fflSTÓRIA CONCISA DA LITERATURA BRASILEIRA Alfredo Bosi I m nova edicáo totalmente revista e atualizada pelo autor. qij.e é professor titular de Literatura Brasileiia n.i l lnivcfsiclade de Sao Paulo, a Cultrix volta a aprescnlai 10 publico universitário esta obra por ele consagradfi, tlcsilc c|ue veio a lume em 1970, como a melhoi no srn gčncro. I )ividida em oito partes, respectivamente dedicadas n coiulicao colonial, ao Barroco, á Arcadia e Iluslracau ao Koinantismo, ao Realismo, ao Pré-Modernismo v Modcrmsmo e ás tendéncias contemporáneas, a Htstó /'in ('oncLsa da Literatura Brasileira dá, dc cada um dcsscs inomentos, uma apreciacáo de suas tendftncitl dilcicnciais, estudando a seguir os seus autorcs punci pais, accrca dos quais proporciona ao leitor dados dl ortlcm bibliográfica alem de uma avaliacao crílica I-. obra que se recomenda sobretudo á atencao dc pro Icssorcs e estudantes de Literatura Brasileira, quel cín ní vel dc ^raduacao quer de pós-graduacao. EDITORA CULTRIX ISBN R>, ni, n | i 9788531601897 História concisa da Literatura BRASILEIRA Alfredo Bosi Universidade de S. Paulo) HISTÓRIA CONCISA DA LITERATURA BRASILEIRA EDITORA CULTR1X SÄO PAULO 250084612 Copyright © 1994 Alfredo Bosi. Capa: Moniagem de Fred Jordan, sobre o desenho Abapuru, de Tarsila. E-djr \o A O prtmetro numero i esquerda indlca a ediíio, uU recdíijlij, deita obra. A primeira Je-iťť.a ä dtreita indlca a aao em que estl editfiu, ou i'eedlfäo, íoi publicada. 4142-4&4445-4(i £&04-QSOW>7- Direitos reservados EDITORA PENSAMENTO-CULTRDC LTD A. Rua Dr. Mário Vicente, 368 - 04270-000 - Säo Paulo, SF Fone; 272-1399 - Fax: 272-4770 E-mail: pensamento@cultrix.com.br http^Www.pensainento-cultrix. cotn.br Impresso em nossat oficinai gráficas. í N D I C E I. A CONDICÄO COLONIAL Literatúra e situacäo, 11. Textos de informagäo, 13. A carta de Caminha, 14. Gändavo, 15. O "Tratado" de Gabriel Soares, 17. A informacäo dos jesuítas, 18. Anchieta, 19. Os "Diálogos das Grandezas do Brasil", 24. Da crônica ä história: Frei Vicente, Antónii, 24. II. ECOS DO BARROCO O Barroco: espírito e estilo, 29. O Barroco no Brasil, 34. A "Prosopopéia" de Bento Teixeira, 36. Gregório de Matos, 37. Botelho de Oliveira, 40. Menores, 43. A prosa. Vieira, 43. Prosa alegórica, 46. As Academias, 48. III. ARCADIA E ILUSTRACÄO Dois momentos: o poético e o ideológico, 55. Claudio Manuel da Costa, 61. Basílío da Gama, 64. Santa Rita Duräo, 68. Arcades ilustrados: Gonzaga, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, 70. Da Ilustracäo ao Pré-Romantismo, 80. Os gô-neros públicos, 83. IV. O ROMANTISMO Caracteres gerais, 91. A situacäo dos vários romantismos, 91. Temas, 93. O nŕvel estético, 96, O Romantismo oficial no Brasil. Gongalves de Magalhäes, 97. Porto Alegre, 99. A historiografia, 100. Teixeira e Sousa, 101. A poesia. Gonfalves Dias, 104. O romantismo egótico: a 21 geracäo, 109. Álvares dé Aze-vedo, 110. Junqueira Freire, 113. Laurindo Rabelo, 114. Casimiro de Abreu, 115. Epígonos, 117. Varela, 118. Castro Alves, 120. "Condores", 124. Sousándrade, 125. A ficcäo, 126. Macedo, 130. Manuel Antonio de Almeida, 132. Alencar, 134. Sertanistas: Bemardo Guimaräes, Taunay, Távora, 140. O teatro, 147. Martins Pena, 147. Gon^alves Dias, 151. Alencar, 152. Agrário de Meneses. Paulo Eiró, 153. A consciéncia históríca e crítica, 154. Tradicionalismo, 155. Radicalismo, 157. Permanéncia da liustragäo. J. Francisco Lisboa, 158. V. O RB ALIS MO Um novo ideário, 163. A ficcäo, 169. Machado de Assis, 174. Raul Pompéia, 183. Aluísio Azevedo e os principals naturalistas, 187. Inglés de Sousa, 192. Adol-fo Caminha, 193. O Naturalismo e a inspiracäo regional, 194. Manuel de Oliveira Paiva, 195. Naturalismo estilizado: "art nouveau", 196. Coelho Neto, 198. Afränio Peixoto, 205. Xavier Marques, 206. O regionalismo como programa, 207. Afonso Arinos, 209. Valdomiro Silveira, 211. Simöes Lopes Neto» 212. Al-cides Maya, 214. Hugo de Carvalho Ramos, 215. Monteiro Lobato, 215. A Poesia, 217. O Parnasianismo, 219. Alberto de Oliveira, 220. Raimundo Correia, 223. Olavo Bilac, 226. Outros parnasianos, 229. Francisca Julia, 229. Artur Azevedo, 230. Vicente de Carvalho, 232. Neoparnasianos, 234. Raul de Leoni, 236. Teatro, 239. Artur Azevedo, 239. Machado de Assis, 242. Qorpo-Santo, Um corpo es-tranho, 244. A consciencia histörica e crftica, 245. Capistrano de Abreu, 246. Sflvio Romero, 248. Araripe Jr., 251. Jos6 Verfssimo, 252. As letras como instrumento de acäo, 255. Rui Barbosa, 256. VI. O SIMBOLISMO Caracteres gerais, 263. O Simbolismo no Brasil, 267. Poesia. Antes dos "Bro-qu&s", 270. Cruz e Sousa, 270. Alphonsus de Guimaraens, 278. A difusäo do Simbolismo, 281. Augusto dos Anjos, 287. A prosade ficcäo, 292. O pensamento crftico, 295. O Simbolismo e o "renouveau catholique", 297. Farias Brito, 298. VII. pr£-modernismo E MODERNISMO Pressupostos histöricos, 303. Pre-modernismo, 306. Euclides da Cunha, 307. O pensamento social, 312. Urn crftico independente: Joäo Ribeiro, 314. O romance social: Lima Barreto, 316. Um espfrito aberto: Graca Aranha, 324. O Modemismo: urn clima est^tico e psicolögico, 331.0 Modemismo: a "Semana", 337. Desdobramentos: da Semana ao Modemismo, 340. Grupos modernistas nos Estados, 344. Os Autores e as Obras, 345. Mario de Andrade, 346. Oswald de Andrade, 355. Manuel Bandeira, 360. Cassiano Ricardo, 365. Menotti del Picchia, 367. Raul Bopp, 369. Pluiio Salgado, 370. Guilherme de Almeida, 371. O prosador do Modemismo paulista: Alcantara Machado, 374. Dois cnsafetas: Sergio Milliet e Paulo Prado, 375. VIII. TENDENCIAS CONTEMPORÄNEAS O Modemismo e o Brasil depois de 30, 383. Dependencia e superacäo, 385. Dois momentos, 385. A ficcäo, 388. As trilhas do romance: uma hipötese de trabalho, 390. Jose" Amenco de Almeida, 395. Raquel de Queirös, 396. Jos6 Lins do Rego, 397. Graciliano Ramos;400. Jorge Amado, 405. Erico Verissimo, 407. Marques Re-belo, 409. Jose1 Geraldo Vieira, 411. Lucio Cardoso, 413. Comdlio Pena, 415. Outros narradores intimistas, 417. Da ficcäo "egötica" ä ficgäo suprapessoal. ExperiSncias. Clarice Lispector, 422. Perrnanencia e transformagäo do regionalismo, 426. Joäo Gui-maräes Rosa, 428. A ficcäo entre os anos 70 e 90: alguns pontos de referenda, 434. A poesia, 438. Carlos Drummond de Andrade, 440. Murilo Mendes, 446. Jorge de Lima, 451. Augusto Frederico Schmidt, 456. Vinfcius de Moraes, 458. Cecilia Meireles, 460. Outros poetas, 463. Poesia e programa: a "geragäo de 45", 464, Poesia, hoje, 468. Joäo Cabral de Melo Neto, 469. Ferreira Gullar. A poesia participante, 473. Mario Faustino, 474. A poesia concreta, 475. Desdobramentos da vanguarda concre-tista, 483. Poesia ainda, 485. Traduföes de poesia, 489. A critic a, 491. BIBLIOGRAFIA, 499 fNDICE DE NOMES, 509 Para Otto Maria Carpeaux, mestre de cultura e de vida Para Ecléa, dimidium animae meae. I A CONDigÁO COLONIAL Literatura e situa^äo O problema das origens da nossa literatura n5o pode formular-se em termos do Europa, onde foi a maturacao das grandes nacoes modernas que condicionou loda a história cultural, mas nos mesmos termos das outras literaturas amcri-Cinas, i sto é, a partir da afirmacao de um complexo colonial de vida e de pcnsamcnto. A Colónia é, de início, o objeto de uma cultura, o "outro" em relacao á metropole: em nosso caso, foi a terra a ser ocupada, o pau-brasil a ser explo-rldo, a cana-de-acúcar a ser cultivada, o ouro a ser extraído; numa palavra, a mitéria-prima a ser carreada para o mercado externo (}). |A colónia só deixa de o ser quando passa a sujeito da sua história?jMas essa passagem fez-se no Brasil por um lento processo de aculturacSo do portugués e do negro á terra I In racas nativas; e fez-se com naturais crises e desequilíbrios. Acompanhar •llc processo na esfera de nossa consciencia histórica é pontilhar o direito e l) avcsso do fenomeno nalivista, complemento necessário de todo complexo Colonial (2). Importa conhecer alguns dados dcsse complexo, pois foram ricos de con-loqUfcncias económicas e culturais que transcendcram os limites cronológicos dl fa se colonial. ■\ Nos primeiros séculos, os ciclos de ocupacáo e de exploracáo formaram ilhcN sociais (Bahia, Pernambuco, Minas, Rio de Janeiro, Sao Paulo), que deram I Colónia a fisionomia de um arquipélago cultural. jE nao só no fades geo-fřáfico: as ilhas devem ser vistas também na dimensao temporal, momentos lucessivos que foram do nosso passado desde o século XVI até a Inde-pendčncia. (1) Para a análise em profundidade do fenômeno colonial, recomendo a leitura dos WWfllos de J. P. Sartre ("Le colonialisme est un systéme", in Les Temps Modernes, ri" 123) e de Georges Balandier ("Sociologie de la dépendance", in Cahiers Internalio-Htlltx de Sociologie, vol. XII, 1952). V. a Bibliografia final deste volume onde säo ar-rolttdos alguns estudos brasileiros já "clássicos", merecenda destaque os de Caio Prado Jr., Fernando Novais e Jacob Gorender. (2) V. Afränio Coutinho, A Tradicäo Afortunada, José Olympic Ed„ 1968, onde o urfllco estuda o fator "nacionalidade" em vários momentos da erítica brasileira. Assim, de um lado houve a dispersäo do pais em subsistemas regionais, até hoje relevantes para a história literária (*); de oulro, a seqtléncia de influxos da Europa, responsável pelo paralelo que se estabeleceu entre os momentos de aiém-Atläntico e as esparsas manifestacôes literárias e artísticas do Brasil-Colônia: Barroco, Arcádia, Ilustracäo, Pré-Romantismo... Acresce que o paralelismo näo podia ser rigoroso pela óbvia razäo de es-tarem fora os centros primeiros de irradiafäo mental. De onde, certos descom-passos que causariam espécie a um esíudioso habituado äs constelacöes da cultura européia: coexistem, por exemplo, com o barroco do ouro das igrejas mineiras e baianas a poesia arcádica e a ideológia dos ilustrados que dá cor doutrinária äs revoltas nativistas do século XVIII. Códigos literários europeus mais mensagens ou conteúdos j á coloniais conferem aos trés primeiros séculos de nossa vida espiritual um caráter hĺbrido, de lal sorte que parece urna solucäo aceitável de compromisso chamá-lo luso-brasileiro, como o fez Antônio Soares Amora na História da Literatura Brasileira (**). Convém lembrar, por oulro lado, que Portugal, perdendo a autonómia po-Iítica cntre 1580 e 1640, e decaindo verticalmente nos séculos XVII e XVIII, também passou para a categoria de nacäo pcriférica no contexto europeu; e a sua literatura, depois do climax da épica quinhentista, entrou a girar em torno de outras cuKuras: a Espanha do Barroco, a Itália da Arcadia, a Franca do Uuminismo. A situagao afctou em cheio as incipienles letras coloniais que, já no limiar do século XVII, refletiriam correntes de gosto recebidas "de segunda mäo". O Brasil reduzia-se ä condicäo de subcolônia... A rigor, so' laivos de nativismo, pitoresco no século XVII c já reivindica-tório no século seguinte, podem considerar-se o divisor de águas entre um gongórico portugues e o baiano Botelho de Oliveira, ou entre um arcade coim-bräo e um Ifrico mineiro. E é sempře necessário distinguir um nativismo es-tático, que se exaure na men^äo da paisagem, de um nativismo dinämico, que integra o ambiente e o hörnern na fantasia poética (Basílio da Gama, Silva Alvarenga, Sousa Caldas). O limite da consciéncia nativista é a ideológia dos inconíidentes de Minas, do Rio de Janeiro, da Bähia e do Recife. Mas, ainda nessas ponlas-de-lanca da dialética entre Metropole e Colônia, a ultima pediu de cmprčslimo ä Franca as formas de pensar burguesas e libcrais para interpretar a sua propria realidadc. j De qualquer modo, a busca de fonles idcológicas näo-porlugucsas ou nao-ibč-ŕicas, em geral, já era uma ruptúra consciente com o passado e um caniinho <*> No ensaio Uma Interpretanda da Literalwa Brasileira, Viana Moog da önfase ao ilhamento cultural das varias regiöcs brasilciras; descontados ccitos exageros, a tesc € plenamcnte sustentavel (V. o estudo, datado de 1942, agora inclufdo em Temas Bra-sileiros de diversos autores, Rio, Casa do Esiudante do Brasil, 1968). <**>S. Paulo, Ed. Saraiva, 1955. 12 pftf ö modos de assimilacäb mais dinámicos, e propriamente brasileiros, da cul-turi europčia, como se deu no período romäntico. j Rcsta, porém, o dado preliminar de um processócolonial', que se desenvolveu ftOl Irfts primeiros séculos da vida brasileira e condicionou, como nenhum outro, • lotalidade de nossas reacöes de ordern intelectual: e se se prescindir da sua tndllsc, creio que näo poderá ser compreendido na sua inteira dinämica nem o proprio fenômeno da mesticagem, núcleo do nosso mais fecundo ensaísmo social do Silvio Romero a Euclides, de Oliveira Viana a Gilberto Freyre (*), Textos de in formagäo Os primeiros escritos da nossa vida documentam precisamentc a instaura-9I0 do processo: säo informagoes que viajantes e missionaries europeus co-Ihcram sobre a natureza e o hörnern brasilciro.iEnquanto informacäo, näo per-ttnccin ä categoria do literário, mas ä pura crônica histórica e, por isso, há quem as omita por escrúpulo estético (José Verfssimo, por exemplo, na sua História da Literatúra Brasileira). No entanto, a pré-história das nossas letras In I eres s a como reflexo da visäo do mundo e da linguagem que nos legaram OR primeiros observadores do pais. É gragas a essas tomadas direlas da pai-mgem, do índio e dos gmpos sociais nascentes, que captamos as condicöes prinúti vas de urna culiura que só mais tarde poderia contar com o fenômeno tfn palavra-arte. E näo é só como testemunhos do tempo que valem tais documentos: tam-bdm como sugestôes temáticas e formais.:Em mais de um momento a inteligencia brasileira» reagindo contra certos processos agudos de curopeizacäo, proeurou nas raŕzes da terra e do nativo imagens para sc afirmar cm face do CHtrangeiro: entäo, os cronistas voltararn a ser lidos, e ató glosados, tanto por um Alencar romäntico e saudosista como por um Mário ou um Oswald de Andrade modernistas j Daf o interesse obliquainente estčtico da "literatúra" de Inlbrmacäo. > t-.« >t<>\ ■ Dos textos de origem portuguesa merecem dcstaquc: • ] a) a Carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel, reierindo o des-cobrimento de urna nova terra e as primeiras impressöes da natureza e do ahorígene; b) o Diário de Navegagäo de Pero Lopes e Sousa, eseriväo do primeiro grupo colonizador, o de Martim Afonso de Sousa (1530); <*) Procurei rever alguns aspectos desse processo em Dialética da Colonizaqáo^ S. Paulo, Cia. das Letras, 1992. 13 c) o Tratado da Terra do Brasil e a História da Provincia de Santa Cruz a gue Vulgarmente Chamamos Brasil de Pero Magalhäes Gändavo (1576); d) a Narrativa Epistolar e os Tratados da Terra e da Gente do Brasil do jesuíta Fernäo Cardim (a primeira certamente de 1583); e) o Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Sousa (1587); f) os Diálogos das Grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandäo (1618). g) as Carlas dos missionários jesuítas escritas nos dois primeiros sécuios de catequese (3); h) o Diálogo sobre a Conversäo dos Genlios do Pe. Manuel da Nóbrega; i) a História do Brasil de Fr. Vicente do Salvador (1627). A Carta de Caminha O que para a nossa história significou uma auténtica certidäo de nasci-mento, a Carta de Caminha a D. Manuel, dando notícia da terra achada, in-sere-se em um género copiosamente representado durante o século XV em Portugal e Espanha: a literatura de viagens (4). Espírito observador, ingenuídade (no sentido de um realismo sem pregas) e uma transparente ideológia mercan-tilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval: eis os caracteres que saltam ä primeira leitura da Carta e däo sua medida como documento histórico. Descrevendo os fndios: A feicäo deles é serem pardos manciras cľavermelhados de bons rostros e bons narizes bem feitos. Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam ne-nhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas e estäo acerca disso com tanta inocôncia como tém de mosUa o rosto. ■ Em reíevo, a postura solené de Cabral: O capitäo quando eles vieram estava asscntado em urna cadeira e urna : alcatifa aos pds por e.sirado c bem vestido com um colar d'ouro mui grande ao pescoco. (3) Ha volumes antolrigicos picparados pelo Pc. Serafim Leite S. J.: Cartas Jesui-ticas, 3 vols., Rio, 1933; Novas Cartas Jesufticas, S. Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1940. V. tambem: Nöbrega — Cartas do Brasil e Mais Escritos, ed. org. por Serafim Leite, Coimbra, 1953. (4) Duas boas edicöcs do documento säo: A Carta de P. V. de Caminha, com urn estudo de Jayme Cortesäo, Rio, Livros de Portugal, 1943, e A Carta, estudo crftico de J. F, de Almeida Prado; texto e glossärio de Maria Beatriz Nizza da Silva, Rio, Agir, 1965. 14 Attnuando a impressäo de selvageria que certas descri^ôes poderiam dar: Eles porém contudo andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parcce ainda mais que säo como aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pcna e melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus säo täo limpos e täo gordos e täo ŕŕemosos que näo pode mais ser. A conclusäo é edificante: De ponta a ponta é toda praia... muito chä e muito fremosa. (...) Nela até agora n&o pudemos saber que haja ouro nem prata... porém ajerra em si é de muito bons arcs assim frios e temperados como os de, Entre-Doiro-e-Minho.)Águas säo muitas c infindas. E em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela ludo por bem das águas que tem, porém o melhor ŕruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente e esta deve ser a principál semeňte que vossa ulteza em ela deve lan^ar. Gándavo Quanto a Pero de Magalhäes Gándavo, portugués, de origem flamenga (o nome deriva de Gand), professor de Humanidades e amigo de Camôes, de-vcm-se-lhe os primeiros informes sislemáticos sobre o Brasil. A sua estada tqui parece ter coincidido com o governo de Mem de Sá. O Tratado foi redigido por volta de 1570, mas näo se publicou em vida do autor, vindo ä luz só em 1826, por obra da Academia Real das Ciéncias de História de Portugal; quanto h História, saiu em Lisboa, em 1576, com o título completo de História da Provincia de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Ambos os tex-los säo, no dizer de Capistrano de Abreu, "urna propaganda da imigracäo", pois cifram-se em arrolar os bcns e o clima da colônia, encarecendo a possi-bilidade de osreinóis ("especialmente aqueles que vivem em pobreza") virem a desfrutá-la. Gándavo estava ciente de seu papel de pioneiro A causa principál que me obrigou a lanfar mäo da presenle história, e sair com ela ä luz, foi por näo haver até agora pessoa que a empreendesse, havendo já setcnta e tantos anos que esta Provincia é descoberta (Prólogo) c procurou cumpri-lo com diligencial o que lhe valeu os encômios de Camôes nos Tercetos com que o poeta aprcsenta a História: Tem claro estilo, engenho curioso. Trata-se naturalmente de uma objetividade relativa ao universo do autor: humanista, católico, interessado no proveito do Reino. Assim, lamenta que ao nome de Santa Cruz tenha o uvulgo mal considerado" preferido o de Brasil, "depois que o pau da tinta come^ou de vir a estes Reinos ao qual chamaram 15 brasil por ser vermelho, e ter semelhanca de brasa". Quem lala č o letrado medieval portugués. A sua atitude íntima, na esteira de Camöcs, c que se ras-treará até os épicos mineiros, consiste em louvar a terra enquanto ocasiäo de glória para a metropole. Por isso, näo devemos enxergar nos seus gabos ao clima e ao solo nada alem de uma curiosidade solerte a servifo do bem portugués. O nativismo, aqui como em outros cronistas, situa-se no nível descritivo e näo tem qualquer conotacäo subjctiva ou polémica. Isto posto, pode-sc entrever certo otimismo (que cm viajantes näo Portugueses chcga a scr visionário) quanto äs potencialidades da colônia: e quem respingou os louvores desscs cronistas, ainda imcrsos cm urna credulidade pré-renascentista, pôde falar sem rcbucos cm "visäo do paraíso" como leitmotiv das descricöes: Eldorado, Eden rccuperado, fontc da eterna juvcntudc, mundo sem mal, volta ä Idade de Ouro (5). Mas o tom predominate č sóbrio c a sua simpleza vcm de um espírito franco e atcnto ao que se I he depara, sem apclo ťácil a constructs imaginárias. Gändavo dá notícia gcográfica da terra cm geral c das capitanias em particular. Lcndo-o aprendc-se, por cxemplo, que a cscravidäo comecou cedo a suportar o onus da vida colonial: E a primcira coisa que [os moradoresl pretendem adquirir säo cscravos para lhes fazerem suas fazendas, e se uma pessoa chcga na terra a alcangar dous pares, ou mcia dúzia deles (ainda que outra coisa näo tenha de seu), logo tem remédio para poder honradamente sustentar sua família: porque um lne pesca e outro lhe caca, os outros lhc cultivam e grangeiam suas rocas e desia maneira näo fazem os homens des[)ensa cm manümentos com scus cscravos nem com suas jxissoas (cap. IV). Há na obra descricöes breves mas vivas de costumes indígenas: a poliga-mia, a "couvade", as guerras c os ritos dc vinganca, a antropofagia. Ncm faltam passagens pinturescas; no capítulo "Das plantas, mantimentos e fruitos que há nesta Provincia", fazem-nos sorrir certos similes do cronista maravilhado com a flora tropical: Uma planta sc dá tambem nesta Provincia, que foi da iiha de Säo Torné, com a fruita da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta é mui tenia e näo muito alta, näo tem ramos senáo umas folhas que seräo scis ou sete] palmos de comprido. A ftuita dela se cháma banana, Parecem-se na feicäo cony pepinos c ciiam-se cm cachos, (...) Esta finita 6 mu i sabrosa, c das boas, que há na terra: tem mna pele cotno de ligo (ainda que mais dura) a qual lhc lancam fóra (5) Cf. Sörgio Buarquc de Holanda — Visäo do Parafso. Os Motivos Edenicos no Descobrimento e Colonizagäo do Brasil, Rio, Josö Olyrnpio, 1959. Uma excelentc re-visäo do mito do bom seivagem e de suas fontes quinhentistas encontra-se no ensaio de Giuliano Gliozzi, "II mito del buon sclvaggio, nella storiografia tra Ottocento e No-vecento", in Rivista di Filosofia, Turim, sei. 1967, pp. 288-335. 16 qtlo. a querem comer: mas faz dano ä saúde e causa fevre a quem se desmanda nela (cap. V). Dos ananases diz que "nascem como alcachofres" e do caju que "é de fcicäo de peros repinaldos e muito amarelo". Sua atitude em face do índio prendc-se aos comuns padröcs culturais de portugues e católico-medieval; e vai da observagäo curiosa ao juizo moral negative como se vé neste comentário entre sério c jocoso sobre a lingua tupi: Esta č mui branda, e a qualquer nacäo fácil de tomar. Alguns vocábulos há nela de que näo usam senäo as fčmeas, c outros que näo servem senäo para os machos: carece de trôs letras, convčm a saber, näo se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim näo tÔm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta mancira vivem dcsordcnadamcntc sem lerem além disso conta, nem peso, nem me-dido (cap. X). A História lermina com uma das tônicas da literatura informativa: a preo-i cupaeäo com o ouro e as pedras prcciosas que se esperava existissem em grande quantidadc nas terras do Brasil, ä scmclhanca das peruanas e mexicanas. E, espelho de toda a mentalidadc colonizadora da época, afirma ter sido, sem dúvida, a Providentia a atrair os homens com a tentaeäo das riquezas, desde o ämbar do mar ate as pedrarias do sertäo, como o intercssc sej a o que mais leva os tiomens trás si que outra nenhuma coisa que haja na vida, parccc manifesto querer enlretC-los na teira com esta riqueza do mai", até chegarem a descobrir aquelas grandes minas que a mesma terra promete, pera que assi desta mancira tragam ainda loda aquela ccga c barbara gente que habila ncslas partes, ao lumc e conhecimcnto da nossa Santa Fč Católica, que será descobrir-lhc outras maiorcs no ecu, o qual nosso Scnhor permitc que assim seja pela glória sua c salva^äo de tantas almas (cap. VIII). No mesmo parágrafo, e cm tranquilo convfvio, o movcl cconômico c a Candida justificacäo idcológica. O "Tratado" de Gabriel Soares Quanlo a Gabriel Soares de Sousa (15407-1591), a erílica histórica tem apontado o seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587 (6) como a ľonlc mais rica dc informacôes sobre a colônia no século XVI. Notícias de Varnhagen^sobrc o aulor däo-no como portugues, scnhor de engcnho e vereador na Cämara da Bahia, onde registrou suas observances du- (6) Edicäo aconselhávcl, a inclufda na Col. Brasiliana, vol. 117, Cia. Ed. Nacionál, 1938. 17 raňte os dezessete anos em que lá morou (1567-1584). Tendo herdado do irmäo um roteiro de minas de prata que se encontrariam junto äs vertentes do Rio Säo Francisco, foi a Espanha pedir uma carta-régia que Ihe concedesse o direito de capitanear uma entrada pelos sertoes mineiros; obleve-a, mas a expedifäo malogrou, vindo ele a perecer em 1591. O Tratado consta de duas partes: "Roteiro Geral com Largas Informacôes de Toda a Costa do Brasil", de caráter geo-histórico e bastante minucioso; e o "Memoriál e Declaracäo das Grandczas da Bahia de Todos os Samos, de sua Fertilidade e das Outras Partes que Tem". Partilha com Gändavo o objetivo de informar os podereš da Metropole sobre as perspectivas que a colônia oferecia, acenando igualmente, ao cabo do livro, com as minas de ouro, prata e esmeralda, por ccrto aquela mítica Vupabu^u ("alagoa grande") em cuja procura acharia a morte. Mas é muilo mais vário e sugcstivo que o autor da História da Provincia de Santa Cruz\ com um zefo de naturalista que cspantaria um antropólogo moderno da allura de Alfred Métraux (7), Gabriel Soares de Sousa percorre toda a fauna e a flora da Bahia fazendo um inventário de quem vé tudo entre atento e cncantado. Os capítulos sobre o gentio acercam-se do relatório etnográfico, pois näo sfi co-brem a informacao básica, da cultura materiál ä religiosa, como sublinham tra^os pcculiares: säo de ler as descricôes vivas da "couvade", dos suicidas comcdorcs de terra, dos exibicionistas e dos fciticeiros chamadores da mořte. A informacao dos jesuítas Paralelamente á crónica leiga, aparece a dos jesuítas, tao rica de informa-cócs c com um plus de intcnfáo pedagógica e moral. Os nomes mais sig-nificalivos do sčculo XVI sao os de Manuel da Nóbrcga c Fernáo Cardim, mcreccndo um lugar á parte, pcla releváncia litcrária, o de José dc Anchicla. De Nóbrega, alem do epistolário, cujo valor historko nao se faz mislcr cncareccr, temos o Diálopo sobre a Conversáo do Gentio (15587), documents notávcl pclo equilíbrio com que o sensato jesuita apresentava os aspectos "net gativos" e "positivos" do índio, do ponto dc vista da sua abertura á conversao] E vaie a pena citar um tiecho cm que, com agudeza rara para o tempo, mostr^l desprezar argumentos de ordem racial: / Térem os romanos e outros mais gentios mais polícia [= civilizace, urbanidaflel que estes nao lhes veio de térem naturalmente melhor entendimento, mas de torem melhor eriacáo e eriarem-se mais polilicamente (Diálogo, 93). (7) "Soares de Sousa a un esprit scieniii'ique élonnani pour son époque", em La Civilisation matérielie des tribus iupi-guaratú. Paris, 1928. 18 Igual rcalismo, mas menor perspicácia, encontra-se nas relacoes que o Pe. F'crnSo Cardim, na quaiidade de Provincial, enviava a seus superiores europeus; rclacocs que circulam enfaixadas sob o Lítulo de Tratado da Terra e da Genie do Brasil («). Anchieta. Assim como os cronistas se debrucaram sobre a terra e o nativo rnm urn espfrito ao mesmo tempo ingénuo e prático, os missionaries da Com-panhia de Jesus, aqui chegados nem bem criada a ordem, uniram á sua fé (nclcs ainda de todo ibérica e medieval) um zelo constantc pela convcrsao do gentio, de que os escritos catequéticos sao cabal documento. E, se um Nóbrega cxprime em cartas incisivas e no Diálogo o traco pragmático do administrador; ou, se um Fernao Cardim lembra Gandavo e Gabriel Soares pela cópia de inlormes que sabe recolher nas capitanias que percorre, só em José de Anchieta (9) é que acharemos exemplos daquele veio mistico que toda obra rc-ligiosa, em ultima análise, deve pressupor. Há um Anchieta diligente anotador dos sucessos de uma vida acidentada de apóstolo e mestre; para conhece-lo precisamos ler as Cartas, Informacdes, I'ragmenios Históricos e Sermoes que a Academia Brasileira de Letras publicou em 1933. Mas é o Anchieta poeta e dramaturgo que interessa ao estudioso da incipiente literatura colonial. E se os seus autos sáo definitivamente pastorais (no sentido eclesial da palavra), destinados á edificacao do fndio e do branco em certas cerimónias litúrgicas (Auto Representado na Festa de Sáo Lourenco, Na Vila de Vitória e Na Visitagáo de Sta. Isabel), o mesmo náo ocorre com os seus poemas que valem em si mesmos como estruturas literárias. A linguagem de "A Santa Inčs", "Do Santissimo Sacramento" e "Em Deus, mcu Criador" molda-sc na tradicao medieval espanhola e portuguesa; cm me- (8) Edicao aconsclhavcl, it da Brasiliana (Cia. Ed. Nacionál, 1939), com introducao de Rodoll'o Garcia c notas de Capistrano de Abrcu e Batista Cactano. (?) j em A Uteratura no Brasil (dir. de Airanio Coutinho), Rio, Ed. Sul-Americana, 1955, vol. I, t. 1, pp. 363-376; Jose" Miguel Wisnik, Gregorio de Matos — Poemas Escolhidos, S. Paulo, Cultrix, 1977; Antonio Dimas, Gregorio de Matos, Poesias, S. Paulo, Abril, 1982; Fernando da Rocha Peres, Gregorio de Matos e Guerra: mna Re-visäo Biogrdfica, Salvador, Ed. Macunafma, 1983; Joäo Carlos Teixeira Gomes, Gregorio de Matos, o Boca de Brasa, Rio, Vozes, 1985; Joäo Adolfo Hansen, A Sätira e o Engenho, Gregorio de Matos e a Bahia do söculo XVII, S. Paulo, Cia. das Letras, 1989. 37 Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés de homens nobres, Postas nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que näo furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bani a. ("Descreve o que era naquele tempo a cidade da fíahia'7) As suas farpas dirigiam-se de prefcréncia contra os fidalgos "caramurus" em que já acusa a presenya dc sangue índio: Que č fidalgo nos ossos cremos nós, Pois nisso consistia o mor brasäo Daqucles que comiarn seus avós. E como isso Ihc vem por geracao, Lhe ficou por costumc cm seus teirós Mörder os que provém de outra nacao. ('71 certo fidalgo earamunť) Gregório moteja aqueles senhores de engenho que, já mesticados dc por-tugues e tupi, presumiam igualar-se cm prosápia com a velha nobreza branca que formana o "antigo estado" da Bahia. E é com olhos de saudade c culpa que o pocta vé o novo mercador lusitano e os associados děste na Colönia ávidos de lucro e interessados em trocar por ninharias o ouro docc das moendas. No forte e bem travado soneto "Triste Bahia", Gregório se identifica com a sua terra espoliada pelo negociantc de fora, o "sagaz Brichotc", c impreca a Dcus que faca tornar o velho tempo da austeridade e da conlcnsäo: Triste Bahia! Ó quäo dessemelhante Estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi ctnpenhado, Rica tc vi cu já, lu a mi abundante. A ti uoeou-te a máquina mercantc, Que cm lua larga barra tem entrado, i A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto ncgócio e tanto negociante. Děste cm dar tanto ayiicar excelente Pelíis drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote. C)h se quisera Dcus que de repente Um dia íunanheceras täo sisuda Que fora de algodáo o teu capote! Araripe Junior, no estudo que dedicou a Gregório, deixou claro que o tipo de comicidade peculiar ao satiro baiano é o oposto da "alegria gaulesa" de 38 Rabelais, tolerante no seu descansado epicurismo. "Nada disso se encontra em Gregório de Matos. Pessimismo objetivo, alma maligna, caráter rancoroso, re-laxado por temperamento e costumes, o poeta do 'marinícolas' verte fei em lodas as suas sátiras; e, apesar de produto imediato do meio em que viveu, desconhece a sua cumplicidade, pensa reagir quando apenas o traduz, cuida moralizar quando apenas se enlameia" (31). A truculéncia do juiz é a outra face do trovador obsceno: contraste primário que, dada a mediania humana e artística de Gregório, näo deságua no eros religioso atingido pela alta poesia barroca de Tasso e Donne, Silesius e Sor Juana Inés de la Cruz. Resta ver a forga artesanal, que 6 patente em um versejador hábil como Gregório. Alguns de seus sonctos sacros e amorosos transpôem com brilho esquemas de Góngora e de Quevedo e valem como cxcmplo do goslo seisccntista de compor similes e contrastes para enfunar imagcns c dcstrincar conccitos. Concretizando, por excmplo, a intuicäo do tempo fugaz, assim fecha um soneto quase-plágio de Góngora: Ó näo aguardcs, que a madura idade Te convcrta essa flor, essa beleza, Em terra, em cinza, em po\ em sombra, em nada. Ou, moralizando sobre a vaidadc da vida terrena, motivo barroco por excelencia, distribui sabiamcntc as imagcns da rosa, da planta c da nau para reuni-las cnfim no ultimo terceto: É a vaidade, Fábio, nesta vida, Rosa, que da manhä lisonjeada, Purpuras mil, com ambicäo dourada, Airosa rompe, arrasta presumida. É planta, que de abril lavorecida Por marcs de soberba desalada, Florida galeota ernpavesada, Sulca ufana, navega destemida. É nau enfim, que em breve ligcircza. Com a presuncäo de Fônix generosa, Galhardias apresta, alentos preza: Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa De que importa, se aguarda sem deľesa Penha a nau, feno a planta, tarde a rosa? (Desenganos da vida humana metaforicamente) (31) Em Gregório de Matos, Rio, 1849; citado cla Obra Crttica, Rio, MEC, 1960, vol. 11, p. 389. 39 Um veio novo, aberto pelo poeta nesses anos de triunfo do cullismo ibérico, foi o recur so a vozes da lingua tupi (e, mais raramente, africana), fiando-as no tecido da sua diccäo barroca. O efeito para os leitores de hoje é cômico e talvez mais lúdico do que satírico; mas no contcxto da cultura do tempo decerto soava forte a nota mordaz, já que o alvo de Gregório era pôr cm ridículo os fumos dos "principals da Bahia", "cujo torpe idioma é Cobcpá": Há coisa como ver um Paiaiá Mui ptezado de ser Caramuru, Dcsccndentc do sanguc de tatu, Cujo torpe idioma č Cobepá? A linha feminina č Carimá, Muqueca, pititinga, caruru, Mingau de puba, vinho de čaju Pisado num piläo de Pirajá. A masculina č um Aricobé, Cuja filba Cobč, c'um branco Paf Donniu no promontório de Passč. O branco é um Marau que veio aqui: Ela é uma índia de Maré; Cobepá, Aricobé, Cobé, Paf. Em toda sua poesia o achincalhe e a denúncia encorpam-se e movem-se á forca de jogos sonoros, de rimas burlcscas, de urna sinlaxe apertada c ardida, de um léxico incisivo, quando näo rclalhantc; tudo o que dá ao cstilo de Gregório de Malos urna verve näo igualada cm loda a história da satira brasileira posterior. Botelho de Oliveira Mas nada iluslra täo cabalmcnlc a presenca do gongorismo entre nós do que a obra de Manuel Botelho dc Oliveira (1636-1711), também baiano c bachaře! cm Direito pela Univcrsidadc de Coimbra. Deu a publico em 1705 a colecäo dos seus pocmas sob o título dc Música do Parnaso — dividlda e m quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas, com sen descante cômico reduzido em duas comédias ("Hay amigo para amigos" c "Amor, Engaňos y Celos" J (32). (32) Ed. recomcndávcl é a 3a, prefaciada c organizada por Antenor Nasccntes (Rio, Instituto Nacionál do Livro, 1953). De edicäo recente é a Lyra Sacra (S. Paulo, Comissäo Estadual de Literatura, 1971), cujo prólogo vem datado de 1703. 40 Estamos dianie de um poeta-lilerato stricto sensu, capaz de escrever com igual perícia em quatro idiomas e nas várias formas fixas herdadas aos trova-dores e aos renascentistas: sonetos, madrigais, redondilhas, romances, epigra-mas, oitavas, décimas... O virtuosismo em Botelho de Oliveira apela aberta-mente para os modeios da época, que ele cita no prólogo chamando-lhes o delicioso Marino, o cuho Góngora, o vastíssimo Lope. E a leitura da Música do Parnaso dá um mostruário completo das figuras rcpisadas pelos barroquis-las, cuja análise já foi feita pacicntcmente por Eugcnio Gomes no ensaio "O ľvlito do Ufanismo" (33) para o qua! remcto o lcitor inlcrcssado. Parece-me, porčm, útil insislir cm duas matrizcs que subjazem aos diversos processos eslilísticos de Botelho, pois valem para o gongorismo em gcral. A primeira reside no princípio da analógia desfrutado cm todas as suas possibilidades; gracas a elc, qualqucr aspccto da realidadc šerá refrangido cm imagens tomadas a contcxtos semánticos diversos. Sc, por excmplo, o pocta quer falar da f'ormosura da amada, a analogia-chave com o sol abrc-sc cm leque: e o sol vollará como csfcra, luz, chama, raio c sombra ("Sot e Anarda"). Chora a bela Anarda? Aljôlar, fio, chuva, cristais c prata scräo seu pranlo (Ponderacäo das lágrimas de Anarda). Ou č o portc de mulhcr inaccssívcl que encanta o pocta? Entäo a indifcrcnca scrá ven to, seta de prala, nuvem denegrida, golpe, tormento c tempestade (Rigores de Anarda por ocasiäo de um temporal). E väo por aí as metáľoras c os símbolos, mais copiosos na lírica barroca do que cm qualqucr outro estilo histórico. A analógia, aproximando palavras cm ľuncäo dc suas camadas scnsívcis ou lógicas, lambém conduz a colagens bizarras dc substanlivos c adjetivos cujo cľeito č o puro insólito: lagrimoso alenlo nácar lastimoso, resplandor queixoso, propinas forcosas, ingrato sol, mates desvelados, piedosas grandezas, belas sujeicóes, tempestades lagrimosas, pasmos lindos, azeviche tíbio, brigas fermosas... (33) Em A Literatúra no Brasil, vol. I, t. 1, cap. 12 {V. Bibliografia, i/i fine). O leitor também encontrará urna boa caracterizagäo formal de Botelho e dc toda a poesia gongórica brasilcira cm Pericles Eugénio da Silva Ramos, Poesia Barroca, Antológia, Ed. Melhorarnenlos, 1967, pp. 9-26. 41 Cito ao acaso dos Coros de rimas portuguesas, lembrando que rial ma I men te só os contextos esclarecem os similes ocultos... Os jogos analógicos rcmctem a uma perspectiva instávcl e ex-céntrica do homem no mundo. Tudo se parece, e os extremos que se tocam podem fundir-se por obra da metamorfose, outro principio iluminador dos processos barrocos. Oulra constante da linguagem marinista é o acentuar dos contrastes, re-duzindo-os ao paradoxo, isto 6, ä violenta juncäo dos opostos. Estilo do "cterno retorno", precisa do diferente, do outro, mas só para cxplorar o amalgáma dos contrários. Que a fusäo se opere apenas no piano sonoro ou imagístico c näo no piano lógico-scmäntico, č prova do caráter arbitrário, lúdico, da visäo bar-roca da cxistčncia. As combinacôcs cngcnhosas säo urna casca pintada da or-dem visível a ocultar o acaso, a desordem real c o alheamenlo do artista cm relagäo a urna natureza racional. E no lundo a ideológia do barroco ibčrico é a negacao daquele real, cósmico c humano, cognoscívcl, que fora o objeto do pcnsamcnlo rcnasccnlista e que a filosoí'ia de Descartes, de Bacon c de Locke estavam proeurando abracar. Essa ideológia laz do poema o ponto de encontro das transibrmacôcs im-possívcis: Ardem chamas n'água, e como vivem das chamas, que apura, säo dilosas Salamandras as que säo nadantes turbas. Meu peito tambčm, que chorá de Anarda ausencias perjuras, o pranto cm rio transíonna, o suspiro cm vento muda. (Anarda passando o Tep em urna barc.a) É bem t[ite desate Anarda de lanto síuiguc os embargos, sentlo o sanguc rio alegre, send o Anarda abril galhardo. i Se txíin num c noulio eľeito, faz Amor mi lágre raro; pois a neves une rosas, pois dezembros une a rnaios. (Anarda sang rada) Contra amorosas vejituras É cle Metlusa teu rosto, E nos castigos do gosto Säo cobras as iras duras; As uansľonnacôes seguras. 42 Acharás em meus amores; Pois ficando nos ardores Todo mudado em finezas, Sou firme pedra äs tristezas, Sou dura pedra aos rigores. (Comparacäo do rosto de Medusa com o de Anarda) Costuma-se lembrar de Bolclho de Oliveira o pocmeto Ä Ilha da Maré — Termo desta Cidade da Bahia, cm tudo gongórico, c que tem sido destacado da Música do Parnaso por mera razäo de assunto: descreve um recanto da paisagem baiana e alonga-se na cxallacäo do clima, dos animais, das frutas. O critério nativista privilegiou esses versos (que näo raro afloram o ridículo) vendo nos cncömios aos melöcs c ás pitombas um traco para afirmar o pro-gresso da nossa consciencia lilcrária em dclrimcnto da Metropole. Mas um critério formal rigoroso näo chegaria por certo äs mesmas conclusöcs. Men ores O mesmo se dá com a Descricäo da Cidade da líha de liaparica, poema de Frei Manuel de Santa Maria liaparica (Bahia, 1704 —7), autor também de uma epopéia sacra, Eustáquidos (1769). Em liaparica, menos do que uma voz do puro cultismo é mais accrlado ver um fraquíssimo imitador de Camöes c dos čpicos menores do século XVII. Outro camoniano, Diogo Grasson Tinoco, provavclmcntc paulista, autor de um poema sobrc o descobrimento das "cs-meraldas1', só é conhecido cm virtude da mencao que Ihc faz Claudio Manuel da Costa no poema "Vila Rica", transcrcvcndo-lhc quatro estáncias, as únicas que chegaram até nós. Pclo fragmento dcprecndc-sc que a obra dc Grasson Tinoco seria um documento estimável das bandeiras nos fins dos Scisccntos. Pcrnambuco, invadido pelos holandeses, conhcccu também o scu épico, Frei Manuel Calado, autor dc Valor oso Lucideno c Templo da Liberdade (1648), cm louvor de Joäo Fernaildes Vieira, o herói portugučs da resistencia. A mancira é toda camoniana. A prosa. Vieira A prosa barroca eslá representada em primciro piano pela oratoria sagrada dos jesuítas. O nome central é o do Padre Antonio Vieira (Lisboa, 1608 — Bahia, 1697). Figuras sceundárias, mas de modo algum medřocres, o Padre Eusébio dc Matos (Bahia, 1629-92), irmäo do pocla Grcgório, e o Padre Antonio dc Sá (Rio, 1620-78). 43 Existe um Vieira brasileiro, um Vieira portugués e um Vieira europeu, e essa riqueza de dimensöes deve-senäo apenas ao caráter supranacional da Com-panhia de Jesus que ele täo bem encarnou, como ä sua estatura humana em que näo me parece exagero reconhecer tracos de génio. No fulcro da personalidade do Padre Vieira estava o desejo da aeäo. A religiosidade, a solida cultura humanística c a perícia verbal scrviam, nesse militante incansável, a projetos grandiosos, quase sempře quiméricos, mas todos nas-cidos da Utopia eontra-rcformista de uma Igrcja Triunfante na Terra, sonho medieval que um Império portugués c missionário tornaria afinal realidade. Antonio Vieira naseču cm Lisboa, mas ainda mcnino vcio com os pais para a Bahia. Ai csludou no Colégio dos jesuítas. O seu brilho de precise orador e latinista despertou a alcncäo dos superiores que o incumbiram de ensinar Rctórica aos novicos dc Olinda. Ordenado cm 1634, encetou a carreira de pregador que logo conhcccu o exito do Sermäo pelo bom sucesso das annas de Portugal contra as de Holanda, ečlebre pela "apostrofe atrevida" a Dcus para que sustasse a vitória dos hereges, futuros destruidores das imagens sagradas: Exsurge, quare obdormis, Domine? As guerras do sóculo entre as potencias mercantis pelo monopolu) do acúcar afiguravam-se ao jovem levita ťormidandos embales teológicos c cle faz scus os análemas do catolicismo espanhol contra os calvinistas. Mal chega ä Bahia a notícia da reslauracäo, Vieira parte para Lisboa. Co-meeava o compromisso com a tentaeäo jesuitica dc dar cobertura idcológica aos projetos do poder, como faria, com mais exito, o scu coiitcmporäneo Bos-suet no Traité de Politique iirée de T Écriture Sainte. Mas o Portugal de D. Joäo IV, egresso de sessenta anos de dominio espanhol, atado pel a Inqui-sicfio c pcla ruinosa politica dc predaeäo colonial, näo era a Fr any a ascendente dc Luis XIV. E os sonhos dc Vieira, mais ousados que os tacteios da casa de Braganca, passaram a chocar-sc com toda sorte dc resistencias. No scu ©spirilo vcrdadciramcntc barroco fermentavam as ilusöcs do esta-bclccimenlo dc um Impório luso e calälico, respeitado por todo o mundo e servido pelo zelo do rci, da nobreza, do clcro. A realidade era bem outra; e do descompasso enlre ela c os demais pianos do jesuita lhe adveio mais dc um revós. Como inlérrirctc fantasioso dos texlos bíblicos em funcao do sebas-tianismo popular (:,4)f vc frustradas as suas profecias alem de atrair suspcilas para as suas obras "herélicas" Quinta Império, História do Futura c Clavis Prophetarum. (34) CT. J. Liício ďAzcvedo, A Evolucüo do Sebastkinismo, Lisboa, Livraria Clássica ca Ed., 1947. Os textos dc base para entender os anclos messianicos do tempo säo as Trovas de Gonyalo A nes, sapateiro dc aleunha o Bandarra\ eseritas por volta dc 1540 c suje i tas logo a processos do Santo Ofício, foram adaptadas, primeiro ä figura de D. Sebastiäo (t 1578) e, mais tardc, por Vieira, sucessivamente a D. Joäo IV, Afonso VI e D. Pedro. Bandarra falava apenas no Em.oberto que viria estabelecer para sempře o rcino da Justina. 44 Advogado dos crisläos-novos (judeus conversos por medo äs perseguicöes), suscila o ódio da Inquisicäo que o manterá a ferros por dois anos e lhe cassará o uso da palavra em todo Portugal. Enfim, batido na Europa, conhece no Maranhäo as iras dos colonos que näo lhe perdoam a inoportuna defesa do nativo. O saldo de suas lutas foi portanto um grande malogro. E a Portugal näo rcstava senäo palmilhar o caminho da dccadéncia rcsumido no desfrutc cego das riquezas coloniais, cntäo o ayúcar, logo dcpois o ouro, que iria dar seiva ao capitalismo inglés em gcstacao. De Vieira ficou o tcstemunho de um arquitcto incansável de sonhos e de um orador complexo e sutil, mais conceptista do que cultista, amante de provař até o sofisma, eloquente atč ä rctórica, mas assim mcsmo, ou por isso mesmo, cstupendo artista da palavra. É de leitura obrigalória o Sermäo da Sexagésima, proťcrido na Capcla Real de Lisboa, cm 1655, c no qual o orador cxpöc a sua arte de pregar. Ao leitor brasilciro interessam particularmente: —■ o Sermäo da Primeira Dominga da Quaresma, pregado no Maranhäo, cm 1653. Nclc o orador tenta pcrsuadir os colonos a libertärem os indígenas que Hic fazem cvocar os hebrcus cativos do Farao. Prcvcnindo as objccöcs dos senhores ("Quem nos liá de ir buscar um pole dágua, ou um feixe de lenha? Quem nos há de fa/er duas covas de mandioca? Häo de ir nossas mulheres? Häo de ir nossos filhos?"), responde virilmcntc: "Quando a ncccssidadc c a conscicncia obrigam a tanto, digo que stín, e torno a dizer que siní; que vos, vossas mulheres, que vossos filhos, c que todos nos nos sustentássemos dos nossos bracos; porquc melhor 6 sustentar-sc do suor proprio, que do sanguc alhcio. Ah! fazendas do Maranhäo, que sc esses mantos c cssas capas se torceram, ha vi ani de lanyar sanguc!" Nein sc diga que Vieira foi insensível ao eseravo negro preterindo-o no ardor da defesa ao indígena. No Sermäo XIV do Rosário, pregado cm 1633 ä Irmandadc dos Prclos de um engenho baiano, cle equipara os sofrimentos de Cristo aos dos eseravos, idčia tanto mais forte quando sc lembra que os ouvintes eram os próprios negros: "Em um engenho sois imitadores de Cristo Cruciíicado: porquc padeceis em um modo muilo semelhante o que o mcsmo Scnhor padeecu na sua cruz, Para os textos de Vieira recomenda-se a edigäo das Obras Escolhidas, em 12 vols., aos cuidados de Antonio Sergio e Hcmäni Cidade (Lisboa, Livr. Sä da Costa Editora). Ver tambčm a Defesa peranie o Tribunal do Santo OJľcio (aos cuidados de Hcmäni Cidade), Salvador, Livr. Progresso, 1957; História do Futuro (aos cuidados de M. Leonor Carvalhäo Buescu), Lisboa, Casa da Moeda, 1982; e Apologia das Coisas Profetiiadas (org. de Adma Fadul Muhama), Lisboa, Cotovia, 1994. Sobrc Vieira: Joäo Lucio d'Azevedo, História de Antonio Vieira, Lisboa, Livr. Clássica, 2 vols., 1918-20; Eiigento Gomes, Introdugäo aos Sermöes, Rio, Agir, 1960; A. J. Saraiva, O Discurso Engenhoso, S. Paulo, Perspectiva, 1980; A. Bosi, "Vieira ou a Cruz da Desigualdade" em Dialética da ColonizaQäo, cit. 45 e em toda sua paixäo. A sua cmz foi composta de dois madciros, c a vossa em um engenho é de trés. (...) Cristo despido, e vos despidos; Cristo sem comer, e vos famintos; Cristo em tudo maltratado, e vos maltratados em tudo." Ao engenho de acúcar chama "doce inferno" pintando-o com todas as cores que a sua imaginagäo medieval e inaciana lhe sugeria. No entanto, esse poder de fantasia näo cnevoava na consciéncia do hörnern o fato bruto da explorayäo do servo pelo senhor: "Eles mandám, e vos servis; eles dormem, e vos velais; eles descansam, c vos irabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Näo há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda cssa doyura para quern 6? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: 'Sic vos non vobis mellificatis apes'" (35). Vieira mos trou-sc superior ao meio cm que o destino o colocara, c onde falalmcntc deveria malograr aquelc arquitcto de sonhos. O nomc do Padre Antonio Vieira está hoje incorporado ä lenda c soa na palavra do poeta: O cču estrela o azul e lem grande/a. Este, que tevc a fama e a gloria tem, Imperador da lingua portuguesa, Foi-nos um cču também. No imenso espaco scu dc meditar, Constelado de forma e de visäo, Surge, prenúncio claro de luar, El-Rci Dom Sebasüäo. Mas näo, näo é luar: é luz do ctčreo. E um dia; e, no céu ;unplo dc desejo, A Madrugada iircal do Qu in to Império Doira as mai'geas do Tcjo. (Fernando Pessoa, Mcnsagcm) Prosa alegórica j Curioso exemplo de prosa narrativa barroca deparamos no Compendia Nar-rativo do Peregrino da America, dc Nuno Marques Pereira (Bahia, 1652 — Lisboa, 1728). Trata-sc de uma longa alegoria dialogada, muito próxima do estilo dos moral istas cspanhóis e Portugueses que trocaram em miudos os prin-cípios asečlicos da Conlra-Rcforma. O objetivo do Compéndio, cditado em 1718, č aponlar as mazclas da vida colonial e "contar o como está introduzida (35) Verso atribufdo a Virgílio: "Assim vós, mas näo para vós, ťabricais o mel, abelhas". 46 ■ in quasc geral ruina de fciticaria e calundus nos escravos e gente vagabunda tirsle Eslado do Brasil; alem de outros muitos e grandes pecados e supersticöes di- abusos täo dissimulados dos que tem obrigacäo de castigar" (Prólogo). A rsse ponto de vista säo reduzidos os casos da terra, narrados pelas duas únicas pcrsonagens" do livro: o Peregrino e o Anciäo. A paisagem que serve de lundo aos diálogos é um misto de realismo e alegoria: ao lado de indicacöes lopográficas muito precisas estende-se o "território dos deleitcs", altcia-se o "palacio da saúde" e a "torre intelectual", scrvindo de safda a "porta do dc-Scmgano". Como nas päginas do Padre Manuel Bcrnardcs, cmbora com menos fiiaca e fluidez, ressurge inleira a simbologia medieval de que o barroco ibérico paicce äs vezeš mera contrafacäo. O romance didático foi tambčm cultivado por Teresa Margarida da Silva i' Orta cujas Aventuras de Diófanes se calcaram sobre o modclo das Aventuras i/f 'Velěmaco de Fčnclon. Nascida cm Säo Paulo, cm 1712, foi muilo pcqucna .inula para Portugal (como scu irmao, o moralista Malias Aires), onde rcccbcu i .incrada educaelo clássica c de onde näo mais regressou. A rigor, näo per-Irnccria ä nossa literatura apesar de ter sido chamada "precursora do romance biasileiro" (3ň). Escrcvcndo já cm mcados do sčculo XVIII, Teresa Margarida ullrapassa os limites do Barroco näo só hislórica mas idcologicamcntc: o con-tťúdo das suas alegorias tem já um sabor iluminista; c alrás de uma prosa iiinda afetada de cultismos entrevč-sc o ainor ä ordern, a simplicidadc c äs virludes racionais que a cičncia c a nova pedagogia afrancesada vinham prc-gando. Alias o scu proprio mentor lilcrário, Fčnclon, já estava mais proximo da clareza cartesiana e da piedade iluminada dos jansenistas que da mente barroco-jesuítica. E säo igualmentc tracos jansenistas, laicizados pelo clima ilustrado, que predominam nas páginas do "clássico csquecido" Matias Aires (1705-1763): as Reflexöes sobre a Vaidade dos Homens tra/cm uma visäo ilcscnganada da natureza humana, tal como a legaram alguns pensadores fran-cr.scs do sčculo clássico, Pascal, La Rochefoucauld c Vauvcnargues, para os quais o amor-próprio é o móvel único c ultimo de lodas as acocs. Mas também cssa obra, eserita por um paulista, foi pensada c composta na Europa, dela näo se podendo dizer que guardc qualquer vineulaeäo com a vida da colönia. (36) Tristáu tle Ataídc, cm O Romance lirasileiro, volume coordenado por Aurélio lliiiirque de Hohuida, Ed. O Cruzeiro, Rio, 1952, p. 13. A primeira edicáo do livro (Li.sboa, 1752) irazia o título Máximas de Viríude e Formosura, com que Diófanes, (íiminéia e Hemirena, Prfncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da des-yjaca, Oferecidas á Princesa Nossa Sen hora, a Sen hora D. Maria Francisca Isabel Josefa Antonia Gertrudes Rita Joana, por D. Dorotéia Engrássia Tavareda Dalmira. t) pseudonimo final č anagrama perfeito de Teresa Margarida da Silva e Orta. Na 2-i-d., conservou-se o pseudOnimo, o que levou alguns eruditos a diseutirem sobre a autoria do livro, mas alterou-se o título para Aventuras de Diófanes Imilando o Sapientíssimo 1'i'nelon na sua Viagem de Telémaco. 47 As Academias Até os princípios do século XVin, as marüfesta9öes culturais da Colônia näo apresentavam qualquer ncxo entre si, pois a vida dos poucos centros urbanos ainda näo propiciara condigôes para socializar o fenômcno Iiterário. Foi nccessário es-perar pela cristalizagäo dc algumas comunidades (a Bahia, o Rio dc Janeiro, al-gumas cidadcs de Minas) que a cconomia do ouro reanimara, para ver rcligiosos, militares, desembargadores, alios funcionários, reunidos cm grcmios eruditos e literários a exemplo dos que cntäo prolifcravam em Portugal c em toda a Europa (37). Das Academias brasileiras podc-se dizcr que foram: a) o ultimo centro irradiador do barroco Iiterário; b) o primciro sinal de uma cultura humanŕstica viva, extraconventual, em nossa sociedadc. Por isso, talvcz tenham sido mais relevantes as suas conlribuicôcs para a História c a crudicäo cm gcral que o pesado rimário gongórico compilado por scus vcrscjadorcs (*). Foram baianas as academias mais fee und as, a Brasilien dos Esquecidos (1724-25) c a Brasílica dos Renascidos (1759). Teve também alguma relcvän-cia conio fenômcno de agremiacjío cultural no Rio dc Janeiro, entrc 1736 c 1740, a Academia dos Felizes. Ao lado dessas institutes, podem-se citar os atos académicos, scssöes literárias que duravam algumas horas c tinham por fim celebrar datas rcligiosas ou cngrandccer os feitos de autoridades coloniais: neste caso figura a chamada Academia dos Seietos do Rio dc Janeiro (1752), que se resumiu numa série de panegíricos rimados cm louvor do general Gomes Frcirc dc Andrada, im-prcssos mais tarde cm Lisboa sob o título dc Júbilos da America. A Academia Brasílica dos Esquecidos, fundada pelo vice-rei, Vasco Fernandos César de Meneses, por ordern dc D. Joäo V, escolheu para lema a expressäo "Sol oriens in occiduo" c os scus membros sc apelidaram, ä maneira dos conf'radcs Portugueses, Nubiloso, Infeliz, Obsequioso, Inflamado, Ocupado, Menos Ocupado, etc. Eram scus pianos estudar a história natural, militar, eck-siástica c politico do Brasil e diseutir nas scssöes os versos compostos pelos académicos. O nomc do Acadcmico Vago, Coroncl Scbastiäo da Rocha Pila (1660-- i (37) As Academias poituguesas rcmonlam ao sčeulo XVII. Fidelino de Figueiredo cita, entre outras, a Academia dos Singularcs, a dos Gencrosos, a dos Solitários, a dos Únicos, a Instanlänea e a dos llustrados (V. História da Lit. Clássica, 2* época, Lisboa, 1922). (*) Esta publicando-se a série completa dos textos académicos sob o título geral de O Movimento Academicista no Brasil, 1641 — 1820/22 (dir. de Jose Aderaldo Cas-tello), S. Paulo, Cons. Estadual dc Cultura, 1969... Para os textos c a análise do Bairoco Iiterário mineiro säo de consulta indispensável as obras de Alfonso Avila: Residuos Seiscentistas em Minas, Belo Horizonte, Centro de Estudos Mineiros da Universidade, 1967; e O Lúdico e as Projecöes do Mundo Barroco, S. Paulo, Perspectiv^ 1971. 48 1738) č o mais lembrado do grupo: autor da ampulosa História da America Portuguesa partie ipou intensamente na vida da Academia em cujas sessôes glosou lemas como estes: "Urna dama que sendo formosa näo falava por näo mostrar a falta que tinha nos dentes," ou "Urna moca que, metendo na boca umas pórolas, e revolvendo-as, quebrou alguns dentes", ou ainda "Amor com Amor se paga c Amor com Amor se apaga"; e do que rcsullou é difícil dizer se mais cspanui a frivolidadc dos assuntos ou o virtuosismo da clocucäo. Eis o sonclo de Rochá Pita para o último terna: Deste A potenia vigilantc, c cego Uma parte confirmo, outra reprovo. Que o Amor com Amor se paga provo, Que o Amor com Amor se apaga nego. Tenclo os Amorcs um igual sossego, Se estäo pagando a i'č sempre de novo, Mas a erer que se apagam me näo movo, Sendo Togo, e matéria Amor, c emprego. Sc dc incéndios costuma Amor nutrir-sc, Uma cliama com outra há de aumentar-se, Que cm si mesmas nílo devem consumir-se. Com ra/.äo deve logo duvidar-se Quando um Amor com oulro sabe unir-se, Como um logo com oulro há de apagar-se? Os Esquecidos foram cerebrinos ľa/.cdorcs dc acrósticos c mcsóslicos, so-netos jocô-sérios c plurilíngiics, ccntôcs bestialógicos c alé cngcnhos pré-con-crelos como cslc Labirinto Cúbico dc Anaslácio Ayrcs dc Pcnhaľicl, que dispôs de vários modos a frase latina in utroquc Cesar (3R): I N U T R O Q U E C E S A R NINUTROQUECESA UNINUTROQUECES TUNINUTROQUECE RTUN1NUTROQUEC ORTUN1NUTROQUE Q O R T U N I N U T R O Q U UQORTUNINUTROQ E U Q O R T U N í N U ľ R O CEUQORTUNINUTR ECEUQORTUNINDT SECEUQORTUNINU ASECEUQORTUN1N RASECEUQORTUNI (38) Apud Péricles Eugenio da Silva Ramos, ľoesia fíarroca, cit., p. 161. 49 Da Academia Brasüica dos Renascidos, ciijo símbolo era a Fcnix entrc chamas e a divisa "multiplicabo dies", sabe-se que precisou dissolver-sc por ter caído em desgraca o fundador, José Mascarenhas. Nos seus Codices encon-tram-se os mesmos exemplos de cultismo da Academia dos Esquecidos que ela se propunha reviver. Salvaram-se da produ^äo ligada ao gremio obras em prosa de valor documental: o Orbe Seráfico Novo Brasilia) (1761) de Fr. Antonio de Santa Maria Jaboaläo, cronisla dos franciscanos na Colönia; a História Militär do Brasil de Josč Mirales; a Nobiliarquia Pernambucana de Antonio Jose Vitorini) Borges da Fonseca e Desagravos do Brasil e Glorias de Per-nambueo do beneditino Domingos de Loreto Couto, muito apreciado por Ca-pistrano de Abrcu pcla simpatia com que viu o nosso indi'gcna (39). Da Academia dos Felizes, rcunida cnlrc 1736 c 1740 no Rio de Janeiro, j poueo sc sabc: a origem palaciana do fundador, o Brigadciro Jose da Silva Pais que entäo substiluía Gomes Frcirc de Andrada; o lema "Ignavia fUganda et fugienda" c, como símbolo, um Hercules ameacando o ócio com a clava. Näo sc conhccc o scu espólio literário. Alčm das instiluicöes, houve os atos acaděmicos, sessöcs que duravam ! horas c tinham por fim comemorar datas rcligiosas ou cngrandcccr homens de prol no regime colonial. Este ultimo č o caso da chamada Academia dos Seietos (Rio, 1752), panegirico em prosa e verso oferecido a Gomes Frcire de Andrada e publicado sob o título de Júbilos da America. Festa rcligiosa, mas também índicc da nova sociabilidade que as minas ensejavam foi o Triunfo Eucarístico... na Solené Translacäo do Diviníssimo Sacramento da Igreja da Senhora do Rosário para um Novo Templo da Senhora do Pilar em Vila Rica... aos 24 de maio de 1734. Nesta, como cm outras manifcstacöcs públicas, dava-sc um misto de espetáculo devoto e inlencTio encomiástica. Assim, o pcqueno burgo de Säo Paulo conhcccu dias inlcnsos de cxibiyäo de carros alcgóricos, opera mitológica, logos de artifício c "folias" de pretos pelas ruas representadas (3<>) Paralela ä historiografia acadômica do Nordcslc č a obra dos eruditos e linha- ia-gistas de Säo Paulo, onde já se finnava, nos meados do sčeulo XVIII, a prosápia das famflias bandciranles. Pedro Taqucs de Almeida Pais Leme (17147-1777) deixou uma vasta relacäo de biograf i as dos paulistas aqui radicados desde a chegada de Miulim Afonso cm 1532 (Nobiliarquia Paulistarta); cscrcvcu tambčm a História da Cupitania de S. Vicente, a ínformacäo sobre as Minas de Säo Paulo e a Noticia Historka da Expulsäo dos Jesuitas de Säo Paulo em 1640. Outro crudito, Fr. Caspar da Madrc tic Deus (1715-1800), supranumerário da Academia dos Renascidos, redigiu as Memórias para a História da Cupitania de Säo Vicente, hoje chamada de S. Paulo, fonte preciosa de informagôcs de que se tem valido todos os pesquisadores do periodo bandeiraníc. Para o conhccimenlo destes c de outros cronistas menores do sčeulo XVIII lcr-se-á com proveito o meticuloso ensaio dc Pčiicles da Silva Pinheiro, ManifestacÓes Literárias em Säo Paulo na Época Colonial, S. Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1961. 50 polos semináristas, nos mcados de agosto de 1770, por ocasiäo da vinda da imagem de Sant'Ana. Os sermôes, o texto da opera e os poemas entäo escritos ľoram compilados sob o título de Academia dos Fellies a exemplo do grupo lluminense (40). As academias e os atos academicos significam que a Colônia já dispunha, na primeira metade do século XVIII, de razoável consislcncia grupal. E embora so tenham restringido a imitar os scstros da Európa barroca, já puderam nu-trir-se da história local, dcbrufando-se sobrc os cmbatcs com os holandeses no Nordeste ou sobre as bandeiras e o ciclo minciro no Centro-Sul. Quanto as nobiliarquias, pcrnambucana e paulista, cram sinlomas do or-gulho de familias que já contavam com um passado propriamcnlc brasileiro; c a prosápia do patriciado colonial viria a ser um dos móvcis da Indcpcndencia lal como se cfeluou no comeco do século XIX: movimcnto dc cima para baixo, de proprictários dcsgostosos com as mcdidas rccolonizadoras da Cortc. Hojc, a historiografia mais avisada já é capaz dc pôr a nu as relates concretas que cxistiam cntrc os intcrcsscs c modos dc pcnsar da classc dominante na Colônia c o ľcnômcno "cm progrcsso" do nativismo, Ora, foi o fades da tradic;äo, visívcl nas academias c no zclo gcncalógico dos linhagislas, que acabou prcvalecendo no proccsso da Indcpcndencia, rclcgando a um incômodo segundo piano as corrcntes ilustradas, sobrctudo as radicais, que pcrmcaram as "inconľidčncias" todas malogradas, prccisamcnte por tcrcm dcixado alheias ou rcccosas as camadas que pod i am promovcr, de f a to, a cmancipacäo política: os scnhorcs dc terras c a alia burocracia. Sobrcvindo o momciUo opor-tuno, ťoram cstcs os grupos que ccrraram ťileiras cm torno do herdciro por-lugucs, dando o passo que lhcs convinha. Quanto äs idcologias inovadoras, ou clcgcriam a ľranca oposiyäo (dc que säo exemplo as revoltas sob Pedro I c na fasc regencial), ou tentariam com- (40) Encontra-se uma longa relacäo dos atos acadömicos e das fungöes religiosas que deixaram algum traco documental, direto ou indireto, em Manifestacöes Literárias da Era Colonial de Jose Aderaldo Castello (S. Paulo, Cultrix, 1962, pp. 90-93). (41) Assim loram chamadas, ä imitaefto da Inconiklöncia Mineira, as sedicöes do Rio dc Janeiro (1794), da Bahia (1798) e dc Pernambuco (1801). Para uma inlcipretac,äo ampla dos r'atores söcio-culturais da ColOnia, v. Caio Prado Jr., Formacäo do Brasil Contemporäneo, S. Paulo, Brasilicnsc, 4a ed., 1953; Jose" Honório Rodrigucs, Civilizacäo e Reforma no Brasil, Rio, Civ. Bras i lei ra, 1965; Cíulos Guilhcrme Mola, Idéia de Re-volugäo no Brasil no Final do Século XVIII, S. Paulo, ed. Universitäria, 1967; Fernando Novais, "O Brasil nos Quadros do Antigo Sistcma Colonial", cm Brasil em Perspectiva, S. Paulo, Dilusílo Europčia do Livro, 1968; Fernando Novais. "Consideracöes sobre o Sentido da ColonizacHo", sepíuata da Revista do Institutu dc Estudos Brasileiros, n- 6, Universidadc de Sílo Paulo, 1969; A Estrutura e a Dinámica do Antigo Sistema Colonial, S. Paulo, Brasilicnsc, 1974. 51 por-se, onde e quando possível, com um sistema assentado no laliíúndio c no braco escravo (as marchas e contramarchas liberals durante o Scgundo Rcina-do). Nas esferas ética e cultural está ainda por fazer-se o inventário da heranca colonial-barroca em toda a America Latina (42). Entre os caracteres mais os-tensivos lembrem-se: o meufanismo verbal, com toda a seqiiela de discursos familiares e académicos; a anarquia individualista, que acaba convivcndo muito bem com o mais ccgo dcspotismo; a rcligiosidade dos dias dc festa; a displi-cencia em matéria de moral; o vício do gcnealógico e do heráldico nos con-servadores; o culto da aparencia e do medalhäo; o vezo dos títulos; a educacao bacharclcsca das elites; os surtos de antiquarismo a que näo escapam nem mesmo alguns espíritos superiores. Esses tracos näo sc transmitem pela raca nem se herdam no sanguc: na verdadc, cles sc desenvolveram com as cstruluras sociais que presidiram ä forma^äo de nossas elites c tem reaparecido semprc que o processo dc mo-demiza^äo sc inlcrrompc ou cede ä ľorca da inércia. (42) Inventário que, no caso brasileiro, näo dispensará aplataforma de alguns ensaios segmentares jú clássicos, como a Evolucäo do Povo Brasileiro (1924) dc Olivcira Viana, Casa Grande e Senzala (1933) e Interpretagäo do Brasil (1947) de Gilberto Freyre c Raizes do Brasil (1935) de Sérgio Buarque de Holanda. 52 Ill ARCADIA E ILUSTRACAO Dois mementos: o poetko e o ideológico A passagem do Barroco ao "barocchctto" c ao rococo foi urn processo cslilístico interno na história da arte do sčculo XVIII e consistiu cm uma ate-nuayao dos aspectos pesados e macicos dos Scisccnlos. Ncssa viragem prefi-guram-se as tendéncias estélicas do Arcadismo como a busca do natural e do simples e a adocao dc csqucmas ritmicos mais graciosos, entendendo-sc por graga uma forma cspccífica c mcnor dc bclcza. A Arcadia enquanto cstilo mclffluo, musicalmcnte fácil c ajustado a temas bucólicos, nao foi criacao do século dc Melastasio: rclomou o cxcmplo qua-Irocentista dc Sannazaro, a lira pastoril dc Guarini (// Pastor Fido) c, menos icmotamcnlc, a tradicao anticultista da Italia que se opos á počtica dc Marino e as vozes que na Espanha se haviam lcvanlado conlra a idolatria de Góngora (43). Mas o que já sc postulava no periodo áurco do Barroco cm nome do cquilíbrio c do bom gosto cnlra, no século XVIII, a intcgrar todo nm eslilo dc pensamcnto vol lado para o rational, o claro, o regular, o veros-s(mil\ e o que antes fora modo privado dc scntir assume foros dc teoria počtica, c a Arcadia se arrogará o dircito dc scr, cla também, "philosophiquc" c digna vcrsao lilcrária do Iluminismo vitorioso. Impotla, porém, distinguir dois momcntos idcais na literatura dos Sete-ccntos para nao sc incorrcr no cqufvoco dc apontar conlrastcs onde houvc apc-nas juslaposicáo: a) o momcnlo poético que nascc dc um encontro, cmbora ainda amancirado, com a nature/a c os afclos comuns do homcm, rcfletidos alraves da tradicao clássica c dc formas bem definidas, julgadas dignas de imitacao (Arcadia); b) o momcnto idcológico, que sc impdc no mcio do sčculo, e traduz a critica da burgucsia culta aos abusos da nobrcza c do clcro (Ilus-iragáo). Á mcdida que sc prosseguc no tempo, vai-sc passando de um Arcadismo tout court (os sonetos de Cláudio Manuel da Costa, por excmplo) ao engajamento pombalino da čpica dc Basilio da Gama, para chegarmos enfim n satira polftica, vclada no Gonzaga das Cartas Chilenas, mas aberta no De- (43) A primcira Arcadia foi fundada em Roma, em 1690, por alguns poetas c cnticos niiumarinistas que ja" ;uitcs costumavam reunir-se nos saloes da ex-rainha Cristina da S»6cia. O programa comum era "exterminar o mau gosto onde quer que sc aninhasse"; (i emblema, a Hauta de P3 coroada de louros e tic pinheiros. Os s6cios tomavam nomes de pastores gregos ou romanos. 55 sertor de Silva Alvarenga. E a literatúra do século XIX anterior au Komantismo ainda juntará resíduos arcádicos e filosofemas tornados a Voltaire e a Rousseau: fale por todos o verso prosaico de José Bonifacio de Andrada e Silva. Denominador comum das tendéncias arcádicas é a procura do verossímil. O conceito, herdado da poética renascentista, tern por fundamentos a nocäo de arte como cópia da natureza e a idéia de que tal mimese se pode fazer por graus: de ondc, o matiz idcalizantc que esbate qualqucr pretcnsäo de um rea-lismo absoluto. Já os primeiros teóricos da Arcadia propunham mediagöes entre o natural e o ideal nas suas formulas áurcas de bom gosto. Para Gian Vincenzo Gravina, cujo tratado Delia Ragion Poetica data de 1708, a fantasia deve joeirar os dados da expcriencia a f im de aprcendcr a natureza ultima das coisas (a Idéia platônica), que coincidirá com a sua bclcza. Segundo cssa linha dc pen-samento, os mitos grcgos, que os arcades cultivaräo ä sacicdadc, valem como belas aparéncias do real, do mesmo real que a filosofia cartcsiana atinge com os seus conccitos: "A fabula é o ser das coisas transformado cm genios hu-manos, e é a vcrdade transvestida em aparencia popular: o pocta dá corpo aos conceitos, c por animar o insensível e cnvolver de corpo o cspírito, converte cm imagcns visívcis as contemplacôes suscitadas pcla fantasia: cle é iransfor-mador c produtor" (Livro I). Por isso as imagcns, os sons, enťim a matéria significants do poéma näo vale por si propria como na arte barroca, cm que o arbítrio do criador ignorava os limites da natureza c pódia comprazer-se ad libitum no jogo dos signos, aproximando-se (como diria Nietzsche) muilo mais da música do que de qualqucr outra forma expressiva. Em Ludovico Antonio Muratori (Delia Perfelta Poesia Italiana, 1706), faz-se nitida a servidäo da poesia aos valores conccptuais c éticos. A arte deve exercer um papel pedagógico e, como no conselho dc Horácio, unir o ú til ao agradável. Quanto ao bom gosto, será o delcite que sc prova ao pcrccbcr a graca que acompanha toda justa mimese do Bern e do Verdadeiro. Quem se agrada de falsos ouropéis já cstá ontologicamente corrompido: o mau gosto e a deprava^äo se juntam como a cara c a coroa da moeda. Muratori concilia o hedonismo literário do arcade com a propria rígida ética de meios c fins. E näo foi por acaso que Pietro Mctastasio, arcade por excelencia c discípulo amado dc Gravina, buscou harmonizar nas suas árias o cantabile fácil do melodrama e a moral hcróica da tragédia clássica. Insisto nas ťontes italianas da Arcadia, porque säo elas que ressalvam o papel da fantasia e do prazer no tecido da obra poética. A outra exigencia, a da razäo, vincula-sc ao enciclopcdismo francos e impôe-se ä medida que a Ilustracäo exerec o seu magistério sobre a cultura luso-brasilcira. O pionciro no esťorco dc reťormar a mente barroco-jesuítica cm Portugal foi Luis Antônio Vcrney, cujo Verdadeiro Método de Estudar cxpunha todo um sistema pedagógico construído sobre modelos racionalistas franceses e es-cudado na prática escolar dos Padres Oratorianos, de tendencia cartesiana e 56 jmiscnista. Sob o patrocínio do Marqués de Pombal opera-se, em parte, a re-forma do ensino que teve por mentor o ilustrado Antonio Nunes Ribeiro San-Chtfs, redator das Cartas sobre a Educagäo da Mocidade (1760). No campo das poéticas, o modelo da nova corrente näo podere deixar de aer a Art Poétique de Boileau, aceita por Voltaire como a exposic*0 mais razí )ável das normas clássicas. Traduzida já em 1697 pelo quarto Coflde de Eri-(cira, influiu diretamente nos dois tcóricos ibéricos da Arcadia, « espanhol Igflacio de Luzán e o portugucs Francisco José Frcire (Cändido Lu5itano) cuja \rte Poetka (1748) valeu como tcxto de base para os nossos pocias neoclás- SICOS. Para Verney, "urn conceito que näo é justo, nem fundado sobrtf a natureza das coisas, näo pode ser bclo, porque o fundamento de todo conccitc cngenhoso (- a verdade" i44). E para Cändido Lusitano, mais proximo das fontes italianas: "Para chc-fcurmos, pois, com a matéria a causar maravilha e dclcite, é prcciso rcprcsentar os objetos dos tres mundos, näo como eles ordinariamcntc säo, mas como wrossimilmente podem, ou devcriam ser na sua complcta forma" {Arte Poet., I, 66). Se Gravina e Muratori c Metastasio deram a Cändido Lusitart0 cxemplos de poesia cm ato c de urna rcflcxäo idealista em torno da arte, Boí'cau e Voltaire contribuíram para fixar cänones que precisaram as distincócs dos generos «lássicos e as normas tradicionais de linguagem c de mélrica. Ů os arcades ttlaram pelo ajustamcnto da sua poesia äqucles cänones, tanto 4uc matéria iicquente das sessôcs da Arcadia Lusitana (1756-1774) e dos encontros cntrc os liricos minciros era a leitura c a crŕtica mutua a que submctíam os seus versos. Se verossimilhanca c simplicidadc foram as notas formais eříPccialmcnlc prczadas pclos arcades, que mensagens veiculou de preferencia a n*)va poélica? tí sabido que ambicntcs c figuras bucólicas povoaram os versos dos autores •«Mccentistas. A genese burguesa dessa temática, ao mcnos como c,i» se apre-icntou na Arcadia, parecc hoje a hipótesc sociológica mais justa. Plas palavras de um critico penctrante, Antonio Candido, cla é assim formulae*^ "A poesia pastoral, como tenia, talvcz esteja vinculada ao dcscnvo,vimcnto dn cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade ä rJaisagcm na-lural, transforma o campo num bem pcrdido, que encarna facilnřcnlc os sen-iimcntos de frustracäo. Os desajustamcnlos da convivencia social se explicam pela perda da vida anterior, e o campo surge como cenário de uma perdida 'iiloria. A sua cvocacäo cquilibra idcalmentc a angústia de viver^ associada ä vida prcsente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade Joäo e Dona Carlola Joaquina. É escusado dizer que a denúncia de Critilo näo vai alem das pessoas e, ,r deixa passar algum verso de piedade pelos negros, que näo tóm mais delitos que fugirem ás íomes c aos castigos, que padecem no poder de senhores desumanos, li.nuleira, "A Autoria das Cartas Chilenas" (in Revista do Brasil, abril de 1940) e Ro-ihi^ues Lapa, As Cartas Chilenas, Rio, Instituto Nacionál do Livro, 1958. Para o estudo das ťontes textuais, ver de Tarqufnio J. B. de Oliveira, Cartas Chilenas, | Paulo, Ed. Referenda, 1972. 75 näo toca em ponto algum do regime nem incrimina "as sanlas lei s do Reino". E a cerla altura reconhece como legais as sevfcias feitas pelos donos dos es-cravos: Tu tarnbérn näo ignoras que os agoutes só se däo, por desprezo, nas espáduas, que acoutar, Doroteu, em outra parte só pcrtence aos senhorcs, quando punem os caseiros delitos dos escravos. Bastariam esses passos (colhidos de um poema em que prcvalece a intengao critical) para situar a ideológia de Gonzaga; despotismo esclarccido e menta-lidade colonial. Tracos csparsos, mas fortes, de nativismo acham-se na obra exígua de Al-varetiga Peixoto (60). Comeeou a cscrcvcr como ncoclássico, pagando depois tributo ä lira laudatória: com sincero cnlusiasmo ao cantar Pombal, mas por urgencia do indulto, no caso de D. Maria I. Ao Marques dedicou uma trabalhada Ode cm que o tcma do heroi paeffico alingc a sua mais clara expressäo. Ao quadro da gucrra ("o horror, o estrago, o sústo") o poeta contrapöe o universo do labor c da ordern, cujo pano de fundo traz a paisagem mitica da Arcadia: Grande Marques, os Sátiros saltando por entre Verdes parras, defendidas por ti de estranhas garras; os trigos ondeando nas fecundas searas; os incensos fumando sobre as aias, ä nascente cidade mos tram a verdadeira hcroicidade. Em gcral, A. Pcixoto combina a loa do progressismo com a accilaeäo do governo torte: č o dčspota ilustrado o scu ideal, tirano a quem sc rende a Colônia na pessoa do nalivo. Nas oitavas do "Canto Gcnetliaco", escritas em 1782, por ocasiäo do nascimcnlo do filho do Governador das Minas já o nativismo sentimental sc fundc no poder luso: (60) InAcio Josii me Ai.varI'Nga Pijixoto (Rio, 1744 — Ambaca, Angola, 1792). Dou-torou-sc em Lcis pela Universidade dc Coimbra em 1767. No Brasil excrecu a funcao de ouvidor no Rio das Mortcs onde conheceu Barbara Heliodora, com quern sc casou. Comprou lavras no sul de Minas e 6 sem diivida como proprietSrio dcscontcnlc com a "derrama" que teria participado na Inconfid6ncia: foi preso e desterrado, vindo a morrer no presfdio africano. Cf. Vida e Obra de Alvarenga Peixoto, por Rodrigues Lapa, Rio, LN.L., 1960. 76 Bárbaros filhos destas brenhas duras, nunca mais recordeis os males vossos; revolvam-se no horror das sepulturas dos primeiros avós os frios ossos: que os hcróis das mais alias cataduras principiam a ser patrřcios nossos; e o vosso sangue, que csta terra cnsopa, já produz fnitos do melhor da Europa. Quando preso na Ilha das Cobras, a sua negacao sisteinática dc ter parní ipado no movimcnto lcvou-o ao paroxismo da subscrviencia a D. Maria I, pondo na boča do Pao dc Acúcar, mudado cm índio, cstcs versos catc-HiVicos: Sou vassalo, sou leal; como tal, íiel, constanle, sirvo á gloria da imperante, sirvo á grandeza real. Aos Elísios descerei, fiel sempře a Portugal, ao famoso vicc-rci, ao ilustre general, ás bandeiras que jurei. O mesmo espírito, modulado em versos menos infelizes, rcconhccc-sc na equilibrio econömico e politico que o poder central iria superar apoiando-se uns oligarcas provincianos e na perpetuacäo do escravismo. Rcpresentam o liberalismo de centro dois admiráveis publicistas da época, I llpólito da Costa Pereira (67) e Evaristo da Veiga (68). Cada um a sua maneira i nou o molde brasileiro da prosa jornalística de idéias, näo superado durante • i sčculo XIX. Para ambos, a liberdade 6, acima de tudo, possibilidade de ex-piessäo, de iriformacäo, de crítica. Säo os clássicos do respcito aos direitos i ivis, ä Constituicäo. Diferem em grau. Hipólito da Costa era dotado de um inlcnlo mais viril que Evaristo; tendo passado boa parte da vida na Inglaterra, poilc absorver uma cultura polftica muito mais complcxa que a do redator apres-mdo da Aurora Fluminense. Difcrcm também pelas próprias circunstäncias de iriiipo em que atuaram. Hipólito foi o analista Iticido que viu do alto do seu nbscrvatório londrino o Brasil de D. Joäo VI; feita a Indepcndčncia, calou-se 0 Correio Brasiliense dando por cumprida a sua missäo. Ao jornalista da Autora coube o registro miudo dos Ultimos anos do Primeiro Império, dos dias iigilados da Abdicacäo (que ele ajudou a consumar-se) e de parte do intermezzo irgcncial. A prosa de Hipólito é a do ensaísmo ilustrado. A de Evaristo cinge-se fi crönica polftica que tempera como pode as rcacöes ao imprevisto. Mas uma 1 outra foram indispcnsáveis ä formacäo de um publico ledor cm um pais que mal nascera para a vida política; uma c outra repisaram temas libcrais de que Hnito careciam as elites reecm-saídas do arbítrio colonial. Os publicistas deixaram um legado de brasilidadc ä primeira geracao ro-mantica. Mas, pela propria natureza dos seus eserilos, colados ä praxis, näo ifo J,rj.< ct/itriŕt Segundo a interpretacao de Karl Mannheim, o Romantismo expressa os nnot&>? sentimentos dos descontentes com as novas estruturas: a nobreza, que já caiu, c&iicô e a pcquena burguesia que ainda näo subiu: de onde, as latitudes saudosistas ou reivindicatórias |quc pontuam lodo o movimento (71). A situacäo dos vários romantismos (71) Karl Mannheim, Essays, cit. i 91 f O quadro, vivo e pleno de conseqíiéncias espirituais na Inglatcrra e na Franca, entäo limites do sistema, exibe defasagens maiores ou mcnores ä me-dida que se pas sa do centro ä periféria. As nacôes eslavas e balcänicas, a Austria, a Itália central e meridional, a Espanba, Portugal e, com mais evidencia, as colônias, ainda vivcm em um regime dominado pela nobreza fun-diária e pelo alto clero, näo obstante os golpes cada vez mais violentos da burguesia ilustrada. (ÍlMvWrim> o O Brasil, egresso do puro colonialismo, mantém as colunas do poder agrá-rio: o latifúndio, o escravismo, a cconomia de exportacäo. E segue a rota da monarquia conscrvadora após um brcve surto de crupcôcs rcpublicanas, amiu-dadas durante a Regencia (72). Attaeitofilfe* 'ft ■■ • ^ Carcntc do binômio urbano indústria-opcrário durante quase todo o século P&into XIX, a sociedadc brasilcira contou, para a formacäo da sua inteligencia, com ťqfr de os filhos de famílias abastadas do campo, que iam rcccbcr instrucäo jurídica (raramcntc, médica) em Säo Paulo, Recife c Rio (Maccdo, Alcncar, Álvares de Azevcdo, Fagundcs Varcla, Bernardo Guimaräes, Franklin Távora, Pedro Luis), ou com filhos de comcrciantcs luso-brasilciros c de profissionais liberais, ' que definiam, grosso modo, a alia elasse média do pais (Pereira da Silva, Gon-calves Dias, Joaquim Norbcrto, Casimiro dc Abreu, Castro Alvcs, Silvio Romero). Raros os casos de cxlracäo humilde na fasc romäntica, como Teixcira c Sousa c Manuel Antonio dc Almeida, o primciro narrador dc folhctim, o scgundo, picarcsco; ou do trovador scmipopular Laurindo Rabclo. Nesse esquema, do qual alasto qualqucr traco dc determinismo cego, rcs-saltc-se o caráter sclctivo da educaeäo no Brasil-Império e, o que mais importa, a absoryäo pclos mclhorcs lalcntos dc padrôcs culturais europcus rcflctidos na Corte c nas capilais provincianas. Assim, apesar das diferencas de situaeäo material, pode-sc dizer que se formaram cm nossos homens dc letras conf iguracôes mentais paralel as äs rcs-postas que a inteligencia curopéia dava a scus conflitos ideológicos. Os cxemplos mais persuasivos vcm dos melhores escritores. O romance IP Cfý,\-ľ ' colonial dc Alcncar c a pocsia indianista de Goncalves Dias nascem da aspi- rac;äo de fundar cm urn passado mftico a nobrcza recente do pais, assim como ^ — —-— --- Wi&dßdi. — nwlalls mutandis — as ficcöcs de W. Scott e de Chateaubriand rastreavam rjj na Idade Média feudal c cavalcircsca os brasöcs contrastados por uma burguesia viftpr cm asecnsäo. Dc rcsto, Alcncar, ainda fazendo "romance urbano", contrapunha OMidA h a moral do hörnern antigo ä grosscria dos novos-ricos; e fazendo romance regionalista, a coragem do sertancjo äs vilezas do citadino. 4 _ - f\ < '.i.e.; ,i 1.0, vie (72) V. Jose Ribciro Jr., "O Brasil Monárquico em face das Repúblicas Americanas", em Brasil em ľerspecliva, cit., pp. 167-221. • vnhi/i.mi 92 ;>-'., A'-, a* "William Bond") O mundo natural encarna as pressöes anfmicas. E na poesia ecoam o tu-multo do mar e a placidcz do lago, o fragor da tempestade e o silencio do ocaso, o fmpeto do vento e a fixidez do c6u, o terror do abismo e a serenidade do monte. Abri as frescas rosas, fazei brilhar os cravos do seu jardim, 6 arvorc, vesti-vos dc lindas folhas verdes; videira que nos destes sombra outrora, a cobrir-vos de parnpanos voltai. Naturcza formosa, etemamcnte a mcsma, dizei aos loucos, aos mortais dizei que elcs n3o pcrcccräo. (Rosai.Ia du Castro, Folhas Novas) ^ Pälida cstrela! o canto do crepüsculo Acorda-te no c6u: Ergue-te nua na floresta morta No tcu doirado v6u! Erguc-te! Eu vim por ti c pcla taidc Pel os campos eirar, Sentir o vento, respirando a vida, E livrc suspirar. Oh! quiuido o pobrc sonhador medita Do vale fresco no orvalhado lcito, Invcja Jls aguas o pcrdido v6o Paia banhar-se no perfume ete"reo, E ncssa argfintca luz, no mar dc amores Ondc cnu"c sonhos e luar divino A mHo clema vos lancou no espaco, Respirar e viver! (Alvares de Azevedo. Lira dos Vinte Anos) Sao palavras do Wcrthcr goethiano: Amigo, quando me vejo inundar de luz, quando o mundo e o ceu vdm habitar dentro de mim, como a imagem da mulher amada, entSo digo a mim mesmo: "Se pudesses exprimir o que sentes! Se pudesses exalar e fixar sobre o papel o que vive 94 em i i com tanto calor e plenitude que cssa obra se transformasse em espelho da tua alma, como a tua alma é espelho de Deus Infmito!" linľim, com a música, a mais livre das artes, esperavam os romänticos i niicgar-se ao fluxo infinito do Cosmos: A música de Beethoven — dizia Hoffmann — pôe em movimento a alavanca do medo, do terror, do arrepio, do sofrimento, e desperta precisamente esse infmito anclo que é a essentia do Romantismo. Infinito anelo. Nostalgia do que sc crc para sempre pcrdido. Desejo do que sc sabe irrealizável: a liberdade absoluta na sociedadc advinda com a Re-vDlu^äo de 89. ■/):/>...... • x Mjkidpá j,d$& Na änsia de reconquistar "as mortas cstacôes" c de regcr os tempos futures, íl Romantismo dinamizou grandes mitos: a nacäo e o herói. v '■<■/< A nacäo afigura-se ao patriota do sčeulo XIX como urna idčia-for^a que iiido vivifica. Florcscc a História, rcssurrcicäo do passado c retorno äs origens ^Zftri i Michelet, Gioberti). Accndra-sc o culto ä lingua nativa c ao folclore (Schlegel, * (iarrctt, Manzoni), novas bandeiras para os povos que aspiram á autonómia, ^ ^ i omo a Grécia, a Itália, a Bčlgica, a Polônia, a Hungria, a Irlanda. Para algumas \ 1 nacöcs nórdicas c eslavas c, naturalnientc, para todas as nacöcs da America, que ignoraram o Rcnascimcnto, será estc o momcnto da grande afirmacäo cul-u.iial. Mazzini, apóstolo da unidade italiana, viu bem o proprio sčeulo: "hora do advento das nacöcs". Entretanto, o nexo entre oraca História, mantido no pensamento abstrato de um Fichte, logo sc desata na praxis de uma sociedade descontinua por cx-iľlencia. O hörnern romänlico reinventa o herói, que assume dimcnsöes litä-meas (Shelley, Wagner) sendo afinal reduzido a cantor da propria solidäo (Fos-lolo, Vigny). Mas, como herói, 6 o(poeta-vate), o genio portador de verdades, cumpridor de missöes: A nós pertence Ficíir de pč, cabeya erguida, 6 poctas, Sob as tempestades de Deus tomar com as maos O raio do Pai e o relämpago, c estender aos homens, sob o vču do canto, o dom do céu. (HOELDKRUN) A voz de Deus me chamou: "Levanta-te, profeta, vô, ouve, e percorrendo mares e tenas, qucima com a Palavra os coracöcs dos homens" (Puchkin). Eu sinto em mim o borbulhar do gônio (Casiko Alvus). 95 O nível estético ^Cf^ď Mas näo tocamos o ämago da arte romäntica enquanto näo entendemos os códigos que cifram as novas mensagens. É o ultimo círculo, o estético. A poesia, o romance e o teatro passam a existir no momento em que as idéiasl e os sentimentos de um grupo tomam a forma de composicôes, arranjos in-tencionais de signos, estruturas ou ainda, para usar do velho lermo rico de' significados humanos, no momento em que os assuntos viram obras. Os códigos clássicos, vigentes desde a Rcnascenca, dispunham de macro-' unidades, os generös poéticos (épico, lírico, dramático) e de microunidades, as formas fixas (epopéia, ode, soneto, rondó, tragédia, comédia...). No interior dcsses esqucmas, que lormalizavam categorias psicológicas, aluava urna rede de subcódigos (radicionais: topos, milemas, símbolos; que, por sua vez, se tra^ duziam, no nível da elocucjío, pclas figuras de estilo, de sintaxc e de prosódia, responsáveis pclo tccido concreto do texto literário. Esses conjuntos formais scrviram quanto puderam até os Ultimos árcadesj brasilciros que dccifravam as mensagens pré-romänticas da Europa em termos da sua propria e retardada formacäo literária: Sousa Caldas mislurava acordes bíblicos c ritinos neoclássicos; Jose Bonifacio traduzia cm odes o scu patrio-tismo de exilado; o Visconde da Pcdra Branca confundia o novo scntimenta-lismo com o cantabile de M et as las i o... A urna čerta altura, mudado o pólo da nossa inteligencia de Coimbra páral Paris ou Londres, näo era mais possível pensar c escrever dcntro do universo cstanque de urna linguagem ainda setecenlista, ainda colonial. Na Franca, a partir de 1820, e na Alcmanha e na Inglaterra, desde os fins do sčculo XVIII, urna nova escrilura substiluíra os códigos clássicos em nomej da liberdade criadora do sujeito. As libcracôes fizeram-se em várias frentes. Caiu primciro a mitologia grega (velha armadura mal remocada no tempo de' Napoleäo), c caiu aos golpcs do mcdicvismo católico de Chateaubriand et alii.\ Com as ficcöcs clássicas foi-sc lambém o paisagismo arcade que ccdcu lugar jiO pitorcsco e ä cor local. A mesma libcrdade desterra formas liricas ossificadas / e faz rcnascer a balada e a can^äo, cm detrimento do soneto e da ode; ou, / abolindo qualqucr constrangimcnto, escolhe o poéma sem cortes fixos, que tormina ondc cessa a inspiracäo (Byron, Lamartine, Vigny...). A epopéia, ex-pressäo heróica já cm crise no século XVIII, é substituída pelo poema politico 7 >0 e pelo romance histórico, livre das peias de organizacäo interna que marcavam a narrativa cm verso. No teatro, espelho fiel dos abalos idcológicos, as mu-dancas näo seriam menos radicais: afrouxada a distinfäo de tragédia e comédia, cria-se o drama, íusao de sublime e grotesco, que aspira a reproduzir o cncontro das paixöcs individuals contido pelas bienséances clássicas. O martclo, augu-rado por Vietor Hugo no prefácio do Cromwell, pôe abaixo todas as conven-fôes, comeeando pela vetusta lei das trés unidades que os trágicos da Renas-cenca haviam tornado a Aristoteles. 96 - Poe MR c,/ COMT& WWSj 'tUytt* - Po£MA PVÜTfCQ', A rcnovacäo nas camadas sonoras atingiu o cerne do verso, o ritmo, dis-ť'udcndo-o cm fungäo da melódia que,(vefculo mais adequado äs efusöes do " niinicnto,)contou com a preferencia dos poetas e, naturalmente, dos compo-ÉHi u es: Chopin, Liszt, Berlioz, Schubert, Schumann, mcstres de uma nova e 'iilnsit scnsibilidade musical. Renascem, por outro lado, formas medievais de ■lioľagäo e dá-se o máximo relevo aos metros breves, de cadencia popular, ictlondilhos maiores e menores, que pas sami a competir com o nopre de- rÁ, t (iônero entre todos contcmplado í'oi o romance, "a rcvolucäo literária do ť ceciro Estado" (Debenedctli). Os inglcses, que sc aiUcciparam ao resto da 1 mopa na marcha da Revolucäo Industrial, já dispunham, no século XVIII, 1 narradores de costumes burguescs (Fielding, Richardson); os romänticos •i K-sceram-Ihes a ficgäo histórica (Scott, Manzoni, Dumas, Hugo, Herculano) 1 i» romance egótico-passional (Stendhal, Lamartine, George Sand, Garrett, Ca-milo), formas acessfveis ao novo publico leitor composto principalmentc dc Jluvens e de mulhercs, e ansioso de encontrar na literatúra a projegäo dos pró-pľios conflitos emocionais. O romance foi, a partir do Romantismo, um exce-l'Miic índice dos interesses da sociedade culta c semiculta do Ocidentc. A sua ^rn(j\() iľlrväncia no sčeulo XIX sc compararia, hojc, ä do cinema e da televisäo. —— o rte/h&ntA'Ww? ji*f c snu*?/a,-Je d( cty'Uvfxŕ /jW\ tfť> f^^^ O Romantismo oficial no Brasil. Gongalves de Magalhäes Coube a alguns eseritores dc segunda plana a inlroduc/äo do Romantismo Mimo programa literário no Brasil. O nome de Goncalves dc Magalhäcs (73) č tradicionalmcntc lembrado pela haliza da publicaeäo dos Suspiros ľoéticos e Saudades (1836), livro c data que a história ľixou para a introduyäo do movimento entre nós. (73) Domingos Jose Gonvai.vhs du Magaijiáiís (Rio, 1811 — Roma, 1882). Comccou inn curso de Bclas-Aitcs na Academia do Rio, entäo sob infludneia dc Dcbret, pintor de costumes brasileiros; mas preferiu a caneira médica, diplomando-sc cm 1832, ano dr suas Poesias, ainda arcäclicas. Viajando para a Europa, conhecc a Italia, a Suíga e li hranca e assimila tracos do Romantismo patriótico c medievista de Chateaubriand, I mnartine e Man/.oni. Publica cm Paris os Suspiros Poéticos e Saudades cm 1836 e, no mesmo ano, Ianca com Porto Alcgrc, Tones Hörnern c Pcrcira da Silva a revista Niterói, onde teoriza sobrc uma reforma nacionalista e espirilualista da literatura brasi-Irira. Volta cm 1837 ao Brasil, dedica-sc ao tcalro (Antonio José, Olgiafo) com as mes-ftias intencocs rcťomiistas. Asccnde rapidamenle a postos-chave da nossa cultura: mem-hio do Instituto Histórico e Gcográfico, recém-eriado, Professor de Filosofía no Colégio Pedro II; e da polftica, onde foi conservador: secreuirio dc Caxias no Maranhäo após a icpicssäo da Balaiada; govemador c deputado do Rio Grande do Sul depois dos Farrapos. i ;ula vez mais ligado a D. Pedro II, é estc quem lhc edita o poema čpico A Confederaqäo 97 "Romantico arrependido" chamou-o com irónia Alcantara Machado, c a expressäo é válida, näo só por ter Magalhäes na velhice mudado o eslilo juvenil, mas, intrinsecamente, pela natureza de sua obra que de romäntico tem apenas alguns temas, mas näo a liberdadc expressiva, que é o toquc da nova cultura. A releväncia histórica reside no fato de Magalhäes näo ter operado so-zinho como imitador de Lamartinc c Manzoni, mas de ter produzido junto a um grupo, visando a urna reforma da literatura brasileira. Fundando em Paris a Niterói, revista brasiliense (1836) com seus amigos Porto Alegre, Sales Torres Homem e Pereira da Silva, o autor dos Suspiros Poéticos pro-movcu de modo sistemático os seus idcais romänticos (nacionalismo mais religiosidade) c o repúdio aos padrôcs clássicos externos, no caso, ao em-prego da mitologia pagä. Válido como documcnto do grau de consciencia crítica do grupo é o Ensaio de Magalhäes "Sobrc a História da Literatura do Brasil", que rctoma e alarga síntescs de nossa história cultural realizadas por estudiosos estrangciros: Ferdinand Denis c Garrett, na esteira de Mmc. de Slaél (De ľAllemagne, 1813), que fizera correr pelo primeiro Romantismo o binômio pocsia-pátria (74). Do mcsmo csforco de programar as nossas letras č fruto o tcatro de Magalhäes, que veio coincidir com a criafäo do primeiro grupo dramático real-mente brasileiro, a Companhia Dramática Nacionál, organizada em 1833 pelo ator Joäo Caetano. A este coube levar ä cena a tragédia Antonio José ou 0 Poeta da Inquisicäo que era, segundo Magalhäes, "a primcira tragédia escrita por um brasileiro e única de assunto nacionál". Mais uma vez, o papcl de Magalhäes se alcria ä prioridadc: Antonio José, apesar das vcleidadcs renovadoras, pcca pelo conscrvanlismo no gencro (ainda dos Tanuúos (1857) e qucm sai a campo para defendfi-lo das invectivas de Alencar. O Imperador fé-lo BarSo e Viscondc dc Araguaia. Edi^ao: Obras Comptetas* Rio, MEC, 1939, ed. anolada por Sousa de Silvcira c prcfaciada por Sčrgio Buarquc de Holanda. Sobre Magalhaes: Josč Adcraldo Castcllo, A Polémica sobre "A Confederacáo dos Ta-moios", S. Paulo, Faculdade de Filosofia, CiČncias e Letras da Univ. de S. Paulo, 1953. (74) FiirdinanoDiínis, autor dc boa cultura ibérica e brasileira, já sob influéncia do historicismo romantico. Dcixou um Résumé de íhistoire littéraire du Portugal, suivi clu résumé de 1'histoire littéraire du Brésil, Paris, 1826; de Almeida Garriht, o "Bosquejo da História da Poesia c Lfngua Portugucsa" precede ao Parnaso Lusitano, Paris, Aillaud, 1826-27, 5 vols., e inclui sobre nossos arcades algumas páginas onde se insiste na exis-těncia de uma poesia genuinamente americana. Para a contribuigao de ambos á consciencia romantica nacionál, v. Antonio Soares Amora, O Romantismo, S. Paulo, Cultrix, 1967, cap. III. Ver tambčm a exeelente antologia de Guilhermino César, Uistoriadores e Críticos Románticos, I, Rio, LTC, 1978. 