Simbolismo — A arte da sugcstäo "O simbolismo reprcsenta, por um lado, o resultado final da evolucäo iniciada pelo romantismo, islo é, pcla dcscobcrta da metafora, célula germinal da poesia c que conduziu ä riqucza da imaginária impres-sionista, mas näo só repudia o impressionismo pelo scu pon(o de vista materialista e o Parnaso pelo sen formaltsrno e racionalismo, como também repudia o romantismu pelo seu cmocionalismo c o conven-cionalisma da sua lingualem metafórica. Na realidade, o simbolismo pode considerar-se a :• aeäo contra toda a poesia anterior; descobre qualquer coisa que ou nunca se conhecera ou a que nunca até aísc dera relevo; a poesia pura — a pocsia que surge do espírito irracional, näo-conceptual, da linguagem, que é contraria a toda interpretaeäo logica Para o simbolismo, a poesia é apenas a expressäo daquclas rclacöes e corresponděnciaí que a linguagem, deixada a si propria, eria entre o concreto c o abstrato, o material c o ideal, e entre as diferentes csferas dos sentidos. MaJlarmé pensa que a poesia é a anunria-cäo de imagens suspensas, oscilantes, c constantemente evanescentes; afinna que nomeat um objeto é destruir trés quartos do prazer que reside no adivínhar gradual da sua verdadeira naturera. O símbolo implica, porém, näo apenas a evasäo a dar um nome diretamente, mas a expressäo indireta de um sig-nificado que c irripossivcl dar diretamente, que é essencialmentc mdefinível e inesgotável." (HAUSER. Arnold. Hulána iocial da literatura e da arte. Säo Paulo, Mcstrc Jou, s.d. t. II, p. 1076-8.) Ismal ia "Quando Ismália enlouqueceu, Pós so na torre a sonhar... Viu uma lua no céu. Viu outra lua no mař. No sonho em que se perdeu. Banhou se toda em luar... Queria subir ao céu, Queria descer ao mar... E, no desvario seu. Na torre pós-se a cantar... Estava perlo do céu, Estava longe do mař... E como um anjo pendeu As asas para voar... Queria a lua do céu, Queria a lua do mat... As asas que Deus Ihe deu Ruflaram de par em par . Sua alma subiu ao céu, Seu cotpo desceu ao mar...' CUIMARAENS, Alptmnsui de in Alphonsus de Guimaiaens Kw de Janeiro, AGIH, 1963 p 70-1. Poesia 2 ed Cárcere das almas Ahl Todn a alma num cárcere anda ptesa. Solucando nas_!r^vas, entre as grades Do calaboopo'oih'ando imensidades, Mareš, estrelas, tardes, natureza. Tudo se vestě de uma iguaLgrarjdeza Quando a alma entre grilhóes a'á liberdades Sonha e, sonhando, as imortalidades Rasga no etéreo Espaco da Pureza. Ů almas presas, mudas e fechadas Nas prisoes colossais e abandonadas, Da Dor no calabouco. atroz. funéreo! Nesses silěncios solitários, graves, Que chaveiro do Céu possui as chaves Para abrir-vos as portas do Mistério?! SOUSA. Cm; e In Cruz c Sousa — Obra mm-pleta. Rio tkjtuuin, fotiAguihu, 1961 /> fftj "Grinaldas e veus brancos. veus de neve. Veus e grinaldas purificadores, Vao as Flores carnais, as alvas Flores Do Sentimento dehcado e leve. Urn luarj^e pudr^r, sereno e breve, De ignotos'e'cfe pronubos'pudores, Erra nos pulcrbs, virginais brancores Por onde o Amor parabolas descreve... Luzes claras e augustas, luzes claras Douram dos templos as sagrgdas aras, Na comunhao das niveas nostias trias... Quando seios^pubentes estremecem, Silfos^de'sbnVios de volupia crescem. ondulantes. em formas alvadias...'' SOUSA. Craze In: LEMINSKl, Paula Cruz e Sousa Sao Paulo, Hrasilunie. Iia i;rega, a morada dos deuscs. pocta dc Teos referent ia a Anai reunii'. poei.i tjrcijo nalural dc Tcos (séc VI h C ). lamoso por suas iancoes dc amor ironu as c inelancó-licas esvazada csva/.iada colmada < ot«-ria, i hci.i depois rrprcsrnta uma ruplura no dcscnvol-vimento do poema, há, imlusivc, a sugt-slAo de uma viagem no tempo: os dois CjU&ricťoi referem-sc .H Grétia antiga. cis dois (ertelos lonvidam o leitoi. < ontcinporánco, a admi-rar a bclcza da lata. sua sonotidadc "Vaí a primiéra pombigna dispertada, I maise otra vai disposa da primiéra; I otra maise, e maise otra, i assi dista maniera, Vai s'imbora tutta pombarada." •Al tmmhwnn" de luó fíananere, sandidalu ä (Jadnma fíaolnUi de Laras jfl: ■ (.OliKi.lA Muiwiirtdti In K.iiiiiuihío (.ot hi.i— I'ik'M.i K'u di /iiiioiii At.lH /'/„'r f. JI passos, algumas palavras abafadas de pessoas qu>» pegavam nas alcas do caixäo. creio eu: — "vire dc lado, — mais ä esquerda, — assim, segure bem..." Depois, ao longc. o coche andando e as seges atrás dele... La iam meu pai e as férias! Um dla de folga sein foltjuedo! Näo, näo fol um dta, mss oito, oilo dlas de