zar um cisne negro. A sombra de um braco de Fu-Hi era o pescoc o estendido da ave... A sombra dos dedos esguios, a cabeca e o bico... — Este cisne vive num lago negro perto da minha aldeia. Muitas vezes lhe dei de comer... disse, tristemente, Fu-Hi. De súbito, o cisne transformou-se numa águia, que, de perfil, se colou á parede, recortada pelos dedos ágeis de Fu-Hi. — E a Aguia Cinzenta. No alto da montanha, protege a minha aldeia. E tantas vezes a vi voar sobre a minha casa! Acreditamos nós, lá na aldeia, que uma pena dela, que caia sobre um telhado, anuncia felicidade. Desapareceu a águia e veio uma borboleta. — Náo tern nome esta borboleta. É igual a tantas outras que namoram as flores do meu jardim, lá na minha aldeia... Depois surgiram galos, pombas, macaquinhos, veados e muitos outros bichos que traziam ao pobre camponés saudades da sua aldeia. Esculpidos habilmente pelas máos de Fu-Hi, projectados na parede, pareciam ter vida dentro. Náo eram sombras, eram recordacóes vivas. Por fim, desenhou-se na parede o perfil de um gato. — E o meu gato, senhor. Chama-se Tiqui. Quern sabe se ainda viverá? - e Fu-Hi suspirou. Foi-se o raio de sol. Desceram as sombras espessas da noite sobre o pa-lácio imperial. Depois de um longo siléncio, o imperador levantou os olhos para o pri-sioneiro e disse: — Volta para junto dos teus, Fu-Hi! Volta para a tua aldeia. Só uma con-dicáo te imponho: contigo iráo alguns fidalgos do meu séquito. Teras de abrigá-los em tua casa; teras de ensinar-lhes a tua arte das sombras. Náo os deixes regressar ao palácio, enquanto náo souberem fazer como tu fazes as águias, as borboletas, os cisnes, os gatos ... E quem sabe se náo foi assim que nasceram as sombras chinesas... In O Mercador de Coisa Nenhuma, Alfragide, ASA, 2014. 19. O lixo Luis Fernando Veríssimo - Brasil Encontram-se na area de servico. Čada um com seu pacote de lixo. E a primeira vez que se falam. — Bom dia... — Bom dia. 5 — A senhora é do 610. — E o senhor do 612. — É. — Eu ainda náo lhe conhecia pessoalmente... — Pois é... 10 — Desculpe a minha indiscricáo, mas tenho visto o seu lixo... — O meu qué? — O seu lixo. — Ah... — Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena... — Na verdade sou só eu. — Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata. — É que eu tenho que fazer minha propria comida. E como náo sei co-zinhar... — Entendo. 20 —A senhora também... — Me cháme de vocé. — Vocé também perdoe a minha indiscricáo, mas tenho visto alguns res-tos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim... — É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como 25 moro sozinha, ás vezes sobra... — A senhora... Vocé náo tem família? — Tenho, mas náo aqui. — No Espírito Santo. — Como é que vocé sabe? 30 — Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo. — É. Mamáe escreve todas as semanas. 85 — Ela e professora? — Isso e incrivel! Como foi que voce adivinhou? — Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora. — O senhor nao recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo. — Pois e... — No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado. — E. — Mas noticias? — Meu pai. Morreu. — Sinto muito. — Ele ja estava bem velhinho. La no Sul. Ha tempos nao nos viamos. — Foi por isso que voce recomecou a fumar? — Como e que voce sabe? — De um dia para o outro comecaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo. — E verdade. Mas consegui parar outra vez. — Eu, gracas a Deus, nunca fumei. — Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo... — Tranquilizantes. Foi uma fase. Ja passou. — Voce brigou com o namorado, certo? — Isso voce tambem descobriu no lixo? — Primeiro o buque de flores, com o cartaozinho, jogado fora. Depois, muito lenco de papel. — E, chorei bastante, mas ja passou. — Mas hoje ainda tern uns lencinhos... — E que eu estou com um pouco de coriza. — Ah. — Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo. — E. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Nao saio muito. Sabe como e. — Namorada? — Nao. — Mas ha uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Ate bonitinha. — Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga. — Voce nao rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, voce quer que ela volte. — Voce ja esta analisando o meu lixo! — Nao posso negar que o seu lixo me interessou. — Engracado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhece-70 -la. Acho que foi a poesia. — Nao! Voce viu meus poemas? — Vi e gostei muito. — Mas sao muito ruins! — Se voce achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles so estavam do-75 brados. — Se eu soubesse que voce ia ler... — So nao fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, nao sei: o lixo da pessoa ainda e propriedade dela? — Acho que nao. Lixo e dominio publico. — Voce tern razao. Atraves do lixo, o particular se torna publico. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo e co-munitario. E a nossa parte mais social. Sera isso? — Bom, ai voce ja esta indo fundo demais no lixo. Acho que... — Ontem, no seu lixo... as — O que? — Me enganei, ou eram cascas de camarao? — Acertou. Comprei uns camaroes graiidos e descasquei. — Eu adoro camarao. — Descasquei, mas ainda nao comi. Quern sabe a gente pode... 90 — Jantar juntos? — E. — Nao quero dar trabalho. — Trabalho nenhum. — Vai sujar a sua cozinha. 95 — Nada. Num instante se limpa tudo e poe os restos fora. — No seu lixo ou no meu? In Comedias da Vida Privada, Porto Alegre, L&PM Editores, 1996. 86 87 a) "perdera o tino"(linha 9). b) "singular prisioneiro"(Hnhas 14-15). 1*. Que outro titulo daria a este texto? Justifique a sua opcao. Depois de ler 1. Gostou de ler este conto? Justifique a sua resposta. 2. As sombras chinesas sáo uma forma de arte que atrai publicos de todas as idades, nomeadamente em dramatizacoes. Com os seus colegas, represente o texto que acaba de ler com o recurso a essa forma de arte. 3. Conhece alguma outra "estoria'que envolvaum artista? Onde se passa? Quando se passa? O que aconteceu? 4. Escreva um texto de opiniáo, em torno da seguinte questáo, destinado a ser publicado numa revista em lingua portuguesa para adolescentes: "Qual 0 papel da arte, na sociedade actual?" Para o efeito, antes de comecar a escrever, pense: a) na(s) finalidade(s) do texto; b) nos seus eventuais destinatários (nível medio cultural, interesses, hábitos...); c) na estrutura do seu texto e nas ideias principals a apresentar; d) nos exemplos a dar para reforcar 0 seu ponto de vista; e) no vocabulário mais significativo a utilizar. Depois de escrever o texto, náo se esqueca de o reler, tendo em atencáo os seguintes parámetros: a) Respeito pelo tema. b) Correccáo ortográfica. c) Uso de vocabulário adequado e variado. d) Uso de conectores adequados. e) Recurso ao parágrafo para apresentar uma ideia nova. 19. O lixo Luis Fernando Verissimo Antes de ler 1. Ja ouviu falar da expressao "pegada ecologica"? Como a definiria? 