98 it,i\>ť(lia, cm vez de drama) e na propria forma (o verso clássico em vez da pi osa moderna). Para o seu tempo, porém, e para o Imperador, que desde os primeiros unos do reinado o agraciou e o fez instrumento de sua política cultural, Ma-i.nlhilcs foi sempře tido como o mestre da nova poesia. E elc mesmo sentia-se no dcvcr de ministrar todos os generös e assuntos de que a nova literatura i moc i a para adquirir foros de nacionál e romantica. Tendo-nos dado o lírico o dramático, faltava-lhc o épico; fe-lo rctomando Duräo c Basílio, lidos sob um ftngulo enfaticamente nativista, e compos a Confederacäo dos Tamoios • liiiuido Goncalves Dias já fizcra públicos os seus cantos indianistas c Alencar ndigia a epopéia em prosa que é O Guarani. Foi-lhe fatal o atraso, que o puvou desta vez do "mérito cronológico" que vinha marcando a sua prcsenca no Romantismo brasilciro. A essa altura, o indianismo já caminhara alem das uiiuicöes dos arcades e pré-románticos e se estrulurava como uma para-idco-ICujpa dentro do nacionalismo. E a linguagem atingira cm Goncalvcs Dias um ni vel estético que um leitor sensfvel como Alencar já podia exigir de um pocma i|iir sc dava por modclo da épica nacionál. Assim, tanto a mensagem como o • iidigo de A Confederacäo pareciam (c cram) insuficicntcs aos olhos dos pró-pnos romänticos. E, apesar das defesas cquilibradas com que acudiram Porto Mfgrc, Monte Alvcrnc e Pedro II, as palavras duras de Jose de Alencar sclaram ■;■ Inn da primazia literária de Magalhäcs: Se eu fosse uma dessas auloridades reconhecidas pelo consenso geral, cm vez de argumenta]' c diseutir, como fiz nas cailas que lhe mandei, limilar-mc-ia a eserever no livro da Confederacäo dos Tamoios alguma scnlcnya magistral, como por exemplo aquele dito dc Horácio — Musa Pedestris (6* Carta) (7S). Porto Alegre O principal companheiro dc Magalhács no grupo da Niterní cm nadá o nllfapassou: Manuel dc Araiijo Porto Alcgrc (1806-1879), pintor de formaeäo I tdemica recebida do mestre Dcbrct, reuniu scus poemas nas Brasilianas MK63), eserilas com o intuilo confesso dc "acompanhar o sr. Magalháes na ii lorma da arte leita por cle cm 1836". Como lírico č ainda inferior ao modelo; niiis a sua vcia deseritiva, que resvalava do pitoresco para o prosaico, encontrou niiulos vários dc transbordar na quilomčtrica epopéia Colombo cm nada menos • ■■ quarenta cantos, que chegou, bem anacrönica, cm 1866, a revelar a marni nalidade desse "próccr do Romantismo". (7S) V. J. A. Castcllo, A Potémica, cit. 99 A historiografia O grupo afirmou-se graces ao interesse de Pedro n de consolidar a cultura nacionál de que ele se desejava o mecenáš. Dando todo o apoio ao Institute Histórico e Geográfico Brasileiro, criado nos fins da Regéncia (1838), o jovem monarca ajudou quanto pôde as pesquisas sobre o nosso passado, que se co-loriram de um nacionalismo oratorio, näo sem rancos conservadores, como era de esperar de um gremio nascido sob tal patronato. Pertenceram-lhe alguns estudiosos razoáveis: Pereira da Silva (1817-98) compilou o Parnaso Brasileiro (1842) e foi cronista encomiástico no Plutarco Brasileiro (1847), obras que contribuíram para balizar o meufanismo romäntico. Francisco Adolfo de Var-nhagen (Sorocaba, SP, 1816 — Viena, 1878), crudito de estofo germänico e educayäo portuguesa, deu o mais cabal exemplo de quanto era possível fundir um pensamcnto rctrógrado com o indianismo sentimental. Por um lado, a historiografia de Varnhagcn, alias pioneira pela riqueza de documcntos, estava marcada pclos valorcs do passadismo; nada lne era mais antipálico do que o levante popular ou o intelectual "frondeur": lcia-se a propósito o que escreveu, na História Geral do Brasil, sobre a rcvolu^ao pernambucana de 1817; por outro lado, foi dos primeiros a engrossar a corrente dos desfrutadores das lendas indígenas, no Sumé, poema "mito-religioso-americano" c no Caramuru, romance histórico em versos, que revivem, ä cusla dos hábitos nativos, as in-tencôes apologéticas de Santa Rita Duräo. Embora, a rigor, caia Varnhagcn fora da literatura, creio que se deva insistir no cxame do seu complexo ideológico, pois também se reconhccerá cm autores da melhor água como Goncalves Dias e Alcncar. O řndio, fonte da nobreza nacionál, scria, cm princípio, o análogo do "barbaro", que se impuscra no Me-dievo e construíra o mundo feudal: cis a tese que vineu ta o passadista da America ao da Europa. O Romantismo refez ä sua semelhanga a imagem da Idade Média, conferindo-lhc caracteres "romanescos" de que se nutriu largamente a fantasia de poctas, narradores e crudites durante quasc meio século. Havia um substrate polcmico na milizacao do universo cavalciresco: era a reaeäo de no-bres como Chateaubriand e Scott aos plutocralas e ao triunfo dos liberais que dcsdenhavam as velhas hicrarquias. Esse complexo ideo-afetivo näo abarca todo o Romantismo, mas uma area bem determinada como classe e como tendencia intelectual. Homens fcrvorosamcnle liberais como Herculano, De Sanctis, Michclcl e Victor Hugo buscariam na Idade Média outros valorcs: a forca do poví) contra os tiranos, a constäncia da fé pessoal perante o fanatismo, ou ainda o vigor da arte anônima que conslruiu as catedrais góticas. Esse "me-dicvismo" näo sc pcrde cm fumos heráldicos e canta naturalmentc o progrcsso, lato sensu, burgucs, na acepcäo sociológica do termo. O nosso indianismo, de Varnhagcn a Alencar, pendeu para o extremo con-servador, como todo o contcxto social e politico do Brasil dos fins da Regencia ä década de 60. A primeira metade do reinado de Pedro II representou a es-tabilidade do governo central, cscorado pelo regime agrário-eseravista c capaz 100 ■ Ír subjugar os levantes de grupos locais ä margem do sistema: os farrapos no ■ul, os liberais em S. Paulo e Minas, os balaios no Maranhao, os praieiros 'in Pcrnambuco. Ora, foi esse o período de introducäo oficial do Romantismo mu cultura brasileira. E o que poderia ter sido um alargamento da oratória imlivista dos anos da Independéncia (Fr. Caneca, Natividade Saldanha, Eva-i islo) compôs-se com tracos passadistas a ponlo de o nosso primeiro historiador ilr vullo exaltar ao mesmo tempo o índio e o luso, de o nosso primeiro grande poela cantar a beleza do nativo no mais castigo vcrnáculo; enfim, de o nosso pimiciro romancista de pulso — que tinha fama de antiportugues — inclinar-se h vercnte ä sobranceria do colonizador. A America já livrc, e rcpisando o terna da libcrdade, continuava a pensar como urna invcncäo da Európa. De qualquer forma, o cuidado da pcsquisa e da documentacäo 6 saldo posilivo nesse período que nos deu, alčm da obra de Varnhagen, as monografias dl Joaquim Norbcrlo de Sousa Silva (Rio, 1820-1891), dcntrc as quais säo de h*ilnra útil ainda hoje a História da Conjuracäo Mineira (1873), nortcada pelo mesmo espírito nacionalista dos sequazcs dc Magalhäcs, c as introducôes aos piincipais poelas da plciadc mineira, que cic reedilou c anolou profusamente. l c ■ i Norberto um dos pilares cm que se assentou a nossa historiografia literária iilŕ a publicacäo das obras maduras dc Silvio Romero c José Veríssimo. ľťixeira e Sousa Um primo pobre do grupo fluminense ó a tocante figúra dc Teixeira c Sousa (76), mestico dc origem humílima a qucm sc deve a auloria do primeiro n nuance romäntico brasilciro (77), O Filho do Pescador (1843). Também es- (76) AntonioGon<;ai.vksTmxiíira fi Sousa (Cabo Frio, 1812 — Rio, 1861). Filho de niti vendeiro poiluguös c dc uma mestica, exerecu sempre offeios modcslos, comegando i onio carpinLciro, e chegimdo a du ras penas a mesüc-escola c a eseriväo. Deixou: O ľ Mio do Pescador, Romance Original Brasileiro (1843), Tardes de um Pintor ou As Intrigas de um Jesuita (1844), Gonzaga ou A Conjuracäo de Tiradentes (1848-51), A ľiovidéncia (1854), As Fatalidades de Dous Jovens. Recordacöes dos Tempos Colonials 118*56), Maria ou a Menina Roubada (1859); na poesia, Cänticos Llricos (1841-42). V. Aiiiélio Buarque dc Holanda, "O Filho do Pescador c As Fatalidades dc Dous Jovens", ■ m O Romance Brasileiro, Rio, 0 Cruzeiro, 1952, pp. 21-36. (77) Sendo a qucsülo das prioridades um dos pralos diletos da crônica litcráiia, con-'iii esclarcccr cm que sentido cla se atribui aqui ao romance dc estrčia dc Teixeira e ■iiiisa. Antes da publicacäo deste, saíram ä luz, cm 1839, tres novclas históricas: Jerô-almo Corte Real, crônica do século XVI, O Aniversário de Dom Miguel em 1825 e Kľligiäo, Amor e Patria; c, em 1841, urna novela sentimental de Joaquim Norberto, As l*uas Orfäs. Há, porlanto, urna dilerenca de genero... e de fôlego: as novelas históricas ■ mi inelodramáticas cram, via dc regia, adaptacíío dc ľolhetins ľranceses traduzidos entäo 101 creveu um infeliz poemelo épico, A Independéncia do Brasil, e versos india-nistas, mas é como narrador folhetinesco que nos interessa. Podcria ser men-cionado no capitulo da ficcäo, junto a Macedo, Alencar, Manuel Antonio dc Almeida, Bernardo Guimaräes e Taunay. Mas prefiro näo ve-lo ao lado destes por duas razöes: urna é a inegável dištancia, cm termos dc valor, que os separa de todos (Teixeira é muito inferior ao proprio Macedo); a outra diz respeito ä siluacäo do romance na fase iniciál da cullura romäntica. Para a poesia, género nobre, foram grandes modclos franceses e Portugueses (Lamartine, Hugo, Her-culano, Garrett) que inspiraram um Magalhäes e um Porto Alegre, näo vindo ao caso, a esla altura, o porte dos imitadores. Mas para o romance, nem Stendhal nem Balzac, nem Stael nem Manzoni, nem mesmo os lidŕssimos Scott e Chateaubriand, lograram imprimir, nesse primeiro tempo, o molde ficcional a ser reproduzido. É a sublitcratura ľrancesa que, no original ou cm más tradu-côcs, vai sugerir a um hörnern semiculto, como Teixeira c Sousa, os reeursos para montar äs suas scqiičncias dc aventuras e desencontros. Por que? O romance romántico dirige-se a um publico mais vasto, que abränge os jovens, as mulheres c muitos semiletrados; essa ampliaeäo na faixa dos leitores näo podcria condizer com urna linguagem finamente elaborada nem com velcidades dc pensamento erítico: há o fatal "nivelamento por baixo" que sela toda sudcu I tura nas épocas em que o sistema social divide a priori os homens entre os que podem e os que näo podem reccber instrucäo academica. O fato 6 que o novo publico menos favorccido busca algum tipo dc en treten imcnto sendo o ľolhetim o que melhor responde ä demanda c mclhor se cstrutura no seu nivcl. Hojc fazem-sc acurados estudos sobre a culiura de tnassa manipulada pcla industrial a história cm quadrinhos, a novela de rádio, o show de tclevisäo e a miisica dc consumo tem analislas que väo da psicanálisc k sociológia e se encontram na eneruzilhada da teória das comunicacôcs. Nos meados do sčeulo passado vigorava o prcjuízo aristocrático pclo qual as producöcs í ei tas para o gosto menos lelrado caíam ľora da cullura, c, como tal, näo deveriam ser objeto dc cstudo c interpretaeäo. Näo sc impusera ainda a nocäo de "massa", a näo ser cm sentido depreciativo, embora já sc incorporasse nos diseursos liberais o conecito dc "povo : läo gcnčrico, que, k falla dc urna análise diferenciál de classes c grupos, rcsvalava para a pura retórica. A análise dos fatores que compôcm o romance-folhetim virá csclarcccr as moüvacöes c os valores daquela módia e pcquena burguesia que, ainda ä mar-gem do "Enrichissez-vous" (moto das faixas ascendentes por volta dc 1830), näo pódia cvadir-sc no estilo da nobreza dos Novalis e dos Chateaubriands, e recorria aos expedientes menos caros do romanesco e do piegas. O romance copiosamente. Só Teixeira e Sousa compôs um romance, embora, no ťundo, adotasse os expedientes daqueles folhelins. 102 ill (npa-c-espada, as novclas ultra-romanticas e os dramalhoes, chancelados pm h&bcis manejadores de pena como Eugene Sue, Scribe, F6val e Dumas piu. Coram as leituras obrigat6rias desse novo publico e os modelos — diretos mi nao — de Teixeira e Sousa, como o seriam de Macedo. Ja" um Alencar, i mbora os conhecesse, teve todas as condicoes culturais para entroncar-se na liuhagcm "alta" de Scott e de Chateaubriand e, mesmo, para ir al6m dessas inllu6ncias nos seus melhorcs momcntos de romancisla urbano. Marca a ficcao subliter^ria de Teixeira e Sousa o aspccto mecanico que iirla assume a intriga. Esta 6 a essentia do folhetim, como, cm outro nfvel, o .el a do romance policial e da "science-fiction" quando nao tocados pelo genio poclico de um Poe ou de um Dino Buzzati. O processo reinstaura, no piano i In comunicacao cscrita, o csquema estfmulo-reagdo a que alguns psic61ogos n duzem a vida sensorial. O prazcr que vein da resposla 6 protelado c, ao iTicsino tempo, artificialmcnle excitado por um acumulo dc incidcnlcs, cujo unico fim 6 despcrtar a curiosidadc mislurada com um vago receio de um ilrscnlace tragico. Ncssc arranjo simplisla, o sujeito — diria um "bchaviorisla" se parece com uma caixa vazia: nao sci o que ha dentro dele, mas o que me inleressa 6 a sequencia dc falos (os episddios) c as suas prcssocs sobre o i Omportamento, qucr dizer, os mcsmos cpis6dios vistos como aventuras das prrsonagens. O culto da pcrip6cia em todos os romances de Teixeira e Sousa pioduz semprc a juslaposiyao, unico modo dc levar adiantc o romance: aci-ilcntes, reconhccimcntos, avancos c rctornos, at6 que o processo sature o autor c o leitor ("prinefpio da saciedade") c dc por findo o passatcmpo. 6 sup6rfluo ncrcscentar que acompanha o processo uma tipificagao violcnta dos seres hu-nianos, divididos a priori em anjos c demonios, mocinhos c bandidos, ncccs-.ftrios estcs para a gl6ria daquclcs c aquclcs para o fim exemplar desles. Pela identificacao do autor-lcitor com os primciros, afirma-sc a personalidadc do Iier6i-vitima, que atravessa a sublitcratura do Romantismo, c 6 claro sintoma dc uma situacao social c psicol6gica. E quadram muito bem as feicoes scmi-populares desse primo pobrc da gcracao dc Magalhaes aquclcs cstcrc6lipos e inn difuso providcncialismo ("junto aos mcus escritos o quanto posso dc moral, para que sejam utcis"). Seja como for, foi com clc que o Romantismo caminhou para a narracao, instrumenlo ideal para explorar a vida c o pensamcnto da nasccnte socicdadc hiasileira. 103 A POESIA Gongalves Dias Goncalvcs Dias (7H) foi o primciro pocta autentico a emergir cm nosso Romantismo. Se mantcve com a literatura do grupo de Magalhaes mais de um contato (passadismo, pendor filosoťantc), a sua personalidade de artista soube transformar os temas comuns em obras poéticas duradouras que o situam muito acima dos prcdcccssorcs. E repilo a observacao feita em outro capílulo: de (7!í) Antonio Goncalves Dias (Caxias, Maranhäo, 1823 — Costas clo Maranhäo, no navio "Ville dc Boulogne", 1864). Filho de um comerciante portuguôs e de uma mestiga, talvcz cafusa, pois o poeta sc dizia descendentc das trfis rac,as que formaram a etnia brasileira. Estudou Lcis em Coimbra, conhcccndo, por volta de 1840, a poesia román-tico-nacionalísta de Garrett e Herculano que vincaria para sempře a sua linguagem. Säo frutos do contato com o clima saudosista portuguôs os dramas históricos Patkull, Beaíriz Cenci, Leonor de Mendonca. Mas, já nessa fasc, amadurccia o pocta voltado para a pátria e para o índio, de que foi o nosso grande idealizador. Retomando ao Brasil, em 1845, aproximou-se do grupo de Magalhäcs e obteve a prote^äo imperial que näo mais Ihe faltaria. Foi nomeado Professor de Latim c História do Brasil no Colčgio Pedro II e recebcu, mais tardc, várias comissöes para viagens c estudos. Publicando os Primeiros Cantos (1846), firma renomé de grande pocta, logo ratificado pelos Segundos Cantos e Sextilhas de Frei Antdo (1848) c pelos Ultimos Cantos (1851). Nessas obras junta-se aos grandes temas romänticos (Naturcza-Pátria-Religiäo) o do amor impossível, dc raiz autobiográfica: o poeta viu recusado um pedido scu de casamento; ao que se sabe, näo a jovem Ana Amelia, mas a sua família opôs-sc por preconceito de cor. G. Dias esteve na Amazônia, onde estudou etnografia e lingüfstica, e esereveu Brasil e Oceania (1852) e um Dicionúrio da Lingua Tupi (1858). Deixou ainda um poema épico, Os Timbiras, inacabado. Já muito doente, foi pela ultima vez ä Europa, vindo a morrer na viagem de regresso no navio "Ville de Boulogne" que naufragou nas costas do Maranhäo. Me-lhor., ed.: Poesias Completas e Prosa Escolhida, com introducäo dc Manuel Bandcira e texto de Antonio Houaiss, Rio, Aguilar, 1959. V. Fritz Ackermann, A Obra Poética de Gonqalves Dias, Säo Paulo, Dcpto. de Cultura, 1940; Cassiano Ricardo, "Goncalves Dias e o Indianismo", em A Literatura no Brasil (dir. de Afränio Coutinho), Rio, Ed. Sul-Americana, 1955, vol. I, t. 2, pp. 659-736. 104 i i Itiui'd de Silva Alvarenga aos Primeiros Cantos näo se escreveu no Brasil QldH (ligno do nome de poesia. Poucos anos depois da estréia de Goncalves Dias, Alexandre Herculano NiHidnva-o, lamentando embora que os motivos indianistas näo ocupassem nos , ,mtos maior espafo. A reserva do solitário de Val-de-Lobos é significativa: h poela maranhense tem muito de portugues no irato da lingua e nas cadôncias iMiK-ilianas do lirismo, ao contrario dos scus contemporäneos, sobre os quais (trsnva a influéncia francesa. O núclco "americano", que pela inlensidade ex-pressiva se prendeu ao nome do pocta, é, de fato, exíguo no conjunto da obra i>oiicalvina que vive dos grandes temas romänticos do amor, da natureza, de I ims. Mas é preciso ver na forca de Goncalves Dias indianista o ponto exato i tu que o mito do bom selvagem, constante desde os arcades, acabou por fa-iľi se verdade artística. O que será moda mais tarde, é nele matéria de poesia. A idéia da bondade natural dos primitivos, esbocada por Montaigne nos / tsais (I, XXXI, "Des Cannibales"), ä vista dos testemunhos que os viajantes iia/.iam da America, vinculou-se no Renascimento ao mito da idade de ouro. ľ. embora os textos de näo poucos desses viajores e dos missionários fossem i miiraditórios, frisando ora a selvageria, ora a docilidade dos nativos, conforme .i momento e o conlexto, firmou-se urna leitura intencional dos documentos, que contrapunha ä malícia c ä hipocrisia do europeu a simplicidade do índio. ľ1 daro que a antinomia natural/dccadente desempenhava urna funcäo polémica nos ataques que o "Ancicn Regime" sofria por parte do pensamento erítico dos ilusirados: essa oposicäo ia abrindí) brecháš cm urna sociedade de todo "artificial" c hierarquizada. Assim sc explica a retomada do mito do bom selvagem por um liomem de cxtracäo popular, ressentido com o sislcma, Jean-Jacques Rousseau. Mas aqui a análisc do contexto é a regra dc ouro: no pregador do Émile, a inocéncia do primitivo serve para contrastar com a tirania c a depravaeäo dos nobres no tempo de Luis XV; mas, vitoriosas as idéias liberals de 89, o mesmo retorno á natureza e a paixäo das origens daria ao Visconde Rcné de Chateaubriand argu-mentos passadistas contra a grosseria dos burguescs pouco sensíveis ä nobreza do primitivo e ao fascínio da vida natural. Os mitos assumem um sentido quando postos na constclacäo cullural e ideológica a que servem. Atente-se para o uso que do bom selvagem fizeram dois pwtas nossos pouco distantes no tempo: Santa Rita Duräo e Sousa Caldas. O primeiro exalta a reli-giosidade inata do índio para melhor contestar, do ponto dc vista da catcquese, os liberais aírancesados. Mas ao poeta da "Ode ao Hörnern Selvagem" é preci-samente o ideário iluminista que lhe dá meios dc glorificar o "primitivo cstado": Dc uesdobrado bronze tinha o pcito Aquele ímpio tirano, Que primeiro, enrugando o torvo aspeito, 105 do men e teu o grito desumano Fez soar em seu dano: Tremeu a sossegada Natureza Ao ver deste mortal a louca empresa. Para a primeira geracao romantica, por6m, prcsa a esquemas conservadores, a imagem do fndio casava-se sem traumas com a gl6ria do colono que sd fizera brasileiro, senhor cristao de suas terras e desejoso de antigos brasoesl £ a perspectiva de Gongalves Dias at6 a sua ultima produgao indianista, OA Timbiras, "poema americano dcdicado a Majestade do Muito Alto e MuitJ Poderoso Prfncipc e Senhor D. Pedro II, Imperador Constitucional e Defensoj Perp6tuo do Brasil": Os ritos semibarbaros dos Piagas, Cultorcs de Tupa e a terra virgcm Donde como dum trono cnfim se abriram Da Cruz de Cristo os picdosos bragos; As fcstas, e batalhas mal sangradas Do povo Americano, agora extinto, Hci de cantar na lira (*). Mas 6 apcnas o matiz conformista que pode aproximar os versos do maral nhense aos de Magalhaes, Porto Alegre e Varnhagcn. O que nestes era prosaico e fiacido aparece, na arte de G. Dias, transposto em ritmos £geis c vazado numa linguagem precisa em que logo se conhece o selo de um espfrito superior. Desde as "Poesias Americanas", expressao dos valorcs belicos (fulcro do indianismo cpico), o artista entra no torn justo dos versos breves, fortcmcntc cadenciados e sabiamcnte construfdos na sua alternancia de sons duros e vibrantes: Valentc na gucrra Quern ha, como cu sou? Quern vibra o tacape Com mais valcntia? Quern golpes daria Fatais como cu dou? — Gucrreiros, ouvi-me, — Quern hd como cu sou? Qucm guia nos arcs A frccha cmprumada, fcrindo uma prcsa, (*) Voltando a cstudar Goncalvcs Diíis, pude rever essa afirmacäo; na verdade o poeta soube (ä diference da literatura conservadora do tempo) apreender a Uagédia do índio na iminéncia de ser massacrado pelo conquistador: é o sentido de pocmas como "O Canto do Piaga" e "Deprccacäo" (ver Dialética da Colonizacäo, cit., pp. 181-186). 106 Com tanta certeza Na altura arrojada Onde eu a mandar? — Guerreiros, ouvi-me, — Ouvi mcu cantar. Um dos caracteres das poesias amcricanas de Goncalvcs Dias, e que as dislancia da frouxidäo das expcriencias anteriores, 6 a entrada subita in me-ilitis res, que cháma o lcitor sein tardanca ao clima de vigor sclvagem de-gmjado: Aqui na lloresta Dos ventos batida (O Canto do Gucrreiro) (O Canto do Gucrreiro) Ó GueiTeiros da Taba sagrada, Ó GueiTeiros da Tribo Tupi, Fakun Deuscs nos cantos do Pi aga, Ó Guerreiros, meus cantos ouvi. (O Canto do Piaga) Tupft, 6 Deus grande! cobriste o teu rosto Com dcnso vclamen dc penas gentis; E jazem teus filhos clamando vinganga Dos bens que Hies dcste da perda infeliz. (Dcprecagao) No excmplo seguinte, a técnica de apresentar o objeto do poema, pon-do-o logo á frcntc do leitor, 6 rcsponsávcl pcla brónzea solcnidade da aber-tura: Gigante orgulhoso, de fero semblantc, Num lcito de pcdra lá jaz a dormir! Em duro granilo repousa o gigante, Que os raios somenle puderam fundir. (O Gigante de Pcdra) No pocmcto "I-Juca Pirama" a crftica, unanimc, tern admirado a ductilidade dos ritmos que váo rccortando os vários momcntos da narrayáo. Amplo c dis-tendido nos cenários: No meio das tabas de amcnos verdorcs, Cercado dc troncos — cobcrtos dc florcs, Alteiam-se os tetos d'altiva nacao. Ondeantc nos episódios cm que se movem grupos humanos: 107 Em fundos vasos de alvacenta argila Ferve o cauim; Enchem-se as copas, o prazer comeca, Reina o festim. Martelado nas tiradas de coragem, até o emprego do anapesto nas apóstrofes| célebres da maldicäo: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Mcu canto de mortc, Guerreiros, ouvi. Sempře o céu, como um teto incendido Creste e punja tcus mcmbros malditos E o occano de p6 dcnegrido Seja a terra ao ignavo tupi! Miserúvel, faminto, sedento, Mankos lhe näo falem nos sonhos, E do horror os espcctros mcdonhos Traga sempře o cobarde após si. Do virtuosismo ritmico de Gon^alves Dias é ainda prova a composicäo dc "A Tempestade", onde se alinham todos os mctros Portugueses usados até o Romantismo: desde o bissflabo, cuja lepidcz abre fulmincamentc o poema (Um raio Fulgura No espayo Esparso, De luz; E u'Omulo E puro Sc aviva, S'esquiva, Rutila, Seduz.) ale a sinfonia dos endecassflabos que orquestram o climax da procela através de um riquissimo jogo dc timbres: Nos Ultimos cimos dos montes erguidos Já silva, já ruge do vento o pegäo. Estorecm-se os Icques dos verdes palmares, Voltciam, rebramam, doudejam nos ares, Ate que lascados baqueiam no chäo. 108 O cxcmplo de Goncalves Dias artifice do verso sobrevive aos romänticos ■ loca os parnasianos. Tiveram-no por mestre Bilac e Alberto de Oliveira, i|iiando o paisagismo e o canto do fndio já se haviam mudado em franja e Minamento da cultura escolar. Na obra lírica de Goncalves Dias säo os modelos Portugueses que atuam umis diretamente: o Garrett sentimental, nas poesias de amor e saudade ("Olhos Widcs", "Menina e Moga.", "Ainda uma vez — Adeus!") e o Herculano gótico Mi>s hinos ä Natureza, ä Morte e dos pocmas rcligiosos ("Dies Irac", "O Meu Srpulcro", "Visôes"). Nem sempře o contato do poeta com as letras lusas se fez em seu provcito. As vezeš, ao sóbrio cantor da natureza e ao vigoroso indianista justapôe-se um poeta menor, que navegou nas águas rasas do grupo ultra-romantico do ľrovador, entregue a um medievismo rcquentado pelos chavôes de uma retórica picgas ("O Assassino", "Suspiros", "Delírio", "O Trovador"). Säo, porém, raros rsses momentos c, no caso dos mcdicvismos, por certo os redimem as Sextilhas tle Frei Antäo em língua c estilo arcaico, exato contraponto dos poemas do horn selvagem na sua änsia romäntica de voltar äs pcrdidas origens: Bom tempo foi o ďoutrora Quando o rcino era cristäo, Quando nas gucrras dc mouros Era o rci nosso pcndäo, Quando as donas consumiam Scus teres cm dcvacäo. A lírica dc Goncalves Dias singulariza-sc no conjunto da pocsia romäntica hrasileira como a mais literária, isto c, a que melhor exprimiu o caráter me-diador entre os pólos da expressäo e da construc.äo. O poeta dc "I-Juca Pirama" t o clássico do nosso Romantismo: enquanto fonte de temas e formas da se-gunda e terceira geracäo; c enquanto "poets' poet", alvo das prcfcrcncias cri-iicas de poetas täo díspares entre si como Bilac, Machado de Assis c Manuel Bandeira. () romantismo egótico: a 2- geracäo Se na dčcada dc 40 amadurcecu a tradifäo literária nacionalista, nos anos (jue se lhc seguiram, ditos da "segunda gcracäo romäntica", a pocsia brasileira percorrerá os meandros do extremo subjetivismo, ä Byron e ä Mussel. Alguns poetas adolescentcs, mortos antes de tocarem a plena juventude, daräo exemplo de toda urna temática emotiva dc amor e morte, dúvida e irónia, entusiasmo e tédio. 109 Se romantismo quer dizer, antes de mais nada, um progressive) dissolver-sc de hierarquias (Pátria, Igreja, Tradicäo) em estados de alma individuais, ernäo* Álvares de Azevedo, Junqueira Freire e Fagundes Varela seräo mais romänticosy do que Magalhäes e do que o proprio Goncalves Dias; estes ainda postulavam.j fora de si, uma natureza e um passado para compor seus mitos poéticos; äqueles caberia fechar as últimas janelas a tudo o que näo se perdesse no Narciso sagrado do proprio h/ no "Poema do Frade"), melodias länguidas e fáccis que se prestam antes fi Nugestäo de atmosferas que ao recorte nřlido de ambientes: A praia é täo longa! c a onda bravia As roupas dc gaza tc molha dc cscuma; De noite — aos sercnos — a areia č täo Íri a, Täo úmido o vento que os ares períuma! (Sonhando) E estas cadéncias lamartincanas: Alčm scrpcia o dorso pardacento Da longa serrania, Rubro ílamcia o véu sanguinolento da tarde na agonia. (Crepúsculo nas montanhas) O inventário do léxico nos dá uma série de grupos nominais próprios da KÍtuacáo adolescente que, ľugindo ä rotina, acaba se envisgando nos aspectos mňrbidos e dcpressivos da existencia: "pálpebra demente", "matéria impura", "noite lutulenta", "longo pesadelo", "pálidas crencas", "desespero pálido", "en-Kunosas melodias", "(únebre claräo", "tencbras impuras", "astro nublado", "Agua impura", "boča maldita", "negros devancios", "dcscrlo loda^al", "tremedal •icm lundo", "tábuas imundas", "leito pavoroso", "face macilenta", "anjo maci-Itnlo", e numerosas vezes os cpítclos "macilento", "pálido", "desbolado", repi-sando a intuiyáb dc precoce decadčncia e morte, que a epígrafc de Bocage anuncia: Cantando a vida como o cisne a morte. Linguagcm que, aerescida dc termos cienlíficos, voltaria cm outro poeta dileto dos adolcsccntcs, Augusto dos Anjos. imos de idadc, näo vendo reunida em livro a sua obra que consla de um núclco básico, Lira dos Vinte Anos, mais alguns poemetos (O Condc Lopo, Poema do Frade, Pedro Ivo), da prosa narrativa de A Noite na Taverna e diarfstica do Livro de Fra Gondicario, Mm de urna eomposicäo livrc, meio diálogo, mcio nan-a^äo, Macário. Boa cdicäo, a il;is Obras Completas, preparada por Homero Pircs, cm 2 volumes (S. Paulo, C. E. Nacionál, 1944). Para a vida, consultc-sc Vciga Miranda, Álvares de Azevedo, S. Paulo, lievista dos Tribunals, 1931; Edgard Cavíilhetro, Alvares de Azevedo, S. Paulo, Ed. Me-llioramentos, s. d. Para a intcrpretacäo, v. os estudos citados na nota anterior c Antônio < 'ílndido, "AA, ou Aiicl e Caliban", cm Formacáo da Literatura Brasiieira, cit., vol. II, pp. 178-193; c A Educacäo pela Noite e Outros Ensaios, Áuca, 1987. Tive ocasiäo de voltar A obra de Álvares dc Azevedo no ensaio "Imagens do Romantismo no Brasil" (em O Ro-mantismo, org. de J. Ginsburg, S. Paulo, Pcrspectiva, 1978). 111 As comparacöes e as metáforas traduzem no concreto das imagcns nalurais os mesmos sentimentos básicos: a flor desfolhada lembra a juvcntude sem VÍ90; 0 sussurro da brisa semelha 0 suspiro do amante; e "as ondas säo anjos que dormem no mar". A evasäo segue, nesse jovem hi per sens řve 1, a rota de Eros, mas o horizonte ultimo é sempře a mořte, o "É väo lutar — dcixa-me pereccr jovcm" de Byron, o cupio dissolvi como forma ultima de resolver as tensöcs exasperadas. E al-guns dos mais belos versos do pocta säo versos para a mortc: Qu'cspcran^as, mcu Dcus! E o mundo agora Se inunda em tanto sol no céu da tardc! Acorda, coraeäo!... Mas no mcu pcito Líibio de mortc mumiurou — E tardc! (Virgcm Morta) As torrentes da mortc včm sombrias (Lágrimas de Sanguc) Quando em mcu pcito rebentar-se a fibra Que o espírito enlaca ä dor vivente Eu deixo a vida como deixa o tčelio Do deserto o poento caminheiro — Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobrc de um sinciro. (Lembranca dc Morrcr) Na segunda parte da Lira a fuga tem por nomes dispcrsao, auto-ironia, confidencia: uma espécie dc cultivado spleen que lembra o ultimo Musset ao dirigir o scu sarcasmo contra os ultra-romänticos. Em versos soltos, próximos do livre andamento da prosa, Álvarcs dc Azcvcdo define essa nova inflexäo do scu egotismo: Vou ťicando blasč, passeio os dias pelo mcu conedor, sem companheiro, Sem ler nem poetíir. Vivo fumando. Ali na alcova Em águas negras se levanta a ilha Rom&itica, sombria á llor das ondas De um rio que se perde na floresta... Um sonho de mancebo e dc poeta, El-Dorado dc amor que a mentě eria Como um Eden de noites deleitosas... Era ali que eu podia no siléncio Junto dc um anjo... Alem o romantisme! (Idéias íntimas) 112 A boemia espiritual respondem certas fumacas Iiberais e anarcóides, pro-vnvclmcnte de fundo ma9om, de um macom romantizado, que é a cor polftica •Ic Álvares e dos meios académicos que praticava. Confrontadas, porém, com a ideologia bolorenta do grupo de Magalhaes, cssas veleidades de radicalismo do jovem Manuel Antonio significam um passo avante na formagao de uma corrente democrática que, no ámbito das Ac ademias de Direito e das sociedades secretas, fazia oposigáo (ainda que só irlórica) ao imobilismo monárquico e aos abusos do clero. Testcmunho de icvolta juvenil é o pocmeto hcróico dcdicado a Pedro Ivo, rebelde praiciro: Alma cheia dc fogo e mocidade Que ante a furia dos reis nao se acobarda, Sonhava ncsta geraf3o bastarda Glorias e libcrdadc. Das imagens salanicas que povoavam a fantasia do adolescente dao exemplo os contos macabros de A Noite na Taverna, simbolista avant la lettre, e alguns versos febris de O Conde Lopo e do Poema do Frade. Também nessa literatura que herdou de Blake e de Byron a fusao de libido e instinto de mořte, Álvares rte Azevedo caminhava na esteira de um Romantismo em progresso enquanto nazia a luz da contcmplacao poótica os domínios obscuros do inconsciente. Junqueira Freire Em Junqueira Freire (81) é precisamente esse convivio tenso entre eros e (hanatos que sela a pcrsonalidadc do rcligioso e do artista malogrado. "Contrario a si mesmo, cantando por inspira^ôes opostas, aparece-nos o hörnern atravčs do pocta", dele disse Machado de Assis; c nessas palavras ia um elogio, mas também urna rcstricäo. Louvor ä sinceridade com que se projetou no verso o drama do indivíduo atado a urna falsa voca^äo; erítica ao (81) Luis Josň JuNQUKiRA Friíirií (Bahia, 1832-1855). Faz Humanidadcs no Liccu Provincial de Salvador e aos dezenove anos entra como novic, o na Ordern Bcncditina. Pro-fessa aos vinte, ao que parece sem nenhuma vocaeäo segura e talvez empurrado pelo ijcsejo de fugir ä vida familiar extremamente infeliz. Depois de um ano de sacerdócio, pedtu secularizaeäo, voltando para casa (1854). Falecc dc molčstia cardíaca no ano se-jjuinte. Nessa vida brevíssima os acontccimcnlos säo todos intertores: o desgosto na casa paterna, as ilusöes sobre a vocaeäo monastica, as dúvidas c desesperos nos dois iinos em que permancceu na Ordern. Daf o valor de testcmunho que assume a sua unica obra de pocsia, as Inspiracöes do Claustro (1855). Acrcscidas de alguns inéditos, foram pnblicadas sob o tmilo de Poesias Completas, cm 2 volumes, pela Editora Zčlio Valverde (Rio, 1944), recomendando-se a boa introdueäo de Roberto Alvim Correa, que preparou Ii edicao. Sobrc Junqueira Freire, o mclhor estudo (biográfico) é Junqueira Freire, Sua Vida, Sua Época, Sua Obra, de Homero Pires (Rio, A Ordern, 1929). 113 modo de ser dessa poesia, que, toda centrada no eu do emissor, näo encontrou o correlato da invencäo formal, e caiu no genérico, no prosaico e no cere-brino, ficando aquém da síntese conteúdo-forma. É verdade que o descompasso está ä espreita de todo poeta romäntico; mas é também verdade que este se afirma como artista na medida em que logra vencer, pela palavra, as tentacöes de um confidencialismo frouxo. E quan-do o faz, como um Hoelderlin e um Leopardi, um Heine e um Vigny, cria um estilo viril que nada deve aos clássicos em vigor e precisäo: essa era a "art romantique", rica de sons e de imagens, de movimenlo e de tensäo, que o pai da poesia pós-romäntica, Charles Baudelaire, cultuava como fönte do seu proprio estilo. Dela existia algo em Álvares de Azevedo e talvez muito em Goncalves Dias; nada ou quase nada em Junqueira Freirc, cujas Inspiracöes do Claustro podemos 1er como um documento pungente de um moco en-fermico dividido entre a sensualidade, os terrores da culpa e os ideais re-ligiosos, mas näo como urna obra de poesia. Urna prova, entre outras, da sua dificuldade de ajustar intencücs e forma 6 o prosaico c duro "A Profissäo de Frei Joäo das Mercés Ramos", cm que cxpöe o malogro da sua vocacäo: Eu também me prostrei ao pé das aras Com júbilo indizível: Eu também declarei com forte accnto O juramento horrivel. Tive mais tarde a reacäo rebeldc Do sentimento interno. Tive o tormento dos cruéis remorsos, Que me parece etcmo. Para näo sermos injustos com o poeta baiano, devemos reconheccr, com Jose Verissimo, alguns momcntos fclizes cm que lhe foi benéfica a aproxima-yäo com fontcs populäres, e com Antonio Cändido, outros em que a sua con-cep^äo anacrönica do verso se ajustou a uma poesia antes de pensamento que de scnsibilidade ("A Mortc"). Laurindo Rabelo As fontes populäres estavam presentes no boěmio e repentisla Laurindo Rabelo (82), o "poeta lagarlixa" e poeta de saläo, mas por isso mesmo repre-sentativo do gosto romäntico médio do Brasil Império. (82) Laurindo Jose da Silva Rabelo(Río, 1826-1864). Mestizo, de origem modesta, comegou a cursor a Escola Militär, mas decidiu-se por Medicína, formando-se pela Fa-culdade da Bahia. Famoso como repentista e solador de violäo, compôs no periodo boěmio de sua vida um grande numero de quadras, que publicou sob o ü'tulo de Trovas (Bahia, 114 A Irova, os redondilhos, as rimas emparelhadas säo os seus meios de ex-pressao congeniais, e, na mesma linha de simplicidade, säo as flores que lhe ulerecem material copioso para enumeracöes e metáforas. Algumas de suas (|iiadras parecem provir da cultura semipopular portuguesa e brasileira: "Minn'alma é toda saudades, De saudades morrerei", Disse-me, quando, minh'alma Em saudades lhe deixei. Parece que a natureza Quis provař esla verdadc, Quando diversa da roxa Te eriou, branca saudade. Mas, vivendo também cm um mcio de extracao burguesa, Laurindo, como o I niia mais tarde Catulo da Paixäo Cearcnsc, contorce aqui e lá a diccäo, ä procura de uma graga decorativa que possa prexluzir efeito entre os seus ouvintes cultos Qu pseudocultos. Näo ultrapassa, nesse caso, a esfera do léxico romäntico cm voga: "exangue", "sublime", "vestais"... Crcio que sua obra pode ser uma das halizas para um estudo que a nossa cultura rcclama: o das relacöcs entrc a luiguagem do povo, da classe módia e dos grupos dc prcstígio nos meios ur-bunos. Talvez nos surprcendam as águas que se misturam quando esperaríamos ver rígidas barreiras. Assim, há sempře um amaneiramcnlo nas quadrinhas que dn ora para o sentimental, ora para o conceituoso, o que de certo modo altera * espontancidadc. Mas esse já é um problema que deve ser resolvido na area da "literatura oral" c que foge, portanto, ä nossa finalidade. Casimiro de Abreu Ainda na linha de compreensao do publico medio é que se deve aprecíar a |Kipularidade de Casimiro de Abreu (83), que operou uma descida de tom cm IK53). Serviu alguns anos no Exércilo na qualidadc dc ofícial-mčdico e, pouco antes Jť rnorrer, como professor adido ä Escola Militär. Para o texlo, biografia c notas crflicas, vrja-se a edifäo das Obras Completas, S. Paulo, Cia. Ed. Nacionál, 1946. f83) Casimiro Jose Marques de Abreu (Barra de Säo Joäo, Provfncia do Rio de l.ineiro, 1839-1860). Filho de um rico fazendeiro e negociante portugu&s, transcorreu a Inlílncta no campo, de onde saiu para estudar Humanidades cm Nova Friburgo. Antes ■if completá-las, foi para o Rio de Janeiro, a mandado do pai, praticar comércio, o que, iilto sendo naturalmenle a sua vocaeäo, nele produziu certo ressentimento, visřvel em nljíiins poemas, c talvez demasiadamente explorado pela biografia romäntica. Vai depois lima Lisboa onde se inicia como poeta e dramaturgo (logrando ver representada a sua |u-ca CamÓes e o Jau em 1856, no Teaťro D. Fernando). Voltando ao Rio, já traz os miinuscritos das "Ciingöes do Exflio" que, somadas äs outras composic. öes aqui escritas, 115 relacäo ä poesia de Gon9alves Dias, Álvares de Azevedo e Junqueira Freire. Na verdade pouco diferiria destes se o critério de comparacäo se esgotasse na escolha dos temas, valorizados em si mesmos: a saudade da infäncia, o amor ä natureza, os fogachos de adolescente, a religiao sentimental, o patriotismo difuso. Mas o que singulariza o poeta é o modo de compor, que remonta, em ultima análise, ao seu modo de conhecer a realidade na linguagem e pela lin-guagem. Casimiro reduzia a natureza e o proximo a um ängulo visual menor: o do seu tempcramento sensual e menineiro que o aproxima ba s tanie dos literatos fluminenses coevos, do tipo de Laurindo Rabelo e Joaquim Manuel de Macedo. Ele adelgaga a expressäo dos afetos, täo ardentes em Goncalves Dias, täo apai-xonados cm Álvares de Azevedo. Compare-se a "Can^äo do Exflio" que abre as Primaveras com a peca homônima dos Primeiros Cantos de Goncalves Dias: nesta o tom é sóbrio até ä ausencia absoluta de adjetivos; naquela, apesar da imitaeäo dos dados naturais (palmeiras, sabiá, céu...), o tom é länguido e os motivos da patria distante se dilucm ao embalo das rimas seguidas e dos pleonasmos: Debalde eu olho e proeuro... Tudo eseuro Só vejo em roda de mim! Falta a luz do lar paterno D oce e temo, Doce e terno para mim. E os versos popularíssimos de "Meus Oito Anos" já cstavam na "Cantiga do Sertanejo" de Álvares de Azevedo; mas há urna difercn^a dc contcxto que tudo altera: Casimiro ignora as pregas da aíetividadc do pocta paulista. Como cste, tern seu Livro Negro onde canla a tristeza da inocencia perdida; mas é pálida, sem garras c exelamativa a sua lira dc sombras, faltando-lhc o sarcasmo, a auto-ironia sem tréguas, que levava Álvares de Azevedo a tocar, pela exas-pcragäo, os limites do proprio egolismo. Em tudo Casimiro č menor. E sendo-o coerentcmentc, os seus versos agra-daram, e crcio que ainda possam agradar aos que pedem pouco ä literatura: um ritmo cantante, urna expressäo fácil, urna palavra brejeira. formám o seu único livro de poemas, Primaveras (1859), publicado eom os recursos palernos. Faleceu de tuberculose no ano seguinte. V. Obras de Casimiro de Abreu, or-ganizadas por Sousa da Silveira, S. Paulo, Cia. Ed. Nacionál, 1940. Para o estudo do poeta, alčm da inlroducao dc Sousa da Silveira á ed. citada, ver Josč Vcrfssimo, "Casimiro de Abreu", em Estudos de Literatura Brasileira, II, pp. 47-59, c Carlos Drummond de Andrade, "No Jardim Público de Casimiro de Abreu", em Confissóes de Minas, Rio, Americ-editora, 1945, pp. 37-45. 116 I pí^onos Entre a geracäo que apareceu nos anos de Cinqtienta e um grupo realmente novo pelo espfrito e pela forma (Castro Alves, Pedro Luis, Sousändrade), en-i oniram-se epigonos, que retomam o americanismo de Goncalves Dias ou as Husoes sentimentais de Álvares de Azcvedo e Casimiro de Abreu. Alguns deles perderam de todo o contalo com o publico: Aurcliano Les-Nu (84), Teixeira de Melo (85), Francisco Olaviano (B6), José Bonifacio, o Moco (87) e, ao menos como poeta, Bernardo Guimaräes (88). (84) José Aureliano Lessa (Diamantina, 1828 — Conccicäo do Serro, 1861). Com-piiulieiro de Álvares de Azevedo nos anos acadômicos de Sao Paulo. Sua obra foi coligida |x-lo irmäo, Francisco Jose Pedro Lessa, nas ľoesias Póstumas (1873), com prefácio de Iternardo Guimaräes. (85) Tedceira de Mm.o(Campos, RJ, 1833 — Rio, 1868). Deixou: Sombras e Sonhos (1858). Póstumo, Miosólis (1877). As Poesias, reunindo os precedentes, vieram ä luz • in 1914, com prefácio de Silvio Romero. Ver Pčriclcs Eugônio da Silva Ramos, O Vaso Romántico, S. Paulo, Comissäo Estadual de Oil tura, 1959. (86) Francisco Otaviano du Almiíida Rosa (Rio, 1825-1889). Politico de certo presidio no Segundo Reinado: chegou a senador c ascendeu na carrciradiplomática. Publicou |mhico: versöes de Ossian com o nome de Cantos de Selma (1872) e Traducöes e Poesias MK81). Muito populäres os scus versos inlitulados "Ilusöes da Vida": Quem passou pela vida em branca nuvem c cm plácido repouso adonneceu, quem näo sentiu o frio da desgraya, quem passou pela vida e näo sofreu, foi espectro de hörnern, näo foi hörnern, só passou pela vida, näo viveu. V. Xavier Pinhciro, Francisco Oiaviano, escorco biográfico e selecäo, Rio, 1925. C7) Jose Bonifacio, O Moco (Bordčus, 1827 — S. Paulo, 1886). Filho de Miutim ľiancisco de Andrada e Silva, sobrinho do Patriaica. Como professor de Direito e po-Inico, influiu na ultima geracäo liberal do Império: foram discipulos scus Castro Alves r Rui Barbosa. Comcyou ultra-romäntico com Rosas e Goivos (1848), mas com o tempo pieferiu a musa cívica, prenunciando a oratória dos Condorciros ("Promctcu", "Liber-ilade", "A Garibaldi"). Ed. completa de seus poemas: José Bonifácio, o Moco—Poesias, S, Paulo, Comissäo Estadual de Cultura, 1962. (88) Bernardo Joaquim da Sh,va GuiMARÁKs(Ouro Preto, 1825-1884). Fez Huma-nidades na eidade natal c Direito em Säo Paulo, ondc sc úniu por amizade a Álvares de Azevedo c Aureliano Lessa, deixando fama de boômio c salírico. Exerceu as luncöes de juiz em Cataläo c de professor secundário em Ouro Preto e Queluz. Dos Irmas romänticos preferiu o da natureza e o da patria, mas singularizou-se como liumorista, nota que trouxe do salanismo juvenil da fase boômia ("A Orgia dos Duendes", 117 Varela Mas o epígono por excelencia, o maior dentre os menores poetas saídos das Arcadas paulistas, foi, sem dúvida, Fagundes Varela (89), o único nomc de relevo na poesia da década de 60. "Lido após aqucles poetas" — diz severamente José Veríssimo — deixa-nos a imprcssäo do já lido (90). E näo dizia novidade, pois Silvio Romero, que fora mais indulgente com Varela, afirmara: "A obra do poeta... aparente-mente pcssoal, é urna das mais impessoais da nossa literatúra" (9l). Séria fácil rastrcar em sua producäo dcscurada e prolixa sugestôes e mesmo decalqucs de Goncalvcs Dias, Álvares de Azcvedo e Casimiro de Abrcu. Ex-plorou todos os tcmas romänticos, näo excetuado o do índio que, na altura do Evangelho nas Selvas, rcdigido cntre 1870 c 1875, já näo figurava como fonte de inspiracäo cm nossas letras. Por outro lado, Varela foi, mais que os seus modelos, sensível ä lira pa-triótica de filiacäo liberal: índicc de urna tendencia que inverteu, a partir de 60, aquele signo áulico manifesto no "coro dos contentes", como chamaria Sousändrade as vozes conformistas de Magalhäcs e Porto Alcgrc (92). O pocta de O Estandarte Auriverde acompanha nesse ponto a viragem na vida política do II Império, quando entrava a formar-se urna oposicäo mais conseqiiente, de que seriam mentores José Bonifácio, o Moco, Luís Gama, "O Elixir do PajO- Obra poclica: Cantos da Soliddo (1852), Poesias (1865), Novas Poesias (1876), Fothas de Outono (1883). Vcr Basflio de Magalhdes, Bernardo Gui-maraes, Rio, 1926. Para o romancista, v. adiante o trtpico ficcao. («9) Luis Nicoi.au Fa«undhs Vari'j.a(Rio Claro, RJ, 1841 — Nitcrdi, 1875). Filho de fazendeiros, passou a infancia junto a naturcza ou em viagens, acompanhando os pais, o que talvcz lhc cxpliquc o modo de scr dispcrsivo c voluvel. Matriculou-sc em Dircito, cm S. Paulo (1862) depois de tie's anos de boGmia. Ainda estudante, casa-se com uma artista de circo, Ritinha Sorocabana, que lhe deu urn filho, Emiliano, e cuja moite, aos tres mcscs de idadc, lhc inspira o "Cantico do Calvario". Em S. Paulo publica Vozes da America e Cantos e Fantasias, partindo em 65 para Recife a fim de prosseguir os cstudos. Logo rcgressa ao saber da mortc da esposa. Abandonando de vez o curso, cntrega-sc a uma vida en ante pclas fazendas fluminenses, que nem o segundo casamento logra deter. Morrcu cm Nitcr6i, vftima de urn insulto cerebral, aos trinta e tr6s anos de idade. Obras: as citadas, mais Noturnas, 0 Estandarte Auriverde (63), Cantos Meridionals (69), Cantos do Ermo e da Cidade (69), Cantos Religiosos (78), Didrio de Ldzaro (80). Consultar: Edgard Cavalheiro, Fagundes Varela, 3s ed., S. Paulo, 1956. (W) Em Hist, da Lit. Bras., 3' ed., Rio, J. Olympio, 1954, p. 280. (91) Em Hist, da Lit. Bras., Rio, J. Olympio, vol. IV. (92) No poema O Guesa, canto X, estrofe 61. Sobre Sousandrade, v. mais adiante p. 125. 