nojo29. durante os quais alguma vez me lembrei do coléglo. Minha mäe chorava, cosendo o luto, entre duas visitas de pesames. Eu também chorava; näo via meu pai äs horas do costume, näo Ihe ouvla as palavras ä mesa ou ao balcäo, nem as carícias que dizia aos pássaros. Que ele era muito amigo de passaros, e tinha ties ou quatro, em galo-las. Minha mäe vh/la calada. Quase que só falava äs pessons de fora. Fol assim que eu soube que meu pai morrera de apoplexia. Ouvi esta noticia muilns veics; as visitas perguntavain pcla causa da morte, e ela releria tudo, a hora, o gesto, a ocasižo: tinha ido beber água, e enchia um copo, ä janela da área. Tudo decorei, ä forca de ouvi-lo contar. Nem por isso os meninos do coléglo deixavam de vir espiar para dentro da minha memoria. Um deles chegou a perguntar-me quando é que eu vollaria. — Sábado, meu íilho, dlsse minha mäe, quando Ihe repeli a pergunta imaginoda; a mis-sa é sexta-feira. Talvez seja melhor voltar na segunda. — Antes sábado, emendei. — Pois slm. concordou. Näo sorria; se pudesse, sorriria de gosto ao ver que eu querla voltar mais cedo ä escola. Mas, sabendo que eu näo gostava de aprender, como entenderia a emenda? Provavelmente, deu-lhe algum sentido superior, conselho do céu ou do marido. Em verdade, eu näo folgava, se lerdes isto com o sentido de rir Com o de descansar também näo cabe, porque minha mäe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo, aborrecia-me a atltude. Obrigado a estar sen-tado, com o livro nas mäos, a um canto ou á mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava um recurso que recomendo aos preguicosos: delxava os olhos na página e abria a porta á Imaginacľäo. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a batlar com menlnas, a cantar. a rir, a espancar de mentira ou de brincadeira, como for mais claro. Urna vez, como desse por mim a andar na sala sem ler, minha mäe repreendeu-me, e eu respondi que estava pensando em meu pai. A explica^äo fé-la chorar, e, para dizer ludo, nďo era totalmente mentira; linha-me lembrado o ultimo presentinho que ele me dera, e en-trei a vé-lo com o mimo na mäo. Felícia vivla täo triste como eu, mas confesso a minha verdade, a causa principal näo era a rnesma. Gostava de brincar, mas näo sentia a auséncia do brinco, näo se Ihe dava de acompanhar a mäe, coser com ela, e urna vez íui achá-la a enxugar-lhe os olhos. Meio vexa-do, pensei em lmltá-Ia, e meti a mäo no bolso para llrar o lenco. A mäo entrou sem ternura, e, näo achando o lencp, saiu sem pesar. Crelo que ao gesto näo (altava s6 originalldade, mas sinceridade também. Näo me censurem. Sincero (ui longos dias calados e reclusos. Quis urna vez ir para o armarinho, que se abriu depois do enterro, onde o calxeiro continuou a servlr. Conversarla com este, asslstiria ä venda de linhas e agulhas, á medigäo de íitas, Iria ä porta, ä calcada, ä esquina da rua... Minha mäe sufocou este sonho pouco depois dele nascer. Mal chegara ao balcäo, mandou-me buscar pela eserava; lá (ui para o interior da casa e para o estudo. Arrepclel-me, apertei os dedos ä guisa de quem quer dar rnurro; näo me lembra se chorei de raiva. O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já entäo Ihe tinha grandes saudades. Via de longe as caras dos meninos, os nossos gestos de troc;a nos bancos, e os saltos á saída. Sentl cair-me na cara uma daquelas bolinhas de papel com que nos es-pertávamos uns aos outros, e (iz a minha e atirei-a ao meu suposto espertador. A bolinha, como acontecia äs vezes, foi cair na cabeca de tercelra, que se deslonou depressa. Alguns, mats ttmidos, limltavam-se a (azer caretas. Näo era folguedo Iranco. mas ja me valia por ele. Aquele degredo que eu deixei täo alegremente com tio Zcca, parecia-me agora um céu re- moto. e tinha medo de o perder. Nenhuma (esta em casa, poucas palavras. raro movimento. Foi por esse tempo que eu desenhei a lápis maior numero dc gatos nas margens do livro de leitura; gatos e poicos. Näo alegrava, mas distraía. A missa do sétimo dia restituiu-me ä rua; no sábado näo (ui ä escola, fui ä casa de meu padrinho. onde pude (alar um pouco mais, e no domingo estlve ä porta da loja. Näo era 38 alegiia completa. A total alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestldo de preto, (ui mira-do com curiosldade, mas täo outro ao pé dos meus condiscípulos, que me esqueceram as (érias sem gosto, e achel uma grande alegria sem férias. MISSA DO GALO Nunca pude entender a convetsacäo que