CRÓNICA | CRISE POLÍTICA EM ESPANHA

Inveja de Portugal

À ESPERA Mariano Rajoy, um homem à espera FOTO JUAN MEDINA / REUTERS

À ESPERA Mariano Rajoy, um homem à espera FOTO JUAN MEDINA / REUTERS

Pedimos a um espanhol que conhecesse bem Portugal para escrever sobre a crise política em Espanha, agora que é quase certo que as eleições se vão repetir em dezembro. O correspondente do diário “El País” em Lisboa assumiu-se um “João Sem-Terra” e escreveu esta crónica repleta das perplexidade que assaltam os seus conterrâneos. “Há Governo na sexta-feira?”, perguntou-lhe o nosso primeiro-ministro. “Qual quê!”, respondeu Javier Martín, que considera os líderes políticos portugueses superiores aos seus colegas espanhóis

TEXTO JAVIER MARTÍN, CORRESPONDENTE DO “EL PAÍS” EM LISBOA

É estranha a vida de um correspondente. Vê de longe os problemas do seu país e os que existem em seu redor são de outros. O correspondente é um João Sem-Terra. Vive e escreve, com o ceticismo do apátrida, sobre aquilo que vê no seu país de destino, enquanto lhe parecem absurdos e mesquinhos os tumultos do seu país de origem. Os de cá perguntam como estão as coisas lá; os de lá, como estão aqui. E, por vezes, como é o caso, a distância é tão pequena, a paisagem tão igual, as preocupações das pessoas tão idênticas, que colocam em evidência os grandes conceitos de Estados, pátrias, hinos e fronteiras.

Para efeitos oficiais, porém, é-se, porque o diz o passaporte, espanhol de Espanha – palavra muito pouco utilizada em Espanha –, mais concretamente do velho reino de Navarra, algo que outros nunca foram (e peço desculpa aos vizinhos de Euskadi e de outras regiões “históricas”). Partindo dessa distância conceptual, desse ceticismo de quem vive numa varanda que dá para a propriedade ali em frente, perguntam-me o que vejo ou, mais concretamente, se vejo algo que escape aos que estão comigo na mesma varanda. E é então que um indivíduo que se pode gabar de ter previsto – conforme ficou escrito no diário “AS” – o triunfo de Portugal no Europeu de futebol se vê incapaz de ir além do “não sei”. Tantas vezes se enganou, no último ano, sobre o que acontece na vida política espanhola que agradece que lhe paguem para escrever sobre Portugal. Caso contrário, iria engrossar as filas do desemprego, as tais onde nunca encontraremos os políticos, mesmo que não façam o seu trabalho.

BLOQUEIO Pedro Sánchez mantém-se intransigente no processo de formação de Governo FOTO CHEMA MOYA / EPA

BLOQUEIO Pedro Sánchez mantém-se intransigente no processo de formação de Governo FOTO CHEMA MOYA / EPA

Ainda quarta-feira o primeiro-ministro António Costa me perguntou: “E vocês? Há Governo na sexta-feira?”. “Qual quê!”, respondi. “Talvez em outubro ou, quem sabe, em dezembro.” O governante respondeu-me afavelmente: “Nós, portugueses, tornámos as coisas mais simples”. “Nós somos muito burros”, retorqui, e falava a sério, embora ele tenha achado que era piada.

Não havia tempo para mais e tampouco era questão de louvar o primeiro-ministro e prejudicar a reputação profissional, mas voltou-me à memória – uma vez mais, neste ano em que se sobrepuseram as eleições de ambos os países – a ideia de que os líderes políticos portugueses são, um por um, superiores aos seus colegas espanhóis: Costa a Sánchez; Passos Coelho a Rajoy, Portas (Cristas está no cargo há pouco tempo) a Rivera, Martins a Iglesias, Sousa a Garzón… até o solitário deputado ambientalista André Silva é muito mais eficaz do que o seu colega espanhol Uralde.

Não tenho dúvida de que com eles já haveria algum acordo em Espanha, apesar da grande gerigonça – essa sim – de múltiplos e variados partidos nacionalistas que adornam o Parlamento. É claro que não quero castigar os portugueses com um intercâmbio de líderes, gostava apenas que os de cá tomassem conta das coisas de lá, recebendo por isso os salários suculentos, subsídios e prebendas dos políticos espanhóis, incluindo o direito a trocar de tablet e smartphone de cada vez que sai uma nova versão.

BLOQUEIO II Pablo Iglesias (à direita), também  intransigente  e satisfeito com o impasse FOTO JUAN CARLOS HIDALGO / EPA

BLOQUEIO II Pablo Iglesias (à direita), também intransigente e satisfeito com o impasse FOTO JUAN CARLOS HIDALGO / EPA

Espanha está desde novembro sem um verdadeiro Governo. Visto daqui, não surpreende que a economia esteja bem, como não surpreende o desgoverno. Os espanhóis (exclua-se os políticos) não estão surpreendidos. Estamos é cansados. Conhecemo-nos, somos capazes disto e de muito pior, mesmo que a casa venha abaixo. Por isso, toca a viver, que isto são três dias e na segunda-feira é feriado.

Não nos importa que durante estes meses a Europa se tenha rompido sem aviso, devido à incapacidade de outro político, Cameron, para entender o seu povo. Constrói-se uma Europa nova desenhada a gosto pela França, a Alemanha e a Itália. A quarta economia europeia, Espanha, não aparece, não existe ou, melhor ainda, está em gestão. Vemos, com inveja, que Hollande cancela viagens por causa do terrorismo mas reserva umas horas para vir a Portugal. Também Marcelo Rebelo de Sousa vai visitar Merkel e Hollande, voa de Moçambique para o Brasil e fala com cada qual no idioma que tiver de ser, enquanto ninguém espera que o vizinho Mariano Rajoy saia do triângulo Galiza / Castela-a-Nova / Castela-a-Velha.

»

Portugal faz inveja

Mais longe, na ONU, vota-se para saber se outro português, António Guterres, será secretário-geral da organização, numa mostra de diplomacia, ambição e competência que é impossível encontrar, hoje em dia, no país vizinho, onde as coisas avançam porque as pessoas avançam. Portugal faz inveja.

Para quem olhasse daqui, à distância, parecia impossível que houvesse umas segundas eleições em Espanha seis meses depois das anteriores. Agora vamos a caminho das terceiras. Nós, espanhóis, somos capazes de coisas incríveis, milagrosas. Vimo-lo há umas semanas, no Rio de Janeiro. Se uma miúda de Huelva consegue ganhar no badminton a todas as asiáticas, já não é assim tão estranho ir a votos no dia de Natal. Se nunca ninguém o fez, Espanha pode estabelecer esse recorde. Vamos, Rafa!

Jornal Expresso Quinta