118 11ihias Barreto e maior poeta Castro Alves. Varela prenuncia os condoreiros 11* In ardor nacionalista (O Estandarte é de 63), pelo mito da América-paraí-«i> ila-liberdade (Vozes da America, de 64), enfim, no tratamento precoce do icma do negro ("Mauro, o Escravo", 1864) em relagäo ä literatura abolicionista ill is dccénios seguintes (93). O poemeto exalta a figura do negro herói que vinga a desonra da irmä. Mislura de "maldito" byroniano e de Bug-Jargal, o Mauro de Varela tem poucas miV.cs brasileiras; e como foi tracado a golpcs de melodrama, acabou dizcndo mnis da visao romäntica do herói rebelde que das angustias do negro nas con-dicocs concretas em que cstc pcnava. Oc qualquer modo, o relcvo dos primeiros livros de Varela é antes docu-nifiiial que artístico. O mclhor do poeta flumincnse näo sc encontra af, mas ■'in alguns momentos de lirismo bucólico que transpocm para o "portugucs liiusileiro", lingua do nosso Romanlismo, os costumes c os modismos da roca que cle tanto amou: "Anlonico c Corá, "Mimosa", "A Flor de Maracujá". A atraeäo pelo campo, alternada com a mais desbragada boemia, significa in i poeta dos Cantos do Ermo e da Cidade a aversäo radical a intcgrar-sc no ilium da vida em socicdadc. A psicologia da fuga levou o cterno adolescente it hebida e ä existencia crrante, o que espelhava a sua incapacidade romanti-III decadente de aceitar c, naturalmcntc, de transformar as pressoes do meio. Um lugar ä parte na sua produeäo, pela constäncia do fólego, ocupa o < 'Antico do Calvário", eserito em memoria do filho. Ncssa bela clegia em versos brancos Varela redime-se da sensaeäo de já lido com que o marcara a •riura do crítico. O mcsmo näo acontece com o scu ultimo e mais ambicioso uithalho, Anchieta ou O Evangelho nas Selvas, narracao, também em versos hi uncos, da vida de Cristo, que o poeta pöe na boča do jesuita em missäo de i .iicquese. Embora näo seja dificil colher exemplos felizes de notaeäo do mun-ilii agreste, o tom edificante do conjunto acaba toldando a solené pureza da iiiensagem evangélica, que se desfigura quando tocada pela retórica. Mesmo i|tie esta venha de uma alma emotivamente religiosa como a de Fagundes Va-irla. (93) Antes da campanha, so havia alusöes esparsas ao escravo na poesia romäntica. Uiicin precedeu imediatamente Varela e Castro Alves foi Lufs Gama (Bahia, 1830 — I Paulo, 1882), mulato, filho de uma africana livre e de um senhor branco, que o I udeu como escravo aos dez anos de idade. O que näo impediu que Luis Gama chegasse i» lo proprio esforco a grande orador libertärio. Deixou os versos satiricos das Primeiras Imvas Burlescas (1859) e das Novas Provas Burlescas (1861). Sobre a evolufäo do i. ma do escravo, o leitor consultarä com proveito o ensaio de Raymond S. Sayers, O Vci,'/v5 na Literatura Brasileira, trad, e notas de Antonio Houaiss, Rio, Ed. O Cruzeiro, ll^8. 119 Quando o poeta fluminense já publicara seu melhor livro, Cantos e Fan» tasias, 1865, comeca a fazer-se conhecido o ultimo adolescente — e por certo o maior deles — do nosso Romantismo, Antonio de Castro Alves (94). A sua estréia coincide com o amadurecer de uma situacáo nova: a crise do Brasil puramente rural; o lento mas firmc crcscimcnto da cultura urbana, dos ideais democráticos e, portanto, o dcspontar dc uma repulsa pela moral do senhor-e-servo, que poluía as fontcs da vida familiar e social no Brasil-Impcrio. Outros sáo agora os modelos poéticos. E, näo obstante continuem insepa-ráveis do intimismo romántico as cadencias de Lamartine c de Müsset, é a voz dc Victor Hugo, satirizador de tiranos e profeta de um mundo novo, que sc faz ouvir com fascínio cresccntc. Castro Alves será novo pelo epos libertário e, apesar das influcncias confes-sadas de Varcla c Gongalvcs Dias, será novo tambčm nos versos de substáncia amorosa pela franqueza no exprimir scus desejos c os encantos da mulher amada. Com cle flucm sem meandros as correnlcs dc uma rcnovada lírica erotica, tanto mais forte c limpa quanto menos rcclusa no labirinto dc culpas sem re-missao. A palavra do pocta baiano seria, no contexto cm que se inseriu, uma palavra aberta. Abcria ä rcalidadc macica dc uma nacao que sobrevive ä custa de sanguc eseravizado: é o sentido ultimo do "Navio Ncgrciro": Existe um povo que a bandeira empresta Pra cobrir tanta infämia e cobardia!... Auriverde pendäo dc minha těmi, Que a brisa do Brasil bcija c balanca, (M) Antonio Friidilrico dh Castro Ai,vľí.s(Curralinho, hoje Castro Alves, Bahia, 1847 — Salvador, 1871). Filho de um médico. Fez os estudos sceundários no Ginásio Baiano, dirigido por Abílio Cesar Borges. Enüou no Curso de Direilo em Recife, onde já co-mcyava a campanha libcral-abolicionista, dc que seria um dos primeiros Iideres, junto a Tobias Barreto. Apaixona-se pela atriz Eugônia Cárnara para quem escreve o drama Gonzaga ou a Revolucäo de Minus, levado ä cena em Salvador, quando já o poeta se encaminhava para S. Paulo a fim de continuar os estudos. Chegando em 1868, une-se ao mclhor da juventudc acadčmiea nessa fasc dc ruptúra com os aspectos mais rancosos da política imperial. Säo colegas scus Rui Barbosa, Joaquim Nabuco c Salvador de Mendonca. Pouco ficou em S. Paulo: um acidente dc ca?a, ferindo-lhe o pč, obriga-o a vollar á Bahia, onde č operado. Mas o organismo, abalado pela tfsica, näo tem condigöes para resistir. Morre cm 1871, aos viňte e quatro anos de idade. As Espumas Flutuantes foram publieadas em 1870, em Salvador, Póstumos, saíram: A Cachoeira de Paulo Afon-so (1876), Os Escravos (1883) e liinos do Equador, já na edigäo das Obras Completas (1921) aos cuidados de Afränio Peixoto. Consultar: Pedro Calmon, A Vida de Castro Alves, 2* ed., Rio, 1956; Jamil Almansur Haddad, Revisäo de CA, 3 vols., S. Paulo, 1953; Mario de Andradc, Aspectos da Literatúra Brasileira, S. Paulo, Martins, s. d. 120 Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperanca... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na langa, Antes te houvessem roto na batalha, Que serv ires a um povo de mortalha! A indignacäo, móvel profundo de toda arte revolucionária, tcndc, na poesia de Castro Alves, a concrctar-sc cm imagens grandiosas que tomam li natureza, ä divindade, ä história pcrsonalizada o material para mctáforas i comparacôes: Deus! 6 Deus! onde eslás que näo respondcs? Em que mundo, em que cstrela tu tc cscondcs tmbucado nos céus? Há dois mil anos te manclci meu grito, Que cmbaldc, desdc cntäo, cone o infinite... Onde eslás, Senhor meu Deus?... (Vozcs cľ Africa) E nenhum mito mais eloquente para a cxprcssäo do hcrói romäntico, agora potenciado cm um povo-símbolo, do que o mito de Tita por excelencia: Qual Promcleu, tu me amarrastc um dia Do dcscrlo na rubra pencdia, Infinilo galč. Por abuüc — me deste o sol ardcntc! E a terra de Suez foi a corrcnte Que me amarrastc ao pe\ (Vozcs ď Africa) Abcrta ao progrcsso e ä tčcnica que cnsaiava os primciros passos, a palavra de Castro Alvcs 6, tambčm sob esse ängulo, original, sc comparada com a tonstante da fuga para o campo como antidote dos males urbanos, que já vimos ■icr a marca de Varcla e Bernardo Guimaräcs. Castro Alves, ao contrario, mos-ira-se entusiasmado ao ver a penetraeäo da máquina no meio agreste; c nisso c um autentico filho da burguesia liberal cm fasc de expansäo, logo freada e leduzida ao sistema agrário. Junto ao livro, Ohl Bendilo o que semeia Livros, livros á mäo cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo nalrna E germe — que laz a palma, É chůva — que faz o mar, 121 vem a locomotiva: Agora que o třem de ferro Acorda o tigre no cerro E espanta os caboclos nus, Fazci desse rei dos ventos Guicte dos pensamentos, Arauto da grande luz!... (O Livro e a America) A mensagem oratoria tem por objelo constitutivo a persuasao. Qucr mover os afetos para locar um determinado alvo. Dirigc-se para... No esquema dd Roman Jakobson, centra-se na 2a pessoa, no destinatário do processo comu-nicativo (,)5). Mas, se o poeta se exaurisse nessa opcrac.áo, acabaria fazendo propaganda, ficando fora do íbco da poesia. No entanlo, 6 arriscado negar, por atrabflis ou turra polcmica, valor á poesia de intuitos sociais e políticos,* tachando-a azedamente de "demagógica", sempře que nao responder a certosj módulos com que se qucira medir, de uma vez por todas, a expressao literária.' O problcma do juízo fica mal formulado quando se concentra no crilério, alias' vago, da "utilidade necessária" ou do "necessário desinteresse" da arte. O poe-| ma é obra humana: enquanto humano, está sempře cm fungáo dialógica, vem de um ser em situacao que fala a outros seres em situa^ao, isto 6, comunica-se com e empenha-se em um mundo intersubjelivo pelo menos dual (autor-lcitor); enquanto obra, é objeto, produto de uma invencao, arranjo de signos inten-J cionais que se constelam em uma estrutura; nao atingindo esse limiar dc or-ganizagáo, ainda nao existe como poema c pode ser julgado, no piano estético, uma obra frusLrada, malgrado as inten^oes do emissor. É no convivio da mensagem com os vários códigos possívcis (prosaico, oratorio, lírico...) que se modela o texto litcrário c se concretizam esteticamente os valores cm cujo mundo estao imersos pocta c leitorcs. Se nos ativermos com ťirmeza a esse crilério lato, vendo na adequagáo dos meios á mensagem (c nao nos meios em si, ou nas mensagens em si) o modo dc distinguir o poeta superior do mediocre, nao incorreremos no crro hislórico de Silvio Romero, que antcpós á arte de Castro Alves a versalhada dc Tobias Barrcto, a quem nao se podem negar conviccóes liberals mais bem fundadas que as do poeta baiano, mas que nao soube transpó-las para uma linguagem forte e justa. Compare-se a "Ode a Dois dc Julho" de Castro Alves ao "Dois dc Julho" de Tobias. O mesmo intuito glorificador resolve-se, no primeiro, em metáforas e antíleses grandiosas; sao arcanjos e águias que lutam em espagos desmedidos: (95) R. Jakobson, Lingiiíslica e ComunicaQáo, trad, de Izidoro Blikstein e Josč Paulo Paes, S. Paulo, Cultrix, 1969, pp. 122-129. 122 O anjo da mořte pálido cosia Uma vasta mortalha em Pirajá Debrucados do céu... a noite e os astros Seguiam da peleja o incerto fado. As bandeiras — como águias ericadas — Se abismavam com as asas desdobradas Na selva escura da fumaya auroz... Tonto de espanto, ccgo de mctralha O arcanjo do triunfo vacilava. Eras tu — libcrdadc pcrcgrina! Esposa do porvir — irmíl do sol! Um pedac.0 de gládio — no inftnito... Um trapo de bandcira — na amplidao! No fragmento dc Dias e Noites do pocta scrgipano, nao há cvocagao ncm hiUamcnto épico do cpisódio, mas uma pífia c rala lcmbranga do succsso: Neste dia, sempře novo, Entre os aplausos do míir, Entrc os rufdos do povo, Vai a cidade falar... Auiz majcstosa e bela, Falando só e só ela Diante dc duas nacóes, Rcpresenta um alto fcito Que ananca bracos do peito De emudecidos canhOes. É verdadc, Tobias esereveu coisas menos ruins, mas o que interessa aqui | icitcrar a nocáo de um limiar estético, abaixo do qual só restam veleidades •I' lazer poesia, c acima do qual se percebe uma coerencia na organizacáo v.mantica, que resiste ás mudancas de gosto e de mentalidade. Muito do que nos deixou Castro Alves está aquém das exigéncias pós-románticas, em geral linslis ao fluxo oratorio, apesar dc este persistir em mais de um poeta respei-lAvcl: D'Annunzio, Claudcl, Whitman, St.-John Perse e, entre nós, por exemplo, Augusto Frederico Schmidt. A rigor, todos exorbitaram da medida a que se impunham os gostos cxigenlcs dos scus contemporaneos, mas a nenhum deles Ncria lícito negar o dom da palavra poética. Os similes de Castro Alvcs sao quase sempře tornados aos aspectos da nalureza que sugerem a imprcssáo de imensidade, de infinitude: os espacos, us astros, o occano, o "vasto sertao", o "vasto universo", os tufoes, as procelas, os alcantis, os Andes, o Himalaia, a águia, o condor... Transposto em prosa, ti mesmo estilo será a retórica formidanda de um seu colega de bancos aca- 123 demicos, Rui Barbosa, que lhe faria, dez anos apös a sua niortc, um elogit) sem reservas. Hoje haveria restricöes, mas como a de Gide falando de Hugo: "Victor Hugo est le plus grand poete francais, h61as!..." Nem tudo e" hiperbölico em Castro Alves. Os sentidos, bem abertos ä pai» sagem, souberam escolher imagens e compor os ritmos justos para um dos mais belos poemas descritivos de nossa lingua: A tardc morria! Nas äguas barrentas As sombras das margens deitavam-se longas; Na esguia atalaia das ärvores secas Ouvia-se um triste chorar de arapongas! A tarde morria! Dos ramos, das lascas, Das pcdras, do Ifquen, das ervas, dos cardos, As trcvas rasleiras com o ventre por terra Safam, quais ncgros, cruris leopardos. A tarde morria! Mais funda nas äguas Lavava-se a gralha do escuro ingazciro, Ao fresco arrepio dos ventos cortantcs Em müsico estalo rangia o coqueiro. Somente por vezes, dos jungles das bordas Dos golfos enormes daquela paragem, Erguia a cabega surpreso, inquieto, Coberto de limos — urn louro sclvagem. (O Crepúsculo Sertanejo) Versos que nenhum dos parnasianos por certo iria supcrar na captacao plástico-musicaí do ambientc. "Condores" Coctancos de Castro Alves, ou vindos pouco depois, os poetas que fecham o nosso Romantismo nao rcsgataram com a forca de uma personalidade artistica original o vczo da pura retorica. Pedro Luis (1839-1884), conhecido pelos al-tissonanles "Terribilis Dea", sobre a guerra do Paraguay e "Os Voluntários da Mortc", sobre a Polonia, č ainda o nome de condoreiro tipico que se pode alinhar junto ao de Castro Alves. Pedro Calasas (1837-1874), Narcisa Amália (1852-1924), Franklin Dória, Matias de Carvalho e outros, mcnores e minimos, automatizaram certos processos de efeilo como a antítese, a apostrofe e a hi-pérbole, e abusaram do alcxandrino francés que a leitura de Hugo puscra em 124 nu lila. No conjunto, servem de documento para a história dos sentimentos li-ii. mis c abolicionistas que, a partir de 70, dominariam a nossa vida publica. Sousándrade Mas a crítica de vanguarda repös ultimamente em circulacäo um poeta J#«!ic periodo que a história literária tinha relegado entre os nomes secundários, i ii boque dos condoreiros: Joaquim de Sousa Andrade, ou, como ele mesmo |n< leria chamar-se, Sousándrade (9I• 111■ no discutivel na medida em que o litcralismo pode concoiTer para a forja de um hjnico novo e colai-se ao espfrito do original. V. Antonio Hcnriques Leal, Pantheon Miiiunhense, Lisboa, 1873, vol. 1. 125 semi-afrancesado. O maranhense conheceu de perto o fenômcno das concen-tracôes urban as como Nova Iorque, com os seus escändalos financciros e po-liticos que fermentavam entre os bancos de Wall Street (o "Inferno" do Guesa) e as redacôes dos jornais montados para as novas massas. Sentiu os vários aspectos de uma democracia fundada no dinheiro e na competicäo feroz, e pôde compará-la com o nosso Impčrio fixista. Do confronto vcio-lhe ä mente a utopia de urna rcpública livre c comunitária que conscrvasse a inocéncia do nativo latino-amcricano, curioso mito politico e substancia do Guesa, poema narrativo composto ao longo de dez anos, e pelo qual seu autor bem mereceu o título de "Joao Batista da poesia moderna" que lhe daria Humberto de Campos. O Guesa retoma urna lenda quíchua que narra o sacrifício de um adolescente: depois de longas peregrinacôes na rota do deus Sol, o jovem acaba imolado äs mäos dos sacerdotes que lhe extraem o coracäo c recolhem o sangue nos vasos sagrados. O pocta, com assombrosa intuigäo dos tempos modernos, imagina o Guesa eseapo aos xcques (sacerdotes) c refugiado cm Wall Street, onde os reencontra sob o disfarce de emprcsíirios e cspcculadorcs. Símbolo do selvagem que o branco mutilou, o canto do novo herói inverte o signo do indianismo conciliante de Magalhäes c Goncalvcs Dias, can tores, ao mesmo tempo, do nativo e do colonizador europcu. Outra novidade de Sousändrade em relacäo a toda a poesia brasileira do sčeulo XIX reside nos processos de composicäo: de insólitos arranjos sonoros ao plurilingiiismo; dos mais ousados conjuntos verbais ä montagem sintática. O pocta näo podia ser assimilado no seu tempo e, de fato, näo o foi, ten-do-sc provado otimista a prcvisäo de cinqíicnta anos em compasso de espera que lhe fizeram na čpoca da redagäo do Guesa. Os poctas pós-románticos apa-raram as demasias sentimentais dos epfgonos e baixaram o tom da lira retórica dos condores; mas näo seguiram o caminho singular de Sousändrade: conten-taram-se cm fazcr entrar no molde acadčmico muitos dos motivos que a tra-dicäo romäntica legara. Foram parnasianos. A FICCÄO É ľácil cair na tentacäo de gizar um csquema evolucionista para a história do nosso romance romäntico: do Maccdo carioca äs páginas regionais de Tau-nay c de Távora, passando pela gama de experiencias ficcionais de Bernardo, Manuel Antonio c Alencar. A idéia de um conhecimento progressivo do Brasil que, partindo da corte, alcanga a provincia e o sertäo brulo, pode levar o his-toriador ingônuo a eseolher para critério tipológico os ambientes apanhados na ficcäo: romance urbanolromance campesino\ romance do nortelromance 126 xUt y///; método que, no scu cstreito sincronismo, näo se dá conta dos tempos • tilturais dfspares que viviam cidade e campo, corte e provincia. Mas a verdade é que näo se registrou nenhuma evolucäo no fato de Alencar in cscrito primeiro Lucíola e depois O Gaúcho, nem ocorreu qualquer pro-i'iľsso, em termos de apreensäo do real, entre a fatura das Memórias de um Stlrgento de Milícias, em 1854, de Manuel Antônio de Almeida, e a das novelas •iľiiancjas de Bernardo Guimaräes publicadas nos anos de 70. O deslocar-se ilo cixo geográfico näo obedcceu a nenhum acordo tácito entre os romancistas... in'jn resultou em aprimoramento da lécnica ficcional: dcu-se pcla propria dis-pcrsäo, no tempo e no espago, em que viviam nossos escritores. As tentacôes dc ordcnar os romances a partir de dados externos explicam-se pcla natureza do genero, voltado como nenhum outro para as realidades em-plricas da paisagem c do contcxto familiar e social dc onde o romancista extrai rtiio imagens isoladas, como faz o pocta, mas ambicnta^Ôcs, personagens, en-redos. A situacäo de fato dc que nasce o romance repropôc sempre ao erítico 0 terna dos liames entre a vida e a ficcäo, gerando problcmas como a veros-,nnilhan9a das histórias, a coerencia moral das personagens, a fidclidade das nxonstrucôes ambientais. E os nós apertam-sc ou arrouxam-sc segundo a con- 1 cp^äo de arte que se eleja. Por isso, todo eritório abstrato dc progresso pode •km fatal ao julgamento dc um romancista: o que só valoriza o quantum de iralidade (qual rcalidade?) contido na obra; c o que só dá prečo aos rcsultados dr pura inven^äo. Ser narrador ou fantasista depende dc fatores múltiplos, psi-cológicos c sociais o que torna igualmente diffcil tentar urna sociológia do romance de caráter positivista, ao menos no que se referc ao autor. Já para o ľstudo do publico parece indispensável comecar por urna análisc dc classes e £rupos. Pode parecer cstranho, sc näo perigoso resíduo idealista, separar os mé-lodos que abordam os consumidores da obra dos que visam a entender os seus produtores. No entanlo, os fcnômcnos situam-sc quasc sempre cm tempos di-versos, e a inteligencia deve respeilar a diversidade: os leitores da mensagem liccional scguem as grandes linhas-dc-forca das motivacócs que plasmám o scu cotidiano. Assim, a sede dc reconheccr a propria vida sob o prcstígio da Iclra de forma estimula um publico que näo será (ao mesmo tempo) o que Imsca no livro cenas e heróis longínquos c sobre-humanos para alimcnlo de cvasäo. E possívcl marcar os ideais e as frustrates das várias classes dc leitores ľonforme os nívcis de aspirafäo dos grupos a que pcrtcnccm: a passividade do consumidor é bom guia para descobrir as razôes dc sua preferencia por cstc ou aquele romancista. No caso do eseritor, porém, e especialmente do grande cscrilor, a faixa projetiva, onde cacm pesadamenle os fatores emocionais e a ideológia, näo ncupa todo o campo do fenômeno criador, sendo rcsponsávcl antes pela génese 127 da obra que por todos os aspectos da sua estrutura (98). Esta conscrva urn minimo de autonómia, que é a margem de liberdade do espírito na sua continua tensäo com os sistemas subjacentes. Sem a possibilidade dessa tensäo (ou da negacao, como diria Hegel), nao há sequer sombra de movimento, nem dialética na cultura. A acäo do fazer, o inventár, o poien da arte, que transforma a empiria em figuracäo poética, é responsável por ouíra fabca da obra, já näo puramente projetiva, näo mais colada apenas aos motivos do emissor, mas dirigida para os níveis formalizantcs da mcnsagcm: a matéria sonora, o ritmo, as imagens, a articulacäo interna do periodo, o trabalho estilíslico das descri-côes, a técnica do diálogo, os pianos narrativos; cm suma, a composicäo do objeto ficcional. A sociológia da invcncäo cstčtica deve ser mais cauta do que a dos grupos consumidores (inclusive os críticos). E näo csqucccr que a obra, quando des-codificada pelos leitores mcnos cultos ou pclo interprete tcndencioso, sofre grave entropia de informacäo cstčtica. Isso näo quer dizer que sc possa ou se deva subtrair ä pcsquisa social e psicológica o mundo das form as. Trata-se de apanhar, em si c por dentro, aquelcs fcnômcnos que säo objeto prcferencial do trabalho arlístico, c que nos induzem a juizos do lipo: "eis um belo poema", ou "o romance X é amorfo", ou "o dramaturgo Y lem um estilo denso". Que, em elapas seguintes, sc procure a homologia entre as notas estilísticas e a visäo do mundo de urna classc ou de um periodo, como o propöe o estruturalismo genético de Lucien Goldmann ("), é um tento final e o mais dificultoso de todos; c que, por isso mesmo, näo se deve arriscar, pela pressa de concluir, a um precocc c injusto malogro. 'rO romance romäntico brasileiro dirigia-sc a um publico mais rcstrito do que o atual: éram mocos c mocas provindos das classes altas, c, cxccpcional-mente, médias; cram os profissionais Iibcrais da corte ou dispcrsos pclas pro-víncias: cram, cnfim, um tipo de Icitor ä procura de entretenimento, que näo percebia muito bcm a diferenca de grau entre um Maccdo c um Alcncar urbano. Para esses devoradores de folhetins franceses, divulgados cm massa a parlir de 1830/40, uma trama rica de acidentes bastava como pedra de toque do bom romance. Á medida que os nossos narradores i am aclimando ä paisagcm c ao meio nacionál os csquemas de surpresa c de f im feliz dos modclos europeus,! (9H) Na expressäo feliz de Pierre Francaslei, "os tempos da génese e da estrutura säo diferentes". (9in todos cles o gosto do puro romanesco é importado (Scott, Dumas, Sue .), mas säo nossos os ambientes, as cenas, os costumes, os tipos, em suma, f» Hovumento. O que näo quer dizer: realismo. Kescnhando um dos romances de Macedo maduro, O Culto do Dever, de IKfií, Machado de Assis, que ainda näo estrcara na ficgäo, já Ihe apontava .....li caréncia de realidade moral näo compcnsada pcla cópia de tragos pito- iťscos e pelas digressöes sentimentais. A notagäo prccisa de Macedo näo é ■ i iilismo, mas minúcia de crönica; embora insistentc, näo chega a moldar uma prrsonagem que nos convenca. Säo palavras de Machado: Se a missäo do romancista fosse copiar os fatos, tais quais eles se däo na vida, a arte era uma coisa inútil; a memoria substituiria a imaginaeäo; o Culto do Dever deitava abaixo Corina, Adolfo, Manon Lescaut (101). O defeito näo era, portanto, do Romantismo, de onde provinham as obras i nadáš por exemplarcs na crilica de Machado; pelo contrario, 6 com os ro-mftnticos que comecam a fixar-se pessoas, cnquanlo projcgöes de conflitos dos próprios autorcs: as criaturas de Stendhal, Manzoni e Balzac foram au-límlicos heróis que nutriram a fantasia do leilor oitoccntista. O defeito cstava i in Macedo, sub-romancista pela pobrcza da fantasia, sub-romäntico pcla mfn-\ I im Mae, Alencar entroniza no centro do drama a figura de uma escrava, li Mina. que se imola até a mořte para o bem-estar e a felicidade conjugal do .i ti senhor; este, ignorando ser seu filho, chega ao ponto de vendé-la para rtt«K"lur as dívidas do futuro sogro. Mas o altruísmo de Joana é manífestamente in i of.srno de mäe antes que nobreza de negra escrava: "se há diamante inal-fcrrtvel — diz Alencar na dedicatória do drama — 60 coracao matcrno, que umis brilha quanto mais espessa é a treva; scntcs que rainha ou escrava, a mite é sempře mäe." Vpráno de Meneses. Paulo Eiró Mas houve dois jovens dramaturgos, meio csquccidos pcla crřtica moderna, Que trabalharam o terna da escravidäo dc modo mais direto c cor taňte que AlíMicar; o baiano Agrário de Meneses (1843-63) e o paulista Paulo Eiró (1836-71). O Calabar de Agrário de Meneses é um drama cm verso cscrilo cm 1858 . ni plena floracäo do segundo grupo romantico: nclc, a figura do traidor é hyronianamente identificada com a do rebelde que, por ser mestico, vinga no ,111 ato as humilhagöes sofridas: Homens que mc enxotastcs aucvidos Da lauta mesa, em que vos assenlávcis, Mulheres que zombastes do mul ato, Porque ousou mostrar-vos sua alma Em Čxtases de íunor: sede malditos. Segundo Raymond Saycrs, "a peca no seu conjunto parcce ter sido o prt-mciro estudo fcilo no Brasil sobre o complexo dc infcrioridade do mulato, e 11 extrema sensibilidadc dos membros desse grupo miscigenado, por sua difícil posigao na sociedade" (op. cit., p. 266). Pouco posterior é Sangue Lirnpo (1861), dc Paulo Eiró (l2°), figura rica e estranha de pocta romantico cujos Ultimos anos Coram ensombrados pela dementia, mas que, no meio-dia da juvenlude, rcvclou perfeita lucidez como eseritor e compreensäo aguda do problcma racial. Sangue Limpo ó um drama (iio) pIira um£l nova interpretaeäo dessa comódia, ler Dčcio de Almeida Prado, "Os demön ios familiäres de Alencar", in Revista do Institutů de Estudos Brasileiros, ne 15, Universidade de S. Paulo, 1974. (120) Ver a 2" cdieäo de Sangue Limpo (S. Paulo, 1949), prefaciada por Jamil Al-uiansur Haddad. í 153 tracado com firmeza. Tem por cenário Sáo Paulo nos dias da Independéncm e situa, na atmosféra de expectativa que precedeu a vinda de D. Pedro, uin caso de amor entre um fidalgo e uma jovem parda. O preconceito é vencidů pelo rapaz que se rebela contra o pai, ao mesmo tempo que este é assassinadO por urn negro que jurara nunca mais "ajoelhar-se aos pés de um senhor". AC som festivo do brado do Ipiranga, "Indcpcndéncia ou Morte", abracam-se bran* cos e mulatos num fmpeto de fraternidade. A pcca, reproduzindo o ambient* severo do antigo burgo c dando a cada pcrsonagcm uma cxpressao justa t lfmpida, resiste galhardamenle a leitura moderna e, creio, também á repre* scntacáo. Esta, a fala cm que Rafael, o irmáo da jovem mestica, responde au fidalgo que Ihe perguntara se corria sangue eseravo em suas vcias: — Sou filho de um eseravo, c que tem isso? Onde está a mancha indelével?... O Brasil c" uma terra de cativciro. Sim, todos aqui sHo eseravos. O negro que trabalha seminu, cantando aos raios do sol; o fndio que por um miscrável salário ó empregadu na fcitura de csuadas c capelas; o selvagem, que, fugindo as bandeiras, vaga dc mata cm mata; o pardo a quem apenas se rcconhcce o direilo de viver esquecido; o bianco, enfim, o branco orgulhoso, que sofre dc má cara a insolCncia das Cortes e o desdém dos eutopeus. Ob! quando cafrem todas cssas cadcias, quando esses cativos todos se rcsgatarem, há de ser um belo e glorioso dia! (Ato II, cena 12). A CONSCIÉNCIA HISTÓRICA E CRÍTICA As atitudes ideológicas e críticas quc se rastreiam durante as quatro décadas do Romantismo tém como fator comum a cnfasc dada á autonómia do país. Há cm todo o periodo um nacionalisme) crônico c äs vezes agudo, quc ao observador menos avisado pode parecer traco baštante para unificar e definir* a cultura romäntica. Dc Magalhäcs c Varnhagcn a Castro Alvcs c Sousändrade, dos indianistas c sertanistas aos condorciros, transmilc-se o mito da terra-mäe, orgulhosa do passado c dos filhos, esperancosa do futuro. No entanto, para evitar quc vejamos o Romantismo com olhos romänticos e quc a história víre tautológia, convém tentar uma análise diferencia! do fe-nômcno. Por trás da fachada uniforme dc amor ä patria, houve expressôes diversas dc grupos diversos que, pela estrutura "em arquipélago" do país, apa-recem äs vezes em tempos díspares näo sendo possívcl construir para todas urna linha simples de cvolugäo. Dcve-se distinguir, pelo menos: a) o grupo fluminense, entre passadista e celético, que instalou oficialmente, nos fins da década de 30, o Romantismo na poesia, no tcatro e na historiografia (Magalhäes, Porto Alcgre, Varnhagen c o "padrociro" dc todos, Monte Alveme); b) o grupo paulista, formado por alguns mestres e estudantes de Direito que fundaram em 1833 urna Sociedade Filomática em cuja Revista sc defendem as teses americanistas de Denis e 154 I mir clí (Jusliniano Jose da Rochá, Salome Queiroga, Antonio Augusto Quei-rt%A, Francisco Bernardino Ribeiro...) (121); c) o grupo maranhense, paralelo 101 anteriores, mas liberal no espírito, ilustrado na cultura e ainda clássico na Mulmigem (Joäo Francisco Lisboa, Sotero dos Reis, Odorico Mendes); d) o t/f tipo pernambucano, empenhado antes na luta ideológica que na crítica lite-ntna, c que representa a ponta de lanca do progressismo liberal romäntico i Abreu e Lima, Pedro Figueircdo). I mdicionalismo A énfase dada aos conteúdos romäntico-nacionais cabc ä gcracäo de Mali tdliäcs e a seus continuadorcs da Minerva Brasiliense (1843) c do Inslituto llistórico: Joaquim Norbcrto, Pcrcira da Silva, Santiago Nuncs Ribeiro. India-nismo e passadismo misturam-sc ncssa perspectiva, perdendo o primeiro em i imlato com o segundo as garras antilusas c demoeráticas que ainda apresentava nu čpoca da Indcpcndencia (,22). Já a literatura dos maranhenses (e penso nas Itclas páginas do Jornal de Tinion, dessc clássico do jornalismo satírico que lot Joäo Francisco Lisboa) conscrva näo poucos tracos do que ioi a luta an-umlonial na provincial luta que pcrdurou nas rcvoltas do periodo rcgencial e no comeco do Segundo Império, na mcdida cm que cstc rctomava a diretriz • i-ntralizadora da ultima Rcgcncia. As antinomias que marcaram o sčculo XIX brasilciro íoram várias: cor-i'/província; poder ccntral/podcr local; campo/cidadc; senhor rural/classc média urbana; tra bal ho eseravo/trabalho livrc. A "conciliacáo" ideológica fez-se ulravés da primcira gcracäo románlica, baiejada, como sc sabc, |x>r D. Pedro II Já as lormas dc pensamento que exprimem conflilo conťiguraram-se em piimeiro lugar no Nordcste, onde prccoccmcnlc surgem corrcnlcs abolicionistas i republicanas. Ä verteilte oíicial devc-se um merilório labor crudilo c o primciro levan-lamcnto de texlos poéticos da Colönia. Foram prolícuos edilores, antologistas (12J) Consultai": José Adcraldo Caslcllo, Textes que Interessant á História do Ro-nnmfismo, 3 vols., S. Paulo, Comissäo Estadual de Cullura, 1960-1965. Em Sáo Paulo, i,iinbém cm torno da Academia de Dircilo, constituiu-se cm 1859 outro grupo, o do / nsaio Filosófwo Pauiistano, que retomou, na pena pouco original de Antonio Joaquim Macedo Soíwcs, as leses da Socicdadc Filomática sobrc a ncccssidadc dc abrasileirar as nossas leuas (v. Aíránio Coulinho, A Tradicäo Afortunada, cit., pp. 82-91). (122) Sobic as tendéncias ecléticas que prevaleceram dunuilc toda essa fase, ver o ilcnso esludo dc Paulo Mcrcadante, A Consciencia Conservadora no Brasil, Rio, Ed. Saga, 1965. Para a análisc das primeiras rcvislas románlicas, ver A Divisäo das Águas, ilc Hélio Lopes, S. Paulo, Cons. Estadual dc Arles c C. Humanas, 1978. 155 e biógrafos Joaquim Norberto (v.), Pereira da Silva, com o scu Parnaso Bra< sileiro (1843-48), seguido do Plutarco Brasileiro (1847) e Varnhagen com n Florilégio da Poesia Brasileira (1853). As idéias que os norteavam eram pom cas, pobres e repetidas á saciedade: o Brasil tem uma literatura original a parlli' da Independéncia e/ou há, desde os tempos coloniais, motivos brasilicos dc inspiracao: a natureza, os indios, os nossos costumes. Enquanto pretende firmm' uma nova poética, essa crítica subordina os temas nativos aos sentimentos c a religiao tradicional, refugando o racionalismo e as "ficcóes clássicas". Econ de Madame de Stael, Chateaubriand, Garrett e Denis, os escritos dos galo-flu mincnscs, como os chamava Romero, náo conseguiram dinamizar uma verd« deira crítica literária. Diluíam na água morna do conservantismo o vinho forlť que as idéias realmente novas de Nacáo e do Povo significaram para a Europn pós-napoleónica. Dc resto a írasc "a literatura é expressao da sociedade" é dť si vaga c depende do conccito que se tenha dc sociedade; foi proferida também pelo ultra-reacionário Visconde de Bonald em nome das tradicoes que teriani sido conculcadas pelo racionalismo da Revolucáo Francesa. Dos continuadores de Magalhaes, o único a pensar com alguma forca o problcma da relacáo entre nacionalidade e literatura foi Santiago Nunes Ribciro (,23). Rcspondendo, na Minerva Brasiliense, a um articulista luso que negara a existěncia de uma literatura brasileira (por nao existir aqui uma lingua diversa do Portugués), Santiago Nunes dá énfase ao nexo entrc as letras e os contexlos histórico-geográficos. Nessa ordem de pensamento alcanca um nível tcórico mais alto que o dos contemporaneos: Náo é princípio inconteslável que a divis&o das literaturas deva ser fcita inva-riavclmente segundo as línguas, cm que se achám consignadas. Outra divisao mais filosófica seria a que atendesse ao espírilo, que anima, á idéia que preside aos tra-balhos intclcctuais dc um povo, isto é, de um sistema, de um centro, de um foco dc vida social. Eslc princípio literário c aitístico é o resullado das influčncias, do senlimento, das crencas, dos costumes c hábitos peculiares a um certo numero de homens, que estáo cm determinadas relacňes e que podem ser muito dilérentes entre ítlguns povos, embora falem a mesma lingua. (...) A literatura é a expressao da indole, do caráler, da inleligencia social de um povo ou de uma época. (...) Ora os brasileiros tóm seu emáter nacionál, também devem possuir uma literatura páuia ("Da Nacionalidade da Literatura Brasileira", in Minerva Brasiliense, 1-11-1843, I, 1). C23) Santiago Nunhs Ribhiro(Chile, ? — Rio Preto, Minas, 1847). De sua biografia pouco se sabc. Teria vindo ainda pequeno do Chile, trazido por um tio padre, exilado politico. Trabalhou no comércio cm Paraíba do Sul. No Rio lecionou cm escolas par-tic til arcs c, depois, no Colégio Pedro II, onde ocupou a cadeira de Retórica e Poética. Colaborou na Minerva Brasiliense, de 1843 a 1845, e pertenecu ao Instituto Histórico e Geográfico. Consultar Afránio Coutinho, op. cit., pp. 24-45. 156 A lucidez de Santiago N unes estrema-o do meio fluminense entregue ä . i inlii'do c incapaz de rever os lugares-comuns de que abusa: "nacionálísrno", iiiiu-iicanismo", "indianismo", etc. Mas a morte prematura impediu-o de de-• iivolvcr um tipo de crftica globalizante para o qual fora dotado. Kiidicalismo Das provincias do Nordestc, onde a crisc acucarcira produzia conslante inqtiiclacäo, vieram formas dc pensar mais criticas, scndo arbitrário separar ml us o interesse histórico c litcrário do sal ideológico. Assim, no ano de 1835, cnquanto Magalhäes e Porto Alcgrc, cm conlalo 11 mi a cultura francesa, introduziam uma forma passadista ou cclčtica dc Ro-lunutismo, aparccia a obra dc um pernambucano cm qucm já fcrmcntavam ideias democráticas c socializantcs: o Bosquejo Histórico, Politico e Litcrário do lirasil, de Abrcu c Lima (l24). Nclc o libcrlário, filho do Padrc Ronia, com-punheiro de Bolivar, e homem que daria scu apoio ä Rcvolucäo Praieira, faz um libelo contra o cslado dc ignorancia rcinantc por sčculos cm Portugal: si-lnacäo que a Colônia hcrdara e que cabia aos brasilciros corrigir. Mas näo lira aí o seu "jacobinismo" que iria mais tardc irritar o Visconde dc Porto Scguro: Abreu c Lima ve na literatúra "o corpo dc doulrinas dc urna Nacäo" I dcsce a criticas cstruturais do sistema, dcixando assim dc lado os chavôcs mócuos em que sc cifrava o nacionalismo dos primciros romänlicos, Um his-iiuiador reccntc, Vamireh Chacon, na cstcira dc Gilbcrlo Frcyrc c Amaro Quin- Josŕ Ináoio dií Aiíriíu r Lima (Recife, 1794-18ň9). Filho tie um sacerdotc dčľroqué" que morreu fuzilado pelo govcrno portuguôs por ler participatlo na In-Miircigäo Pernambucana de 1817, seguiu as pegadas do pai: capitäo dc artilharia já iiesse ano, foge para os Estados Unidos e daí para a Venezuela onde dcscmpenha pnigosas missöes junto a Bolivar, asccndendo em poucos anos ao gcneralato. Dcpois ili* viver longamentc na Colombia, volta para o Brasil (1832) onde sc engaja cm 1 it tas polfticas que, näo obstante as conlradieöcs aparenies, sempře se situaram numa kin ha nitidamentc Uberal. Alem do Bosquejo citado, escrcveu: Compendia da História do Brasil, 1843; Sinopse ou Dedugäo Cronológica dos Fatos Mais Notáveis da História do Brasil, 1845; Cartilha do Povo (sob o pseud, de "Franklin"), 1849; História Universal, 1847; O Socialisrno, 1855; As Bíblias Falsificadas ou Duas Respostas ao Sr. Cônego Joaquim Pinto de Campos, 1867; Resumen Histórico de la Ultima Ihctadwra del Libertador Simon Bolivar Comprobada cotl Documentos, publicado pelo Embaixador da Venezuela no Brasil, Diego Carbonell, cm 1932. Sobre Abrcu ľ Lima, consultar Vamireh Chacon, "O Romantico de 1848: Abreu c Lima", na sua História das Idéias Socialistas no Brasil, Rio, Civilizayäo Brasileira, 1965, pp. 145- IK7. 157 tas (125), chama a atencäo para alguns textos do Bosquejo, prcnhcs de antcci pacôes sociológicas: Que somos todos inimigos, e rivais uns dos outros na proporgäo das nossns respectivas classes, näo necessitamos de argumentos para prová-lo, bašta só qur cada um dos que lerem este papel, seja qual for a sua condigäo, meta a mäo na sua consciéncia e consulte os sentimentos do seu proprio coracäo. (...) Que näo havendn afinidade entre os intercsses individuals, täo pouco pode haver intcresse geral, fuu dado na participagäo de todos na publica administracäo, porque cada classe ou famíliu qucrerá a primazia (I26). Em outros passos ataca o bacharelismo, produtor de semidoutos, "o maioi agoute que nos podcria caber depois de 300 anos de escravidäo". No Com pendio de História do Brasil presta a sua homenagem äs insurreic,öes pernam bucanas, de 1817 c de 1824, na primeira das quais víra fuzilado o pai e fora preso cle proprio. Sabc-se que Varnhagcn, de certo chocado com o livro, que lhc sabia a jacobinismo, inquinou-o de plágio... Mas Abrcu c Lima prosseguiu na sua carreira doutrinária, de que slo marcos a Sinopse c O Socialisms estc ultimo uma sintese fogosa ä Lammenais de progressismo c espírito rcligioso. Permanencia da Ilustracäo. J. Francisco Lisboa No Maranhäo (127) a satira aos costumes políticos, aliada ao amor da frase precisa e vernácula, corre sob a pena de Joäo Francisco Lisboa (l28), periodista (l25) Gilberto Freyre alude ä geragäo "quarantc-huitarde" de Pcrnambuco ein vários passos da sua obra. Ver, por exemplo, Sobrados e Mucambos, cap. I, o belo estudo sócio-histórico Um Engenheiro Frances no Brasil, Rio, Jose" Olympio, 1960, c ainda O Velho Felix e suas "Memórías de um Cavalcanti", Rio, Jose" Olympio, 1959. De Amaro Quintas, O Sentido Social da Revolu0o Praieira, Recife, Imprensa Universilaria, 1961. (12r>) Apud Chacon, op. cit., p. 156 c segs. (127) Louvando em bloco o grupo maranhense (Odorico Mendes, Sotero dos Reis, Joäo Francisco Lisboa, Antonio Hcnriques Leal c menores), afirmou José Verissimo: "Este grupo č conlemporäneo da primeira gerayäo romäntica toda ela de naseimento ou rcsidôncia fiuminensc. O que o situa c distingue na nossa literatúra e o sobreleva a essa mesma geracäo, č a sua mais claia inteligencia literária, a sua maior largucza intelcetual. Os maranhcnses näo ifiin os blocos devotos, a ostentacäo patriótica, a afetacäo morali-zante do gnipo fiuminensc, c gcralmcnte eserevem melhor que estes" (História da Literatúra Brasileira, cit., p. 222). (,28) Joäo Francisco lisboa (Itapicuru-Mirim, 1812 — Lisboa, 1863). Seu Jornal de Timon saiu cm fascículos, de 1852 a 1854, em Säo Luis. As Obras Completas, cm Säo Lufs, de 1864 a 1865 (4 vols.). Sobre J. F. Lisboa: Antonio Henriques Leal, Panteón Maranhense, vol. IV, Lisboa, 1875. V. Joäo Alexandre Barbosa, "Esludo Crftico", aposto a J. F. Lisboa, Trechos Escolhidos, Rio, Agir, 1967; Maria de Lourdes Janolti, /. F. Lisboa, Jomalista e Historiador, S. Paulo, Ática, 1977. 158 ciiiplar que deixou, além de artigos esparsos pela imprensa de Säo Luis, O louutl de Timon e uma Vida do Padre Antonio Vieira. O alvo do primeiro é t i mrupcäo do sistema eleitoral, manejado pelos senhores de terras e por ba-ihniŕis ignorantes e madragos. É o intelectual de classe módia que lamenta o •ľ ,i oncerto da vida política e advoga as grandes virtudes públicas: civismo, n ipeilo ao proximo, tolerancia. Para mclhor sombrear o quadro, Lisboa denn u n-sc na pintura das refregas parlidárias de Esparta, Atcnas e Roma, e näo i liena ao Maranhäo sem antes ter atravessado a Inglaterra e os Estados Unidos, I I ranga e a Turquia. Moralista desenganado, ele sc inclina cm tudo a ver o tränsilo ľácil da hhľľdade ao arbílrio e ao dolo. Mas lidas com atcncäo, cssas páginas a um !■ nipo sóbrias e amargas confirmam a opgäo iluminista c liberal do politico qui; a mesquinhez da provincia abaťou, impedindo que chegasse a mclhorcs hiilos. Ao historiar a evolugäo jurídica de Roma, é para as lcis demoeratizantes lIos Gracos que volia a sua simpalia, e säo palavras de esearmento as que usa fiiii a narrar a chacina daquelcs varôcs sem mácula. Dos partidos maranhcnscs, i m tempos de conciliagäo a qualqucr prego, diverte-se a dizer com malícia i|iie "em geral... tém sido ťavoráveis ao govemo central, e só lhc declaram gueira, quando de todo perdem a esperanca dc obter o seu apoio, contra os partidos adversos que mais häbeis ou mais felizes soubcram acarcá-lo para si. (...) Quando o Exmo. Sr. Bernardo Boniľácio, importunado das recíprocas recriminators e dos inde-fectíveis protestos dc adcsäo e apoio destes ilustrcs chefes, os interrogava ou sondava apenas, respondiani eles, cada um por scu turno: — A divisa dos Can-gambás á Imperador, Constituicäo c Ordern. Os Morossocas so" querem a Consti-tuicäo com o Imperador, únicas garantias que temos de paz c cstabilidadc. Os Jaburus säo conhecidos pela sua longa e inabalável ftdelidadc aos princípios de ordern c monarquia; o Brasil näo podc medrar senäo ä sombra prolctora do Trono. Vôm os Bacuraus por denadciro e dizem: Nós professamos em teória os princípios populäres; mas somos assíiz ilustrados para conhecermos que o estado do Brasil näo compoita ainda o ensaio de ccrlas insttlui^ôcs. Accitamos pois sem escnípulos a alual ordem de cousas, como íato consumado, uma vez que o poder nos garanta o go/.o íle lodas as regalias dos cidadäos. Estamos até dispostos a prcstar-lhc a mais franca e leal cooperacäo (Partidos e Eleicöcs no Maranhäo)". Plus £a change... E säo muitos os passos em que se patcntcia a sua largueza dc vistas. De-lende a anistia c nega a existencia dc crimes políticos, com que as facgöes vencedoras marcam o adversário para mclhor sacrificä-lo cm nome de uma iirbitrária c mulável justiga. Admitc screm incvilävcis as mudancas e o diz em leimos repassados dc sabedoria historical "Ncgar a rcvolufäo é negar a urn lempo a razäo c a história, isto é, o dircito consagrado pela suecssäo dos tempos 159 e dos fatos, pela forga c natureza das cousas, c pcla marcha irrcsistívcl do. interesses, que afinal triunfam dessa imobilidade a que täo loueamentc aspirafl todos os partidos de posse do poder; desse poder conquistado sem dúvida en eras mais remotas pelos mesmos meios que debalde se condenam quando chcgi a ocasiäo de perdé-IoO mcsmo realismo leva-o ä prega9äo da tolerancia: o faz com os olhos postos na Praieira e nas atrocidades que sc cometeram en 1824 e 1831 (Lisboa näo parlilharia da imagem do brasileiro como "hörnern cordial"). Por outro lado, esse acérrimo inimigo da cscravidäo näo se compraz m rclórica do indianismo, täo cara aos fluminenses c mcsmo a seu comprovincian^ Gongalvcs Dias, a quem louva calorosamente como pocta, mas critica por ter dado ao fndio a primazia na formagäo da nossa etnia. Vcrbcra a iniqíiidad* com que os Portugueses sujcilaram os nativos, entrando nessa altura cm pci lemica com Varnhagcn que, na História Gerat do Brasil, defendera a esera vizagäo pela forga com argumentos do mais descarado racismo colonialista ("A Escravidäo e Varnhagcn"). As páginas que se seguem ä confutagäo do alfarrabista tudesco-sorocabano säo por ccrlo as mais ardcnlcs c profundas qui o Iluminismo inspirou a qualqucr cscritor cm lingua portugucsa. Passando da história colctiva ä pessoal, cscrcvcu sobrc Odorico Mendes, o humanista scu conterränco, de quem cncarccc o saber da lingua, e a Vida do Padre Antonio Vieira. Esta, apesar dc inacabada, í exemplo dc ensaio moderno, pois o biógrafo, divergindo cmbora da mentě barroca do biografado, sabe rcconheccr-lhe a invulgar estatura. Num ambiente dc crítica retórica, a que Odorico e Sotcro dávam o tom, esse estudo dc um grande clássico sobressai como investigagäo histórica am p la c iscnla dc prcjuízos. Vista cm conjunto, a obra de Joäo Francisco Lisboa cobrc, já na dčcada dc 50, uma faixa da nossa rcalidadc que seria cnlrcntada pcla ultima gcragäo romäntica em termos dc prog ram a liberal c abolicionisla. 