atores de novo no palco. O humilde lavrador vira-se para a morte e diz: "Voce i o malfeitor." O diretor pede que parem. O torn compreenswo de sua voz e apenas um disfarce que o ator estd cansado de conhecer e em geral precede uma crise de nervös. O diretor esta tentando se concrolar, sussurra: "Sera que voce näo compreende? Ele perdeu a mulher, na flor da idade, esti desesperado, indignado conrra a injustica da morte e dos homens e por isso a invoca, ainda acredita que pode convence-la a lhe devolver a mulher adorada. Ningue'm diz isso com distanciamento." Osdoissaem do palco. Olhando o relögio, o humilde lavrador sussurra de novo ä morre sem foice ou manto algo sobre o atraso da mulher, que a esta altura ja devia estar sentada na plasia. Näo entende por que ela ainda näo chegou, como se ja näo bascasse o atraso do ensaio, gracas a imbecil idade do diretor. E enquanto o humilde lavrador sussurra a sua indtgnacao, o hörnern que antes era apenas urn vuho ja avanca pela quinta fila, agora de lado, na direcao do diretor e de sua assistente, que s6 o veem quando ja esta a apenas algumas poltronas deles. Senta-se para se fazer menos notado quando a assistente ja esta com o braco levanrado, indicando aos arores que podern recomecar, e enquanto ele Ihes revela num murmürio o que veio Bernardo Corvolho anunciar sobre o mundo do lado de fora, eque os petrifica, o iluminador no mezanino se aproxima num sussurro da conclusao da piada. O humilde lavrador de relogio e a morte sem foice ou manto (estao apenas ensaiando) en tram no palco. O lavrador vira-se para a morte e reinicia a sua ladainha com a mesma entonacao e o distanciamento que lhe parecem mais apropriados. Mas desta vez, para sua surpresa, o diretor nao o inrerrompe, porque tern os olhos arregalados e esta Hvido enquanto o homem, antes apenas urn vulto, lhe sussurra algo ao ouvido. E ao ver o homem que sussurra ao ouvido do diretor, e o olhar desre e de sua assistente, que pela primeira vez nao o interrompem, mas permanecem a encara-lo com os olhos aterrados e arregalados (a assistente com os olhos cheios de lagrimas diante da siipHca que o lavrador faz a morte) enquanto escutarn o que o outro Ihes diz ao ouvido, curvado na poltrona ao lado, embora a entonacao no palco tenha sido a mesma e devesse pottamo, pela 16gica, ser mais uma vez interrompida, o proprio ator interrompe a acao e por fim compreende aterrorizado e a um so tempo a sinistra coincidSncia da cena e do momento, o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, com buzinas, mototes e'sirenes; compreende por que a mulher nao apareceu c afinal o que sence o humilde lavrador; compreende por que o diretor nao o imerrompcu desta vez, porque por fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua siiplica diante da morte; compreende que por um instantc encarnou de fato o lavrador, que involuntaria e inconscienremente, por uma rrapaca do descino, tornou-se o proprio lavrador pelo que aqueie vulto veio anunciar; compreende tudo num segundo, antes mesmo de sabet dos detalhes do acidente que a marou atravessando a rua a duas quadras do teatro, diante dos olhos arregalados do diretor e da assistente, sob as gargalhadas incontidas do iluminador e do tecnico no mezanino, chegando ao fim da piada. 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