2. Leia as seguintes informacoes: O uso excessivo de recursos naturais, o consumismo exagerado, aliado a uma grande producao de residuos, sao marcas de degradacao ambiental das sociedades humanas actuais que ainda nao se identificam como parte integrante da Biosfera. Foi a pensar na dimensao crescente das marcas que deixamos e na forma de quantifica-las, que os especialistas William Rees e Mathis Wackernagel desenvolveram, em 1996, o conceito de Pegada Ecologica. A Pegada Ecologica foi criada para nos ajudar a perceber a quantidade de recursos naturais que utilizamos para suportar o nosso estilo de vida, onde se inclui a cidade e a casa onde moramos, os moveis que temos, as roupas que usamos, o transporte que utilizamos, o que comemos, o que fazemos nas horas de lazer, os produtos que compramos, entre outros. A Pegada Ecologica nao procura ser uma medida exacta mas sim uma estimativa do impacto que o nosso estilo de vida tern sobre o Planeta, per-mitindo avaliar ate que ponto a nossa forma de viver esta de acordo com a sua capacidade de disponibilizar e renovar os seus recursos naturais, assim como absorver os residuos e os poluentes que geramos ao longo do anos. No conceito de Pegada Ecologica esta implicita a ideia de que dividi-mos o espaco com outros seres vivos e um compromisso geracional, isto e, "capacidade de uma geracao transmitir a outra um planeta com tantos recursos como os que encontrou" (Relatorio Brundtland). In http:/ / conservacao.quercus .pt/content/view/ 46/70/ 2.1. Discuta, com os seus colegas de turma, as informacoes principais colhidas no pequeno texto que leu. 2.2. Qual lhe parece ser a melhor maneira de defender o equilibrio eco-logico do nosso Planeta? 176 177 3- Responda, de seguida, as perguntas seguintes: 3.1. Que lixo produz diariamente? 3.2. Onde o coloca? 3-3. Faz separacao de residuos? Justifique a sua resposta. 3.4- Que destino tem o seu lixo? 3.5- Analisando o seu lixo, acha que alguem pode adivinhar a sua vida? Porque? Lendo 1. Leia, agora, o texto de Luis Fernando Verissimo (pp. 85-87) intitulado "O lixo" e, se necessario, consulte o Glossario e/ou um Dicionario. 2. Responda as perguntas: 2.1. Onde se encontram as personagens deste texto? 2.2. Quern sao elas? 2.3. Que tipo de relacao mantem entre si? 2.4. De que falam elas? Pormenorize a sua resposta. 2.5. Qual o desfecho deste dialogo? 3- Explique as seguintes expressoes: a) "Me chame de voce." (linha 21) b) "A julgar pelo seu lixo." (linha 35) c) "Lixo e dominio publico." (linha 79) 4. Recolha informacoes no texto que lhe permitam tracar o retrato das duas personagens intervenientes e preencha o quadro seguinte: Personagem Caracteriza;ao/ informacoes (com quern vive, onde vive, famflia, hdbitos, 0 que come,...) A mulher 0 homem 5. A partir da caracterizacao que fez de ambas as personagens, tire ilacoes sobre a possibilidade de este dialogo poder realmente acontecer na vida real. 6. De outro titulo ao conto, justificando a sua opcao. 7. Encontre, no texto, tres exemplos de portugues do Brasil. Reescreva-os em portugues europeu. Depois de ler 1. Gostou de ler este conto? Justifique a sua resposta. 2. O texto que acaba de ler tem um desfecho aberto, nnalizando com uma pergunta. Continue o dialogo e imagine como foi o jantar de ambos. 3. Dramatize o texto que leu de Luis Fernando Verissimo com um/a colega. 178 179 CONTOS EM PORTUGUES — LER PARA APRENDER EM PLE It. Preencha o questionario disponivel em http://www.isegnet.com.br/si-teedit/arquivos/Questionario%2oCalcule%20sua%2oPegada%2oEcologica. doc. e discuta os resultados obtidos com os seus colegas. 5. Ouca a cancao "Se tu fores ver o mar (Rosalinda)" interpretada por Fausto e disponivel, por exemplo, em https://www.letras.mus.br/faus-to/486921/ e em https://pan.baidu.eom/s/mvC86BR. Discuta a sua men-sagem com os seus colegas. 6. Imagine que e convidado para participar numa campanha de proteccao da natureza, que ocorrera no proximo mes, na cidade onde mora. Elabore um panfleto (com imagem e texto) que ajude a sensibilizar os habitantes mais jovens para a necessidade de preservarem a saude do planeta. 180