160 v O REALISMO ( Ilm novo ideário A poesia social de Castro Alvcs c de Sousändrade, o romance nordestino .ľ Iranklin Távora, a ultima fičelo citadina de Alcncar já diziam muito, embora ' m lermos romänticos, de um Brasil cm crisc. De fato, a partir da cxtincäo ilo iráfico, em 1850, acelcrara-sc a decadencia da cconomia aeucareira; o desím ar-se do eixo de prestígio para o Sul c os anseios das classes médias urbanas nimpunham um quadro novo para a nagäo, propício ao fermento de idéias liherais, abolicionistas e republicanas. De 1870 a 1890 scräo cssas as teses • h posadáš pela inteligencia nacionál, cada vez mais pcrmcávcl ao pensamento muopeu que na época sc constclava em torno da ťilosofia positiva c do cvo-lucionismo. Comic, Taine, Spencer, Darwin c Hacckcl foram os mestres de Tobias Barreto, Silvio Romero c Capistrano de Abrcu c o seriam, ainda nos Inis do século, de Euclidcs da Cunha, Clóvis Bcvilacqua, Grafa Aranha c Metli-iros e Albuquerque, enfim, dos homens que viveram a luta contra as Iradiyôcs I o espírito da monarquia (129). Os anos de 60 tinham sido fccundos como prcparacäo de urna ruptúra inental com o regime cscravocrata c as instituicôcs polfticas que o suslcnlavam. I o sumo dessas crílicas já sc encontra nas páginas dc um espírilo realista e ili-mocrático, Tavarcs Bastos (1836-75), que advogava o trabalho livrc nas suas iitliniráveis Cartas do Solitário (1862) e uma política aberta de imigracao na Memoria Söhre Imigragäo, 1867. A formac^ao de um partido liberal radical, em 1868, foi prccedida dc dc-darapôes de princípios abolicionistas c pró-republicanos (13()); c, dc fato, já (129) Os rcflcxos do Positivismo no Brasil c suas vinculacöes com a primeira Re-publica foram bcm estudados por J. Cruz. Costa (Panorama da História da Filosofia no Brasil, S. Paulo, Culüix, 1960); Ivan Lins (História do Positivismo no Brasil, S. Paulo, Cia. Editora Nacionál, 1964) e J o ab Camilo de Olivcira Torres (O Positivismo tu> Brasil, T ed., Pctibpolis, Vozes, 1957). (!3°) A Opiniäo Liberal, jornal i'undado por Limpo de Abreu c Ríingel Pestana, flava a publico, cm 1868, o programa seguintc: "descenüali/ayüo; ensino livrc; polícia ľtľtiva; aboligílo da Giiarda Nacionál; Senado temporário c eletivo; extincäo do Poder Moderador; substitui^üo do üabalho escravo pelo trabalho livrc; separaeäo da judicatura Ma polícia; sufrágio direto e gencralizado; presidentes de provincia elcitos pela mesma; mspcnsäo c rcsponsabilidade dos magisüados pelos tribunals superiorcs e poder legislativo; magisuatura independente, incompatfvel, e escolha de seus membros fora da agäo 163 em 1870, uma ala dos progressistas fundava o Partido Republicano, que opt-raria a fusäo tática da inteligencia nova com o arrojo de alguns políticos d< Säo Paulo, interessados na substituifäo do escravo pelo trabalho livre. Ás idéia* respondiam os fatos: no decénio de 70, entram no pais quase duzentos mil imigrantes; no de 80, quase meio milhäo. O terna da Abolicäo e, em segundo tempo, o da República seräo o fulcro das opcöes ideológicas do hörnern culto brasileiro a partir de 1870. Raras vezcs essas lutas estiveram dissociadas: a posi^äo abolicionista, mas fiel aos moldc* ingleses da monarquia constitucional, cncontrou um seguidor no ultimo grand* romäntico liberal do século XIX: Joaquim Nabuco (l31)- Mas a norma foi n expansäo de uma ideológia que tomava aos evolucionistas as idéias gerais pani demolir a Iradicäo cscolástica e o ccletismo de fundo romäntico ainda vigenlc, e pcdia ä Franca ou aos Estados Unidos modclos de um regime democrático, do govcmo; proibicäo dos rcpresentantcs da nacäo de accitarcm nomcacäo para empregoí públicos e igualmcntc títulos e condccoracöcs; opcäo dos funcionários públicos, uma vc* eleitos, pelo emprego ou cargo de representagäo nacionál" (apud Caio Prado Jr., Evoluqůo PoKtica do Brasil e Outros Estudos, 5* ed., Säo Paulo, Brasiliense, 1966, p. 86). Joaquim AuRňLio Barreto Nabuco dei Araújo (Recife, 1849 — Washington, 1910). Desccndente de uma família pernambucana de senhores de cngcnho, Joaquim Nabuco seguiu na política os ideais do pai, o senador Nabuco de Araüjo, vulto de relevu do Partido Liberal nos meados do século. Formou-se em Dircito (Säo Paulo e Recife) e, depois de uma viagem ä Europa e aos Estados Unidos, clegeu-se deputado, desia, cando-se no decénio de 80 como grande tribuno abolicionista (O Abolicionismo, 1883). A acäo de Nabuco fundava-se menos na rotina parlidária que na paixäo intelectual c čtica das reformas: daí a emergôncia da sua figura humana, uma das mais belas do Segundo Reinado pelo desapego que manteve alč o f Im da vida publica. Como escritor. 6 claro e vivo, lembrando de perto as fontes francesas que bebeu na mocidade (Renan, Taine); escreveu ncssa lingua um livro de versos, Amour et Dieu, c as reflcxöes do Pensées Déíacbées et Souvenirs (Pensamenlos Soltos, na tradueäo de sua filha, Carolinii Nabuco). Näo foi espirito original: há, cm Minha Forma^äo (1898) näo poueos luga-res-comuns de cosmopolita e diletante, ainda preso a tipologias feitas como "o espirito inglÔs", "a alma francesa", "a demoeracia americana", etc. Mas, sempre que volta íl memoria da inläncia, aos primeiros contatos com o negro ("Massangana" cm Minha Fortnacäo) c, sobretudo, ä imagem do pai, cuja vida recompôs nos volumes de Um Estadista do Impéria (1899), demons tra o pulso do memorialista capa/, de aar ä História a altura de "ressurreigäo do passado" que lhc preconizava Michelet. A prochunagäo da República näo o demovcu dos ideais monarquistas, mas também näo o impediu de servir ao pais, na qualidade de embaixador em Londres e em Washington, onde faleceu em 1910. Nos Ultimos anos, uma profunda crise religiosa levou-o de volta ao catoHcismo tradicional de que se afastara na juventude. Há edicäo da sua obra complcta pela Editora Ipô (Säo Paulo, 1947-49, 14 volumes). Sobre Nabuco: Carolina Nabuco, A Vída de Joaquim Nabuco, Säo Paulo, 1928; Graca Aranha, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, "Comentários e notas ä Correspondôncia entre esses dois eseritores", Rio, Briguiet, 2' cd., 1942. 164 li ä "Escola do Recife", isto é, a Tobias Barreto (132) e a seu discipulo in-1, Silvio Romero, que se deve a primeira transposi^ao dessa realidade em irnnos de consciéncia cultural. Silvio Romero, falando dos anos da "viragem", v in com clareza o essencial da nova forma mentis'. O decenio que vai de 1868 a 1878 é o mais notável de quantos no século XIX constituíram a nossa vida espiritual. Quem näo viveu nesse tempo näo conhece por näo ter sentido diretamente em si as mais fundas comocôes da alma nacionál. Até 1868 o catolicismo reinante näo tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais insignificante oposigäo; a autoridade das instituicôes monárquicas o menor ataque sério por qualqucr classe do povo; a instituigäo servi! e os dircitos Iradicionais do feudalismo prático dos grandes proprietaries a mais indircta opugnagäo; o romantismo, com scus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavenca reatora. Tudo tinha adormecido ä sombra do manto do principe feliz que hav i a acabado com o caudilhismo nas províncias da America do Sul e preparado a engrenagem da pcca política de cen-tralizacäo mais coesa que já uma vez houvc na história de um grande pais. De repente, por um movimento subterrílnco que vinha dc longe, a instabilidade de lodas as coisas se mošnou c o sofisma do império apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava ainda a mostrar a lodas as vistas os imensos dcfcitos de (132) Tobias BarrktodbMhniízhs (Campos, Provincia de Sergípe, 1837 — Recife, 1889). Mestizo, de modest a origcm, fez cstudos sccundários com mestrcs parliculares na sua provincia até obler, aos 15 anos, o posto de professor de Latim em Lagarto. Säo desse tempo c de um breve periodo que passa no Seminário da Bahia muitas composicöes poéticas onde se acha um pouco de tudo: desde modinhas até elegias latinas. Fez Dircito nu Recife (1864-69), onde amadurccem as constantes dc sua obra: aversäo ao tradicio-nalismo filosófico e, no teneno lilcráiin, afinamento com o hugoanismo, entendido como poesia de tese, lirismo publico que sc avizinha ä épica. Muitos de seus pocmas (Dias e Noites) (brain compostos na fasc acadômica, mareada pelas polômicas que travou com ( astro AI ves: rivalidades de estudimtes sem maior significagäo. Formado, casa-se c parte pitra Escada onde advoga e faz jornalismo (1871-81), eserevendo para efémeros perió-dicos liberals vibrantes dc idéias hauridas nos positivislas franceses e, especialmentc, nos monistas aJemäcs. Data desses anos o scu germanismo täo cxclusivista que o leva a redigir alguns artigos cm alemäo... Em 1882, vence concurso para lente da Faculdade de Dircito do Recife: cpisódio central de uma luta entrc o escolasticismo de uma práxis juridica imóvel e as conenles laicizantes que Tobias se propunha encainar. Foi o grande animador intelectual da época, mestre da chamada "Escola do Recife", segundo seus discípulos Silvio Romero, Graca Aranha e Artur Orlando. Deixou: Estudos de Filosofia c Crítica, 1875; Estudos Alemäes, 1881; Questöes Vigentes de Filosofia e Direito, 1888; Vários Escritos, 1900. As Obras Completas foram publicadas no Rio, cm 1926. Con-sultar: Graga Aranha, O Meu Proprio Romance, S. Paulo, 1931; Silvio Romero, História da Literatura lirasileira, 3a ed., Rio, 1943, vol. IV; Hermes Lima, Tobias Barreto, Säo Paulo, Cia. Ed. Nacionál, 1943; Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasüeira, cit., "A reaeäo anti-romäntica: a crítica", pp. 358-380. í 165 nossa organizagäo militar e o acanhado de nossos progressos sociais, desvcndando repugnantemente a chaga da escravidäo; e entäo a questäo dos calivos se agita e logo após é seguida a questäo religiosa; tudo se poe em discussäo: o aparelho soffstico das eleicöes, o sistema de arrocho das instituigöes policiais e da magistratura e inú meros problemas econömicos: o partido liberal, expelido grosseiramente do poder, comove-se desusadamentc e langa aos quatro vcntos urn programa de extrema dc mocracia, quasc um vcrdadeiro socialismo; o partido republicano se organiza e inicia uma propaganda tenaz que nada faria parar. Na polftica é um mundo inteiro que vacila. Nas rcgiöcs do pensamcnto tcórico, o travamcnto da peleja foi ainda mais formidável, porquc o atraso era horroroso. Um bando de idéias novas esvoacou sobrc nós de lodos os pontos do horizonte. Hoje, depois de mais de trinta anos; hoje que säo clas concntcs c andam por todas as cabccas, nao torn mais o sabor de novidadc, ncm lcmbram mais as fcridas que, para as cspalhar, sofrcmos os combatentes do grande dccCnio: Positivismo, cvolucionismo, darwinismo, crftica religiosa, natura-lismo, cicnlificismo na pocsia c no romance, folclore, novos proccssos de crítica e de história lilerária, uansformacäo da intuigäo do Dircito e da polftica, tudo entäo se agitou c o brado dc alarma pjutiu da Eseola dc Recife Descontada a čnfasc dc Silvio, cxplicávcl nas mcmórias dc um lutador que sc crc injuslicado, o lex to adere bem äs mudancas do tempo. Apcnas de-veriamos acrcsccr que "o movimcnlo subterränco que vinha dc longc" se ori-ginava nas conlradicöes da sociedade brasilcira do II Império, que os compro-missos do periodo romäntico já näo bastavam para alenuar. Pclos mcados do sčculo, desapareceram cm todo o Ocidenlc os suportes do romantismo passa-dista: näo tinham mais funcäo social a velha nobreza c a camada do clero resistente ä nacionál izacäo e ao laicismo que a Rcvolugäo Franccsa fizera triun-far na sua primeira fase. Por outro lado a agressividade romäntico-liberal das classes médias contra o mundo dos alios ncgócios se canalizou para o socialismo. Assim, dos anos dc 60 cm diantc, só haverá duas vertentes ideológicas relevantes na Europa culla: o pensamcnto burgues, conservador (outrora, radical, cm face da tradicäo arislocrálica), c o pensamcnto das classes médias (ou, cm raros casos de conscicncia de classe, dos prolctários), que assume os vários matizcs dc liberalismu republicano c dc socialismo. Mas a defasagem cm que viviam certas areas de cxlragäo colonial, como o Brasil c loda a America Latina, cardites de indústria c de grandes conceniracöcs urbanas, move as magras classes médias locais a rcivindicates já triunťantcs c asscntcs na Europa c nos Estados Unidos; leva, cm ultima análise, ä luta demoerática. Esse é o sentido da maré polftica a que alude Silvio Romero; esse, o espírito das campanhas abolicionista c rcpublicana que tomam corpo a parlir de 1870. (133) Silvio Romero, "Explicates Indispensávcis", prefácio aos Vários Escritos, de Tobias Barreto, Ed. do Estado de Scrgipe, 1926, pp. XXIII-XXIV. Rcestudci os processos c o sentido dessa ruplura ideológica em "A escravidäo entre dois libeiiüismos" (em Dialéíica da Colonizacao, cit.). 166 A ponte literária cntrc o ultimo Romantismo (já em Castro Alves e em Soihsändrade marcadamente aberto para o progresso e a liberdade) e a cosmo-visáo realista será lancada, como a seu tempo se vera, pela "poesia científica" ľ libertária de Silvio Romero, Carvalho Jr., Fontoura Xavier, Valentim Maga-lliács e menores. De qualquer forma, só o estudo atento dos processos sociais dťscncadeados nesse periodo fará ver as raizes nacionais da nova literatura, iiiízcs que nem sempře se idcntificam com a massa de influéncias curopéias eniáo sofridas (134). No piano da invencáo ficcional e poética, o primeiro reflexo sensível é a descida de tom no modo de o escritor relacionar-sc com a materia de sua obra. O liame que se estabclecia cntrc o autor romantico c o mundo cstava afetado de uma série de mitos idealizantes: a natureza-mác, a natureza-refúgio, o amor-fnialidade, a mulher-diva, o hcrói-promctcu, sem falar na aura que cingia alguns lílolos como a "Nacäo", a "Pátria", a "Tradicäo", etc. O romäntico náo tcme ns demasias do sentimenlo ncm os riscos da cnfasc patriótica; ncm falscia de pmpósito a realidadc, como anacronicamcntc se poderia hoje infcrir: é a sua lor ma mental que cstá saturada de projccôes e idcntificacôcs violentas, rcsul-laiido-lhe natural a mitizacáo dos lemas que cscolhc. Ora, é esse complcxo ideo-afetivo que vai cedendo a um processo de erítica na literatúra dita "realista". Há um esforco, por parte do eseritor anti-romäntico, de acercar-se im-pcssoalmente dos objelos, das pcssoas. E urna sede de objelividadc que res-ponde aos mélodos cicntíiicos cada vez mais exalos nas ultimas décadas do ».ŕculo. Os mestres dessa objelividadc seriam, ainda urna vez, os franceses: Flaubert, Maupassant, Zola c Anatolc, na ficcäo; os parnasianos, na poesia; Comic, Taine e Renan, no pensamento c na História. Em segundo piano, os Portugueses, Eca de Qucirós, Ramalho Ortigäo e Antcro de Qucntal, que travavam cm C'nimbra urna luta paralela no sentido de abalar velhas estruturas mentais. No l'iiso excepcional de Machado de Assis, ibi a busca de um vcio humoríslico i|ue pešou sobre a sua eleicäo dc leituras inglesas. O distanciamento do fulcro subjetivo (que já se afirmava na frase dc Théo-philc Gauticr: "sou um hörnern para quem o mundo exterior cxislc") é a norma pioposta ao eseritor realista. A aiitude de aeeitaeäo da existencia tal qual ela (134) Da vasta bibliografia a respeito, dcstaque-se: Gilberto Freyrc, Sobrados e Mu-mntbos. Decadéncia do Patriarcado Rural e Desenvolvimcnto do Vrhano, 2* ed., 3 vols., Rio, José Olympio, 1951; Caio Prado Jr„ Evolucäo PolUica do Brasil, cit., "O Impčrio", pp. 77-87, c o substancioso "Roteiro para a historiografia do Segundo Rei-iuhIo", pp. 185-193. Para o aprofundamento do problcma sócio-polílico, cf. Oliveira Vlana, O Ocaso do Impéria, S. Paulo, Melhoramentos, 1925; Paula Beiguelman, For-HMcäo Política do Brasil: ľ Teória e Agäo no Pensamento Abolicionista, S. Paulo, Ploneira, 1967. 167 se dá aos sentidos desdobra-se, na cultura da época, em pianos divcrsos mas complementares: a) — no nível ideológico, isto é, na esfera de explicaclo do real, a certeza subjacente de um Fado irreversível cristaliza-se no determinisme* (da raca, do meio, do temperamente..); b) — no nível estético, em que o proprio alo de eserever é o reconheci-mento implícito de uma faixa de liberdade, resta ao eseritor a religiäo da forma, a arte pela arte, que daria afinal um sentido e um valor ä sua existencia cerceada por todos os lados. O supremo cuidado estilístico, a vontadc de criar um objeto novo, imperecível, imune äs pressöes e aos atritos que desfazem o tecido da história humana, originam-sc e nutrem-sc do mesmo fundo radicalmente pes-simisla que subjaz ä ideológia do determinismo. E o que já fora verdade para os altíssimos prosadores Schopenhauer c Leopardi, näo o será menos para os cstilistas consumados da segunda metade do século XIX, Flaubert c Maupassant, Leconlc de Lislc c Machado de Assis. O Rcalismo se tingirá de naturalismů, no romance c no conto, sempře que fizer personagens e enrcdos submeterem-sc ao destino ccgo das "lei naturais" que a ciôncia da época julgava tcr codificado; ou se dirá parnasiano, na poesia, ä mcdida que se csgotar no lavor do verso tecnicamentc perfcito. Tcntando abracar de um só golpe a literatura realista-naturalista-parnasiana, é uma grande mancha pardacenta que se alonga aos nossos olhos: cinza como o cotidiano do hörnern burgués, cinza como a eterna repeti^äo dos mccanismos de seu comportamento; cinza como a vida das cidades que já entäo sc unificava em todo o Ocidente. E é a moral cinzenta do fatalismo que se deštila na prosa de Aluísio Azevedo, de Raul Pompéia, de Adolfo Camiiiha, ou na poesia de Rai-mundo Correia. E, apesar das meias-tintas com que a soube temperar o genio de Machado, ela näo será nos seus romances maduros menos opressora c inapclável. A coexistôncia de um clima de idéias liberals c uma arte existencialmente negativa pode parccer um paradoxo, ou, o que seria mortificante, um cnro de cnťoque do hisloriador. Mas o contrastc está apenas na superfreie das palavras: a raiz comum dessas dirccôes é a posicäo incömoda do intelectual em face da socicdade tal como csta se veio configurando a partirda Revolucäo Industrial. Agredindo na vida publica o status quo, ele 6 ainda um rebelde e um protes-latário, como o foram, entre nós, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha c o Machado jovem; mas, introjetando-o nos meandros de sua cons-ciencia, rcificando-o como lei natural e como selefäo dos mais fortes, ele acaba depositário de desencantos e, o mais das vezeš, conformista. O apelo ao deslino, recorrentc cm grandes naturalistas europeus como Giovanni Vcrga e Thomas Hardy, deve ser visto ä luz dessa dialéticadc revolta e impotencia a que tantas vezeš se tem rcduzido a condicäo do escritor no mundo contem-poranco. 168 A FICgAO C) Realismo fictional aprofunda a narracäo de costumes contemporäneos da primeira metade do século XIX (Stendhal, Balzac, Dickens, Hugo) e de lodo o século XVIII (Lesage, Diderot, Defoe, Fielding, Jane Austen...). Nas ohras desses grandes criadores do romance moderno já se exibiam poderosos dons de observacäo e de análisc, razäo pela qual näo sc deve cavar um fosso citlrc elas e as de Flaubert, Maupassant, Verga, Thackeray e Machado. Entre-|mlo, é sempře válido dizer que as vicissitudes que ponluaram a ascensäo da burguesia durante o século XIX foram rasgando os véus idcalizantcs que ainda envolviam a fiegäo romäntica. Desnudam-sc as mazclas da vida publica e os fontrastes da vida íntima; c buscam-sc para ambas causas naturais {raca, clima, temperamento) ou culturais {meio, educacäo) que lhcs reduzem de muito a area de liberdade. O eseritor realista lomará a sério as suas personagens e se sentirá no dever de dcscobrir-lhcs a verdade, no sentido positivisla de dissecar os móveis do scu comportamcnlo. As afirmacöcs dos realistas franecses, a propósito, säo cxemplarcs. Flaubert: "Esforco-mc por cnlrar no cspartilho c seguir uma linha rela geo-inétrica: nenhum lirismo, nada de rcflcxöcs, ausente a personalidadc do autor" (Correspondencia, 1 -2-1852). Jules c Edmond de Goncourt: "Hoje, quando o Romance crcscc c sc amplia, quando cle comeca a ser a grande forma séria, apaixonada, viva, do cstudo lilerário c da pesquisa social, quando ele se torna, pcla análise c pela sondagem psicológica, a História moral conlcmporänca; hoje, quando o romance impôs a si mesmo os csludos c os deveres da cicncia, cle pode rcivindicar-lhes as liberdades c a franqueza" (Prefácio a Germine Lacerteitx, 1864). Emile Zola: "Em Therese Raquin, cu quis estudar temperamentos c näo caracteres. Aí cslá o livro lodo. Escolhi personagens soberanamente dominadas pelos nervos c pelo sanguc, desprovidas de li vre-arbitr io, arrastadas a cada ato de sua vida pelas fatalidades da propria carnc. (...). Comcga-sc a comprccndcr (espero-o) que o mcu objetivo foi acima de ludo um objetivo cicntífico. Criadas minhas duas personagens, Therese c Laurent, dei-me com prazer a formulár e a rcsolvcr ccrlos problcmas; assim, tcntci cxplicar a estranha uniäo que se pode produzir cntrc dois temperamentos diferentes c mostrci as pcrturbacöes profundas de uma natureza sangíiínca cm conlato com uma naturcza nervosa. (...) Fiz simplcsmente em dois corpos vivos o trabalho analitico que os cirur-giöes fazem cm cadáveres" (Prefácio ä 2" cd. de Therese Raquin, 1868). Enl'im, Guy de Maupassant: "... sc o romancista de ontem cscolhia e nar-rava as crises da vida, os estados agudos da alma c do coragäo, o romancista de hoje escreve a história do coragäo, da alma c da inteligencia no estado normal. Para produzir o cfeito que ele perseguc, isto é, a emocao da simples realidadc, c para extrair o ensinamento artíslico que dela deseja tirar, isto é, 169 a revelac,äo do que é verdadeiramente o homem contemporänco diantc dc scus olhos, ele deverá empregar somente fatos de uma verdade irrecusável e cons taňte" (Prefácio de Pierre et Jean, 1887). Estreitando o horizonte das personagens e da sua interacäo nos limites dt} uma factualidade que a ciéncia rcduz äs suas categorias, o romancista acaba recorrcndo com alta freqiiencia ao lipo e ä situagäo típica: ambos, enquanto sfntese do normal e do inteligívcl, prcslam-sc docilmente a compor o romanet-que sc deseja imune a tentacöcs da fantasia. E de fato, a configuraeäo dó tfpico foi uma conquista do Realismo, um progresso da consciéncia estética em face do arbftrio a que o subjetivismo levava o escritor romäntico a quern nada impedia de engendrar criaturas cxolicas c enredos invcrossimeis. Um dos crfticos mais sagazes do seculo XIX, Francesco Dc Sanctis, em fasc madura dc leorizacäo literária, já proximo do Realismo, concedeu ä tipi-cidadc um lugar dc honra no sistema das artes. Nas suas licôes sobre Dantc, proferidas cm Zuriquc em 1858, Dc Sanctis insistia no grau cslético mais alto que o tipo assume se comparado com a velha alegória ou com a personificaeäo, proccssos em que a figura do hörnern šumia por trás da generalidade. E frisava: O gônero näo deve encerrar-se majestosamente em si mesmo, como um deus ocioso; deve transformar-se, tornar-se tipo. No gônero demora a eondicäo da poesia, no tipo cstá o seu bergo, o primeiro surto da vida. Forma típica č, por exemplo, o Tasso de Goethe e a Lia e a Raquel de Dante. Raqucl, que sc assenta o dia inteiro e näo desvia jamais os olhos de Deus, é mais do que um gčnero, menos que um indivíduo, é um tipo (,..). Quando o poeta chega ao tipo, já ultrapassou a forma didática, a alegória e a personificagäo, achando-sc já no mundo visível, eondicäo primeira da poesia (135). Mas a argúcia do pensador italiano vai mais longc; porquc afirma a fungäo mediadora do tipo, näo o dá como etapa final, que č a pinlura do indivíduo concreto: näo mais o "monslro", parto do caos, mas o caráter pessoal (inte-ligível enquanto tipo, mas intuído cstcticamentc como hörnern singular, fruidor da sua propria existencia). Pois, "na pessoa típica ainda domina a idčia sob a aparôncia de indivíduo". Dc Sanctis aportara ao Realismo depois dc ter incorporado a dialética hegeliana de abstrato/conereto, universal/singular; e graces a esse pensa-menlo, que nunca súpera sem conservar, pôde entender o papcl c os limites do tipo e da situaeäo típica sem cnrijccé-los no quadro da eiencia positivista. O mesmo ocorrc, cm nosso tempo, com a estética realista dc Gcorgy Lukács, que entende o típico na sua relagäo entre a totalidade cm que se insere o (135) Francesco De Sanctis, Leiioni e Saggi su Dante, Torino, Einaudi, 1955, pp. 588-589. 170 •ki filor c as figuras singulares que inventa e articula na elaboragäo da obra Iii tioiial (136). A procura do tfpico leva, äs vezes, o romancista ao caso e, daf, ao pato-lin'ifo. Haverä um resfduo romäntico nesse vezo de perscrutar o excepcional, ii U-io, o grotesco, e 6 mesmo lugar-comum apontar o romantismo latente em .'ola, que sobreviveria nas cruezas intencionais do Surrealismo e do Expression ismo. Na verdade, esse comprazimento em descrevcr situagöes, häbitos e P36) Georgy Lukács, Introducäo a uma Estéiica Marxista. Sobre a Categoria da ťiirticularidade, trad, de Carlos Nelson Coutinho e Lcandro Kondcr, Rio, Civ. Brasileira, I96K; especialmente, "O Típico: problemas do conteúdo", pp. 260-271, c "O Típico: |imblemas da forma", pp. 271-282. Lukács define o típico "encarnacäo concretamente miistica da particularidade" (p. 261), e o distingue do "médio" em termos de tensäo: "Apresenta-se aqui a escolha: o modelu para a caraclerizacäo arlística deve ser a cstrutura normal do tfpico ou a do médh'} O princípio desta escolha, implica, em rcsumo, o •u'guinte: se a forma da caraclcri*/.acäo parte da cxplicacäo ao maximo grau das deter-iiunacôes contradilórias (como no típico), ou se estas eontradicôcs se debilitám entrc si, neutralizando-sc reciprocamente (como no mčdio). Aqui näo mais se trata de saber liinplesmente se uma dada figura é média ou lípica, no que diz respeilo ao conteúdo de seu caráter, mas uata-se, ao conuário, do metodo artístico (acima indicado) da ca-i iictcrizacäo; cle possibilita — isto ocon'e frequentcmenle — que artistas de valor elevem um homem medio ä altura do típico, colocando-o cm sitiiacĎcs nas quais a conirariedadc das suas delcrminacôes se manifesta näo corno 'equilfbrio' medio, mas como lula dos contrários, c apenas a vacuidadc desta lula, aqueda no torpor, caraclcriza definitivamentc u figura como figura média. É igualmcntc possível — isto ocorre tambčm muito fre-qiienlemente, sobretudo na arte mais recente — que a rcpresenlacäo do que é em si típico scja rebaixada ao nível estriitural do que č medio, o que acontece quando a con-liaditoriedade das delcrminacôes näo é abandonada ao scu livrc curso c os resultados síio já apri o ris tic amentc cstabclecidos. No primeiro caso, vemos como a vctdadc da lorma, que desenvolve o seu conteúdo medio dc acordo com as proporcdes da vida real, engendra movimento c vitalidadc no que é cm si rigido; no segundo caso, vemos que o modo da rcalizacäo formal na representaväo é muilo mais pobre do que a realidade einpirica imediata" (pp. 273-74). As dislincňes acima abrcm caminho para a inlcligôncia do valor, humane e estético, que se potle alribuir äs criacôes do romimcc, em particular do romance realista. Assim, ccrtas personagens centrais de obra machadiana, como Rubiäo e Capitu, embora possam, grosso modo, captar-sc nas redes gerais dos "tipos" (o provinciano desfrulável e im-prcssionávcl; a mocinha pobre e ambiciosa), näo poderian) jamais apoucar-se ou enri-jecer-se como figuras "médias", montadas sob esquemas a priori', o que se dá, no entanto, com tiuitas "personagens" da ficcäo naturalista: os protagonistas de A Came, de Julio Ribeiro; de O Missionário, de lnglés dc Sousa; de O llomem e O Coruja, de Aluísio Azevedo... 171 seres anômalos tem um lastro na cultura ocidental que transccnde as divisöes da história literária. Trata-se de um fenômeno que só se compreende ä luz de tensôes mais gerais entre o inconsciente e o consciente no quadro da nossa civilizacäo desde a ruptúra que a Idade Moderna operou com modos de pensar mágicos ou sacros do Medievo europeu. Seja como for, a repulsa misturada de fascínio que as culturas do Ocidente, a partir da Renascenca, tém experi-mentado pelo anômalo näo produziu sempře os mesmos frutos. O escritor ro-mäntico cieva a fealdade ä altura da bcleza cxcepcional (Victor Hugo); o naturalista julga "interessante" o palológico, porque prova a dependéncia do horném cm rclagäo ä fatalidade das leis naturais. Mais uma vez, a regra de ouro é a atencao ao contexto, que impede aqui de nos perdermos na sedugäo anti-histórica dos arquétipos, A mentě cientificista também é responsável pelo csvaziar-sc do éxtase que a paisagem suscitava nos eseritores romänticos. O que se entende pela preferencia dada agora aos ambientes urbanos e, cm nível mais profundo, pela näo-identiťicacao do escritor realista com aquela vida c aquela nátureza transfor-madas pelo Positivismo cm complexos de norm as c falos indiferentes ä alma humana. Quem näo lembrará a atitude limite de Machado de Assis, dando ä natureza um roslo de esfinge a perseguir o pobre Brás Cubas no scu delírio? Em termos de construcao, houvc dcscarnamenlo do processo expressivo, cortando-sc as demasias romanescas de um Dickens e de um Balzac e consi-derando-sc ponto de honra näo intervir com a forca dos próprios afetos na mimese do real (a poética da impessoalidade). Isso näo significa que o autor sc ausentassc, como queria polcmicamcntc Flaubert, ou que de algum modo deixasse de projetar-se na elaboracäo da obra. O modo de formar, diz Umberto Eco, rcvela o grau de empenho do artista cm face da realidade (137): a estru-turaeäo "impessoal" do romance moslra, como já vimos, os scnlimcnlos amar-gos c, via de regra, certo fatalismo, que pesavam sobre o espřrito de um Maupassant ou de nosso Machado. A tendencia de tudo centrar na fatura indieava o retrair-sc da concepcäo de realismo ä esfera da formatividade mimélica: o que era oulra forma de dízer a impotencia a que es lav am relegados como ho-mens dianie do todo social. E nada melhor para explicar ou justificar cssa impotencia do que o férrco delcrminismo, filosofia oficial desses anos cm todo o Ocidente. O delcrminismo rcflcte-se na perspectiva em que se movem os narradores ao trabalhar as suas personagens. A pretensa neutralidade näo chega ao ponto de ocultar o í a to dc que o autor carrega sempre de tons sombrios o destino das suas criaturas. Alente-sc, nos romances desse periodo, para a galéria de (137) CT. na cdicäo brasilcira dc Obra Aberta, S. Paulo, Ed. Perspectiva, 1968, o ensaio "Do modo de formar como engajamento para com a realidade", pp. 227-277. 172 m irs (listorcidos ou acachapados pelo Fatum: o mulato Raimundo, a negra n. ilolcza, Pombinha, o "Coruja", de Aluísio Azevedo; Luzia-Homem, de Moiningos Olimpio; Sergio, de Raul Pompéia; os protagonistas de A Nor-nmtlsta e de O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha; Padre Antonio, de Ingles •Jí Sousa... Nclcs espia-se o avesso da tela romäntica: Maccdo e Alencar faziam pas- ■ u as suas donzelas nas matas da Tijuca ou nos bailes da Corte; Aluísio näo •m das casas de pensäo e dos corticos. O scrtanejo altivo de Alencar näo sofria ilns misérias que nos dcscrevem A Fome, de Rodolfo Teófilo, e Luzia-Hörnern, Cli l)()rningos Olimpio. Os costumes regionais, täo castos cm Taunay e em Irtvora, tornar-se-äo licenciosos na sclva amazônica, a ponto de transviar o iiiissionário de Ingles de Sousa. A adolcsccncia, fagueira c pura na pena de Muccdo, conhecerá a trislcza do vício prccocc no Bom Crioulo, de Caminha, ■ na Carne, de Julio Ribciro, sem conlar as angústias sexuais da puberdade que latejam no Ateneu, de Raul Pompéia. Mas a suma, depurada c sóbria, do piccário em que sc resume toda a existencia sc cspclharia no romance c no i onto de Machado de Assis. Assim, do Romantismo ao Rcalismo, houvc uma passagem do vago ao iipico, do idcalizantc ao factual. Quanto ä composigäo, os narradorcs realist as brasilciros também procuraram alcancar maior cocrcncia no esqucma ilns cpisódios, que passaram a scr rcgidos näo mais por aqucla sarabanda 4; Silvio Romero, Machado de Assis. Estudo Comparative) de Literatura Brasileira, Hl», Laemmert, 1897; Labicno (Lafayette Rodrigucs Percira), Vindiciae. O Sr. Silvio Romero, Crítico e Filosofa (escr. cm 1898), 3* ed., Rio, Jose Olympio, 1940; Jose Vc-iissimo, Estudos de Literatura Brasileira, 6" sčric, Rio, Garnier, 1907; Oliveira Lima, Machado de Assis et son oeuvre litléraire", no volume do mesnio nome, com prefácio dr Anatole France c um estudo dc Victor Orban, saido cm Paris, pela Ed. Michaud, iin 1909; Mario dc Alcncar, Alguns Escritos, Rio, Gamier, 1910; Alcides Maya, Ma-ihado de Assis. Algumas Notas sobre o Humor, Rio, Jacinto Silva, 1912; 2* ed., pela Academia Brasileira de Lctras, 1942; Josč Vcríssimo, "Machado de Assis", na llistória da Literatura Brasileira, Rio, Francisco Alves, 1916; Alfredo Pujol, Machado de Assis, |. Paulo, Tipogr. Brasil, 1917; Graca Aranha, Machado de Assis e Joaquim Nabuco. f 'omentários e Notas á Corresponděncia entre Estes Dois Escritores, S. Paulo, Monteiro I obato, 1923; Agripino Gricco, Evolucäo da Prosa Brasileira, Rio, Ariel, 1933; Mario i 'asassanta, Machado de Assis e o Tédio á Controvérsia, Belo Horizonte, Os Amigos do Livro, 1934; Viana Moog, líeróis da Decadéncia, Rio, Guíuiabara, 1934 (2a ed., Porto Alegrc, Globo, 1939); Augusto Meyer, Machado de Assis, Porto Alegre, Globo, l(J35 (2a ed., Rio, Simöes, 1956); Lucia Miguel-Pcreira, Machado de Assis. Estudo Cri-lico e Biogrdfico, S. Paulo,. Cia. Ed. Nacionál, 1936; 5- ed., Rio, Josč Olympio, 1955; Peregrino Jr., Doenca e Constituigäo de Machado de Assis, Rio, Josč Olympio, 1938; Olivio Montenegro, O Romance Brasileira, Rio, J. Olympio, 1938; Revista do Brasil, Numero dedicado a Machado de Assis, junho de 1939; Astrojildo Percha, Interpretuješ, Rio, Casa do Estudanlc do Brasil, 1944; A Cranio Coutinho, A Filosoßa de Machado de Assis, Rio, Vecchi, 1940; Mario de Andrade, Aspectos da Literatura Brasileira, Rio, Americ-Edil., s.d.; Sergio Buarque dc Holanda, Cobra de Vidro, S. Paulo, Mai tins, 1944; Augusto Meyer, Ä Sombra da Estante, Rio, Josč Olympio, 1947; Barreto Filho, Intro-(hiQäo a Machado de Assis, Rio, Agir, 1947; Bezerra dc Freitas, Forma e Expressäo no Romance Brasileiro, Rio, Pongeui, 1947; Eugenie Gomes, Espel ho contra Espelho, S. Paulo, IpC, 1949; Lucia Miguel-Pereira, Prosa de Ficcäo, de 1870 a 1920, Rio, Josč Olympio, 1950; Eugßnio Gomes, Praia de Casa, Rio, A Noite, 1953; Raimundo Ma-galhäes Jr., Machado de Assis Desconhecido, Rio, Civilizacäo Brasileira, 1955; Brito ßroca, Machado de Assis e a Política e Outros Estudos, Rio, Simöes, 1957; Augusto Meyer, Machado de Assis, 1935-1958, Rio, Livraiiü Säo Josč, 1958; Wilton Cardoso, Tempo e Memoria em Machado de Assis, Belo Horizonte, Eslab. Gráf. Sta. Maria, 1958; Eugönio Gomes, Machado de Assis, Rio, Livr. S. Josč, 1958; Revista do Livro, 175 O scu eguilíbrio näo era o goetheano — dos forles c dos fclizes, destinados a compor hinos de gloria ä natureza e ao tempo; mas o dos homens que, sen siveis ä mesquinhez humana e ä sortě precária do individuo, aceitam por fini uma e outra como heranca inalienável, e fazem delas alimento de sua reflexäo cotidiana. O Machado que se indignara, quando jovem cronista liberal, ante os males de uma política obsolcla (139), foi mudando nos anos de maturidade o sentido do combatc, e acabou abracando como fado eterno dos seres o convívio entrc egoísmos, atč assumir arcs de sábio eslóico na pele do Conselheiro Aires. Quer dizer: vcio-lhe sempře do espírilo atilado um näo ao convencional, um näo que o tempo íoi sombrcando de reservas, de mas, de talvez, embora pcrmancccssc alé o lim como espinha dorsal de sua relagäo com a existéncia. A genese dessa posicäo, que vela as ncgacöcs radicais com a linguagem da ambigiiidadc, intcrcssa lanlo ao sociólogo ao pesquisar os problcmas de classe do mulato pobrc que venecu a dur as penas, como ao psicólogo para quern a gaguez, a epilepsia c a conscquenlc timidcz do cscritor säo falorcs que mar-caram primciro o rcbelde, depois o funcionário e o academico de notória com- Número dedicado a Machado de Assis, Rio, setembro de 1958; R. Magalhäcs Jr., Ao Hedor de Machado de Assis, Rio, Civ. Bras., 1958; Direc Cortes Riedel, O Tempo no Romance Machadiano, Rio, Livr. S. Jose, 1959, Agripino Griceo, Machado de Assis, Rio, Jose Olympio, 1959; Astrojildo Pereira, Machado de Assis, Rio, Livraria S. Jose, 1959; Miécio Tali, O Mundo de Machado de Assis, Rio, Secrelaria de Edueacäo e Cul-tura, 1961; Antonio Cändido, Vários Escritos, S. Paulo, Duas Cidadcs, 1971); Jcan-Michel Massa, A Juveniude de M. de Assis, Rio, Civ. Brasilcira, 1971; Raimundo Faoro, M. A., a pirämide e o trapezia, S. Paulo, C. E. Nacional, 1974; Roberto Schwarz, Ao ven-cedor as batatas, S. Paulo, Duas Cidadcs, 1977; Silviano Santiago, Urna Literatúra nos Trópicos, Perspectiva, 1978; R. Magalhäcs Jr., Vida e Obra de MA, 4 vols., Rio, Civ. Brasileira, 1981; Alfredo Bosi, "A Máscara c a Fcnda", em Vários Aulorcs, Machado de Assis, Átiea, 1982; c "Urna figúra machadiana", cm Céu, Inferno, Átiea, 1988; John Gledson, Machado de Assis: Ficcäo e História, Rio, Paz e Terra, 1986; Roberto Schwarz, Um Mestre na Periféria do Capitalismo, Duas Cidadcs, 1990. Bibliografias: Josč Galante tie Sousa, Bibliografia de Machado de Assis, Rio, Ins-tiluto Nacional do Livro, 1955; Fontes para o Estudo de Machado de Assis, Rio, I.N.L., 1958; Jcan-Michel Massa, Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis, 1957-58, Rio, Livraria Säo Josč, 1965. Este ultimo traballio é o IV de urna série que J.-M. Massa pretende publiear abrangendo toda a bibliografia machadina. (139) "Dc um ato do nosso Governo só a China poderá tirar Iifäo. Näo é desprezo pelo que č nosso, näo é desdém pelo mcu pais. O pais real, esse é bom, revcla os melhorcs instintos; mas o pais oficial, esse č caricato c burlesco. A satira de Swií'l nas suas engcnhosas viagens cabe-nos pcrfeilamente. No que respeita ä política nada temos a invejar ao rcino dc Lilipute" (Diário do Rio de Janeiro, 29-12-1861). 176 puslura. Creio que nada se ganha omitindo, por excesso de purismo estético, us lorgas objetivas que compuseram a situacäo de Machado de Assis: elas valem como o pressuposto de toda análise que se venha a realizar do tecido ill- sua obra. Mas, em ultima inštancia, foi a maneira pessoal de Machado-artista icsponder a essa situacäo de base, dada, que explica muito do que já se disse u rcspeito do humor, do micro-realismo, das ambivalencias, da oculta sensua-lidade, das reiteragôes, do ressaibo vernaculizante, da fatura bizarra de alguns hechos seus e, ate mesmo, daquclcs "sestros pucris" que lhe descobrira, irri-ijido, Lima Barreto ao negar que o tivcra jamais por mestre de ironia. E também a visäo da obra machadiana em dois momentos, cujo divisor de águas seriam as Memórias Póstumas de Brás Cubas, compreende-se melhor ic atribuída a urna reestruturagäo original da existencia opcrada pelo homem que, se havia muito pcrdera as ilusôes, ainda näo encontrara a forma ficcional dc desnudar as próprias criaturas, isto 6, ainda näo aprendera o manejo do dislanciamento. Quando o romancista assumiu, naquclc livro capital, o foco uarrativo, na verdadc passou ao defunto-autor Machado-Brás Cubas delegacäo para exibir, com o despejo dos que já nada mais tcmcm, as pegas de cinismo r indiferenga com que via montada a história dos homens. A revolugäo dessa obra, que parccc cavar um fosso cntre dois mundos, foi urna revolugäo ideo-lógica e formal: aprofundando o desprezo äs idealizagôes romänticas e ferindo no černe o mito do narrador oniscienie, que tudo vé c tudo julga, dcixou emergir a consciencia nua do indivíduo, fraco c incocrcnlc. O que restou foram as memórias dc um homem igual a tantos outros, o cauto e desfrutador Brás Cubas. Depois das felizes obscrvagôes dc Lucia Miguel-Percira (14<)), já näo se pode ignorar o vinco "machadiano" das obras ditas romänticas ou da primeira lase: em oposigao aos ficcionistas que faziam a apologia da paixäo amorosa como único móvel dc condula, o autor de A Mäo e a Luva c dc laid Garcia, transvestindo o problema pcssoal cm personagens femininas, defende a ambi-gäo de mudar dc classe e a proeura dc um novo status, mesmo ä custa de sacrifícios no piano afetivo. A ética ainda idealista que preside a esses enredos näo esbalc, porém, a enfase posta em situagoes onde logra cxito o cálculo, "a Iria eleigäo do cspfrito", como diz Guiomar cm A Mäo e a Luva. É também vcrdade que os romances iniciais nos parcccm fracos mesmo para o nívcl de consciencia erítica do autor na época dc rcdigi-los. É de 1878 a cerrada rcscnha do Primo Basílio dc Ega, que nos dá um Machado senhor de critérios seguros para a apreciagäo da cocrcncia moral de personagens que cle ainda näo soubcra plasmar. Mas livros como A Mäo e a Luva c laiá Garcia tiveram um sfgnificado preciso na história do romance brasilciro: alargaram a perspectiva do melhor Alencar urbano no scnlido dc cncareccr o relevo do (14íí) Em Machado de Assis, cit., cap. XI. 177 papel social na formagäo do "eu", papel que vem a ser aqucla scgunda natureza. considerada em Iaiá Garcia "täo legítima c imperiosa como a outra". O roteiro de Machado após a experiéncia dos romances juvenis desenvol« veu cssa linha de análise das mascaras que o hörnern afivela ä consciéncia täo firmemcnte que acaba por idcntificar-se com elas. O salto qualitativo das Memórias Póstumas foi lastreado por alguns textos escrilos cntre 1878 e 1880, vcrdadeiro intróito ä prosa dcsmistificante do de-funto-autor: o anticonto "Um cäo de lata ao rabo", paródia e liquidacäo dos códigos "asmáticos c antilóticos" que sc pcrpctuavam com os Ultimos condores; o diálogo "Filosofia de um par de botas", cm que as classes c os ambientes do Rio imperial estäo vistos por baixo c cm tom de galhofa, pois säo velhas botas laneadas ä praia que contam as andancas dos antigos donos até serem rccolhidas por um mendigo; o "Elogio da Vaidadc", feilo por cla mesma, embriäo da psicologia explorada nas Memórias, alóm de conjunto de ľinos retratos morais ä La Bruycrc. Enfim, a passagem de urna fasc a outra entende-se ainda melhor quando lidos alguns poemas das Ocidentais, já parnasianos pelo sóbrio do tom e pela preferencia dada äs formas fixas: cm "Urna Crialura", cm "Mundo Interior" c no célebre "Círculo Vicioso", urna linguagem composta c fatigada serve ä ex-prcssäo de um pessimismo cósmico que toca Schopenhauer c Leopardí pelo retorno ao mito da Natureza madrasta (imagem central no "Dclfrio" dc Brás Cubas): Sei de uma crialura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas Com a sofreguidäo da fomc insaciável. Na árvore que rebenta o scu primciro gomo Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Dcpois a Hor, depois o suspirado porno Pois cssa eriatura está cm toda a obra: Crcsla o scio da flor c corrompe-lhe o fruto; e č desse dcsUnir que as suas forcas dobra. Arna de igual amor o poluto e o impoluto; Comcga c rccomeca uma pcrpčtua lida, E sorrindo obedecc ao divino estatuto. Tu dirás que č a Moric: eu direi que é a vida (Uma Criatura). Nos sonctos de "O Dcsfecho", a desesperanca vira um prometcísmo ás avessas: Prometeu sacudiu os bragos manietados E suplice pediu a etema compaixao, Ao ver o desfilar dos séculos que vžo Pausadamente, como um dobré de finados. 178 Uma invisivel mäo as cadeias dilui; Frio, inerte, ao abismo urn corpo morto rui: Acabara o sacrificio e acabara o hörnern. Enfim, a desforra do homem contra a Natureza e o gosto de destruir que «fla o inferno da condifäo humana säo os motivos dos melhores poemas das t h identais, "Suavi mari magno" e "A mosca azul"; e jä que foi preciso citar versos pouco felizcs, leiam-sc agora cstcs, mcrccidamcnlc antolögicos: Era uma mosca azul, asas de ouro c granada, Filha da China ou do Industäb, Que cnUc as folhas brotou de uma rosa encamada, Em ccrta noitc dc verao. E zumbia c voava, e voava c zumbia, Rcfulgindo ao clarab do sol E da lua — melhor do que rcfulgiria Urn brilhante do Grab-Mogol. Um polea que a viu, espantado e Iristonho, Urn polea lhe pergunlou: "Mosca, esse refulgir, que mais parccc um sonho, Dizc, quern foi que to ensinou?" Enliio ela, voando c revoando, disse: — "Eu sou a vida, cu sou a flor Das gracas, o padrab da ctcnia mcuinice, E mais a gltiria, e mais o amor." EntSo cle, estendendo a mab calosa e tosca, Afcita só a carpintejítr, Com um gesto pegou na fuíguranle mosca, Curi oso dc a examinar. Quis vfi-la, quis saber a causa do mistčrio. E fechando-a na mao, sorriu Dc contente, ao pensar quc ali tinha um império, E paia casa se pailiu. Alvorocado chega, examina, e parece Que se houvc nessa ocupagSo Miudamente, como,um homem que quisesse Dissecar a sua ilusSo. Dissecou-a, a tal ponto, e com lal artc, que ela, Rota, baca, nojenta, vil, Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhc aquela VisSo fantástica e sulil. 179 Hoje, quando ele af vai, de aloe e cardaniomo Na cabega, com ar taful, Dizem que ensandeceu, e que näo sabe como Perdeu a sua rnosca azul. Foi esse o espírito com que Machado se accrcou da matéria que iria plasmar nos romances e contos da maturidade: um permanente alerta para que nada de piegas, nada de cnfático, nada dc idcalizante se pusesse entre o eriador e as eriaturas. O manejo do distanciamento abre-se nas Memórias Póstumas que, pela riqueza de técnicas experimentadas, ficou sendo uma espécie de breviário das possibilidades narralivas do seu novo modo dc conhecer o mundo. Foi nesse livro surprcendente que Machado descobriu, antes de Pirandello e de Proust, que o estatuto da personagem na ficcäo näo depende, para sustentar-se, da sua fixidez psicológica, nem da sua convcrsäo cm tipo; e que o registro das sensacôes c dos estados de conscicncia mais díspares vcicula de modo exemplar algo que está aquém da persona: o contínuo da psique humana. Daí, a eslrutura informal e aberta dessa nova experiéncia narrativa, tecido de lem-brancas casuais,/fl/7 divers c cortes digressivos entre banais e cínicos da per-sonagem-autor, que näo transcende nunca a "filosofia" do bom senso burgués congelada pela condicäo irreversível de defunto. Urna conscqiléncia notável para o miolo idcológico do romance é que a unidadc, mascarada pela dispersäo dos atos e das palavras, ultrapassa os indivíduos e acaba fixando-sc cm níveis impessoais: a sociedade e asforgas do inconsciente. Deslocado, assim, o ponto dc vista, um velho terna como o triängulo amoroso já näo sc carregará do pathos romänlico que envoi via herói-heroína-o oulro, mas dcixará vir ä tona os mil c um interesses dc posicäo, prcstígio c dinheiro, dando a batuta ä libido c ä von tade dc poder que mais profundamcnlc regem os passos do homem em sociedade. Da história vulgar dc adultério de Brás Cubas-Virgínia-Lobo Neves ä tristc comédia dc cquívocos dc Rubiäo-Sofia-Palha (Quincas Borba), c desta ä tragédia pcrfcita dc Bcnlinho-Capitu-Escobar (D. Casmurro) só aparecem variantes dc urna só c mesma lei: näo há mais hcróis a cumprir missôcs ou a afirmar a propria vontade; há apenas destinos, destinos sem grandeza. Machado tevc mäo de artista bastante leve para näo se perder nos deter-minismos dc raca ou dc sanguc que presidiriam aos enredos c cstofariam as digrcssôcs dos naturalistas dc estreila observäncia. Bastava ao criador dc Dom Casmurro, como aos moral islas franceses e ingleses que elegeu como lei tura dc cabeceira, observar com atcncäo o amor-próprio dos homens c o arbítrio da fortuna para reconstruir na ťicc,äo os labirintos da realidade. Pois, sc a re-flexäo sc extraviasse pelas veredas da ciencia pedante do tempo, adeus aquele humor de Machado que joga apenas com os signos do cotidiano... Sem especular sobre o possŕvel alcance metafísico do humor c accitando, para hipótese dc trabalho, a definigäo que Ihe deu Pirandello, de "senlimento dos contrastes" (enquanto o cômico viria da simples pcrccpcäo destes), é pos- 180 i vel rastrear, a partir das Memórias Póstumas, um processo de inversáo pa- ■ .