tlve com uma senhora, há muitos anos. con-tava eu dezessete, ela trlnta. Era nolte de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos á missa do galo30. preíeri näo dormir; combinei que eu iria acordá-lo ä meia-nolte. A casa em que eu estava hospedado era a do eseriväo Meneses, que (ora casado. em primelras núpcias, com uma de minhas prímas. A segunda mulher, Conceicäo, e a mäe desia acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vlvia tranqüllo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relacôes, alguns passelos. A família era pequena. o eseriväo, a mulher, a sogra e duas eseravas. Costumes velhos. Äs dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; ás dez e meia a casa dormia Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dlzer ao Meneses que la ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas oca-siôes, a sogra (azia uma careta, e as eseravas riam ä socapa; ele näo respondia, veštia se, saía e só tornava na manhä seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemis-mo em agäo. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia (ora de casa uma vez por semana. Conceicäo padecera, a princíplo, com a existencia da combor-ca; mas, afinal. resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceicäo! Chamavam-Ihe "a šanta", e fazla jus ao tílulo, täo (acilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato. dava para maometana; aceitaria um harém. corn as aparénelas salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O proprio rosto era mediane nem bonito nem feio. Era o que cha-mamos uma pessoa simpática. Näo dizia mal de nlnguém, perdoava tudo. Näo sabla odiar; pode ser até que näo soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o eseriväo ao teatro Era pelos anos de 1861 ou 1862 Eu já devin estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a mlssa do galo na Corte" A família recolheu-se ä hora do costume; eu metl-me na sala da (rente, vestido e pronto. Dali passaria ao conedor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha tres cha ves a porta; uma estava com o eseriväo, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. — Mas, Sr. Noguelra, que fará voce todo esse tempo? perguntou a mäe de Conceicäo — Ijeio, D. lnácia. Tinha comigo um romance, Os írés mosqueteiros", velha traducäo ereio do Jornal do Commercio. Sentei-me ä mesa que havia no centro da sala, e á luz de um candeeiro de que-rosene, enquanto a casa dormia, trepel ainda uma vez ao cavalo magro dc DArtagnan e fui-me äs aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrlo de Dumas. Os mlnutos voa vam, ao contrario do que costumam fazer, quando säo de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitur; Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas ä de jantar; levantei a cabeca; logi depois vi assomar ä porta da sala o vulto de Conceicäo. — Alnda näo foi? perguntou ela. — Näo iul; parece que ainda näo é meia-noite. — Que pacléncia! Conceicäo entrou na sala, anastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupäo bran-co, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visäo romänlica, näo disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela fol sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canape. Como eu Ihe perguntassc se a havia acordado, sem querer, fazen-do barulho, respondeu com presleza; 39 — Näo! qual! Acordci por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da atirmativn. Os olhos näo eram de pessoa que acabasse Je dormir: pareciam näo ter ainda pegado no sono. Essa observacäo, porém, que Valeria alguma coisa em outro espírito. depressa a bote! fora. sem advertir que lalvez näo dormlsse justamente por mlnha causa, e mentlsse para me näo afligir ou aborrecer. JS disse que ela era boa. multo boa. — Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. — Que paciéncia a sua de esperar acordado. enquanlo o vizinho dorme! E esperar sozi-nho! Näo tem medo de almas do oulro mundo? Eu culdei que se assustasse quando me vlu. — Quando ouvl os passos eslranhel; mas a senhora apareceu loga — Que é que estava lendo? Näo diga. já sei, é o romance dos Mosqueleíros. — Justamente: é muito bonlto. — Gosta de romances? — Gosto. — Já leu A Monenfnha? — Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. — Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo Que romances é que vocě tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceicáo ouvia-me com a cabeca reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas. sem os tirar de mim. De vez em quando passava a lingua pelos beicps, para umedecé-los. Quando acabei de falar, näo me disse nada; ficamos asslm alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeca, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos bra^os da cadeira, tudo sem desvlar de mim os grandes olhos espertos. "Talvez esteja aborTedda' pensei eu. E logo alto: — D. Conceicáo, creio que väo sendo horas, e eu .. — Näo, näo, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, säo onze e meia. Tem tempo. Vocé, perdendo a noite, é capaz de näo dormir de dia? — Já tenho feito isso. — Eu, näo; perdendo uma noite, no outro dia estou que nap posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. — Que velha o qué, D. Conceicáo! Tal foi o calor da mlnha palavra que a fez sorrir. De costume tlnha os gestos demorados e as alitudes tranqiiilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Asslm, como o desalinho honesto que trazia, dava-me uma Impressáo singular. Magra embora, tinha näo sei que balanco no andar, como quem Ihe custa levar o corpo; essa feicäo nunca me parece täo distinta como naquela noite. Parava algumas vezeš, examinando um trecho de cortína ou consertando a posicäo de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permelo. Estreito era o clrculo das suas Idéias; tornou ao espanto de me ver espe rar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabla, isto é, que nunca ouvlra mlssa do galo na Corte, e näo querla perdé-ln. — É a mesma mlssa da roca: todas as mlssas se parecem. — Acredito; mas aqui há de haver mals luxo e mals gente também. Olhe, a semana Santa na Corte é mals bonlta que na roca. S. Joäo näo dlgo, nem Santo Antonio... Pouco a pouco, Unha-se Inclinado, fincara os cotovelos no mármore da mesa e metéra o rosto entre as mSos espalmadas. Näo estando abotoadas, as mangas cafram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos bracos, multo claros, e menos magros do que se poderiam supor A vista náo era nova para mim, posto também näo fosse comum; naquele momento, porém. a Impressäo que tive fol grande. As veias cram täo azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presenca de Conceicáo espertara-me alnda mals que o li-vro. Continuel a dlzer o que pensava das festas da roca e da cidade. e de outras coisas que me lam vindo ä boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por qué, varlando deles ou torrtando aos primeiros, e rindo para fazé-la sorrir e ver-lhe os denies que luzlam de bran-cos, todos iguaizlnhos. Os olhos dela näo eram bem negros, mas escuros; o narlz, seco e 40 longo, um tantlnho curvo. dava-lhe ao rosto um ar interrogative Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprlmla-me: — Mais balxo! mamäe pode acordar. — E näo saía daquela posicäo, que me enchia de gosto, täo perlo flcavam as nossas caras. Realmenle, náo era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, äs vezeš, ficava séria, muito sérla, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atltude e de lugar. Deu volta ä mesa e veio sentar-se do I meu lado, no canape. Voltei-me, e pude ver, a lurto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupäo era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceicáo disse balxinho: — Mamäe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora coitada, täo cedo näo pegava no sono. — Eu também sou assim. — O quo? perguntou ela ínclinando o corpo para ouvlr melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidéncia; também cla tinha o sono leve; éramos trés sonos leves. — Há ocasiôes em que sou como mamäe; acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, á toa, levanto-me, acendo a vela, passeio, torno a deitar-me, e nada. — Fol o que Ihe aconteceu hoje. — Náo, nSo, atalhou ela. Näo entendi a negativa; ela pode ser que também näo a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com clas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depots referiu urna história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em crianca. Quis saber se eu os tlnha. A conversa reatou-se assim lentamente. longamente, sem que eu desse pela hora nem pela mlssa. Quando eu acabava urna narracäo ou uma explicacäo, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me; — Mais balxo, mais balxo... Havla também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um Instante, abrlam-se logo sem sono nem fadlga, como se ela os