•ilislica dos códigos tradicionais que o Romantismo fizera circular durante ■ pi.isc um século. Quem diz de uma paixao de adolescente que "důrou 15 meses I l contos de réis"; ou do espanto dc um injusticado que "caiu das nuvens", ■ nitvindo em que é sempře melhor cair delas que dc um tercciro andar; ou itiuda, da fatuidade que "é a transpiracao luminosa do mérilo", está na verdade "l>« lando, no cora^áo de uma linguagcm feita dc lugares-comuns, uma ruptura . niremamente fecunda, pois, roída a casca dos hábitos cxpressivos, o que so-lnovčm é uma nova forma de dizer a relacao com o outro c consigo mcsmo. I dc fato, da pesquisa bem lograda das Memórias saírain duas obras-primas ■ |iu- deram a Machado dc Assis um rclcvo na história do romance á altura de ■cus mestres europeus, Quincas Borba c Dom Casmurro. Em Quincas Borba recupera-se a narracao cm tcrccira pcssoa para melhor nhjetivar o nascimento, a paixao c a mořte dc um provinciano ingcnuo. Rubiáo, hmlciro improvisado dc uma grande fortuna, cai nos lagos de um casal am-Imioso; a mulher, a ambígua Sofia, vendo-o rico e desfrulável, dá-lhe espe-i.incas, mas se abstém cautclosamcntc dc rcalizá-las ao pcrccbcr no apaixonado i< uc,os de crcscentc loucura. Em longos ziguezagues se vao delincando o dcslino ilo pobre Rubiáo c a vileza bem composla do mundo onde triunfam Sofia e u marido; e náo sci dc quadro mais fino da sociedade burguesa do Segundo Ueinado do que estc, composto a modo dc um mosaico dc atitudes e frases ilii dia-a-dia. Dcssc mundo 6 expulso com metódica dureza o louco, o pobrc, it diferentc. As úllimas páginas do romance, conlando o fim do nosso anti-herói ims ladeiras dc Barbaccna, trazem na sua simplicidadc patótica o selo do genio. Dom Casmurro faz voltar o estilo das memórias, quasc póstumas: "O mcu lun cvidente era alar as duas pontas da vida e restaurar na velhicc a adolcs-t encia, Pois, senhor, náo consegui rccompor o que foi ncm o que fui. Eu tudo, ,c o resto č igual, a fisionomia č diferentc. Sc mc faltasscm os outros, vá; um homem consola-sc mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mcsmo, c esta lacuna ó tudo" (Cap. II). Falta o adolescente Bcntinho que, trařdo pela mulher amada c pelo melhor amigo, virou Dom Casmurro. Na verdade, um mmance dc Machado náo se devc resumir: c como fazc-lo sc o que nelcs nnporta náo č o fato cm si, mas a constclacáo dc inlcncócs c dc ressonáncias i|iic o envolve? Ainda que Capitu náo houvesse cometido o adullčrio (c o mmance náo dá nenhuma prova decisiva), tudo nela era a possibilidadc do engano, desdc os olhos de ressaca oblíquos e dissimulados, que sc dcixavam eslar nos momcnlos dc raiva "com as pupilas vagas e surdas", alč ás mesmas ulčias que já cm menina sc faziam "hábcis, sinuosas, surdas, c alcangavam o fim proposlo, náo dc salto, mas aos saltinhos". O romance náo padece do nimo arrastado que cm Quincas Borba táo bem sc apegava ás idas e vindas ilc Rubiáo na sua lenla trajetória para a loucura c o abandono. A história de Uentinho c Capitu dispoc de narracao mais encorpada; e o gosto de marcar 181 as personagens secundárias, como o tipo superlativo do agrcgado Jose Dia.s, dá-lhe um ar de romance de costumes que näo destoa das referéncias precisii que nele se fazem ä atmosféra e aos padröes familiäres do Rio nos meado I do século. A atmosféra c os padröes continuaräo presentes nos Ultimos romances, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, cm que já se consumou o maneirismo d< um Machado clássico, igual a si mcsmo, cada vez mais propenso a dissolvci cm mcias-tintas e ironias paixäo c entusiasmo: a figura absolutamente macha diana do Consclheiro Aires, que unc os dois romances, remata em postum cslóica a série dos desenganados aberta por Brás Cubas: Eu, se fosse capaz de ódio — diz o Consclheiro — era assim que odiava; man eu näo odcio nada nem ninguém, — perdono a tutti, como na opera. E falando de uma mulher capaz de inspirar amor: "Näo pensei logo ein prosa, mas cm verso, c um verso juslamcnte de Shelley, que rclcra antes, em casa, tirádo de uma das suas estäncias de 1821: / can give not what men call love." Nem ódio nem amor. Le-se, em Esaú e Jacó, urna conlissäo de falalismo que explica a indiferenca professada nas frases acima: "näo sc lula contra o destino: o melhor é deixar que nos peguc pelos eabelos c nos arrastc até ond< qucira alcar-nos ou despenhar-nos." Menos do que "pessimismo" sislcmático, melhor seria ver como suma da filosofia machadiana um sentido agudo do relativo: nada valendo como abso luto, nada merece o empenho do ódio ou do amor. Para a antimetalísica do ceticismo, a moral da indiferenca. O itinerário das dúvidas cm Machado de Assis cstá mareado por alguns contos admiráveis, todos eseritos depois das Memórias: "O Alicnista", quasc novela pela sua longa scqücncia de sucessos, é um ponto de interrogaeäo acerca das frontftiras entre a normalidade c a loueura c resulta cm critica interna ao eientismo do século; "O Es pel ho" leva a corrosäo da suspeita ao ämago da pessoa, mostrando exemplarmcntc como o papel social e os seus sŕmbolos materials (uma farda de Alleres, por exemplo) valem tanto para o eu quanto a clássica tcoria da unidade da alma; "A Scrcníssima República", alegória política cm torno dos modos dc rcsolvcr ou de näo resolver o problcma da dištancia entre o Poder e o Povo; "O Segrcdo do Bonzo", apologia da ilusäo como único bem a que aspiram as gentes. E ha veria outros contos a citar, obras-pri-mas dc desenho psicológico ("Dona Benedita", "A Causa Sccreta", "Trio em Lá Mcnor") c dc sugestáo dc atmosferas ("Missa do Galo", "Entre Santos"). A ficyäo machadiana constitui, pelo equilfbrio formal que atingiu, um dos caminhos permanentes da prosa brašileira na dirccäo da proťundidade e da 182 univcrsalidadc. Mas näo dcve scr transformada em ídolo; isso näo conviria a um autor que fez da literatura uma recusa assídua de todos os mitos. I*.ml Pompéia Raul Pompéia (141) partilhava com Machado o dorn do memorialista e a I i 11 li ra da observacäo moral, mas no uso desses dotes dcixava atuar uma tal ■ iiiga de passionalidade que o estilo dc scu unico romance realizado, O Ateneu, mil sc pode definir, cm sentido estrito, realista; e sc já houve quem o dissesse uupicssionista, afetado pcla plasticidadc nervosa dc alguns retralos c ambien-lucAcs, por outras razöcs sc poderiam ncle ver tracos expressionistas, como o i'tisto do mórbido c do grolesco com que deforma sem piedade o mundo do iiilolescente. Que o livro guardc estreitas rclacöcs com o passado do autor, parcce hoje \-ridade assenlc: "o romancista se vinga" — é a tesc de Mario de Andrade; c C41) Raul D'Ávii,a PoMi»rliA(Angra dos Rcis, Prov. clo Rio cle Janeiro, 1863 — Rio, IN")*)). Estudou no Colégio Pedro II e bacharclou-se pela Faeuldade de Dircito dc Recife; Inlciara, porčm, scu curso cm S. Paulo, onde militou nos movimentos abolicionista e irpublicano, Ocupou vários cargos públicos: diretor do Diário Oftcial, professor dc Mi-iulogia da Escola Nacionál dc Belas-Artcs, diretor da Bibliotcca Nacionál, posto dc que lni exonerado por Prudentc dc Morais devido á oracao lunebre que pronunciou junto in nimulo dc Floriano Pcixoto, exaltando este cm delrimento daquele (1895). Iniciou-sc mis letras muito cedo, com Uma Tragédia no Amazonas (1880), novela que, apesar dc iinnlura, já reflclia um temperamento angusliado em busca dc uma traducáo estilíslica hiipicssionista. Essa mesma inquietude, trávo fundamental da sua constituicáo, levou-o i contínuas polCmicas, ao duclo com Bilac c, finalmentc, ao suicídio, aos tiinla e dois iinos de idadc, na noite dc Natal dc 1895. Obras: Cancóes sem Metro, 1881; O Ateneu, IHK8. Ainda nao sc edilaram cm livro: Microscópicos, con los publicados na Comédia, ilr S. Paulo; Agonia, romance (ms.); Alma Morta, meditaí^cs, publ. na Gazeta da Tarde, ■•in 1888; As Jóias da Coroa, novela saída na Gazeta de Notícias. Consullar: Aniripe li . "Raul Pompéia c o Romance Psicológico", ensaio eserito cm 1888-89, agora cm tihra Crtíica, Rio, Casa de R. Barbosa, 1960, vol. II; Elói Pontes, A Vida Inquieta de /«' Pompéia, Rio, J. OJympio, 1935; Máiio dc Andrade, Aspectos da Literatura Brasi-Irita, Rio, Amcric-Edit., 1943; J. Lins do Rcgo, Conferéncias no Prala, Rio, CEB, 1946; Lúcia Migucí-Pcreira, Prosa de Ficcáo, cit:, Tcmístoclcs Linhares, Apresentacdo •i Haul Pompéia, Trechos Escolhidos, Rio, Agir, 1958; Maria Luisa Ramos, Psicologia ■ Hstética de R. Pompéia, B. Horizonte, tese, 1958; Eugénio Gomcs, Visóes e Revisóes, Klo, I.N.L, 1958; Lcdo Ivo, O Universo Poético de R. Pompéia, Rio, Livr. S. José, l'M3; Flávio Lourciro Chaves, O Bňnquedo Absurdo, S. Paulo, Poliš, 1978; A. Bosi, i iiu, Inferno, cit:, Leyla Pcrrone-Moisés, "Lautréamont c Raul Pompéia", in Revista de i ultura Vozes, ago. 1980. 183 a sondagem psicanalřtica näo hesila em detectar o complexo edipiano no afelu do menino Sergio pela mulher de Arístarco, o diretor do "Ateneu", execradu como o pai tirano; nem, por outro lado, Pompéia ocultou o jogo masculino feminino das relagôcs entrc os alunos em plena crise da puberdade. Mas as contribuicöes de conteüdo que a psicanálisc faz ä Icitura do romance näo devem induzir ä tcntagäo de transformá-Io cm mcro excmplário dc recalques e neuroses. Raul Pompéia era artista, c arlista cônscio do scu ofício dc plasmador do signos. Ficassc a sua obra no piano projctivo das angústias e no scu desafogu, por ccrto näo tcria ultrapassado o Hm jar da literatura dc confidencia c evasäti que marcou quasc loda a prosa romäntica. Mas cla vai além da projccäo: tc-matiza os eseuros dcsväos da memoria cm torno de ambientes, cenas, perso-nagens, c molda as estruturas obtidas no nível da palavra deseritiva, narrativa.l dialogada. A dištancia que vai da vida ä arte é palmilhada pelo cstilista que] formou seus idcais artísticos ä sombra dc Flaubert, dos Goncourt c dos par-] nasi an os. E vem ao caso lembrar que Pompéia, hábil dcscnhista, foi lambéml autor das Cancöes sem Metro, ensaio estelizante dc prosa poética, que rcsultouj menos rico do que a linguagem do Ateneu, mas vale como prova de um extremo cuidado no trago das formas. O limite dessa atcncäo ä frase pela frase c da esfera microcstilística <5 ccrto intumescimento das metáforas c dos similes, o domínio do "como", no dizer de Mario de Andrade. Colocando-sc na perspectiva dessa poélica, Raul Pompéia julgava Machado um "eseritor corrclo c diminuído"... No Ateneu, ay captagäo dos ambientes e das pcssoas näo dispensa o expressionismo da ima-gem: As manguciras, como inlerminäveis serpentes, insinuavam-sc pelo chäo. As criancas (...), seguindo cm grupos auopclados, como carneiros para a ma-j tanca. Pemiilia, quando muito, que Rňmulo a seguisse cabisbaixo c nnido, como um ti i popélain o dornest ieado. Ele gozava como um carta/ que experimenlassc o entusiasmo dc ser ver-l melho (142). As aproximacoes säo, cm geral, violcnlas e, no caso das pessoas, dcpres-| sivas. A norma é o caricalo, revelando o quanto de traumático devcni ter mar-| cado as cxperiôncias que Ihcs ľicavam subjacentes. "Vais encontrar o mundo", disse-mc meu pai ä porta do Ateneu. "Coragem | para a luta." E tudo o que segue sublinha a ruptúra com a vida familiar, definida i como "conchego placentário" c "estufa de carinho". O dado original da ruptúra C42) Cl", o ensaio dc Artur de Almeida Torres, Raul Pompéia (estudo psico-estilím tico), Nitcrói, 1968. 184 lni malriz de infelicidade para o adulto. Raul Pompéia-Sérgio náo perdoou á i in o scr langado á indiferenga cruel da escola, e á sociedade com os mais iiiiii-s. O seu único momento de abandono virá tarde, quando Ema o acarinha, Miivnlesccnte, isto é, quando o sacriffcio da vida social, compctitiva e má, é pitnio dc lado para náo mais voltar. Á eura de Sérgio se scguirá o incéndio •In escola, fecho do romance. Tambčm o suicida Pompéia náo accilou o fardo . m essivo que Ihe impunham as palavras do pai — "Coragcm para a luta". O mo tic- incendiar o colégio é homólogo ao suicídio: um e outro significant uma n i usu sclvagem daquela vida adulta que comcga no internalo. A dcscrifáo da cxpcricncia colegial é fcita cm termos de requisitório: a i litinga que subsisle no homem é o promotor e, vantagem do romancista, pode i tarnbém o juiz final, manipulador do apocalipsc. No primeiro piano de fttiiquc, a fachada composla e brilhanlc do processo educalivo, onde se pode * i cm miniatura o decoro das instituicocs do Impčrio que o ardente rcpubli-jQiio Raul Pompéia entáo combatia: Afamado por um sistema de nutrida reclame, manlido por um diretor que de (empos em tempos reformava o cstabelecimento, pintando-o jcitosamente dc novi-dade, como os negociantes que liquidam para rccomecar com arligos da ultima rc-messa... E sempře o vulto dc Aristarco, medalháo consumado da arte da pose: Contemplávamos (eu com aterrado espiinto), distendido cm grandeza čpica o homem-sanduíche da educaeao nacionál, lardcado entre dois monstruosos cartazes. Ás costas, o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o venue, para a frentc, o seu futuro: a reclame dos imortais projetos. Mas a substáncia, o absolu da vida burguesa, dc que fala Balzac, é o di-nhciro. Sáo comicos os momcnlos em que Aristarco gradua os olharcs, os nirisos, as prcdilccócs no sistema de chefia, e até mesmo a escolha do futuro jiniro, pelos critčrios de guarda-livros como a pontualidade nos pagamentos: Ás vezes, uma erianca sentia a alfinctada no jeito da máo a beijar. Saia indagando consigo o motivo daquilo, que náo achava cm suas contas escolarcs... O pai estava dois trimesues atrasado. A escola é microcosmo em vários nívcis. No da diregáo, onde a mola do ilivino Aristarco é o dinheiro; mas lambém entrc os alunos cujas atividades lecem uma redc dc interesses economicos: As especulagňes moviam-se como o bcm conhecido ofício das corretagens. Ha-via capítalistas c usurários, finórios e papalvos... A principal moeda era o selo. No comčrcio do selo č que fervia a agitacáo dc empório, conuatos dc cobica, de agio-tagem, de espeitcza, de fraude. Acumulavjím-sc valores, circulavam, frutificavam; conspiravjun os sindicatos, aifava o lluxo, o rclluxo das altas e das depreciacoes; 185 os inexpertos arruinavam-se, e havia banqueiros atilados, espapando banhas de pnu peridade. Se, na teia da socialidade, tudo se prende ao prestigio da riqueza, que á fora vem precisar os contornos das diferencas individuals, na da vida afetiva as matrizes dos gestos e das palavras säo a agressividade e a libido. É ler a descricäo da fauna que rodeia Sčrgio: dcstruída a fachada que a cerimônlij iniciál levantara, o mcnino pcrccbe espantado urna divisäo entre fortes e fracos| que a crise pubertária vai colorir de matizes sexuais. As liderancas, já coada* pelo poder da riqueza, sc faräo por critérios musculares ou etários: os mii rijos, os mais velhos e calejados tém condicöes de dominar os novatos. "Tudi conspira contra o indefeso." Mas o trágico 6 que a eseola, como a sociedade, na sua dinämica de apfl rencias, finge ignorar a iniqiiidade sobre que sc funda. Tomando hipocritamenld o dever-ser como a mocda correnle c o que é como cxcccäo a ser punida, i] praxe pedagógica näo baixa o tom virtuoso que sc ouve nos discursos de ArisJ tarco e sc perpetua nas máximas gravadas nos ladrilhos do colčgio. Säo a eterna "boa consciencia" c pairam aeima da fealdade dos gestos violentos ol chulos que formám a rotina do mcio adolescente. Mas, como todo sistemrt] scmpre ä bcira do descquilíbrio, a escola terá suas válvulas de escape. A figura agoniada dc Franco, o rebelde castigado e reincidente, 6 urn cxcmplo de bode expiatório, no qual todos exorcizam a má consciencia que os rói em meio a tantas contradicöes... Como os criminosos e as meretrizes, que č prcciso apontar ä repulsa geral, para de algum modo esconjurar as tentacôes de ódio e dl perversäo que assediam a alma do hörnern comum, Franco deve ser cscarmerH tado pelo colégio em peso: Num suplício dc pcqueninas humilhacöes cruéis, agachado, abatido sob o peso das virtudes alhcias mais clo que das próprias culpas, exemplar pcrľcito de depravaeäo I oferecido ao honor santo dos puros... — Ncnhum de nos é como cle — čo ahvio dos alunos reunidos a hora em II que sc léem os bolctins de notas. E, pormenor sinLomático, é com Franco que Sérgio se idcntiľica cm uma noile dc pcsadclos. E č sob os leneóis do réprobo morto que sc achará a imageml de Santa Rosalia, já dcscaída na dcvocäo de Sérgio. Tanlo o esqucma romanesco, ľundado na memoria dos cpisódios maisfl cruéis da vida colegial, como os tons sombrios que cobrem os pcrľis adoles-1 centes, configuram o mundo de ressentimento em que estava mergulhada al personalidade de Pompéia; ao contrario dos livros de Machado que, no esgar-1 cado da linha narraliva e no cinzento da linguagem, traem urn csforco vigilante I de dištancia e mediaeäo. Raul Pompčia näo deixou ao arbitrio dos futuros intčrpretcs o trabalho de deeifrar o sistema de idéias que se poderia depreender do Ateneu. Elc mesmd] 186 I npoe pcla boca do Dr. Claudio, a quern faz proferir nada menos que tres tMnicicncias: a primeira sobre cultura brasileira, em que o republicano nao |.clas palavras dc virtude, mas do atrito com as circunstancias. A encrgia para al'ron-li-las 6 a heranca dc sanguc dos capa/.es dc moralicladc, fcli/.cs na lolcria do destine Os deserdados abatcm-sc. Nao fora o seu talcnto excepcional dc artista, Raul PomprSia tcria naufra-Miidn no puro romance de tcsc. Aos naturalistas tfpicos, que lhc cram inferiorcs l onto estilistas, nao foi poupada a armadilha: a obra dc Alufsio (com cxcccao iln Cortigo), a dc Ingles dc Sousa, a dc Adollb Caminha c a dc Julio Ribciro i iiliam sob o peso de csqucmas preconccbidos, pouco vindo a salvar-sc do fiuiiio de vista ficcional. Aliiísio Azevedo e os principals naturalistas t Em Aluisio Azevedo (143) a influencia dc Zola e de Eca é palpávcl; c, i|ii;indo näo sc sente, é mau sinal: o romancista virou produtor dc folhetins. i (143) AluísioTancredoGoncalvesdis Aziíviíix) (S. Luis do Maranhao, 1857 — Buenos kiics, 1913). Filho do vicc-c6nsul poriugufis cm S3o Luis, ai fez oscstudos secundáiios. i liiunado pelo irmao, o comediógrafo Artur Azevedo, foi para o Rio de Janeiro ondc liiilialhou como caiicalurista nas redacScs dc jomais políticos c humorfsticos, O Me-*u'trefe, Figaro, Zig-Zag. Com a morte do pai vollou a S. Luis. Escrevc para a imprensa iln oposicEo crOnicas dc sálira ao conservantismo do mcio mmanhensc. Depois de uma I nlativa frustrada dc romance sentimental (Uma Lágrima de Mulher, 1880), publica win primeira obra de relcvo, O Mulato (1881), cm que agride o preconccito racial, concnte fin.s (amílias/ricíLS da provfneia. O livro, bem rcccbido na Coitc como exemplo de Natura-i■.ino, irritou os comprovincianos a ponto de o escritor resolver mudai-se para o Rio. De IHK2 a 1895 vivc exclusivamcnte da pena. Escrevc scm intcrrupcao romances, contos, ope-" ins, revistas tealrais, altcrruindo páginas de intenso e sóbio rcalismo (Casa de Pensáo, 187 Alias, trata-se de um caso raro e precoce de professionalizacäo literária: "Alm sio Azevedo — disse Valentim Magalhäes — é no Brasil talvez o único cscntn» que ganha o päo exclusivamente ä custa da sua pena, mas note-se que apetitu ganha o päo: as letras no Brasil ainda näo däo para a manteiga" (I44). Ejuii luta com a pena pclo päo certamente explica o desnível entre seus romaiu i sérios (O Mulato, Casa de Pensäo, O Cortico) e os pastelöes melodramat in i* de "pura inspiracäo industrial", no dizer de Jose Veríssimo (Condessa Véspa Girändola de Amores, A Mortalha de Alzira..,). E talvez ä mesma causa H possa atribuir o eslranho abandono das letras que se Ihe nota a partir dos quu renta anos, quando cntra para a carrcira diplomática e se elege membro cla, pois urna e outra säo sintomas dos impasses criados no cspřrito do Unionista quando se abcira da condigäo humana cnlcada na vida social. Os iiuniientos de maior fermentacäo dcsta nos meios citadinos foram pontu ados Im>i uma vigorosa narrativa realista de tintas satíricas: o Satyricon de Pctrônio, ip Decameron de Boccaccio, as histórias de Diderot, os romances de Thackeray I Balzac, os contos de Maupassant e de Tchécov... E já se viu que há tipos I fipos: a mera soma de minúcias descritivas näo dá para pôr de pé urna per-'.onagem ou urna situacäo (145) e o malogro estético de boa parte do romance naturalista deve-se precisamente ä falta daquela coerencia cxislcncial minima <|iic já Machado de Assis reclamava de Ega em erítica ao Primo Basílio c que /ola augurara ao atribuir ao romancista o papel de "mostrar pela experiencia coino se comporta urna paíxäo em um meio social" (,4Í)). A leitura de O Mulata, que passa pelo primeiro romance naturalista bra-silciro, dá uma boa vísäo do meio maranhense do tempo, mas näo cumpre a mitra exigéncia de Zola, a de pintar como sc comporta urna paixäo. O protagonista, o mulato Raimundo, ignora a propria cor c a condicäo de filho de tserava: näo consegue entender as reservas que Ihc faz a alta sociedade de Säo Luis, a cle que voltara doutor da Europa. Aluísio cumula-o de encantos I de poder sedu tor junto äs mulhercs e o faz amado e amantc da prima, Ana Rosa, cuja família dá cxcmplo do mais virulento preconeeito. A intriga, romäntica pelo terna do amor que as tradicöcs impedem de se realizar, admite um corte mais ousado no trato das rclacöcs entre Raimundo c Ana Rosa. O lina! de opera, com a fuga dos amantes malograda pelo assassínio do mulalo, volta a colorir a história de um romanlismo gritanle que Aluísio quis in extremis sufocar, mudando a ardente heroina em pacata mulher de um tipo imposto pela família e que sempře lhe parccera o mais sórdido dos homens. O autor, desejando provař de mais (no caso o preconeeito vivo nas ťamílias brancas e (Í4S) V. nota(l36. Do mesmo Lukács, o ensaio "Narrar ou Descrevcr", em Ensaios sobre Literatura, Rio, Civiliza^äo Brasilcira, 1965. (146) Em Le roman experimental, 4e. čd., Paris, Charpcnticr, 1880, p. 24. 189 a oscilagäo psicológica da mulher), desfigura o par amoroso, cmboncca o pro tagonista e deixa o leitor no escuro quanto ä marcacäo de um possível "caso de temperamento" que nas mäos de um Zola poderia render a figura de Ana Rosa. Näo falha, porém, na satira dos tipos da capital maranhense: o comci ciante rico e grosseiro, a velha bcata e raivosa, o cônego relaxado e coniventc. Por outro lado, cmbora sc possa entrcver a sombra de Ega no meneio da frase dcscritiva que resvala quasc sempře para o grotcsco, resta o mordente pessoal de Aluísio, entäo cm luta abcrta contra o conscrvantismo e as manhas clericais que entorpeciam a sua provincia. O mérito do narrador que saiu de O Mulato estaria cm saber aplicar a outros ambientes o dom de observacäo de que fi/era prova. Aí estäo o valor c o limite de Aluísio: o poder de fixar conjuntos humanos como a casa dc pcnsäo e o cortico dos romances homônimos constitui o seu leg ado para a ficcäo brasileira dc costumes; é pena que o peso das tcorias darwinistas o tcnha impedido dc manejar com a mesma destreza personagens c enrcdos, dei-xando uns e outros na dependencia dc esqucmas canhcsíros. Em Casa de Pensäo, a vida airada do cstudanle que vem do Norte para o Rio, o ambiente pegajoso da pensäozinha onde se instala, cnfim o rumor dos jornais c da bocmia cm volta do caso escandaloso cm que sc envolve, formám o coro, cstruturalmcntc superior ao desenho flácido, do protagonista, cujas fraquczas säo atribuídas desde as primeiras páginas ä heranca do sangue. So cm O Cortico Aluísio atinou de fato com a formula que sc ajustava ao seu talento: desistindo de montar um enredo cm funcäo dc pessoas, ateve-se ä seqiiencia de descricôes muito precisas onde cenas colclivas c tipos psico-logicamente primários fazem, no conjunto, do cortico a personagem mais con-vincente do nosso romance naturalista. Existc o quadro: dele derivam as figuras. Já houve quem louvasse Aluísio como um dos raros romancistas dc massas da literatura brasileira (,47). Cabc perguntar dc que forma a conscicncia do eseritor percebia os grupos humanos. Assumindo urna perspectiva do alto, de narrador onisciente, ele fazia distingäo entre a vida dos que já venceram, como Joäo Romäo, o senhor da pedreira c do cortico, c a labuta dos humildcs que sc exaurem na faina da propria sobrevivôncia. Para os primeiros, o Irabalho é urna pena sem remissäo, pois a fomc dc ganho näo sc sacia c o frenesi do lucro — "uma moléstia nervosa, uma loucura", como a que empolga Romäo — arrasta äs mais sórdidas privacôcs, a urna espécie de ascese äs avessas, sem que um limite "natural" c "humano" venha dar ao cabo a desejada paz. Já nos pobres, na "gentalha", como os chama, o trabalho é o cxcrcício dc urna atividadc cega, instintiva, näo sendo raras as comparacôes com vermes ou com insetos, sempře que importa fixar o vaivém dos operários na pedreira ou das mulheres no cortico. Os textos abaixo ilustram a obsessäo do germinal, herdada do mestre francos: (!47) Lucia Miguel-Pcreira, op. cit., p. 157. 190 E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, co-mccou a minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geracáo, que parecia brotar espont&nea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco (Cap. I). As corridas até á venda reproduziam-se, transformando-se num verminar cons-Uinte de formigueiro assanhado (Cap. III). Nas alusčes a fatos e a tipos isolados, o processo reaparece: ... depois de correr meia légua, puxando uma carga superior as suas forgas, caiu morto na rua, ao lado da carroga, cstrompado como uma besta (Cap. I). Dai a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeracáo tumultuosa de machos e fémeas. A primeira que se pds a lavar foi a Leandra, por alcunha a "Machona", portuguesa feroz, berradora, pulsos cabcludos c grossos, anca dc animal do campo (Cap. III). A franzina Nenén escapa "como cnguia" dos rapazcs; Paula, a cabocla mandingueira, tern "denies de cáo"; a mulalinha Florinda, "olhos luxuriosos de macaca"; c no cavoqueiro portugucs, o pescoco 6 dc touro e os olhos hu-mildes, "como os de um boi de carga". A reducáo das crialuras ao nivel animal cai dentro dos códigos anti-ro-mánticos dc despcrsonalizacao; mas o que uma análise mais percucicntc atri-buiria ao sistcma desumano dc irabalho, que deforma os que vendem e ulccra os que compram, á consciencia do naturalista aparecc como um fado dc origem lisiológica, portanto inapelável. Como dá caráter absolulo ao que é efeito da iniqiiidadc social, o naturalista acaba fatalmcntc estendendo a amargura da sua rcflexao a propria fontc de todas as suas leis: a natureza humana afigura-se-lhc uma selva selvaggia ondc os fortes comem os fracos. Essa, a mola do Cortico. lissa, a cxplicacao das vilanias c torpezas que "naluralmente" devem povoar a existencia da gente pobrc. E essa também a causa do desfecho, que sc quer trágico, mas é apenas tcatral. Descendo a casos fisiológicos cm O Livro de uma Sogra, ou perdendo-se cm simplismos dc caraclcrizacao moral, O Coruja, o romancista nao soube levar a efeito um vasto piano narrativo que viria a constituir-se na comódia humana do Segundo Reinado, sob o título gcral dc Brasileiros Antigos e Mo-dernos. A série ficou no primciro volume, justamente O Cortico. O primciro romance, O Cortico, faz-nos vcr um colono analfabeto, que dc Portugal vcm com a mulhcr trabalhar no Brasil, tntzendo consigo uma lilhinha de dois anos. Essa crianga vcm a scr a menina do cortico, um dos tipos mais accntuados da obra, o qual será ligado imediatamcnlc a um tipo novo, o tipo do vendeiro aman-cebado com a preta. O colono deixa a mulhcr por uma mulaunha, c deste novo enlace surgem O Felizardo e A Loureira: parlicipa deste grupo o tipo do capadócio, o pai-avó do(capoeira que mais tarde é chefe dc malta c forga ativa nas cleipoes. Ligado a este chefe dc malta está um tipo que contrasta com cle: é o antigo Con-sclheiro de Estado formado durante a minoridadc do sr. D. Pedro II e graduado 191 peius seus servicos ä causa da revolucäo mineira. Do Consclhciro nasce A Famdia Brasileira, composta de quatro figuras, a saber: o chefe, Conselheiro, de cinqüenta c tantos anos, conservador e lirico; a esposa deste, senhora de 40, muito apaixonada pela História dos Girondinos de Lamartine, sonhando reformas e lamentando näo ser hörnern para desenvolver o que ela julga possuir de ambicäo politica no seu esplrito; a filhai moca de vinte anos, prátíca c intercsseira, vendo sempre as coisas pelo prisma das coJ modidadcs e das convcničncias sociais; e o fílho, rapa/ de 16 anos, presumido, filósofo' e muito convcncido de que cstá senhor de toda a cióncia de Augusto Comte. É sobrc csta famflia que tčm de agir o Fclizardo e a Loureira, é nesta familial que a Loureira vai buscar o amante, o filósofo de 16 anos, a quem näo valerá toda] a teoria cientifica de Comte e Spencer, c que dará um dos bilontras da Bola Preta\ enquanto que o Fclizardo, conseguindo casar com a filha do Consclhciro, e conse-guindo, uma vez rico, fazer carrcira politica, vai influenciar nos destinos do Brasil c comprometcr a situaeäo do monarca, como se vera no ultimo livro (148). O piano ficou no papcl. Mas, de qualquer forma, O Cortigo foi um passo adiante na história da nossa prosa. O léxico 6 concreto, o corte do periodo e da frase sempře nítido, c a sintaxe, correta, tem ressaibos lusitanizantes que, embora sc possam explicar pela origem luso-maranhensc dc Aluísio, qua-dram bcm ao clima dc purismo que marcaria a lingua culta brasileira até o advento dos modernistas. Causídico respeitável e perito em letras de carnbio, Inglés de Sousa (149) näo foi menos eserupuloso como narrador de casos amazönicos com que an- C48) InA Semana, ano I, n°44, Rio, 1885 (apud L. Migucl-Pcrcira, op. cit., pp. 157-58. (149) Hrrculano Marcos Inglés dk Sousa (Óbidos, Para, 1853 — Rio, 1918). Fez os estudos sceundários no Maranhäo c Dircito cm Recife c S. Paulo. Ainda estudante, publicou, sob o pseudönimo dc Luis Dolzani, O Cacaulisla e llistórias de um Pescador (1876-77), documentos que testemunhavam seus pendores píira o regionalismo. O mesmo sc deu com O Coronet Sangrado que, eserito cm 77, precede de quatro anos ä publicagäo dc O Mulaio, dc Aluísio, enquanto romance naturalista de costumes. Combinando ins-piraeäo regional c proecssos tornados a Zola, compös o romance O Missionário (1888) e os Conlos Amazönicos (93), suas obras mais conhecidas. Positivista e liberal, fez politica durante o Impčrio, alcancando a presidöncia de Sergipe e do Espírito Santo. Es-pccialista cm Direito Comcrcial, ensinou cssa disciplina na Faculdadc de Dircito do Rio de Janeiro. Foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Consultar: Ara-ripe Jr., prólogo da 2* cd. de O Missionário, Rio, Laemmert, 1899 (transerito na Obra Crítica, Rio, Casa de Rui Barbosa, vol. II, pp. 365-382; Josč Vcríssimo, Estudos de Literatura Brasileira, 3* série, Rio, Gamier, 1903; Olívio Montenegro, O Romance Bra-sileiro, Rio, Jose Olympio, 1938; Aurélio Buarque de Holanda, Prefäcio da 3* ed. de O Missionário, Rio, Jose Olympio, 1946; Lucia Miguel-Pereira, Prosa de Ficgäo, cit., pp. 155-164; Sergio Buarque de Holanda, Inglés de Sousa — "O Missionário", em O Romance Brasileiro (coord, de Aurélio B. de Holanda), cit., pp. 167-174. 192 iľi ipou o próprio Aluísio no mancjo da prosa analítica. As datas de publicacäo •l«»s scus primeiros romances, 1876 (O Cacaulistá) e 1877 (O Coronel San-iti udo) fazem-no contemporáneo dos regionalistas, Taunay e Franklin Távora, tuns Ingles de Sousa já mostrara nessas páginas de juventude um temperamento hm, inclinado ao exame dos "fatos", como convinha ao futuro positivista, sem i|iinl(|uer centelha de paixäo romäntica pela matéria da sua arte: exatamente o nposto do autor do Cabeleira. Tudo fazia dele o compositor ideal de um caudaloso romance de lese, lomo O Missionário, cm que se expôcm os mínimos aspectos da "cvolucäo mural" do sacerdote c näo se poupa ao lcitor nenhum detalhc da sua ascensäo I qucda na selva amazônica. Sóbrio e mcticuloso cm cxccsso, näo logra, por isso mesmo, transmitir o irntimento de conjunto da paisagem tropical. É notacäo fcliz de Sérgio Buarque de Holanda que Ingles de Sousa nunca foi espontancamcntc um paisagista: "É irnsível seu desconcerlo todas as vczcs cm que se trata de dcscrcver esse mun-4 K i cheio de mistérios c onde a vida civil parcce mero acidcntc." O fundo vinco urbano que marcava o positivismo de Ingles de Sousa näo i onscguia, de ťato, abrir-sc ä cor c ao perfume da vida selvagem, cor e perfume que Alencar, com todas as suas distorcôcs, captara tantas c tantas vczcs. Já a inornidäo do vilarcjo dc Silvcs e a varicdadc das suas figuras provincianas t ncontraram a versäo justa na prosa lenta c unida do escritor paraense. Nessa iniúda reproducäo dos costumes amazoncnses, cncetada nos romances juvenis r prcsente atč os lillimos Cantos Amazônicos, aprccia-sc a parte viva da obra de Inglés dc Sousa, pouco ou nada valcndo o rctrato cspiritual do missionário, i uja conduta já cstava prcfigurada na "irrcsolucäo c fraqucza que a mäc Ihc iiansmitira no sanguc"... Nesse romance, o Naturalismo, rcpuxado até o limite, laz o processo ä Na-lurcza, o que nos dá conta da carencia dc freseor nas dcscricôcs além da qucda látal dos homens, duplamente sujcitos ä lei do sanguc e as pressôcs do ambiente. Do Naturalismo tomou Adolfo Caminha (,5°) a erenca na ťatalidade do ineio e o gosto dos temas eseabrosos. A Normalista c O Bom Crioulo cen- (15°) Anou-o Fhkkiíira Caminha (Aracati, Ccará, 1867 — Rio, 1897). Passou a in-lílncia na provincia natal, atribulado pela orľandade, por doencas c pela seca de 77. Muda-se para o Rio onde, sob a tutela de um parenie, cursa a Escola Naval. Como Kuarda-marinha, conhccc em 1886 os Estados Unidos, viagem que lhc dcu matéria para um livro de crônicas, No Pais dos lanques (1894). Voltando ao Ccará, envolve-se num raso passional (rapto da esposa de um alfercs com a qual passa a viver c que lhe dá duas filhas). Obrigado a dar baixa na Marinha, parte para a Capital, onde trabalha como luncionário. Em FoVtaleza, foi urn dos mcntorcs da Padaria Espiritual, grémio que promo veu, de 92 a 98, os naturalistas da provincia. Morrcu tuberculoso aos 29 anos de 193 tram-se em casos de corrupcäo que a marcha da narrativa mostra como inc vitável. Näo se deve, porém, reduzir o escritor cearense ao tributo que manifcsla mente pagou ä leitura de Eca c Aluísio, seus modclos mais próximos. Há noljis pcssoais válidas cm ambos os romances. Em A Normalista, o ressentimenl(» do autor, apoucado pela vida dc amanuense no meio hostil de Fortaleza, leva-n a nivelar todas as personagens no scntido das pequcnas vilczas que a hipocrism do mcio sc csforca cm väo por encobrir. O nivclamcnto, borrando os limite* das figuras humanas, acaba compondo o quadro naturalista e pessimista da vida citadina, "esse accrvo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas, esse cortico dc vespas que se denomina — sociedade". E o andamcnto moroso du narraeäo, os inlcriorcs mornos e a baixa tcmpcratura moral das criaturas tra duzem bem a intuicäo gcral do romancista. Mas a critica, de fundo emotivo, näo tinha condicöcs para sair do ämbito provinciano: a ultima parte da história, passada no campo ondc Maria, a nor mal isla, Ibra morar por ordern do scdutor, canta alcncarianamcntc os efluvios balsämicos da natureza, aos quais sc vem misturar os näo menos balsämicos anúncios da proclamacÁo da Rcpública, uns c outros bastantes para fazer da protagonista, há pouco abismada na desonra c no luto pelo ťilho natimorto, a lépida noiva dc um alferes que surge inopinado para bem acabar a história. O Bom Crioulo näo padece de tais invcrossimilhan^as. Mais denso e cnxuto que o romance anterior, resistc ainda hoje a urna leitura critica que descarte os vezos da escola e saiba apreciar a construeäo de um lipo, o mulato Amaro, cocrcntc na sua passionalidade que o move, pelos meandros do sadomasoquis-mo, ä pervcrsäo c ao crime O Naturalismo e a inspiracao regional Do Ccará, terra de Adolfo Caminha, lambém provieram outros naturalistas que dariam ä rcgiäo da seca c do cangaco urna ťisionomia literária bem mareada de idadc. Dcixou publicados: Judith e Lágrimas de um Crente, contos, 93; A Normalista, 93; O Bom Crioulo, 95; Tentacáo, 96, romances; Cartas Literárias (95), crítica dc fundo taincano, mas aberta ao simbolismo dc Cruz c Sousa. Inéditos: Angelo, O Emigrado. romances; versos c contos. Consultar: Waldemar CavaJcanti, "O Enjcitado A. C", em O Romance Brasileiro, cit., pp. 179-90; Lúcia Miguel-Pcrcira, Prosa de Fic^do, cit., pp. 164-72; Sabóia Ribciro, Roteiro de Adolfo Caminha, Rio, Livr. S. Josč, 1957. (151) Mcros apCndices do Naturalismo devem considerar-se a obra mais conhecida dc Júlio Ribciro, A Carne (1888) e o minitratado de fisiologia romanceada, O Cromo, de Horácio Carvalho, onde se explicam ao pé da página, cm termos biológicos, as reacoes das personagens. 194 i i upaz dc prolongamenlos tcnazes até o romance moderno. Manuel de Olivcira i'nlvu, Domingos Olímpio, Rodolfo Teófilo e, pouco depois, Antonio Sales, ii» naram-se do interior cearense num periodo em que tudo concorria para •it I'lcrar o dcclínio do Nordeste, desdc as repetidas secas (a de 77, por exemplo, |nissoii a leitmotiv da poesia oral), até a conjuntura econömica, que atraia para inivos imäs de riqueza, como o café em Säo Paulo e a borracha na Amazonia, I ma parte da populacäo rural. Fortaleza conheceu, nos primciros anos do Realismo, uma vida litcrária niva, fermentada por ideais abolicionistas c republicanos: é sabido que o Ceará hu a primeira província brasilcira a libertär os cscravos, cm 1884. Data de IK72 a fundacäo de uma Academia Francesa c cntrc csta c o grupo militante ■ l.i Padaria Espiritual, rcunido cm 1892, formaram-sc vários grcmios políticos hlcrários (152), onde se colava a moda naturalista com as lutas idcológicas do tempo. A vivacidadc dcsse contcxto cultural pcrmiliu virem h luz alguns romances legionais: Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio Braga Cavalcanti 11K50-1906), ingčnua c bela história dc uma retirante dc 77, cujos modos más-I li los ocultavam sentimentos bcm femininos; A Fome (1890), Os Brilhantes (IH95) e O Paroara (1899), de Rodolfo Teófilo, livros atulhados do jargäo i icnlffico do tempo, mas que valem como retorno literário ao pesadelo da seca i* da imigraeäo. Este ultimo fenňmcno recebe tralamento mais feliz cm Aves de Arribacäo (1913), romance dc Antonio Sales, cpígono provinciano, mas que se le ainda hoje com agrado. Näo alcangou a mesma fortuna de publicacao imediata o melhor eseritor ilo grupo, Manuel de Oliveira Paiva (,53). O scu romance, Dona Guidinha tin Pogo, eserito por volta dc 1891, só vcio a ser editado cm 1951, gracas ao (152) Entre oulros, a Socicdade Libertadora Ccarense, Editora dc "O Libcrlador" (1883) e o Clube Literário cujo órgao era "A Quinzena" (1888). (153) Manuki. dh Oi.iviíika Paiva (Forlalcza, 1861 — Scrtao do Ceará, 1892). Fez o i urso ginasial no Seminário do Crato. Mudando-sc para o Rio, comecou a freqiicntar ,i Escola Militar, mas náo póde prosseguir por causa da sua compleicao enfermica. Tu-hcrculoso, volta a Fortaleza, onde se empenha na Iuta abolicionista e faz jornalismo literário. Em 1888 lunda o Clube Literário. Por volta dc 90, piorando dos pulmóes, vai para o interior do Ceará, onde esereve seus dois romances, Dona Guidinha do Pogo e /\ Afdhada, publicados postumamentc, o primeiro cm edicao Saraiva (S. Paulo, 1952), o segundo pela Ed. Anhambi (S. Paulo, 1961). A Obra Complcía, org. por Rolando Morel Pinto, saiu cm 1993 (Rio, Graphia Editora). Cf. Lúcia Migucl-Percira, Prosa de Ficgáo, cit.; Joáo Pacheco, O Realismo, S. Paulo, Cultrix, 1964; Rolando Morel Pinto, F.xperiéncia e Ficgáo de Oliveira Paiva, Instituto de Estudos Brasileiros da Univ. de S. Paulo, 1967; Paula Beiguelman, Viagem Sentimental a Dona Guidinha do Pogo, S. Paulo, Ed. Ccnlro Univcrsitário, 1966. 195 empenho de Lúcia Migud-Pereira que o apresentou com um prcíácio elogioso. E merecido. Oliveira Paiva era prosador terso, que sabia descrever e narrai com máo certeira e intenir no momento azado com talhos irónicos de intcli géncia fina e crítica. Para sentir as relacfa concretas entre o mcio e o homcm, será preciso esperar pela linguagem imisi va de Graciliáno Ramos para se ter algo que su pere as densas notacoes de Dona Guidinha: Entrou marfo, noveus de SSo José. O calor subira desproposiUidaincntc. A roupa vinha da lavadeira grudada cle sabao. A gentc bcbia ápi de todas as cores; era antes uma mislura de nao sei que sais ou nao sei de qué. Otento era qiiente como a rochá nua dos serrotes. A paisagcni tinha um aspecto de pč'.o dc leao, no confuso da galharia despida e empoeirada, a perder de vista sobre sflidulacOcs ásperas de um chSo negro de detritos vegetais toslados pela mořte c pelo ardor da atmosféra. O pobre cmigravaan as aves, que vivem ambos do suor do dia. Eram pelas estradas c pelos ranchosljuclas romarias, cargas dc meninos, um pai com o filho as costas, macs com os[cqucnos a ganirem no bico dos peitos chuchados — tudo pó, tudo boča sumida collios grclados, fala tčnuc, e dc vez cm quando a cabra, a deiTadcira cabeca do retaho, puxatla pela corda, a berrar pelos cabritos (Cap. I). Excelcnte no tracar a figura central, Guidinha, intcirica na virtude e no pecado (154), o autor naofoi menos feliz no desenho dos tipos sccundários que compócm cssa água-forte do latifúndio nordestino, com scu ritmo vege-tativo, seus agregados e relirantes, enfim, seu pequeno mas concentrado mundo de interagóes morais. Passada a tempestade moderní sta, retomariam o mesmo veio, já agora sem os sestros do Naturalismo,losé Amčrico de Almeida, com A Bagaceira (1928) e Raquel de Qucirós, coiitf Qjiinze (1930), romances que abrem o longo e afortunado roteiro da ťiqáo regionalista moderna. Naturalismo estilizado:uart nouveau" Na dócada de 80 afiriiura-sc o Naturalismo entre nós: canhestro ainda nos primciros romances de Aluísio, acertou o passo com O Cortico, O Missionário e O Bom Crioulo, mas nesses frutos dí o melhor de si, involuindo cm seguida no mesmo ritmo da culturabrašileira da Primeira República. Alcancadas as metas políticas da Abolicao e do novo regime, a maioria dos intclcctuais cedo perdeu a garra crítica de um passado rccentc e imergiu (154) Leia-se a acurada rconstrucáo psicológica de Dona Guidinha feita por Bei-guelman, op. cit., pp. 7-65. 196 mu água morna de um cstilo ornamental, arremedo da belle époque européia | i laro signo de uma decadcncia que se ignora. Estctismo, evasionismo, "pureza" verbal precariamente definida, sertanis-pio de fachada, lugares-comuns herdados á divulgacao de Darwin e de Spencer, n síduos da diccáo naturalista de cambulhada com cliches do romance psico-logico á Bourget carreiam para a prosa de um Coclho Ncto e dc um Afránio IVixoto os vřcios do Decadcntismo dc que na Europa davam exemplo os livros < inlilantes mas ocos de Oscar Wilde c Gabriele D'Annunzio. Desenvolve-se um cstilo mundano, meio jornalístico, mcio sofisticado, nquele "sorriso da sociedade" como entendia a literatura Afránio Pcixoto em um trecho do Panorama da Literatura Brasileira que vale a pena transerever i umo řndice da forma mentis da época: A literatura č corno o sorriso da sociedade. Quando cla č feliz, a sociedade, o esptrito se Ihc compraz nas artes c, na arte literária, com ílcgáo c com poesias, as mais graciosas exprcssOcs da imaginacáo. Sc há aprcensáo ou sofrimento, o espírito se concentra, grave, prcocupado, c entáo, histórias, ensaios morais e cicntíficos, so-ciológicos c políticos, sáo-lhc a prcfcrCncia imposta pela utilidadc imediata (155). Dos fins do sčculo á guerra dc 1914-18, a corrente mestra dc nossa lite-ialura, a que vivia cm torno da Academia, dos jomais, da bocmia carioca e da buroeracia, admirou supremamente esse cstilo florcal, réplica nas letras do "art nouvcau" arquitctónico c decorativo que entáo exprimia as rcsistčncias do artesanato á segunda revolucáo industrial (,56). Redcfinindo um Icrmo bivalente, pré-modernismo, diria que é efetiva e organicamente pré-modernista tudo o que rompc, dc algum modo, com cssa cultura oficial, alicnada e verbalista, c abrc caminho para sondagens sociais e estéticas retomadas a partir dc 22: cm piano dc dcstaque, a incursáo dc Euclides da Cunha na miséria sertaneja, o romance crítico dc Lima Barrcto, a ficeáo c as teses dc Graca Aranha, as pesquisas dc Olivcira Viana, as campanhas na-cionais de Montciro Lobato (,57). Com excecáo desses poucos homens, lúcidos apesar dos scus limites, a história do periodo "intervalar" 6 mclancolicamcnte marcada por autores epigónicos, c, como a scu tempo se verá, náo seriam os nossos simbolistas capazes dc mover as águas estagnadas de uma cultura a rcboquc, estando clcs próprios imersos no clima do Decadcntismo curopeu. Para transfigurar e converter o Naturalismo (158) cm Supra-rcalismo, Exprcs- (15S) Em Panorama da Lit. Brasileira, S. Paulo, Cia. Ed. Nacionál, p. 5. (15Ď) Lcia-sc o vivo quadro que dá desse periodo Brito Broca cm A Vida Literária no Brasil —1900. (,57) V. ad i ante o capítulo Pré-Modernismo e Modernismo. (158) v. o capítulo "A Conversáo do Naturalismo" cm Otto Mítria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, Rio, Ed. O Cruzeiro, 1963, vol. V, cap. III. 197 ( sionismo e Futurismo, isto é, para opcrar a revolucäo que operariam um Pi casso, urn Stravinsky, urn Pirandello, urn Proust ou um Maiakóvski, far-sc i it mister viver a angústia que oprimiu o artista europeu quando o fantasma ) A fortuna crítica dc Coelho Ncto conhcccu os extremos do desprezo c da louvaeäo, desdc "o sujeilo mais nefasto que lem aparecido no nosso meio (1S'J) Transcrevo com poucos rctoqucs formais o texto que dediquci a Coelho Neto, Alrilnio Peixoto c Xavicr Marques em O Pre-Modernismo, S. Paulo, Cultrix, 1966, pp. 75-88. Hijnrioufi Maximiniano Cotii.Ho Neto (Caxias, Maranhao, 1864 — Rio, 1934). Romances: A Capital Federal, 1893; Miragem, 1895; O Ret Fantasma, 1895; Inverno em Flor, 1897; 0 Morto, 1898; 0 Parafso, 1898; O Rajd de Pendjab, 1898; A Conquista, 1899; Tormenta, 1901; O Arara, 1905; Turbilhao, 1906; Esfinge, 1906; Rei Negro, 1914; O Misterio (em colaboracao com Alranio Peixoto, Medeiros e Albuquerque c Viriato Cor-reia), 1920; O Polvo, 1924; Fogo-Fdtuo, 1929. Lendas: Saldunes, 1900; Imortalidade, 1926. 198 mil leclual", de Lima Barreto (161), a "o maior romancista brasileiro", de Otávio É Haria (162). fi verdade que, depois dos ataques modernistas, se tornou sensivel certo •li sir jo de ponderacao, de meio-termo, ao se f alar nos malsinados medalhôes ■ In ľič-Modernismo. Muito louvávcl, porquc justo, o cuidado dc näo se repe-nii in preguicosamente análcmas implacáveis. Mas, quando se usa a palavra n abilitacäo", carregando-lhc o accnto valorativo, tambčm se faz mister outro initio de ponderagäo e meio-termo. Rcabilitar, em que scntido? Se cm nome i li urna determinada doutrina estética, cntäo urge primciro dcmonstrar a sua vnlidade para ontem e para hojc; mas, se cm nomc dc um pcnsamcnto causalista 11 oclho Neto teria escrito como o cxigia scu tempo), já näo séria o caso dc ii-valorizá-lo, scnäo apenas dc siluá-lo e comprccndc-lo. Vcja-sc, pois, como < larefa crítica delicada — bcm pouco amiga dc improvisacócs culturais e ".■•mimentais — reivindicar glorias que o tempo ťoi contrastando ou csqueccndo. Contemplado sub specie historiae, Coclho Nclo sobrcssai como a grande prcscnca literária entrc o crcpúsculo do Naturalismo c a Semana dc 22. Só Km Barbosa, na oratória política, c Euclides, no chamado ä consciencia da una e do homcm, ocuparam lugar täo rclcvantc na cultura prč-modernisla. O piosador maranhcnsc parccia talhado a propositi) para polarizar as caractcrís-iii as de goslo que sc soem atribuir ao Icitor culto medio da Primcira Rcpública. l )m leitor que julga amar a rcalidadc, quando cm verdade näo procura scnäo r. suas aparencias mcnos triviais ou mcnos trivialmente aprescnladas; um Icitor i|iic se compraz na supcrľfcie c no virtuosismo: um leitor, cm suma, funda- i nnios: Rapsodias, 1891; Praga, 1894; Baladilhas, 1894; Fruto Proibido, 1895; Serfdo, 18%; Album de Caliban, 1897; Romanceiro, 1898; Seara de Ruie, 1898; Apologos, 1904; A Bico de Pena, 1904; Agua de Juventa, 1905; Treva, 1906; Fabukirio, 1907; Jurdim das Oliveiras, 1908; Vida Mundana, 1909; Cenas e per/is, 1910; Banzo, 1913; Mclusina, 1913; Cantos Escolhidos, 1914; Conversas, 1922; Vesperat, 1922; Amor, ij»24; O Sapato de Natal, 1927; Cantos da Vida e da Morte, 1927; Velhos e Novos, IJ>28; A Cidade Maravilhosa, 1928; Vencidos, 1928; A Arvore da Vida, 1929. Nao se i ilam aqui as obras de crOnicas, dc memorias, de tcatro c as conferencias cfvicas e didaricas. Rcierfincias complctas em Paulo Coclho Neto, Bibliografia de Coelho Neto, Itio, Borsoi, 1956. Consultai: Jos6 Verfssimo, Esiudos de Literatura Brasileiro, 4n s^rie, cd., Rio, Gainier, 1910; P6ricles de Morais, Coelho Neto e Sua Obra, Porto, Lello, 1026; Paulo Coelho Neto, Coelho Neto, Rio, Zclio Valvcrdc, 1942; Brito Broca, "Coelho Neto, romiuicista", em O Romance Brasileiro (coord, dc AurcMio Buarquc de Holanda), i //.; Ota'vio dc Faria, "ApresentagSo" a Coelho Neto — Romance, Rio, Agir, 1958; I lerman Lima, "Coclho Neto: As Duas Faces do Espelho", Introducao a Coelho Neto, Obra Seleta, Rio, AguiUu-, 1958. (ifil) "Histriao ou Litcralo?", in Rev. Contemporanea, 15-2-1918. (162) "Coelho Neto", in Jomal de Letras, ano 1, n° 3, Rio, set. de 1949. 199 mentalmente hedonista. As qualidades mestras de Coelho Neto ajustavam-sc lne como a mäo e a luva: curiosidade, memoria e sensualidade verbal, que o escritor confundia com imaginacäo'. A minha faculdade essencial é a imaginacäo. Vivo a sonhar, as idéias pululani no mcu cčrebro e sinto que säo as sementes antigas que se fazem floresta. Comecci a esludar em livros orientais. Foram As Mil e Uma Noites a obra que mais fundn imprcssäo deixou em meu cspirito quando sc ia formando, depois as histórias que me contavam nos seröes tranqiiilos, e, finalmente, as leituras. Eu procurava, de pre fcróncia nos poctas, as dcscricöes da vida levantina — em Byron o D. Joäo, A Noiva de Abidos, o Giaour, em Gauticr o seu grande mundo fantástico; em Flaubert Salammbó, e assim sucessivamente (A Conquista, Porto, Chardron, 1928, p. 396). A confissäo revela antes o cspirito voraz que sabcrá reter e gozar o mundo das scnsacöcs do que a mcnte intuitiva, criadora dc novas c fortes imagens. A inquieta curiosidade, apoiada cm uma memoria invulgar, foi o pressu-posto psicológico do "rcalismo" exaustivo do prosador; já ao seu evidente par-nasianismo serviu o gosto sensual da palavra. Documcnto e ornamcnto levados äs ultimas conscqiiencias. Pcrscguir o rotciro narrativo dc Cocllio Ncto é ilus-trar cssas afirmacöcs. Em 1893, saiu seu primeiro romance; A Capital Federal. A simples con-ferencia das datas afasta a hipótese de tomar como fontcs A Cidade e as Serras ou A Capital de Ega de Queirós. Coelho Ncto tinha o que dizer dc scu naquele romance juvenil. Brito Broca, no cxcclente ensaio que eserevcu sobrc o ro-mancista, chama-lhe "crönica romanccada". A estrutura 6, dc falo, místa: em torno das surpresas e deecp^oes do jovem Ansclmo, vindo da provine i a para o Rio de Janeiro, o autor alinhavou os scus capítulos, cuja insistencia nos elementos deseritivos c pitorescos lhcs trai a nalurcza de verdadciras cronicas, ornados documentos da vida carioca onde näo säo pessoas que sc movem, mas tipos, c onde os ambientes crcsccm do eseritor para o leitor, ä forc,a de minúcias acumuladas. Á primcira cxpcricncia seguiu-sc um romance atč certo ponto feliz, pela relativa sobriedade dos meios uliiizados: Miragem (1895). A hislória dc uma família alribulada pela mořte do chďc č conduzida através dc narracxTes convin-centes da vida domčstica, embora o lato cmcial da mořte do pai tenha dado a Coelho Ncto a oportunidadc para um desafogo verbal excessivo. A 1er com aten-cäo, descobre-sc que o velho cslilo dc José de Alencar, escorado no adjetivo (163) e no advérbio de modo, continuou a propor formulas deseritivas c narrativas até o advcnlo da rcvolucao modernista. O que Coelho Ncto acrcsccnía ä lin- (163) Em entrevisla concedida a Joäo do Rio, Coelho Neto dechnou: "A palavra eserita vive do adjetivo, que č a sua inflexäo" (O Momento Lilerário, Rio, Garnier, s.d., p. 54). 200 en »gern romäntica é a novidade das imagens veiculadas pelo seu realismo bur-i.'tičs, sem dúvida diverso em extensäo, se näo em profundidade, do "realismo" ulcncariano. No fundo, há um notável alargamento temático (e, portanto, lé-niľo), sem, porém, qualquer transformagäo ideológica radical. Em Miragem, ) interesse pelo documento concenlra-se na reprodugäo de urna cena a que o iiiirrador de fato prescnciou: a proclamacäo da Rcpública, vista pclos olhos do Noldado Tadeu. É o momento mais cquilibrado do livro; scgucm-no a doenca I o fim de Tadeu, cuja narracäo se inscrc no piano da exploracäo sentimental, {■m termos prolixos, de uma vida infcliz. O que, em čerta mcdida, caracteriza I romance e o estrcma dos demais, confcrindo-lhc urna cor romäntica acen-luada, que só reapareccrá, em nívcl alias superior, cm Turbilhäo. Depois de Miragem, o escrilor lancou-sc a uma criacäo ficcional febril, ilatando de 1895 scu primeiro romancc-lcnda (0 Ret Fantasma), cxpcriencia que se mostrou fecunda ao longo de sua carrcira litcrária e que sc mcsclaria n vagas tcndcncias para o espiritismo, desdc O Rajá de Pendjab (1898) até Itnorialidade (1923), passando por Esfinge (1908), além de várias colegöcs de novelas e de conlos que näo cabe aqui analisar. De releväncia, e scguindo sempře a cronologia, aparcce, cm 1897, Inverno rm Flor. Os Ions romänticos, que, ä guisa de ornamento, sombreavam a tessitura de Miragem, ccdcm aqui lugar a uma viva coloracao naturalista. Reponta a curiosidadc pelos aspectos morbidos da psique, julgados por Alufsio, Cami-uha e Julio Ribciro como incrcntcs ao romance experimental ä Zola. A here-(litariedadc docntia gera a loucura c um amor incestuoso: cis a tese documen-lada e dramati/.ada neste Inverno em Flor. Näo dcixa de ser instrulivo o con-Ironto com os naturalistas prcccdcntcs: explorando matéria que Ihc parecia menos fantasiosa, Coclho Ncto buscou no romance certo grau de concisäo, saindo-lhe äs vezes urna prosa realmente cnxuta. O mélodo naturalista fe-lo Irabalhar a biografia da personagem central, Jorge Soarcs, com os cuidados de um claborador de fichas clinicas: naseimento, infäncia, primeiros brinquedos c estudos, insistindo na aparente normalidade da vida de um filius familiae, que, no entanto (c aŕ entra o determinismo biológico), trazia cm si os germes do desequilfbrio herdados da mae, cuja insanidadc só se manifcsla quando Jorge chega ä juventude. Para o prosador maranhensc, o cssencial, porém, era a pos-sibilidade dc descrcver e amplificar os vários aspectos da degencraeäo erotica c da loucura. E, ao fixar o gesto, a aparencia rcveladora, cm sua minucia ex-pressiva, supcra, dc fato, aqucles naturalistas em cuja esteira sc pusera. Mas no conjunto, c sobrctudo na determinaeäo da rcalidadc social c de seus reflexos morais, näo atinge a forca máseula do Aluísio de O Cortico. O horizonte, literário stricto sensu, de Coelho Ncto, obstruía-lhe outras perspectivas que näo fossem a da expressividade fragmentada, propria da mentě parnasiana. Por outro lado, a sensualidadc difusa na psicologia do eseritor é responsável por um deter-se entre folhclinesco e mundano no universo dos 201 objetos: vestcs, móveis, alfaias e ninharias de alcova onde sc respira um pesmJO odor de belle époque e onde se pôem entrc parenteses, com muita frcqllcnt ni, o desenrolar dos fatos e a vida interior das personagens. O Morto (1898) é um romance todo documental, embora sem as intence » naturalistas de Inverno em Flor. Narrando a revolta da Armada, Coelho Nein reconstituiu as hesita^ôes e as fraquezas de um periodo ainda infantil da vuIh republicana. E fe-lo com fluencia. O episódio sentimental do protagonista qijj refugiado em Minas, aí encontra uma adolescente enfermica que por cle n apaixona, parccc antes apendice bucólico do que cerne dessa auténtica cronn I histórica. Em 1899, Coclho Ncto cscrcvc mais urn romance-documento, desta vtv fortemcntc autobiográfico: A Conquista. A memoria da sua juvenlude boom in, que coincidiu com as lutas finais da Abolicäo c da República, acha-se presem* em muitíssimos passos da sua obra, mas domina soberana dois de seus m mances: A Conquista e Fogo-Fátuo. Avullam as figuras dc Patrocínio, Pauli\ Ney (Nciva), Pardal Mallet (Pardal), Guimaräcs Passos (Fortúnio), Aluísio A/c vedo (Ruy Vaz), Olavo Bilac (Otávio Bivar), Muniz Barrcto (Montezuma), além do proprio autor (Ansclmo), envoltos cm urna aura dc panache que, no en tan to, näo chega a ofuscar o verossímil da reminiscencia. Toda a escala do valores do jovem Coelho Ncto, as idiossincrasias do I i terato fin de siěcle, as mazelas de uma boemia de jornal c café, que vive entrc vcleidadcs political e literárias: eis o cenário e a substancia de A Conquista, que iräo avivar-s# ainda mais em Fogo-Fátuo com aquelas mesmas figuras centrais. Para o his* toriador de nossa vida literária valcräo semprc esses dois tcslemunhos na nie dida em que entremostram as implicacôcs sociais c psicológicas de um estilo de vida onde aflora, pontilhadamente, o hibridismo dc mediocre rcalidadc c evasäo verbal. Do documento dc urna gcracäo passou dc novo ao caso psicológico, it patológia da vida doméstica, que liavia ten lado em Inverno em Flor. Trata-s» dc Tormenta (1901). A "anomália" cxplorada agora é a memoria constante da esposa morta que näo consente ao protagonista a plena fruiyäo dc suas scgundas nuptias. "Anomália" complcmcntar: os ciumcs. Mas o rcalismo descritivo qui* circunda o enredo c se arrisca a abafá-lo Icmbra urn Eca dccadcntc, infenso a vigorosas smtcscs expressivas c pcrdido cm um mar de solicitayöes igual» mcntc scdutoras que näo lem forca para reduzir c escollicr. Apesar disso, é um livro rico dc certeiras obscrvayöcs morais, que prcludiam os bons momentos narrativos de Turbilhäo. Turbilhclo, publicado cm 1906, assinala o ponto eulminante dessa carreira täo chcia dc altos c baixos. Que tal obra sc j a ignorada, como tenho const anlcmentc tcstcmunhado, que näo a levem em conta os que pretendem negar por completo a produeäo do escritor, ncm citada cm primciro lugar pelos que lhc procuram fazer algumas conccssocs, é coisa que, francamentc, näo comprcendo. S6 esse livro, pa- 202 in ľ-inc, hast aria para dar a Coclho Ncto um lugar dc dcstaquc no ficcionismo bra-tllloiro (,64). <) cscritor, procurando recusar-se ä prolixidade conatural a seu temperami tni), pode ser fiel ä frase com que acompanhou o título da obra: "Simples n mho a vcrdade". O entrecho é uno: um lar pobre, composto de viúva, filha I lilho; o rapaz labuta na revisäo de um jornal para sustenlar-se e aos seus, inu', o mcdo ä miséria e o chamado da carnc (difuso, como vimos, cm toda i! obra de Coelho Neto) corroem a modčslia digna da família. A moca foge ľiini um sedutor rico, e o irmäo, acabrunhado de vergonha, rctira-se do trabalho • i omega a involuir para uma vida vil, que a figura oleosa e lúbrica da mulata Mllniha encarna com pcrfeicäo. O enredo propiciava encontros fatais: o irmäo piline cm busca do ouro da irmä rica; a í'ilha prostituída diante da mäc humi-limdii. Mas o romancista soubc contornar os efeitos melodramáticos, fixando i""l,i a sua atengäo na verossimilhanca das situagóes e dos gestos, no cons-ii iingimcnto agudo das frascs ditas ä pressa ou com afetada desenvoltura. Emin >i a rcaparegam, indcfcctívcis, os cncaixes ornamentais na evocagäo assídua lim ambientes, o fenômcno näo chega a comprometer o nível do romance que I merge das relagôcs sócio-morais projetadas cm forma de imagens, cenas e iliAlogos, no comportamento das personagens. Alčm disso, boa parte das des-■ iigôcs obedece äquela conccpgäo mais despojada que presidiu a todo o ii nuance: leiam-sc, por cxemplo, as que reproduzem urna scssäo espírita U up. X) e o jogo no cassino (cap. XIII), ambas cxcclcntcs pela singeleza c prilincncia dos diálogos. / Depois dc Turbilhäo, Coelho Ncto demorou quase dez anos para eserc-tf|f outro romance dc ťôlego: Rei Negro (1914): andancas políticas, confe-iPncias c o ensino dc Literatura no Colégio Pedro II haviam-lhc tornado o h'inpo c as atencócs. Mas nesse novo trabalho, a quem chamou "romance liftibaro", 6 scnsívcl o desejo dc construir urna obra épica, pelas dimensôcs do herói: o negro Macambira, de nobre cstirpc, isolado e grande na senzala, inlinitamcntc superior ä abjccäo c ä luxúria sem freios dos outros cativos I, por f im, vítima e vingador da desonra conjugal que o sinhozinho branco Ihc infligira. Coelho Ncto carrcgou como nunca as tintas, näo apenas na mimese dos umbientes da fazenda, cspccialmcntc os mais sórdidos, como na exaltagäo mo-lal do protagonista. É um romance que, ä forca dc querer-se objetivo, trai demasias c ingenuidades romänticas. Serve, por ouu-o lado, de paradigma da-i|iiele estilo coclhonctano, que parcecu ä posteridade a única heranga expressiva (164) Brito Broca, "Coclho Neto, romancista", cit. 203 do prosador: linguagem virtuosfstica e acumulativa por excclöncia (165), volladn para o efeito plästico e sonoro. Alguns exemplos, comecando por uma danca dos negros: Um som rascantc, estralejado, vinha crescendo estrfdulo como um rolar de pe« droucos, vozes confusas, guais em coro, trons de tambores, rcchuchado de chocalhos, sofdos rfspidos e, sobretudo, perene, um rouco e lügubre grugulho. E ribombaram tambores, o som arranhado do gazá, ringiu, cascavelaram trépidos* chocalhos c, entrc archotcs de palma, a farändula surgiu em zanguizarra — negros c ncgras aos pulos, rcboleados, uns com plumas ä cabega, colares de cocos, manilhan c pulseiras de penas, esgrimindo paus ä maneira de zargunchos, atirando, aparando golpcs cm duclos; outros corcoveando aos arremessos íclinos, rugindo roucos; velhos, cm passos anastados, altivos, com entono scnhoril de chefes; mulheres bracejando' aos guinchos e, rctroando, puítas, marimbas, urucungos e as vozes estrugindo em burburinho horríssono que, por vezes, dcscaíam cm dolôncia funebre como um canto de morte (Cap. IV). Rcproduzindo os ruídos da noite: A noite enchia-se de vozes estranhas, os sapos coaxavam, gargarcjavam, ma-lhavam; éram trissos, zizios sutis, estrilos, pios crebos e, de quando cm quando, numa lufada mais forte, o farfalho das ramas escachoava como num rebojo dáguas (Cap. V). As sombras: As sombras animavam-se despegando-se das parcdcs como papel solto, subindo do soalho em fumaradas, afetando fornias bizarras, csguias, aladas, pairando, raste-jando, esvoacando (Cap. VI). Uma tardc de calor: O mormayo cra sufocante. O ar, parado c dcnso, abafava como as fumaradas de agosto. Quando o sol aparccia, amarelo c fusco, accndia-se um calor de febre (Cap. VI). Uma tempeslade: Longfnquos, com rcboante fragor, tronavam trovöes soturnos. (...) Cresceu a aflicao das arvores: os bambuais vergavam-sc em mesuras e o estrondo ribombava ä íulguracäo sulfúrea dos rclampagos. Mas um estampido seco estalou ríspido, vio-lcnta rajada anepiou a paisagem e a chuva áspera, grossa, chcgou cstiepitosa, täo dcnsa que fechou a vista a tudo, como um muro de afo. Acre e morno subiu da terra um bafio de barro virgem (Cap. VIII). (,65) Cf. o estudo de Fausto Cunha, "Recursos Acumulativos cm C. Neto", in Folha da Manhä, S. Paulo, 25-8-1957 c 8-9-1957. 204 As nuvens da tardc: No ar cerúleo da tarde, sob o vôo errático dos morcegos, aqui, ali, esgar-cando-se das moutas, fluiam fumos diáfanos fundindo-se no espago nevoado (Cap. X). Säo trechos que bastam para delimitar o estilo típico de Coelho Neto: evi-■Irnlcmente sincrético, na medida em que tende a amalgamar a intencäo do-i iimcntal com o brilho da palavra plástica c sonora. Näo se deve reduzir toda n prosa de Coelho Neto a esse modulo, se bem que mais vistoso e freqiicntc, lal a variedade de aspectos de sua obra. Tambčm näo parece lícito negar-lhe u dom de um genuíno talento expressivo, condicäo primeira de todo artista. ( oclho Neto näo era um escritor arbitrário c falho enquanto homem que usava ílu palavra como instrumcnto scmäntico; sua linguagem é corrcta e precisa até fto pedantismo, ä obscuridade, ao preciosismo. O que validamcnle se Ihe con-iĽsta é aquela qualidade rara de atingir sem escórias um nível de proíundidadc. Sem essa virtude, forma superior da concisäo, näo se chega a resistir ao tempo, isto é, ä conscicncia dos valores, cujos caminhos levam cada vez mais para a concentracäo no essencial. Reabilitá-lo incondicionalmcnte tern, por tudo isso, ares de quixotismo dig-no de melhor causa; mas compreendc-lo cm sua situacäo histórica é tarefa que o crítico de hoje podc c deve tentar. Afränio Peixoto Partilhando com Coelho Neto os caracteres mais notäveis do rcalismo epi-gönico, Afränio Peixoto (,66) näo deixou, por6m, uma obra de ficcäo täo volumosa, dadas as suas mültiplas curiosidades de divulgador e crudito. Escrcvcu romances de costumes rurais, continuando uma tradicäo que vi-nha de Alencar e Taunay. Seu rcalismo scrtancjo 6, portanto, de extragäo ro-mäntica; de um romantismo, entenda-se, lemperado, nascido de uma persona-lidade alheia a violcncias, observadora, maliciosa mas sem fei, no fundo tolerante c epicurista: em suma, belle öpoque. (166) JOlio Afranio PmxoTo (Lcnc6is, Bahia, 1876 — Rio, 1947). Ficgao: A Esfinge, 1908; Maria Donita, 1914; Fruta do Mato, 1920; Bugrinha, 1922; As Razdes do Coracao, 1925; Uma Mulher como as Outras, 1928; Sinhazinha, 1929. Consultar: Tristao dc Ataf-de, Primeiros Estudos, 2" ed., Rio, Agir, 1948; Lconfdio Ribciro, Afrdnio Peixoto, Rio, E. Conde, 1950; Lucia Miguel-Pcrcira, Prosa de Ficcdo, cit:, Afranio Coutinho, "In-troducao Geral" aos Romances Comf)letos, Rio, Aguilar, 1962; Lufs Viana Filho, "Aprc-sentagao" a Afrdnio Peixoto — Romance, Rio, Agir, 1963. 205 Quanto äs suas tentativas insistcntes e insinuantcs dc lazer "psicologia fc-minina" (167), a verdade é que nunca ultrapassaram os lugarcs-comuns do pro-vincianismo cultural de festejado académico. Entretanto, mais direto e mais diplomático no uso da linguagem que Coelho Neto, distante dos extremos e propenso ä irónia, o autor de Maria Bonita pôde estabelecer, com éxito rápido, contato com um publico despretensioso, o que deve ser dito em seu favor, pois respirou na juventude urna atmosféra de rcquinte parnasiano-decadente, como atesta seu primciro e único livro dc vcrsos, Rosa Mística, editado em cinco cores por urna tipografia dc Leipzig... Largos trechos dc suas histórias citadinas (A Esfinge, Urna Mulher como as Outras, As Razöes do Coracäo) semclham crônicas mundanas, tal a fluéncia jornalística c um pouco fácil dcmais dos cpisódios. Os contrastcs entre as per-sonagens c, cm particular, cntrc cstas c as circunstäncias, näo se interiorizam, isto é, näo sc transformam cm conľlitos, diluindo-se entre flashes da vida em socicdade ou comcntários acacianos que sc pretendem linos e argutos. Nos romances de ambientaeäo baiana c scrtancja {Maria Bonita, Fruta do Máto c Bugrinha), cssa facilidade agrada, pois tern algo dc naturalmente bu-Ľólico, causando efcito inverse- ao do regionalisino prolixo c arrebicado que tanto sc dcplora nos contos de Coelho Neto c A leides Maya. Scja como for, Aí'ränio Pcixoto guardava distäncias psicológicas c estilfsticas dos ambientes evocados: sabia dctcr-sc no mcio do caminho cntrc o preciosismo c a trans-cricäo folelórica, cntrc o ornamcnto c o documcnto. Dai a elegancia simples e corrcnte dos seus melhores romances: Maria Bonita e Fruta do Mato. Em Sinhazinha, scu ultimo romance, Alränio Pcixoto, seguindo ainda o rico vcio dc Alcncar, dcu urn excmplo dc rcconstituicäo histórica, narrando as lutas sangrcntas cntrc duas famflias Iradicionais do alto Säo Francisco; mas aqucle mes-mo mundanismo diplomático que Ihc dcsvirilizara os primciros romances o im-pediu aqui dc ascender ä cpicidadc bronca que o argumcnto propiciava. Xavier Marques A Bahia scrtancja dc Alränio Pcixoto näo č a de Xavier Marques (168). Este, idílico marinista, povoou sua novela Jana e Joel com os gônios e as sercias da Ilha dc Itaparica. (167) Em quase todas as suas obras: Lucia (Esfinge), Olfmpia e Helena (Uma Mulher como as Outras), Maria (Maria Bonita), Joaninha (Fruta da Mato), Bugrinha e Sinha-zinha, nos romanecs homônimos. (I6H) Francisco Xavitír Ffírriiira Marques (Ilaparica, Bahia, 1861 — Salvador, 1942). Urna Família Baiana, 1888; Boto & Cia., 1897 (reed. como O Feiticeiro, 1922); Praiei-ros —Jana e Joel, 1889; Pindorama, 19(X); Holocausto, 1900; O Sarg ento Pedro, 1902; A Boa Madrasta, 1919; As Voltas da Estráda, 1930. Consultar: David Salles, O Fic-cionista Xavier Marques, Rio, Civ. Bras., 1977. 206 Tambčm o rcgionalisnio dc Xavier Marques está permeado de tons ro-mánticos, tanto que os amadores de fontes literárias já lhe apontaram influén-Cias de Bernardin de Saint-Pierre e de Chateaubriand, a que se deve acrescentar o grande filtro lingíiístico que foi José de Alencar. Há, porém, uma nota original na prosa do novelista baiano: a estilizacäo do folclore praieiro. As lendas da sereia e do boto (no conto "A Noiva do Golfinho"), com seus componentes eróticos e fantásticos, cmprestam um ca-rálcr insolitamente mítico ä prosa documental c parnasiana do autor, também responsável por uma acaděmica Arte de Escrever e por dois romances histó-ricos, alencarianos no espfrito, mas estritamente casticos na linguagem: Pin-dorama e O Sargento Pedro. O regionalismo como programa Apesar do prestígio academico de Coelho Neto e de Afränio Peixoto, ncm toda literatura regionalista perdeu-se nos extremos do precioso ou do banal. Em alguns conlislas cuja producäo aparece no comeco do século, a matéria rural é tornáda a sério, isto é, assumida nos seus precisos contornos íísicos e sociais dentro de urna concepcäo mimética de prosa. É o caso do regionalismo de Valdomiro Silvcira, de Simóes Lopes Ncto, de Hugo de Carvalho Ramos, que rcsultou dc um aprovcitamento literário das matrizes regionais. Na medida em que esse trabalho foi consciente aerescentou algo ä práxis literária herdada ao Naluraltsmo. Este algo pode interpretar-sc como o lado brasileiro da oscilacäo pcndular nacional-cosmopolita, que marca as culturas dc extracäo colonial. Na maré parnasiano-decadente do f im do século, a con-ľiguracäo polemica c até certo ponto neo-romäntica da vida rústica precede o nacionalismo exaltado dos modernistas. E sc um Valdomiro e um Simôcs Lopes näo puderam fazc-lo por meio dc urna revolucäo formal cm virtude da sua propria história inlclcctual, toda século XIX, o fato dc tercm pensado a terra c o homem do interior já era um sintoma dc que ncm tudo tinha virado belie époque no Brasil de 1900. O projeto explfcito dos regionalistas era a fidelidade ao meio a deserever. no que aprofundavam a linha realista estendendo-a para a compreensäo dc ambientes rurais ainda virgens para a nossa ficcäo. Voltando as costas para as modas que as elites urbanas importavam, tantas vezes por mero csnobismo, puseram-se a pesquisar o folclore e a linguagem do interior, alcancando, cm alguns momentos, efeitos estéticos notáveis, que a cultura mais moderna c consciente de um Mário de Andrade e de um Gui-maräcs Rosa näo dcsdenharia. Chamá-los de "pré-modernistas" é, no entanto, 207 arriscar-sc a qUiproquOs. O autor clcstas linhas nan pAdc, a ccrta altura ('*"), cvitar os cscolhos da ambfgua ctiqucta, mas scniprc é tempo dc desfazer rqui vocos. E o melhor modo de dcsfaze-los neste caso 6 situar o problema ä In ■ das componentes dinämicas do Modernismo. (O Modernismo, tornado na acepcäo estrita do movimcnto nascido cm loruó da Scmana de 22, significou, cmum primeiro tempo, a ruptúra com a roiinA academic a no pensamento e na linguagem, rotina que isolara as nossas letras dm grandes tensôes culturais do Ocidente desde os fins do século. Conhecendo • rcspirando a linguagem de Nietzsche, dc Freud, de Bergson, de Rimbaud, dc Mn rinctti, dc Gidc e de Proust, os jovens mais lúcidos de 22 fizeram a nossa vidu mental dar o salto qualitativo que as novas estruturas sociais já estavam a cxign Ncssc abrir-sc ao mundo contemporinco, o Brasil reitcrava a condicäo de puli periférico, semicolonial, buscando normalmentc na Európa, como o fizera em 1830 com o Romantismo ou em 1880 com o Realismo, as chaves de inici prctacäo dc sua propria realidade. Entrctanlo, a mesma corrente que fota aprender junto á arte ocidental modos novos de expressäo refluiu para un\ conhecimento mais livre e direto io Brasil: o nacionalismo séria o outro lado da praxis modernista. Podc-sc hoje insistir numa ou noutra opcäo, c contcstar nos homens dl 22 ccrto exotismo estčtico, ou, na linha oposta, o scu amor äs solucôes fol clóricas, neo-indianistas, nco-romanlicas... Mas o que näo parecc muito inte ligente é condenar com arbítrio a-histórico o caráter duplice que deveria la talmcnte assumir a cultura entre provinciana c sofisticada dos anos de 20 cm Säo Paulo. Na sua vontadc dc accrlar o passo com a Európa, sem dcixar do ser brasilciro, o intelectual modernista criou como pôde uma nova poesia, um novo romance, uma nova arte plástica, uma nova música, uma nova erítica; c a scu tempo sc verá o quanto aindalhe devemos.) A digrcssäo acima tem um semido: moslrar cm que alguns dos nossos regionalistas prcccdcram, cm contwto diľcrcntc, o vivo interesse dos mo-dernos pela realidade brasilcira total, näo apenas urbana. Hoje, quando já sc incorporaram ä nossa consciencialitcrária o alto regionalismo erítico dc Graciliano Ramos c a experiencia cslctica universal do regionalista Guima-räcs Rosa, é mais fácil reconhcccro trabalho paciente c amoroso de um Valdomiro e dc um Simôcs Lopcs, vollados para a verdade humana da provincia; c tanto mais convcncc csscesťorgo quando nele entrevemos, para além da fruicäo do piloresco, a pcsquisa dc urna possívcl poética da orali-dade. Nem seria razoável pedir-lhesmais, que todos foram prosadores eres-cidos na tradicäo do conto oitocenlisia. C69) Em O Pré-Modemismo, cit., cap III. 208 AIoiiso Arinos (l7°) Albnso Arinos (m) é o primeiro escritor regionalista de real importäncia ■i i niisidcrar nesse periodo. Histórias e quadros sertanejos constituem o grosso y\v nc*ii livro Pelo Sertäo. Näo se lhe pode negar brilho descritivo, näo obstante 9 inmudcncia pedante e näo raro preciosa da linguagem. No afä dc caractcrizar Ifthugcns c ambientes, chega a distrair a atcnfäo do lcitor, pcrdendo em forca m Hoitos patéticos dos finais. Ncle, é cvidcnte um compromisso cntre os pro-• ■-■sos dcscritivos do Realismo e o sal vernacuiizante dos pamasianos. Sirva 1!« cxcmplo este periodo: Um, de passagem, aticava o logo, oulro carregava o ancorote cheio dágua frcsca; qual corria a lavar os pratos dc cstanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha. As vezeš, prcdomina o homcm culto, de diccäo "nobre". Cantando a glória Mu buriti, em hino escolarmcnte antológico ä árvorc solitária, vém-lhe ä mentě upioximacóes rctóricas com o mundo grego: Nem rapsodistas antigos, nem a lcnda chcia dc poesia do cantor cego da Ilíada, comovem mais do que tu, vegetal anciäo, cantor mudo da vida primitiva dos sertôcs. E, alguns períodos adiantc, acrcsccnta um grito báquico ás suas exclama-tOcs: Pocta dos dcscrtos, cantor mudo da natureza, virgcm dos scrtôes, cvoč. Aflora ncsscs trcchos a patina culla, a forma mentis parnasiana do seu irgionalismo. Näo raro, colocando cntrc parcntescs a intcncäo scrlanista que ilA třtulo ao livro, o prosador abandona-sc ä propria tendencia dc erudito bri-Itiante, compondo reconstitutes históricas que tem sua elegancia. É o caso dc "A Cadcirinha", crônica dc um virtuose cm torno dc um objeto rococó dos tempos coloniais, csquecido no fundo dc uma sacristia de Ouro Preto. O mesmo senso de obscrvagäo histórica faz dc O Contratador de Diamantes ("episódio do século XVIII — iragmento") um esboco dc romance histórico ä Alencar, (no) Transcrcvo com retoqucs as páginas dedicadas a Afonso Arinos e aos outros icgionalistas cm O Pré-Modernismo, cit. (17ľ) AľoNso Arinos díí Mrlo Franco(Paracatu, Minas, 1868 — Barcelona, 1916). Velo Sertäo, 1898; Os Jaguncos, 1898; Lendas e Tradicôes Brasileiras, 1917; O Mestre tle Campo, 1918; Histórias e Paisagens, 1921. Cf. Tristäo de Ataíde, Afonso Arinos, Kio, Leitc Ribciro & Maurflio, 1922; Eduardo Frieiro, Letras Mineiras, Os Amigos do l.ivro, 1937. 209 género para o qual Arinos dcmonstrou vocacáo, como 0 atcsta sua crónica Jagungos. De resto, era consciente no escritor certo saudosismo que oscilava entip o erudito e o sentimental: Nesta nossa terra, onde as tradigĎes tao depressa se apagam, tao cedo sc quecem as velhas usances, — o encontro muito raro de algum objeto antigo tnu sempře para mim cousa de delicado e comovente. Móveis ou telas, papéis ou vcn-tuários — na sua fisionomia esmaccida, no seu todo de dó — eles me falam nu sentido como uma música longínqua e maviosa, onde se contam longas histórias ili amor, ou se refcrem dramas pungentes de nfto sabidas lutas e misérias (Pelo Serhh> — "A Velhinha"). No enlanto, a face propriamcntc regionalista 6 rcspeitável em Pelo Sertáo.I Em alguns "causos" do sertáo minciro, Arinos soubc comunicar com exatidáo e contido scntiincnto a vida agrcstc dos tropciros, campciros c capatazes, pin-tando-lhcs os hábitos, as abusocs, o fundo moral a um tempo ingenuo e vio« lento. Soubc, alóm disso, visualizar como poucos a paisagem mineira, de sortc que, abstraindo um ou outro rebuscamcnto de linguagcm, explicávcl pela cuU tura cm que sc formara, Afonso Arinos ainda pode ser considerado um dos bons "dcscritorcs" do conto brasileiro. Quanto á narracáo, os seus momentos altos sáo, naturalmcntc, aqueles eml que prcdomina a simplicidade, colhcndo o autor a vida ambicnte á superfícic dos fatos ("Assombramcnto" — Parte III, "Joaquim Mironga" c "Pcdro Bar-queiro") e assumindo-a em um nível estilístico medio, acima da mcra trans-1 criyao folclórica, mas abaixo de uma intuiyáo profunda da conditio human! subjacente ao "tipo regional". Sáo momentos de cquilíbrio litcrário, que conl firmám a reputa^áo de bom escritor que os próprios modernistas náo negararrj ao prosador de Pelo Sertáo. A crítica, a comecar pelo livro clássico de Tristáo de Ataídc, foi, en) geral, laudativa, mas apresenta uma voz discordantc: o inteligente c irre-1 verente Eduardo Friciro, cujo ccticismo č ťrancamente hostil a personalidade do escritor, preferindo rccortar os pcríodos artificiais, friamente parnasianos,! que pontilham os contos de Pelo Sertáo. Será o caso de dizer: 6 verdade,) ma rum troppo. A presence de uma ars diclandi hoje antiquada, na fatura' lingiiística do livro, náo invalida o acerto deseritivo ncm a flucncia narrativa daqueles momentos pelos quais Afonso Arinos tem permanccido na história da prosa brasilcira. Por outro lado, sc o compararmos a outros sedizentes regionalistas no romance c no conto de seu tempo, náo nos será lícito su-bestimar o cquilíbrio que o "patriarca" minciro soubc manter entrc os dois pólos da sua formagáo literária. 210 Viildomim Silvcira Valdomiro Silvcira (»72) compartilha com Afonso Arinos o mérito ^e n i iiiiciado cm nossas letras urna prosa regional ao mesmo tempo patétiía i vera/ (l73). I)c velha cepa paulista, caipira de corayäo e cultura, este juiz e homcm publico sem mácula consagrou o melhor de seu talcnto na expressäo do inf10 i nboclo, logrando alcancar efeitos de aderencia ä vida e ao falar sertanejo cm vt-idade admiráveis. Arinos temperava a transcriyäo da linguagem mincira com um sensit i ninprazimento de prosa clássica; já em Valdomiro Silvcira predomiiiao go$t° il.i lala regional em si mesma: sintaxe, modismos, Ičxico, fončtica, quase tuao ik ha-se colado ä vivéncia dos homens e das coisas do interior. Devem-se distinguir, para melhor apreciar criticamentc a sua obra, os ccn-ins em que o amor äs vozes semidialetais súpera de muito a trama romancíca iľ\.: "O Truco", em Leréias) c aqueles cuja camada verbal serve do instíumei'10 iluctil e eficaz ä rcprcscntagäo dos dramas caboclos. Exemplo magnífico deste segundo tipo č o conto "Camunhengue", inserto i m Os Caboclos, história de um sitiante que, conlraindo lepra, deve abandoiiar ti propria família afundando-se no malo como um réprobo. Ambiente, pathos Q palavra fundem-se nos diferentes momentos da história, desdc a consultana inpcra do eurandeiro, ao cair da noitc (trecho exemplar de fixacäo de uina atmosféra), ató o episódio final, no mcio da tempestade: (172) Valuomko Sii.viíiRA(Caclioeira Paulista, 1873 — Santos, 1941). Os Cabodos, \n0; Nas Senas e tias Fumas, 1931; Mixuango, 1937; Leréias. Historian Contddas por Eies Mesmos, 1945. Cf. O Mundo Caboclo de Valdomiro Silveira, Rio, José OlymP»o, 1^77; Carmen Lydia de Souza Dias, Paixáo de Raiz, Ática, 1984. O73) Agenor Silvcira rcivindica para Valdomiro Silvcira a prioridade na compos^o de contos regionalistas. Rcproduzo, a título de documentacäo, palavras suas cndcrccadas u Monteiro Lobato, o primeiro editor de Os Caboclos: "Antes de tudo, č bom ir-te dizendo que Valdomiro foi o criador da literatúra regionalista no Brasil. Quero fazer-lhc justica, que outros demoram tanto em praticar, cor-rendo-lhes, mais que a mini mesmo, o desempenho de täo Ieve obrigacäo. De fato, até 1891, data em que aparece no Diário Popular de Säo Paulo, o seu primeiro conto in-utulado "Rabicho", nao me Consta que nenhum escritor brasileiro manifestasse qualfluei pendor para o regionalismo que desdc entäo se tomou a nota mais viva das duas Politicoes, estampadas no Diário da Tarde, no Pais, na Gazeta de Noticias, na RruSa e na Revista Azul. (...) A escola por clc fundada, prestigiou-a desde logo a pena iliistre de Afonso Arinos, honrou-a com seus trabalhos o imortal patricio Coclho Neto, c nela se inscreveram muitos c muitos outros nomes, inclusive o do fulguiante autor dos UrWés ("Prefácio" ä Is ed. de Os Caboclos). 211 Sá Januária chamava-o chorando dcscspcrada. E ele pcrguntou-lhe de repcnte: — Eu volto, sim, eu volto: vocé quer que eu deite na sua cama? Ah? näo quei. pois antäo? O mundo é mesmo assim! Recomecara a chover miudamente, o sol passava frouxo e sem quentura pel ax cordinhas ďágua, quando o Zeca Estevo bateu o taläo nas ancas da mula e diss« com voz em que havia uma tristeza infinita e um desespero inenarrável: — Adeus, antäo, meu povo dalgum tempo! Voltou a ventania, primeiro quase mansa, depois furiosa e uivante. E enquanto ele se sumia na reviravolta do caminho, a chůva engrossava, pouco a pouco, até so fazer outra vez um poder de tempestade: — ... Ai meu Säo Bom Jesus do Pirapora! Dcntro dessa linha de intencäo e de realizafäo, situa-se quase toda a prosa de Valdomiro Silveira: quadros de paixöes elementares ("Desespero de Amor"; "Velha Dor"), tendencia para o patético ("Esperando") c para o trágico ("Cu riangos", uma obra-prima), c, onipresente, a preocupacäo com o registro exato dos costumes interioranos. Simöes Lopes Neto Joäo Simöes Lopes Neto (174) é o patriarca das lctras gaúchas. Dentro do quadro global do rcgionalismo antcmodcrnista é nelc que se reconhece imediatamente um valor que transcende a categoria em que a história literária sói fixá-lo. É o artista enquanto hörnern que tem algo de si a transmitir, ainda quando pareca fazer apenas documentário de urna dada situaeäo cultural. Seus contos fluem num ritmo täo espontänco, que o caráter semidialetal da lingua passa a segundo piano, impondo-se a verdade social e psicológica dos entrechos e das personagens. O caso do tropeiro que perdeu numa barranca as trezentas oncas de ouro do paträo é narrado com a singeleza de um conto ao pé do logo, mas as imagens e metáforas que nele campeiam atestam a forca pessoal de um cstilo que domina a propria matéria. Ao dar pela perda, diz o gaúcho: (l74) JoáoSimóbs Lopbs Nrto (Pclotas, Rio Grande do Sul, 1865-1916). Cancioneiro Guasca, 1910; Lendas do Sul, 1913; Contos Gauchescos, 1926; Casos do Romualdo, 1952. Consultar: Manoclito dc Ornelas, Sfmbolos Bárbaros, Porto Alcgrc, Globo, 1943; Augusto Mcycr, "Prcfácio" á ed. crřtica tle Contos Gauchescos e Lendas do Sul, P. Alcgre, Globo, 1950; Aurélio Buarquc dc Holanda, "Linguagem e Estilo de S. L. N.'\ Introducao a ed. cit.; Carlos Reverbel, "J. SimSes Lopcs Ncto, Esboco Biográfico", Pos-fácio a cd. cit.; Lúcia Migucl-Pcreira, Prosa de Ficcáo, cit.; Moisčs Vcllinho, "Apre-scnlacao" a Contos e Lendas de S. L. N., Rio, Agir, 1957; Lřgia Chiappini Leite de Moracs, Regionalismo e Modernismo, S. Paulo, Ática, 1978; c No entretanto dos tempos, S. Paulo, Martins Fontes, 1987. 212 E logo passou-me pelos olhos um claräo de cegar, depols uns coriscos, tirantc a roxo... depois tudo mc ficou cinzento, para escuro... N as descricôes o colorido sai sempre natural, nunca empastado pelo amor do pinturcsco a todo custo: A estráda estendia-se deserta; ä esquerda, os campos desdobravam-se a perder íle vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, machucados de pontas de gado que iam-se arrolhando nos paradouros da noite; ä direita, o sol, muito baixo, vermelho, dourado, cntrando em massa de nuvens de beiradas lumi-nosas. E há narracôcs de desfechos trágicos, cujas imagens permaneceräo na his-lóiia de nossa prosa de arte: a morte da jovem no päntano, perseguida pelo srdutor e acompanhada da rosa vcrmelha a boiar sobre o lodo ("No Manan-hul"); o fim sangrento do boi velho, página doída e fcroz, hojc página obri-galória de antológia ("O Boi Velho"); ou a do contrabandista que fora buscar I vcstido de noiva para a filha a qual recebc o pai morto c o trajo nupcial nnpapado de sangue ("O Contrabandista"). Näo se iníira, porém, que os contos do prosador gaúcho se construam npcnas em fun^äo dcsses cfeitos impressionantes: cles crcscem harmonicamen-Ic, integrando a paisagem c os caractcres no entrecho. Essa arte, que faz de rada inflexäo de estilo um modo necessário de exprimir o hörnern c as coisas, r urna arte viril alheia äs tendéncias da prosa ornamental de scu tempo. Das lendas do Cole lore gaúcho que Simôes Lopes Neto fixou, rcspeitoso da oralidadc poética que as anima, lembrcmos cm primciro lugar a de A M'Boitalá (a cobra-dc-fogo), cujo belíssimo princípio pede transcricäo: Foi assim: num tempo muito antigo, muito, houve uma noite táo comprida que pareccu que nunca mais haveria luz do dia. Noitc cscura como brcu, scm lume no céu, sem vento, sem serenáda e sem rumores, sem chciro dos pastos maduros nem das ílorcs da malaria. Os homens viveram abichornados na tristeza dura; e porquc churrasco näo havia, näo mais sopravam labaredas nos ľogoes c passavam comendo canjica insossa, os borralhos cstavam se apagando c era preciso poupar os tigôes... Os olhos andavam täo enfarados da noite, que íicavam p;uados, horas e horas, olhando, sem ver as brasas vermclhas do nhanduvaŕ... as brasas somente, porquc as faíscas, que alegram, näo saltavam, por falta do sopro forte das bocas contentes. E a lenda gaúcha por excelencia, "O Ncgrinho do Pastorcio", cm que o grande eseritor soube infundir andamento de bíblica solenidade: Caiu a serenáda silenciosa c molhou os pastos, as asas dos passaros e a casca das írutas. Passou a noitc de Deus c vcio a manhä c o sol encoberto. E trés dias houve ccrragäo forte, e trôs noites o cstaneieiro teve o mesmo sonho. 213 Simôes Lopes é o caso limite de urna tradicäo ou cullura que sc emanu em urna sensibilidade riquíssima sem perder nem desfigurar (ao contrário, *n blinhando) seus tragos específicos. E o exemplo mais feliz de prosa regionu Ihlu no Brasil antes do Modernismo. Alcides Maya Numa direcäo aparcnlementc igual ä de Simôes Lopes, mas em substitut in diversa, o gaúcho Alcides Maya (175) rcprcscnla o regionalismo artificioso dm tro de um cstilo cntrc parnasiano e dccadentc. Näo se deve explicar o pro ciosismo ä Coclho Neto dc Alcides Maya por urna situacäo cultural pin vinciana. Ele era intclcctual de razoávcl cspírito crítico, como provám smi ■ páginas sobre o humor machadiano. O seu provincianismo derivava da pm pria tradicäo parnasiana ainda em vigor c rcprcscnlada com éxito naciomii por aquelc mesmo Coclho Ncto, que, alias, prefaciou 'Yopera. Inteligencia menos inventiva que assimiladora, Alcides Maya serviu-sc da matéria regional para projetar urna preocupacjío de estilo "elegante" c frondoso, cam ä literatura da čpoca. Diz Moisés Vellinho: ... ele recorre a palavras como "deslumbroso" por deslumbrantc, "cabeladunr por cabeleira, "resplendorar" por resplandcccr, "íiílvido" por ľulvo, "eolorizar" poi colorir, "aligar-se" por ligar-se, "revolutos" por revoltos, "espavorecidos" por espa voridos, "remordaz" por mordaz, c assim por diante, atč o infínito (Letras da Pro víncia, cit., p. 19). Esse mesmo caráter assimilador, que desfigurava cm vez dc orientar a imaginacáo do contista, levava-o a "analisar" as suas personagens, insistindo cm motivates palológicas, dc eunho naturalista retardado, mas que continua-vam como ingrediente constante na ficcäo anterior ä Primcira Guerra. Trata-se, em suma, de um caso extremo dc mistura parnasiano-regionalista, incapaz de abrir caminhos, ao contrário dc Simôes Lopes Ncto, cuja forca artística näo cessou atč hojc dc obter rcconhccimcnlo. (175) Au:H)i;sCastiliio Maya (Säo Gabriel, Rio Grande do Sul, 1878 — Rio, 1944). Ruínas Vivas, 1910; Taper a, 1911; Alma Barbara, 1922. Cf. Augusto Meyer, Prosa dos Pagos, Säo Paulo, Martins, 1943; Moisés Vellinho, Letras da Provincia, P. Alegre, Glo-bo, 1944; Floriano Maia D'Ávila, O Meto Ambiente na Obra de Alcides Maya, Rio, Instituto Brasileiro de Educacäo, Ciéncia c Cullura, 1958. 