hou-vesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes crelo que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, näo sel se apressada ou vagarosamente. Há impressôes dessa noite que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo:me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em čerta ocasläo, ela, que era apenas slmpáUca, ficou llnda, flcou lindfssima Estava de pé, os bracos CTUzados; eu, em respeito a ela. quis levantar-me; näo consentlu, pôs uma das mäos no meu ombro, e obrlgou-me a estar senta-do. Cuidei que la dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tlvesse um arreplo de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. DalJ relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canape, falou de duas gravuras que pendiam da parede. — Esles quadros estäo ficando velhos. Já pedi a Chlqulnho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negóclo deste homem. Um representava "Cleopatra", näo me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ; ambos; naquele tempo näo me pareciam felos. — Säo bonitos, disse eu. — Bonitos säo; mas estäo manchados. E depots francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas säo mais próprtas para sala de rapaz ou de barbeiro. — De barbeiro? A senhora nunca fol a casa de barbeiro. — Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de mocas e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonltas Em casa de famflia é que näo acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso multa coisa assim esqulsita. Seja o que for, näo gosto dc quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceicáo, minha ma-drinha, muito bonita; mi - é de escultura, näo se pode pôr na parede, nem eu quero Está no meu oratorio. A idéia do oratorio trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizé-lo. Penso que cheguel a abrir a boca, mas logo a fechet para ouvlr o que ela contava, com docura, com graca. com tal moleza que trazia preguíca ä minha alma e fazia esquecer a mlssa 41 --------^.v,Vut3 u« uiťiiiiia e moija. Lm seguida rcfcria umas anedolas tie baile. uns casgs de passeio, reminiscéncias de Paquelá, ludo de misiura, quase sem inter-rupcäo. Quando cansou do passado, lalou do presenle, dos negócios da casa, das canseiras de família, que Ihe diziam ser muitas, antes de casar. mas näo éram nada. Näo me contou, mas eu sabia que casara aos viňte e sete anos. Já agora näo trocava de lugar, como a princípio, e quase näo saíra da mesma atitude Näo linha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar ä toa para as paredes. — Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco. como se (alasse consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnétlco, ou o que quer que era que me tolhia a lingua e os sentidos Queria c näo queria acabar a conversa<;äo; fazla esíorgo para arredar os olhos dela, e arredava-os por urn sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando näo era, levava-me os olhos outra vez para Conceicäo. A conversa ia morrendo. Na rua, o silSnciO era complete. Chegamos a ficar por algum tempo, — näo posso dizer quanto, — inleiramente calados O rumor únlco e escasso era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonoléncia; quis falar dele, mas näo achei modo. Conceicäo parecia estar deva-neando. Subitamente, ouvi urna pancada na janela, do lado de (ora, e urna voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!" — Af está o companheiro, disse ela levantando-se. Tern graca; voce é que ficou de ir acordä-lo, ele é que vem acordar vocô. Vá, que häo de ser horas; adeus. — Já seräo horas? perguntei. — Naluralmente. — Missa do galo! — repetiram de fora, batendo. — Vá, vá, näo se íaca esperar A culpa foi minha. Adeus, até ainanhä. E com o mesmo balanco do corpo. Conceicäo enfiou pelo corredor dentro, pisando man-sinho. Saí á rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a (igura de Conceicäo interpôs-se mais de urna vez, entre mim e o padre; fique Isto ä conta dos meus dezessete anos. Na manhä segulnte, ao almoco, falei da missa do galo e da genle que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceicäo. Durante o dia, achei a como sempre, natural, benígna, sem nadá que (izesse lembrar a conversac,äo da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em margo, o escriväo tinha morrido de apoplexia. Conceicäo morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a en-contrel. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente jurarnentado do marido. A IGREJA DO DÍABO CAPÍTUL01 ! De uma id&a miríjica Conta um velho manuscrito benediliiYo que o Diabo. em certo dia, teve a idéia de fun-dar urna igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organizacäo, sem regras, sem cánones, sem ritual, sem nada. Vivia, por asslm dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obsé-qulos humanos Nada fixo, nada regular. Por que näo teria ele a sua igreja? Urna igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiöes, e deslruí-las de urna vez. — Vá, pois, urna igreja, concluiu ele. Escritura contra Escrilura, breviário conlra breviá-rio Terei a minha missa, com vinho e päo b (arta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho ecleslástico. O_meu credo será o núcleo universal dos espíritos. a minha igreja urna tenda de Abraäo". E depois. enquanto as outras religiöes se combatem e se di-videm, a minha Igreja será únlca; näo acharei dianie de mlm, nem Maomé", nem Lutero'". Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. 42 Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeca e estendeu os bracos, com um gesto magnífico e varonil. hm seguida, iembrou-se de ir ter com Deus para comunlcar-lhe a Idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos) 'acesos de ódio, ásperos de vinganca, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abis-mo, arrancou da sombra para o inlinlto azul. lPITULO 2 Tntre Deus e o Diabo Deus recolhla um anciao, quando o Diabo chegou ao ceu. Os seraflns que engrinalda-vam o recemchegado, deliveram-no logo, e o Diabo deixou se eslar ä entrada com os olhos no Senhor. — Que me queres tu? perguntou esle. — Näo venho pelo vosso servo Fausto*5, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Fauslos do seculo e dos sfictilos — Explica-te. — Senhor, a explicacäo e fäcil; mas permitl que vos diga: recolhei primelro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais alinadas cltaras e alaüdes o recebam com os mais dlvlnos coros... — Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos chelos de doqura. — Näo, mas provavelmenle e dos Ultimos que viräo ter convosco. Näo tarda muito que o ceu (ique scmelhante a uma casa vazia, por causa do preco, que e alto. Vou edificar uma hospedaria barala, em duas palavras, vou lundar uma igreja. Estou cansado da minha desor-ganizacäo, do meu reinado casual e adventicio. E tempo de obter a vitöria final e completa, E entäo vlm dizer-vos isto, com lealdade, para que näo me acuseis de disslmulacäo... Boa ideia, näo vos parece? — Vieste dtze-la, näo legitimä-la, advertiu o Senhor. — Tendes razäo, acudiu o Diabo, mas o amor-pröprto gosta de ouvir o aplauso dos mes tres. Verdade e que nes'e caso seria o aplauso de um mestre vencido, c uma tal exIgSncia... Senhor, desco ä terra; vou lancar a minha pedra fundamental. — Val. — Quereis que venha anunciar-vos o remale da obra? — Näo e preciso; basta que me digas desde jä por que motivo, cansado hä tanto da lua desorganizacäo, s6 agora pensaste em fundar uma igreja? 0 Diabo sorriu com certo ar de escärnlo e triunfo. Tlnha alguma ld£ta cruel no espirito, algum reparo picante no alforje da memoria, qualquer coisa que, nc-sse breve Instante da eternidade, o fazia crer superior ao proprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse: — S6 agora conclui uma observacäo, comecada desde alguns s£culos, e e que as virtu-dcs. filhas do ceu. säo em grande nümero comparäveis a rainhas, cujo manto de veludo re-matasse cm franjas de algodäo. Ora, eu proponhome a puxa-las por essa franja, e trazö las todas para minha Igreja; atras delas viräo as de seda pura... — Velho retörico! murmurou o Senhor. — Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pes, nos templos do mundo, tra-zem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo p6, os lencos cheitam aos me'smos chetros, as pupilas centelham de curiosidade e devocäo entre o livro santo e o bigode do peoHo. Vede o ardor, — a indiferenga, ao menos, — com que esse cavalheiro pöe em letras püb :as os beneffcios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou qu. squer dessas materias necessärias ä vida... Mas näo quero parecer que me detenho em coisas miiidas; näo falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de ir-mandade, nas procissöes, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negöcios mais altos.. Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de süplica. Deus interrompeu o Diabo. 43 *