214 11 ■ ■ i*c» de Carvalho Ramos A vida dos tropeiros goianos encontrou seu narrador no malogrado Hugo id i .iivalho Ramos (176), jovem hipersensivel que morreu suicida aos vinte e •i i. -mos. Seus contos, reunidos em Tropas e Boiadas, revelam plena aderéncia Hit* iniiis variados aspectos da natureza e da vida social goiana que reponta Hijinosa em toda parte, näo obstante certa cstilizagäo preciosa a que, alias, ililiulincnte poderia subtrair-se o adolescente inseguro rccém-vindo da provin* in para a Capital. I )c seu e de bom, Hugo de Carvalho Ramos trouxe o frescor da memoria I um andamento sem pressa, que dá tempo ao leitor para ver também ele uns . iiiupos verdes e ondulados brilhando ao sol, e ouvir uns silencios de mata i in/enta e enluarada que näo se esquecem. li a presenca e a inteligencia do folclore cm seus mclhorcs contos ("Mágoa cs resistentes ao inipacto modernista. Do ponto dc vista idcológico, foi o pocta que mel hor exprimiu as tendén-cias conservadoras vigentes depois do interregno ľlorianista. Á polílica reno-vadora que animara alguns fautores da Rcpública seguiu-sc um meufanismo cstático c vazio, amante da tradicäo pela Iradicäo considerada cm si mesma como beleza. Bilac, pocta dos nautas Portugueses cm Sagres c dos bandeirantes no "Cacador dc Esmcraldas", será também o cantor cívico da bandeira, das armas nacionais c o didata hosanante das Poesias ínfantis. Quanto ä sua poesia lírica, também sofre uma inflcxäo, näo dirci inlimista, que a rigor nunca o foi, mas crepuscular, nos sonetos de Tarde, no qual o exaltado nacionalismu ("Patria, latejo cm ti") sobrclcva os ardores scnsuais cm declínio ("Sou como um vale, numa lardc fria") c avultam as sombras do oulono. Digam-no os títulos dc alguns sonetos: "Sonata ao Crcpúsculo", "O Crepúsculo da Beleza", "O Crepúsculo dos Dcuscs", "A um triste", "Respostas na sombra", "Milton ccgo", "Migucl-Ángelo Vclho", "A Vclhice de Aspásia", "Marcha Fúncbre"... Falando desse crepúsculo bilaqucano, observou Manuel 228 Itundcira com o sal da irónia: "Descjaríamos incnos clangor de metais ncssa 1i ivo sinlonia da tardc" (187). Aludia, dc ccrto, ao fecho dc "Sinlonia", o ultimo miiiľlo do livro: Hoje, meu coragao, num scherzo de ánsias, arde Em flautas e oboés, na inquietacäo da tarde, E entre esperangas foge e entre saudades ena... E, heróico, estalará num final, nos clamores dos arcos, dos metais, das cordas, dos tambores Para glorificar ludo que amou na terra! Oulros parnasianos Além da tríadc, o Parnaso contou com um numero considerável de poctas, que apesar de "menorcs", mcreccm lcitura, pois ncm sempře se limitaram a itpctir os modclos consagrados. Assim, há muilo dc pessoal nos Cromos i 1881), de B. Lopes que, antes de sc perder no estctismo csnobe dos Brasáes I dc Val de Lírio.s, desenvolveu uma linha rara entrc nós: a pocsia das coisas ilomésticas, os rilmos do colidiano. Merecc igualmentc alcncao Augusto dc Lima (1859-1934) que percorreu its várias elapas da pocsia pós-romäntica, desde cxpcricncias juvenis de lite-mlura social ate a vcrtcntc religiosa dos simbolistas, mas dcixou o mclhor de .i nas Contempordneas (1887), que partilham com os pocmas de Raimundo < 'orreia o matiz lilosofantc, mcnos comum entre os nossos parnasianos. Da mcsma geracao que o mineiro Augusto de Lima, os gauchos Fontoura Xavicr (1856-1922) c Múcio Tcixcira (1857-1928) conlribuíram com suas paráfrases dc Baudelaire para encorpar o veio realista c erólico do Parnasianismo. I seu único livro: Luz Mediterränea. Imagem de um mundo luminoso, apreendidu por uma sensibilidade plastica, amante da forma e da cor: na lisa superfíi n os aspectos solares da arte helénica e do Renascimento italiano; no fundo, um ideal de sereno hedonismo, inspirado em Renan e em Anatole France. Sem dúvida, a "Ode a Bilac" e os poemas que abrem Luz Mediterränea in duzem a essa interpretace: o "Pórlico" e os versos a Florenga säo ambos variayOf, do mesmo tema da graca pagä, da ática clareza, da elegäncia florentina. Cidade de Ironia c da Beleza, Fica na dobra azul de um golfo pensativo, Entre cintas de praias cristalinas, Raigando iluminuras de colinas, Com a graca ornamental de um cromo vivo. ("Pórlico") Trago-te a minha gratidäo latina Porque foi no teu scio que se fez Toda a ressurreicäo da Vida luminosa: Ó Florenca! Ó Florenca! Amais humana das eidades vivas! Amais divina das eidades mortas! ("Florenca") Mas näo se explicaria a estima que a Raul de Leoni dedicaram criticos modernistas e pós-modernistas, se a sua arte se csgotassc no estetismo, fossc este embora de gosto mais apurado que o dos demais hclenizantcs da época. Sobre os neopaniasianos näo há um estudo sistemático, mas podem-se 1er com pro-veito as notagöes de Agripino Grieco, na Evolucäo da Poesia Brasileira (Rio, Ariel, 1932). A melhor antológia č a de Fernando Góis, Panorama da Poesia Brasileira, vol. V, O Pré-Modernisn\o,R\o,Ed. Civilizacäo Brasileira, I960. (19S) Raul du Leoni Ramos (Petrópolis, 1895 — Itaipava, RJ, 1926). Feitos os estudos secundários, viajou para a Europa (trazendo vivas impressöes da arte clássica e renas-centista). Cursou Dircito no Rio de Janeiro, distinguindo-se pela finura de espfrito e, caso raro no tempo, pelo amor aos esportes. Apadrinhado por Nilo Pccanha, teve acesso fácil ä diplomacia, servindoem Montevidču e no Vaticano, mas por pouco tempo. Eleito deputado estadual (RJ), näo pôde prosseguir na carreira política por motivo de doenca. Sabendo-se tísico, relirou-sc para Itaipava, no interior do seu Estado, aí falecendo aos Uinta e um anos de idadc, Obra: Luz Mediterränea, 1922. Cf. Agripino Grieco, Vivos e Mottos, Rio, Ariel; Nestor Vítor, Os de Iloje, S. Paulo, Cultura Moderna, 1938; Carlos Dante de Morais, Realidade e Ficcäo, Rio, Ministčrio de Educacäo e Saude, 1952; Ger-mano de Novais, Raul de Leoni, Porto Alegre, tese universitária, 1956. 236 lln em Luz Mediterránea a mfto do artista capaz de versos soberbos de visua-li/.ayao e de ritmo: o dom da expressáo nítida, da palavra dúctil, da imagem plasmada sem rugas nem manchas assistia no jovem poeta. Por isso, seus versos icsistem em meio á geral caducidade da poesia neoparnasiana: Eu era uma alma fácil e macia, Qaro e sereno espelho matinal Que a paisagem das cousas refletia, Com a lucidez cantante do cristat. ("Adolescéncia") Espírito flexível e elegante, Ágil, lascivo, plástico, difuso, Entre as cousas humanas me conduzo Como um dcstro ginasta diletante. Comigo mcsmo, único e confuso, Minha vida č um sofísma cspiralante; Tcco lógicas tréfegas e abuso do Equilíbrio na Dúvida flutuante. Bailarino dos círculos viciosos, Faco jogos sutis de idčias no ar Entre saltos brilhantcs e mortais. Com a mcsma pctuláncia singulár Dos grandcs acrobatas audaciosos E dos malabaristas de punliais... ("Mefisto") O mundo das formas em Raul de Leoni náo se arma, porčm, sobre o puro vazio do cstctismo: anima-o uma contida vibracáo (que mais sobressai cm um temperamcnto náo-romantico) diante da vida que passa, ilusória e fugaz, como sombra de dcscngano a seguir necessariamente a fruifáo da beleza tenena. Convém insistir ncsse outro Raul de Leoni, "secreto", que sabe modular em cadéncias penumbristas o conceito de pensamento como quintesséncia da vida: Os scntidos se esfumam, a alma é esséncia E cnuc fugas de sombras transcendentes, O Pensamento se volatiza. ("A Hora Cinzenta") Sou mais lcvc do que a euforia de um anjo, Mais levc do que a sombra de uma sombra Reíletida no espelho da IlusSo. Alma, o csUido divino da matéria... ("De um Fantasma") 237 Foi essa inflcxäo simbolista que, avizinhando animus c anima, luz e soitw bra, propiciou o aparecimento de seus versos reflcxivos, cmbora nunca aba tratos nem didáticos, tal era no poeta a forca de ver e de configurar as sensacóc}( mais diversas. Näo sendo um poeta sentimental, nem por isso se transformo^ em um "poeta de idéias", pois levava em si o artista que funde o conceito na imagem e o pensamento na palavra em que todo sc compraz. Eis como "define" a Vida: Viste que a Vida é uma aparôncia vaga E todo o imenso sonho que semeias, Urna legenda de ouro, disuaída, Que a irónia das águas 16 c apaga, Na memória volúvel das areias!... CEt omnia vaniías'") Falando da Vcrdade: Foi a sombra dc um vôo rcílctida No espelho da íigua trômula de um rio... Sombra de um vôo na água trômula: Verdade! ("Ao menos uma vez cm toda a vida") Ou das idéias: Säo íis sombras das cousas Hutu and o No espelho móvel do teu pensamento! ("Do Meu Evangclho") A luz mediterränea de Raul dc Lconi rccorlara com nitidcz os contornos da paisagcm, mas seu erepúsculo abria caminho äs sombras da intimidade. Nos fragmentos em prosa que dcixou esse lcitor assfduo dc Valéry, é pos-sívcl rastrear urna atitudc célica ante o fluxo do pensamento c do ser: Afinal, tudo o que se disser sobic as coisas pode ser verdade. Prcfcrimos sempre a lilosofia do nosso lemperamento. As filosofias síío os diferentes climas do espírito. A Irónia, sc näo č a mais ra&oávcl dc todas as filosofias, é pelo menos a mais cômoda, a mais elegante c a menos ridícula. Näo é dc cstranhar que no seu relativismo haja entendido com invulgar lucidcz o movimento modcrnisla, articulando-o com o espírito dos novos tempos. Vale a pena reproduzir estas linhas de um artigo seu, a propos i to das correntes estéticas revolucionárias: A ciéncia moderna, provocando urna espantosa acelcracäo de todos os ritmos da vida exterior, criou, logicamente, para o homem urna necessitlade dc síntcsc ex-trema de todos os movimentos e operacôes do seu mundo psíquico. Obrigado a viver mais depressa, ele teve de sentir, tie pensar e dc agir mais depressa, c, em conseqiiencia, de dar urna expressao mais rápida ao que sente, ao que pensa, ao que 238 faz, ao que vivc. Sua arte, paia ser uma coisa viva, deveráportanio ser extremamente sintética, intensa, dinämica, Uwe, consisíindo, quase, empura sugestäo, em que se condense, no recorte de uma imagem, todo um mundo de idéias associadas. Economia de formas; Arte de um hörnern que näo pode perder tempo interior... Raul de Leoni, poeta de formas antigas, era inteligencia ousadamente moderna. TEATRO A comédia de costumes que dcsde Martins Pena e Maccdo vinha espe-Ihando alguns estratos da socicdadc brasileira, espccialmente os que conver-giam para a Corte, continua, durante o Realismo, a atrair o intcrcssc do publico, apesar da concorrencia do vaudeville parisiense c da opera ilaliana, ambos cm plena voga na segunda metadc do sčculo. O nome de Artur Azevedo (196) impôc-sc enläo como o do continuador ideal de Martins Pena. Já o vimos saboroso poeta humorístico, mas cle mcsmo deciarava que os mclhorcs versos que escrevcra estavam espalhados cm suas quase duzenlas revistas. Metido na vida teatral desdc a adolcscencia, Artur Azevedo conseguiu que fossem levadas ä cena suas primeiras comédias como Amor par Anexins c Horas de Humor. O ôxito fácil destas contribuiu para marcar os limitcs da sua criacäo, nivclando-a com o gosto do publico medio; em contrapartida, dcscnvolvcu-lhe os dotes de comunicabilidadc, o que é quase ludo para um comcdiógrafo. Para a história do nosso teatro, näo só como texto, mas principalmenle como uma cstrutura complexa que abränge fatores vários, desde o substrato (196) ArhirNahantinoGoncalves de AzEVEDo(Säo Luis do Maranhao, 1855 — Rio de Janeiro, 1908). Irmäo de Aluisio Azevedo, precedeu este na transferéncia para a Corte, onde sc dcdicou ao jornalismo e sobretudo ao teatro, de que foi o maior animador em sua čpoca. Pouco antes de faleccr foi nomeado diretor do Teatro daExposigäo Nacionál, cargo de que se valeu para divulgar comediógrafos brasileiros do Romantisme. Alem de pegas, eserevcu crönicas e contos humorísticos. Obra teatral: Amor por Anexins, s. d. (1872?); Horas de Humor, 1876; A Pele do Lobo, 1877; A Jóia, s. d.; A Princesa dos Cajueiros, 1880; O Liberate, 1881; A Mascote na Roca, 1882; A Almanjarra, 1888; O Tribofe, 1892; Revelacäo de Um Segredo, 1895; O Major, 1895; A Fantasia, 1896; A Capital Federal, 1897; Confidéncias, 1898; O Jagunco, 1898; O Badejo, s. d.; Ga-vroche, 1899; A Viúva Clark, 1900; Comeul, 1902; A Fonte Castália, 1904; O Dote, 1907; O Oráculo, 1907. Obs.: A parlir de 1955, vém sendo publicadas pegas inédilas de Artur Azevedo pelos Cadernos da Revista da SBAT (Sociedade Brasileira de Amigos do TeaUo). Contos: Contos Fora da Moda, 1894; Contos Efémeros, 1897; Contos Pos-síveis, 1908. Consullar: R. Magalhacs Jr., Artur Azevedo e Sua Época, Rio, 1953; Josuč Monlello, Artur Azevedo e a Arte do Conto, Rio, Livr. S. José, 1956. 239 material da empresa atč problcmas de cnccnagAn e de interpretagäo, o papid de Artur Azevedo foi relevante: bašta dizci que cscrcvcu e fez rcprcscnlni comédias suas e alheias de 1873 até äs vésperas de sua mořte, ocorrida cín 1908. Quando o eseritor maranhense encetou a sua carreira, o teatro pós-romAn tico exibia os dramas de casaca, assim chamados por mostrarem no palet> i vida burguesa da čpoca e näo mais os quadros históricos que a tradigäo classic» e, depois, romäntica, tinha privilegiado. Mas, gragas ä agäo do novo Gimtotj Dramálico, fundado em 1855, a esses dramas vieram acrescentar-se pegas, jfl romaniico-rcalislas, vindas de Paris e assinadas por Dumas Filho, Scribe, Au gier, Sardou: assim, A Dama das Camélias, que lanto exito alcangara, esu*6i« no Rio aos 7 dc fevcrciro dc 1856, apenas quatro anos depois da sua apre sentagäü em Paris. Artur Azevedo tcntou inscrir-sc nessa correntc dramática escrevendo "ten tro sčrio", algumas pegas cm verso que, segundo o seu proprio testemunho, näo resistiram ao teste da representagäo. Ao contrario, envcrcdando pelos gC neros ligeiros da revisla polílica c da bambochata, c parodiando dramas fran ccscs cm voga, atingiu o supremo alvo, o aplauso do publico, que näo mai.n Ihc foi rcgatcado, Assim, quando um jornalista ranzinza o acusou de acelerai a "dccadcncia" do teatro brasileiro com as suas revistas c paródias, defendeu-sc cm termos que valem como um atestado da interagäo autor-socicdade na his tória da cena brasileira: Quando aqui cheguei do Maranhäo, em 1873, aos 18 anos dc idade, já tinhti sido representada centenas de vezes no Teatro S. Luis, A Baronesa de Caiapós, paródia ďA Grä-Duquesa de Gerolstein. Todo o Rio de Janeiro foi ver a pega, inclusive o imperador, que assisüu, di/cm, a umas vinte rcprescntayöcs consecuti-vas... Quando aqui cheguci, já tinham sido representadas com grande exito duas paródias do Barbe-Bleu, uma, o Barba de MUho, assinada por Augusto de Castro, comedtógrafo considerado, c outra, o Traga-Mocas, por Joaquim Serra, um dos mes-tres do nosso jomalismo. Quando aqui cheguei, já o Vasqucs tinha feilo representar, na FCnix, o Orfeu na Roca, que era a paródia do Orphée aux Enfers, exibida mais de ccm vezes na Rua da Ajuda. Quando aqui cheguei, já o mestre que mais prczo cntte os literatos brasileiros, passados e prescntes, havia colaborado, embora anonimamenle, nas Cenas da Vida do Rio de Janeiro, espirituosa paródia ďA Dama das Cornelias. Antes da Filha de Maria Angu apareceram nos nossos palcos aquelas c outras paródias, como fosscm Faustino, Fausto Junior, Geraida Geraldina e outras, muitas ouöas, cujos tftulos näo me ocorrem. Já vé" o Sr. Cardoso da Mota que näo fui o primeiro. Escrevi A Filha de Maria Angu, por desfastio, sem intengäo de exibi-la em nenhum teatro. Depois de pronta mostrei-a a Visconti Coaracy, e este pediu-me que 240 lha confiasse, c por sua alta recreacäo leu-a a dois cmprcsários, que disputaram aiubos o manuserito. Venccu Jacinto Heller, que a pôs em cena. O publico näo foi da opiniäo do Sr. Cardoso da Mota, isto é, näo a achou desgraciosa; aplaudiu-a cem ve/,cs seguidas, e eu, que näo tinha nenhuma veleidade de autor dramático, embolsei alguns contos de réis que nenhum mal fizeram nem a mim nem ä Arte. Pobre, paupérrimo, e com encargos de família, tinha o meu destino naturalmente iracado pelo éxito da peca; entretanto, proeurei fugir-lhe. Escrevi urna comédia li-lerária, A Almanjarra, em que näo havia monólogos nem apartes, c essa comédia esperou catorze ano s para ser representada; escrevi urna comčdia cm 3 atos, cm verso, A Jóia, e, para que tivesse as honras da representaeäo, fui coagido a desistir dos meus direitos de autor; mais tarde escrevi um drama com Urbano Duartc, c esse drama foi proibido pelo Conservatory; tentei introduzir Moliěre no nosso leatro: trasladei A Escola dos Maridos cm rcdondilha portuguesa e a peca foi representada apenas onze vezes. Ultimamcnte a empresa do Recreio, quando, obedecendo a um singular capricho, desejava ver o teatro vazio, anunciava uma representaeäo da minha comédia em verso, O Badejo. O meu ultimo trabalho, O Retrato a Óleo, foi repre-sentado meia du/Ja de vezes. Alguns criticos trataram-me como se cu houvesse co-metido um crime; um dclcs afirmou que cu insultara a família brasileira! Em resumo: todas as vezes que tentei fazer teatro sério, em paga só recebi censuras, apodos, injusticas e ludo isto a seco; ao passo que, enveredado pel a bam-bochata, näo mc faltaram nunca elogios, festas, aplausos, proventos. Relevem-me citar esta ultima fónnula de glória, mas — que diabo! — cla é essencial para um pai de família que vive da sua pena. Näo, meu caro Sr. Cardoso da Mota, näo fui cu o causador da debacle: näo fiz mais do que plantar e colhcr os únicos frulos de que era susceptível o terreno que enconuei preparado (197). Pouco antes de Artur Azevedo, eserevcu Franca Junior (1839-1890) algu-mas comédias cheias de verve, mas presas ä mentalidadc saudosisla do flumi-nense que näo ve com bons olhos o progresso dos costumes burgueses na Corte e procura cm tudo o lado ridículo para chamar junto a si o bom senso do publico. As cenas das suas comédias exploram patuscamente vários tipos do Brasil Imperial: o fazendeiro paulista, o comerciante portugués, o politico loquaz e matreiro, o imigranle espcrlalhäo. Em As Doutoras, aborda o terna do femi-nismo, mas näo foge ao lom convencional que a matéria inspirava äs rodas conservadoras. Franta Jr. terá dcixado o melhor de si näo ao teatro, mas ä crônica jor-nalfstica dos Folhetins que evocam o Rio dos meados do século. ("") Apud J. Galante de Sousa, O Teatro no Brasil, 21 ed., Rio, Ed. de Ouro, 1968, pp. 276-278. O artigo foi publicado em O Pats, Rio, 16 de setembro de 1904, sob o tftulo de "Em Defesa". 241 Machado de Assis (l98) Das primeiras comédias de Machado disse Quintino Bocaiuva ao prripiiu autor que lhe pedira um parecer franco: "sao para serem lidas e nao ropn sentadas" (199). Era opiniáo sensata que o tempo confirmou, pois, fora dim salóes onde estrearam, as pecas do nosso maior romancista quase nao voltarntm a reci tar-se. No cntanto, Machado sempře amou o tcatro, foi censor e crítico inteligenti* durante longos anos c deu á cena suas primeiras producóes empenhadas comédia Hoje Avental, Amanhá Luva e a "fantasia dramática" Desencantos, eseritas quando ele mal contava vinte c um anos de idade. A prccocidade da experiencia, sc deu ao futuro narrador um bom mane|u do diálogo, foi nociva ao dramaturgo que ccdo sc viu preso a esquemas dr convencao mundana e semi-románlica, só dc raro cm raro superados nas mr lhores comédias, Quase Ministro c Os Deuses de Casaca. O desvencilhamcntu que sc opera ncssas obras devc-sc, porém, antes á finura do observador dm costumes polfticos que a uma possível evolucao formal do escritor dramatic o O Machado das primeiras comédias, Desencantos c O Caminho da Pom. "modcladas ao gosto dos provérbios franccscs" (Q. Bocaiúva), traz de original para a época (cstamos ainda cm 1860!) o gosto de opor, nos cpisódios amo rosos, o cálculo feminino ao sentimento. O proccsso, como já vimos, iria marciu os scus primciros romances c guarda scmprc valor dc índicc psicológico pani a biografia espiritual de um homem cm busca dc uma ética que fosse capa/ dc justificá-lo do afastamento das suas origens. Em ambas as pecas vence aindii ccrto moralismo romantico e punc-se a mulher "realista" para gloria das per sonagens apaixonadas e sonhadoras. Também a ameaca dc um adultério, tenia caro aos "dramas de casaca", é conjurada a tempo cm O Protocolo, e tudo sc resolve cm tiradas sentenciosas, mas que, no conjunto, rcvclam o observadoi (198) Cronologia do teatro machadiiuio: I860 — Hoje Avental, Amanhá Luva, "co média imitada do francos"; 1861 — Desencantos; 1863 — O Caminho da Porta; 1861 — O Protocolo; 1864 — Quase Ministro; 1866 — Os Deuses de Casaca; 1870 — Uma Ode de Anacreonte (versos incluidos nas Falenas); 1878 — O Bote de Rape (incl. em Contos Sem Data); 1878 — Antes da Missa, convcrsa de duas damas, em um ato (incl. em Páginas Recolhidas); 1880 — Tu, Só Tu, P uro Amor; 1896 — Näo Consultes Médico; 1906 — Ligäo de Botänica; 1865? — As Forcas Caudinas (incl. nos Contos Sem Data) Consultar: Dčcio de Almeida Prado, "A Evolucäo da Literatura Dramática", cm A Li teratura no Brasil, cit., vol. II; Joel Pontes, Machado de Assis e O Teatro, Rio, Service Nacionál do Teatro, 1960; Sábato Magaldi, Panorama do Teatro Brasileiro, S. Paulo. Difusäo Européia do Livro, 1962. O") Em "Carta ao Autor", prepošta ä cd. dc Teatro (O Caminho da Porta e O Protocolo), Rio, Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1863. 242 ■h i íl 11 da família burgucsa do II Império já em fasc de plena e bem composta mím iiilulidadc. E é instrutivo observar em todas essas comédias alusôes irônicas i.i novo cstilo econômico do regime: fala-se em agiotas para contrapô-los aos i.miiintiľos, e em políticos para contrapô-los aos homens de coracäo puro, exa-iiiiiiimHc como o fazia José de Alencar nos romances urbanos do mesmo pc- llllllo. Os bastidores da vida política säo o objeto da comódia Quase Ministro, > Ii nm divertido de tipos parasitários que sc apressam a cumprimentar o futuro ministro, propondo-lhe piano, inventos c poemas, e com a mcsma prcsteza viniin Ihe as costas ao sabe-lo íora do cargo. Parccc-mc csta a mais legível i lalvcz, a única reprcsentável dcntre as pccas mcncionadas. A comédia Os Deuses de Casaca é prova cabal do caráter literário de Miicliado dramaturgo. Foi cscrita cm alcxandrinos rimados c, pclo prefácio, iluiiído de 1866, deprecnde-se que o autor dava um peso especial a essa expu lOncia métrica, incluindo-se cntrc os seus pioneiros na história da nossa jioesia (200). Mas a obra vale por algo mais. É urna espčcie de paródia dos i picos concílios dos deuses, agora forcados a desccr do Olimpo onde vcgetam oNi|uccidos e a vcstir a casaca burgucsa cm plena corte do Rio de Janeiro. \polo, näo querendo sujcilar-se ao gosto vil do publico, será crítico literário; Marie, decaído herói dc guerra, vc no triunľo do papcl um signo dos novos iiinpos e resolve fundar um jornal politico, tendo Mercúrio, corrcio olímpico, i umo o hörnern "da intriga c do recado"; ao talento multiforme de Próteu näo iľsla senäo ser depulado ("Vcrmelho de manhä, sou de tardc amarclo. / Sc i onvier, sou bigorna, c se näo, sou martelo"); enfim, a Jupiter eaberá, como de direito, o melhor quinhäo: será banqueiro. Pretexto também literário é Tu Só Tu, Puro Amor, episódio da vida de < umöes, composto por ocasiäo das festas organizadas no Rio no tricentenário da morte do pocla (1880). As ultimas comédias, Näo Consultes Médico e Licäo de Botônica, voltam .») clima sentimental das primeiras, embora lhes sejam superiores pela maior ľorrenteza dos diálogos c no corte das cenas. Confrontadas, porém, com os (200) "() autor fez falar os seus deuses em versos alexandrinos: era o mais proprio. Tem este verso alexandrino seus adversários, mesmo entre os homens de gosto, mas é de erer que vcnha a ser finalmcntc cstimado e cultivado por todas as musas biasileiras c portuguesas. Será essa a vitória dos csfor^os empregados pelo ilustre autor das "Epístolas ä Imperatriz", que täo paciente c luzidamente tem naturalizado o verso nlexandrino na lingua de Garrett c de Gonzaga. O autor teve a fortuna de ver os seus "Versos a Corina", eseritos naquela forma, bem rccebidos pelos entendedores. "Se os alcxandrinos desta comédia tiverem igual fortuna, será essa a verdadcira leeompensa para quem procura empregar nos seus üabalhos a consciéncia e a medita^äo" (leatro, Rio, Jackson Ed., 1955, p. 187). 243 romances e os contos que Machado já escrcvcra a esta altura, só se entcndcm como divertissements. QORPO-SANTO, UM CORPO ESTRANHO (*) A nossa história litcrária comovc-se dc quando cm q u an do com urna boa surpresa. Dcpois dc cem anos de esquccimenlo dcscobriu-se o originalíssimo dramaturgo gaúcho José Joaquim dc Campos Leäo, que a si mesmo se alcu nhava Qorpo-Santo. Suas comédias, lidas tanto tempo depois dc eseritas, beneficiaram-se dc urna perspectiva moderna: o olho crítico, já treinado em Pirandello, em Jarry, | em Ionesco, vc nonsense e absurdo como fenômcnos ideológicos e estéticos válidos em si, além dc testcmunhos dc resistôncia ä lógica da dominacäo bur-guesa. E o aspecto descosido daquelas comédias, o efeito de delírio que äs vezes produzem, a forca do instinlo que nelas urge, enfim o desmantelo do quadro familiar decoroso do Scgundo Império que nelas se vc, tudo se presta I a urna teitura radical no sentido dc atribuir a Qorpo-Santo urna ideológia, ou melhor, urna contra-idcologia, corrosiva, se näo subversiva dos valores cor- (*) Qorpo-Santo, pseudönimo de José Joaquim de Campos Lbao (Vila do Triunfo, entäo Província de Säo Pedro, 1829 — Porto Alcgrc, 1883). Órfao de pai aos onze anos, foi estudar em P. Alegrc. Exerccu o cargo de professor primário em escolas públicas fixando-sc, por ultimo, na capital da província. A paitir dc 1862 as autoridades cscolares passaram a suspeitar da sua sanidade mental submetendo-o a mais de uma intemagäo, até que em 1868 foi julgado inapto näo só para lecionar como para gerir família e bens. Näo se conformando com o interdito, protestou com vcemčncia no jomal que ele mcsmo fundara, A Justica. Já entäo redigia a sua compósita c desnorteante Enciclopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade, em nove tomos dos quais se conhceem, até o presente, o I, o II, o IV, o VII, o VIII e o IX. Editou-a em 1877 em tipografia propria. O IV volume contém as suas comédias, todas brevíssimas, c compostas cm 1866: Mateus e Mateusa, As Relacöes Naturais, Hoje sou um; e amanhä outro, Eu sou vida: eu näo sou rnorte, A separatio de dois esposos, O marido extremoso ou o pai cuidadoso, Urn credor da Fazenda Nacionál, Certa entidade em busca de outra, Uma pitada de rape, Urn assovio, Lanterna de fogo, Um parto, O hóspede atrevido ou o brilhante escondido, A impossibilidade da santificacdo ou a santificaeäo transformada, O Marinheiro es-critor, Duas páginas em branco, Dous irmäos. Consultar: Anfbal Damasccno Ferreira, "Qorpo-Santo e a singularidadc", in Correio do Povo, de P. A legre, 21-2-68. (A este estudioso cabc a prioridadc na série dos descobridores de Qorpo-Santo); Yan Michalski, "O sensacional Qorpo-Santo", in Jornal do Brasil, 8-2-68; Luis Carlos Maciel, "O 'Caso' Qorpo-Santo", in Correio da Manhä, 26-5-68; Guilhermino César, Introdugäo a As Relacöes Naturais e Outras Comédias, P. Alcgrc, Universidade Federal do R. G. do Sul, 1969; Flávio Aguiar, Os Hamens Precários, P. Alegre, A Nagäo, 1975. 244 unit's no teatro brasileiro do tempo. O dado biográfico tem também seu poder do rcssonäncia: a marginalizacäo do hörnern interdito na provinciana Porto Ale-i»ir do f im do século XIX empresta-lhe uma aura extremamente simpática em Uimpos de contracultura. Ao lado dessa interpretacáo, que acentua o significado de ruptúra com os piidröcs da época, os melhores críticos de Qorpo-Santo lembram as potencia-lidiidcs da forma-comédia e cspecialmcnte da farsa c da pantomima que sempře Nr aliaram ä satira dos costumes c ä paródia dos estilos. No autor dc Enciclo-/jédia satira e paródia concorrem para produzir um cfcito ambíguo, na medida '•m que a agressäo da palavra ou do gesto näo sc separa de urna pungente c-hsessäo moralista cujo centro é o instinto ao mesmo tempo sancionado e icgrado pela instituicäo do matrimônio. A "loucura" e o nonsense de Qorpo-Santo devem, pois, ser historicizados ä luz do contexto familiar do século XIX c, mais largamente, ä luz dos conflitos entre o capricho individual e a conduta institufda; conflito dc que a farsa é exprcssäo c válvula dc escape. Como na comédia antiga, a linguagem cá c lá desabusada faz contraponto uccessário com as notacöcs tradicionalistas. Mas cm Qorpo-Santo, a série veloz das falas e o truncado das ccnas dcixam convivcr mais intensamcnte os opostos do Id e da censura; misturam-sc o cômico e a sublimacäo retórica num anda-mento estranho que beira a vertigem c o caos (*). E cssa näo é a menor das razôes por que estamos hojc mais abertos ä voz dc Qorpo-Santo do que os seu s contcmporäncos. A CONSCIĚNCIA HISTÓRICA E CRÍTICA Os anos dc 70 trouxeram a viragem anti-romäntica que sc definiu em todos os nívcis. Chamou-sc realista e depois naturalista na ficcäo, parnasiana na poc-sia, positiva c materialista em filosofia. Com Tobias Barrcto c a Escola de Recife (v.), torna forma um ideário que sobrcvivcria até os princípios do século XX. É toda uma geraeäo que comcca a cscrcvcr por volta dc 1875-80 c a afirmar o novo espírito erítico, aplicando-o äs várias faces da nossa realidade: Capistrano dc Abrcu no trato da História; Silvio Romero, cobrindo com sua fortíssima paixäo intclectual a tcoria da cultura, as letras, a etnografia e o folclore; Araripc Jr. e José Vcríssimo, voltados de modo intensivo para a crí-tica; Clóvis Bevilacqua, Lafayette Rodrigucs Pcrcira c Pedro Lessa, juristas de sólida doutrina e gosto pelo fenômcno literário; Miguel Lemos e Teixeira Frcitas, apóstolos do Positivismo sentido como "religiäo da Humanidade"; en-fim, Joaquim Nabuco (v.) e Rui Barbosa, que exprimiram superiormente a (*) Leia-sc a brilhante análise das comédias de Qorpo-Santo em Os Hontens Pre-cários, dc Flávio Aguiar, cit. 245 vida social brasileira dos fins do scculo passado c dela partieiparam näo sú como escritores, mas também como grandes homens püblicos de estirpe liberal, Crescidos também nessa cultura, Joäo Ribeiro, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Viana e Manuel Bonfim souberam, porém, transcendé-la cm certos aspectos, motivo por que é preferível estudá-los imediatamente anlcs dos modernistas. Nenhum deles foi alheio ä literatura no sentido amplo do termo. Todos contribuíram para fixar urna prosa mais direta, menos pesada e enfática drevelou-se desde os seus primeiros ensaios um leitor mais sensivel hum aspectos propriamente artisticc da literatura. Dcvemos-lhe boas monografias sobre Alencar, Raul Pompéia, Gregório de Miiios e uma longa série de resenhas e artigos, compilados postumamente, em g in- acompanhou de perto as estréias dos romancistas do fim do século e dos (uH-1as simbolistas. Crítico militante, Araripe mostra-sc bem informado a respeito das novi-dndcs européias, buscando scmprc cntcnder o alcancc das tcorias c polěmicas que sc entrecruzavam no seu tempo. Por temperamento e ofŕcio, esse leitor foi-se dcixando penctrar por urn liu'go ecletismo, como elc mcsmo conicssa no prefácio ao Gregório de Matos, rscrito em 1894: O método que adotei, na preparagäo deste ensaio, é o mcsmo que lenho seguido desde 1878. Orientado no cvolucionisrno spenceriano c adcsüado nas aplieacöes de Taine, proeurci depois ľortalecer-mc no estudo comparado dos crílicos vigenles. To-dos os pontos de visia da exegese moderna lem sido objeto de minhas picocupacöes. Toda idéia, boa ou iná, aproveitável ou inexcqiiívcl, č sempre humana. Assim, pois, acostumei-mc a nada desprezar. O proprio pessimismo, e os seus variadfssimos dia-letos literários, ocultisrno, decadismo, prč-ríďaclismo, wagnerismo, lčm-me ensinado a discemir mclhor as coisas humanas c a dirigir o espírilo pondo de lado o que č fortuito. Dcvo dcelarar lambčm que muíto continuo a aprender relendo Aristoteles, Longino, Horácio c princi pal mentě o bom Quintiliano. O Laocoonie de Lcssing fez época na minha cíureira de crítico, apesar de havô-lo conhccído quando já cstava muito familiari/ado com a cstélica de Taine. Lcssing, pelo menus, convenceu-me de que os princípios da arte, os elemenlos simples, já eram conhecidos da anliguidade grega, e que a crítiea moderna apenas desenrolou, equilibrando-os, e agora trala de adaptá-los ä vida complexa do espfrito secular. (205) TrisiAodií Ai.iíncar Araripf-Jr. (Fortaleza, Ceará, 1848 — Rio, 1911). Des-fendente de abastada família cearensc, foi, menino ainda, para o Recife onde fez Hu-manidades e Direito, formando-sc em 1869. Exerccu a magistratura cm Santa Calarina, tio Ceará c no Rio, ocupando nos Ultimos anos o cargo de Consultor Gcral da Rcpública. Obras principais: José de Alencar, Perfil Literário, 1882; Gregório de Matos, 1894; Literatúra Brasifeira. Movimento de 1893, 1896; Ibsen, 1911; os ensaios anteriores, mais .i coletíuiea dos arligos dispcisos, cstäo cm Obra Crítiea, org. por Aí'ránio Coutinho, 4 vols., Rio, Casa de Rui Bíubosa, 1958, 60, 63 c 66. Consultar: Mailín García Merou, /:/ Brasil Intelectual, Buenos Aires, Felix Lajouane, 1900; Jose Veríssimo, Estudos de Uteratara Brasileira, 1" série, Rio, Garnier, 1901; Alränío Coutinho, Euclides, Capis-trano e Araripe, Rio, MEC, 1959; Araripe Jr., Teória, Crítiea e História Literária, selecäo e apresentaeäo de A. Bosi, Rio, LTC, 1978. 251 O ccletismo dc Araripc, ľeliz cnquanlo llic estcndia o campo das lcitufÉ e das cxpcriéncias estéticas, deixou-o, porém, oscilantc nos julgamcntos cniri critérios díspares: o nacionalista, que trouxera da juventudc, de fundo román* tico, conforme o qual a obra vale pelo seu quantum de brasilidade; e o pjf coestético, pcrmeado de análises taineanas e propenso a valorizar as qualidadua sensorials c plásticas do lexto. Pelo primeiro critério apreciou Gregório di Matos e Alencar; pelo scgundo, compreendeu a arte nervosa de Raul Pompeii e, apcsar das rcservas, a poesia dos primeiros simbolistas. José Veríssimo Com José Veríssimo (2()6) a enfasc nos fatorcs externos cede a um tipd dc aprcciacäo cclética que, ä falla dc mclhor termo, poderia ser definida hiU ma n (štica. (2()<>) Josfi Viiríssimo ľ)ias dh Matos (Óbidos, Pará, 1857 - - Rio, 1916). Passou a infTincia na provincia natal, dela saindo para o Rio dc Janeiro onde fez preparatórios no Colégio Pedro II c freqiicntou por algum tempo a Escola Central, hoje Politécnica. Adoe cendo, tlcixa os estudos c retorna, cm 1876, ao Part. Silo operosos os seus anos dc juventudc: lunda a Gazeta do Norte e a Revista Aniazônica, órgäos progressistas; ocupa a Diretoria da Instrucao do Pará c pcsquisa seriamente a história c os costumes dos índios c meslicos da rcgiäo: os Quadros Paracuses (1878), as Cenas da Vida Aniazônica (1886) c a 1" série dos Estudos Brasileiros (1889) däo cabal testemunho da atencäo que votava ao hörnern da sua terra. Dc grande interessc para a história da nossa cultura é o scu ensaio Educacäo Nacionál, publicado cm Bclém, cm 1890. Mudando-sc para o Rio no ano seguinte, aproxima-se dos melhorcs eseritores da época, Machado, Nabuco e os parnasianos, rcnova a Revista Brasileira (3* fasc) c passa a viver tlcľmitivamente do magistério, lccionando PorluguCs c História, no Colégio Pedro II. Silo desse periodo os livros dc erílica e história literária. Outras obras: Emílio Littré, 1882; A Amazônia. Aspectos Econômicos, 1892; "A Instrugäo Publica c a Imprcnsa" in Livro do Centenário, 1900; Estudos de Literatura Brasileira, 6 series, 1901-1907; Hamens e Cousas Estran-geiras, 1902; Estudos Brasileiros, 2" série, 1904; Que é Literatura? e Outras Escritos, 1907; Interesses da Amazônia, 1915; História da Literatura Brasileira, 1916 (cd. post.); Letras e Literatos, 1936 (cd. pôst.). Consultar: Francisco Prisco, José Veríssimo. Sua Vida e Sua Obra, Rio, Betteschi, 1936; Autora e Livros, Suplcmento Liicrario de A Manka, 31-5-1942; Álvaro Lins, Jamal de Crftica, 3a série, Rio, José Olympic 1944; Wilson Martins, A Crftica Literária no Brasil, S. Paulo, Depto. de Cultura, 1952; Olivio Montenegro, José Veríssimo — Crítica, Rio, Agir, 1958; Joäo Pacheco, O Realismo, cit:, Inácio José Veríssimo, J. V. vista pordentra, Manaus, Ed. do Governo do Amazonas, 1966; Joäo Alexandre Barbosa, A Tradicäo do Impasse, S. Paulo, Ática, 1974; J. Veríssimo, Teória, Crítica e História Literária, selceäo e aprcsentacäo dc Joäo Alexandre Barbosa, Rio, LTC, 1978. 252 A arle 6 signo das ctcrnas cmocöcs do Hörnern. Expressäo articulada, visa ii piovocar o prazer do Belo. "Literatura é arte literária. Somente o escrito i tun o propósito ou a intuicäo dessa arte, isto é, com os artificios de invencäo i de composicäo que a constituem, é, a meu ver, literatura" (207). Rcintegrando a literatura na esfera das belas-artes, Vcrissimo opera nos / \tudos e na História da Literatura Brasileira uma selefäb de autores bem mnis rigorosa que a de Silvio Romero. Ao crilico paraense intcrcssavam, de um lado o lavor da forma, de outro a projecäo dc constantes psicológicas como ii unaginaeäo, a sensibilidadc c a fantasia. "Ora, a literatura para que valha alguma coisa, há de ser o resullado emocional da experiěncia humana" (208). Mas, näo dispondo dc módulos novos dc julgamento, contenta-se com as qualidades propostas pela retórica tradicional: o estilo deve ser elegante, os curedos bcm construídos, os dramas verossímcis, etc. Do critčrio dc neleza diz que "podendo sofrer variacöcs infinitas, se conserva no lundo sempře o incsmo" (209). Veríssimo lembra cm mais dc um ponto os scus mestres franceses, Lanson r Brunetiere, que sc seguiram ä primeira geraeäo positivista. É um crudito consciencioso cujo gosto pessoal ficou preso aos momentos áurcos do Clas-sicismo c äs verteiltes mais sóbrias do Romantismo. Prova-o a sua simpatia pclos escritorcs cstilisticamcntc maduros como Gonzaga, Goncalvcs Dias c Ma-chado de Assis, dc quem foi admirador sem reservas; prova-o o torncio clássico da sua sintaxe c, com menos acerto, o uso dc alguns termos arcaizantes: "con-vinhável", "caroável", "quejandos"... Seguindo o lema aeademico do in medio virtus, aborrecia todo c qualquer dcsequilíbrio: a poesia condorcira de Tobias Barrcto, por execsso dc cnfase; o teatro dc Alcncar pelo abuso do tom moralizantc; o romance dc Julio Ribciro como naluralismo mal avisado c "parto monstruoso dc um cérebro artistica-mentc enfermo". Mas nein sempre andou bcm com a rigidez dessc critčrio. Avcsso por tem-peramento c cultura ä cxpcricncia rcligiosa e, igualmcntc, äs novidades estéticas radicais, näo soube apreciar no momento devido a renovaeäo simbolista: o seu primeiro impulso ao 1er Cruz c Sousa foi tachá-lo dc decadente, for9ando a nota pejorativa do termo. O mesmo sc deu com o verso livre do qual afirmou que jamais vingaria cm lingua portugucsa. Veríssimo assinaria com gosto estas palavras de Anatole France: "Näo acredito no éxito de uma cscola literária que exprima pensamentos difíceis numa linguagem obscura." (2l)7) História da Literatura Brasileira, Introducäo. (2()«) Id., p. 308. (2IW) Estudos de Literatura Brasileira, 6a série, p. 216. 253 Na História da Literatura Brasileira, foge da adesäo a qualqucr movimcnlo ou grupo ideológico. Assim, embora veja na esteira dos romänticos o sentimentu de nacionalidade como trago que distingue as letras brasileiras das portuguesas. deplora os excessos do indianismo; e, se encarece a agäo do "espírito moderno" (isto é, da cultura realista) como salutar reacäo äs ingenuidades romänticas, ncin por isso deixa de externar o receio que lhe inspira a voga do cientismo. Atuava na mentě de Veríssimo uma pereně desconfianga, talvez de origcin academica, das opcôcs filosóficas mais definidas ou cortantes. Ä doutrina seen dos teóricos do Positivismo prcferia as suas encarnagôes literárias, Renan r Anatolc, os "cčticos amávcis" que tanto seduziram as elites latino-americanaa dos fins do século. Daí, o scu escorar-sc em eritérios fugidios, difíceis de de terminar, bom gosto, senso comum, prazer intelectual, aos quais, entretantn, se atinha com proverbial intolcräncia. O rcsultado foi uma crítica que se situava a meio caminho entrc o rcconhccimcnto dos dados psico-sociais (210) e a leitura vagamente cslética de algumas obras. Na verdadc, escondia-sc por trás desse celetismo humanístico o problema nodal da crítica literária, e o mais espinhoso de todos: relacionar com éxito (2i») Na eompreensáb da nossa rcalidadc global, Veríssimo č menos atilado que Silvio Romero. Assim, nega de maneira categórica a influčncia cspiritual c emotiva do negro c do índio, ragas que, como Silvio e os cvolucionistas do tempo, julgava "infc riores": "Absolutamcntc se náb descobriu atč hoje, mau grado as asseveragöcs fantasistas c gratuitas cm contrario, näo diremos um teslcmunho, mas uma simples presungäo qui* autorize a contar quer o índio quer o negro como fatores da nossa literatura. Apenas o teriam sido mui indiretamente como fatores da variedadc émica que č o brasilciro. (...) Em todo caso, as duas ragas inferiores apenas influíram pela via indireta da mestigagem c náb com quaisquer manifestagöcs ciaras de ordern emotiva (sic!), como sem nenhum fundamento se lhcs atribuiu" (Cap. I, "A primitiva sociedade colonial"). Navcgando tam bém nas águas da cičncia européia, pessimista cm relagáb ao hörnern dos trópicos, Veríssimo arrola entre as constantes do brasilciro tragos psicológicos negatives contra os quais nada puderam fazer o "espírito cicntífico" c o "pensamento moderno": "a sensi-bilidade fácil, a carěncia, näo obstante o seu ar de rnelancolia, de profundeza e serie-dade, a sensualidade levada até a lascívia, o gosto da retórica e do reluzente. Acres-centem-se como caracteristicos mentais a petuläncia intelectual substituindo o estudo e a meditaeäo pela improvisaeäo e invencionice, a leviandade em aceitar inspiracóes desencontradas e a facilidade de entusiasmos irreßetidos por novidades estéticas, fdo-sóficas ou literárias. A falta de outras qualidades, estas emprestam ao nosso pensamento e á sua expressäo literária, a forma de que, por míngua de melhores virtudes, se reveste. Aquelas revelam mais send men ta I is mo que raciocínio, mais impulsos emotivos que cons-ciéncia esclarecida ou alumiado entendimento, rev endo também as deficiéncias da nossa cultura. Mas por ora, e a despeito da mencionada reacclo do espírito cicntífico e do pensamento moderno dele inspirado, somos assim, e a nossa literatura, que é a melhor expressäo de nós mesmos, claramente mostra que somos assim" (H. L. B. introdugáo). 254 M, pólos gcnético e estrutural do processo artistico. Näo seria Jose Verissimo li hoincm capaz de resolvé-lo, nem tinha sequer as condiföes culturais neces-irtiiits para o formulář. Seja como for, evitando o puro sociologismo de Silvio Uomero, mostrou-se sensivel äquele quid peculiar ä literatura, mérito que ainda hoje Ihc creditamos. AS LETRAS COMO INSTRUMENT!) DE AgÄO Iniciado ao tempo das campanhas pcla Abolicäo (v. Joaquim Nabuco) c pela iv.'piiblica, e coincidindo com a mudanya do regime e as agitacfxís dos seus pri-inciros anos, o periodo realista conhcccu amplamcntc o uso da palavra como forma i.lr acäo política. O que, cm alguns casos, interessa ä história literária, conťormc D maneira pcla qual sc comunicam e se configuram os materials idcológicos. A linha mestra de toda cssa ťasc foi a luta pela liberdadc. Em nomc dela iliscutiam c cscrcvcram líderes anticseravocratas como Nabuco, Jos6 do Patrocínio i André Rcbou^as. Vinculando-a ao progresso c ao ensino leigo, tiveram-na por h.mdeira os idcólogos republicanos de estoťo posilivista, Alberto Sales, Medciros i Albuquerque, Pcrcira Barrcto. Até mesmo um monarquisla e católico tradicional, I xluardo Prado, rcclamou-a para scu credo ao desafiar o militarismo de Dcodoro nos Fastos da Ditadura Militär no Brasil (21 ')• Eram homens que provinham de i lasses e grupos diversos e que professavam idcologias opostas: Patrocínio, des-cendentc dc cativos; Eduardo Prado, filho de senhores de eseravos; Medciros, icbcnto da burguesia. No entanto, no século do liberalismo, prolongado até o fim da I Gucrra, opyöes contrastantes valiam-se de retóricas alms: impunha-sc a todas as faixas o princípio de respeito ao indivíduo, de tal sortě que se pode afirmar (|ue o cullo ä demoeracia jurídica teve nesses anos o seu momento áurco. Esbatiam-sc, por outro lado, as cores do Positivismo dogmático: este, de-sertado por "heréticos", deixava de ser um corpo rígido de princípios filosóficos para diluir-sc cm algo mais genérico, a mentalidade liberal, agnóstica, "cen-Irista", da Primcira Rcpública. Diluindo-se, näo morria: assegurava a sua so-brevivencia como um dos componentes (*). Algumas vozes isoladas e férvidas opuseram-sc ä maré dc indiferentismo religioso que, vinda de longe, parecia subir a scu ponto maximo sob o regime republicano: o Pe. Júlio Maria, Jackson de Figueircdo c outros menores. Mas a pregaeäo desse renouveau catholique ccoava uma Igrcja ainda passadista e autoritária (212) e näo logrou entrar cm diálogo vivo com a cultura leiga do pais; o que só ocorreria depois de 1930 ou mais rccentcmcntc. (2n) A primcira edicäo, de 1890, foi confiscada pelo governo federal. ( * ) Recstudci o terna da presenca da cultura positivista na Primeira Rcpública cm "Arqueologia do Estado-Providčncia" (Dialética da Colonizacáo, cit.). (212) Vcr, no capítulo Simbolismo, o tópico respectivo. 255 Nesse contexto ha um nome que tcstcmunhou quase miticamcnlc o n de pensar das elites brasileiras que construiram a Republica: o dc Kul lln bosa (213). (213) Rui Caetano Barbosade Olivelra(Salvador, 1849 — Petrópolis, 192 1). I de um medico baiano dc minguadas posses. Fez os estudos secundários no Ginásin Hul* no, de Abílio Cčsar Borges, revclando desdc cedo invulgar memoria e talenio voilml Cursou Dircito cm Recife (1866-68) e, depois, cm Säo Paulo (68-70), onde lb i colvg« de Castro Alvcs e de Joaquim Nabuco. Advogou por algum tempo na Bahia e ein iMmi a sua carrcira política cm 1877, como deputado provincial. Em 1878, já dcpulmln Assemhlčia Geral, muda-se para o Rio. É dessa čpoca a tradueäo prefaciada que Iii/ >i O Papa e o Concilio, de Dollingcr, obra hostil ao dogma da infalibilidade papul, Ihn professa nesses anos uma religiosidadc deista, bem distante da ortodoxia católii n i1*t qual se aproximará mais tarde. Na decada dc 1880, impöe-sc como orador aboliciouiM« e liberal. Estuda, ademais, reformas dc cnsino, claborando um piano para o ensino mit Ii f. e superior, em 1882, c para o primário, cm 1883. Proclamada a República, assunig | Ministcrio da Fazcnda. Seu piano financeiro tevc efeitos gerais negativos: inflacAo «; em suma, o Simbolismo, como técnica, é o sucedäneo fatal do Pamasianismo. O divisor de águas acompanha, como já vimos, a passagem da tônica, no nivel das intencôes: do objeto, nos parnasianos, para o sujeito, nos decadcntes, com toda a sequela de antítescs vcrbais: matéria-espírito; real-ideal; profano-■.agrado; racional-emotivo... Mas, sc pusermos entre parenteses as vclcidades dos simbolistas de rcalizarcm, através da arte, um projeto metafísico; c se aten-I larmos só para a sua concreta atualizac.äo verbal, voltarcmos ä faixa comum do "estilismo" onde sc encontram com os parnasianos. Há, por outro lado, uma difcrcnciacäo temática no interior do Simbolismo brasileiro: a vertente que tcvc Cruz e Sousa por modelo tcndia a transfigurar a condicäo humana c dar-lhc horizontcs transccndentais capazes de redimir os scus duros contrastcs; já a que sc aproximou dc Alphonsus, c preferia Verlaine a Baudelaire, escolheu apenas as cadencias elegíacas c fez da morte objeto dc urna liturgia chcia de sombras c sons lamentosos. Quanto aos erepusculares, distantes dc ambas, preferiram csbocar breves quadros dc sabor intimista: mas a sua con-tribuicäo ao verso brasileiro näo foi pcquena, pois abafaram o pedal das excessivas sonoridades a que sc haviam acostumado os imitadores dc Cruz c Sousa. Näo obstante essas conquistas c o scu ar geral dc novidadc, o Simbolismo näo exerecu no Brasil a funcäo relevante que o distinguiu na literatura curopéia, na qual o reconheceram por legítimo precursor o imagismo ingles, o surrealismo francos, o expressionismo alemäo, o hermetismo italiano, a poesia pura espanhola. Aqui, eneravado no longo periodo realista que o viu nascer e lhe sobreviveu, teve algo de surto epidemico e näo pôde romper a crosta da literatura oficial. Caso o tivesse feilo, outro c mais precoce teria sido o nosso Modemismo, cujas tendéncias para o primitivo c o inconsciente se orientaram numa linha bastante próxima das ramificagôcs irracionalistas do Simbolismo europeu (218). (21H) Um considcrávcl fundo anárquico-decadente persistiria nas primeiras obras mo-dernas de Manuel Bandeira (Ritmo Dissoluto, Libertinagem), de Mário de Andrade (Pau-licéia Desvairada, cujo "Prcľácio Interessantíssimo" é urna apológia do subconsciente na elaboracäo do poema) c nos romances da "trilógia do exílio" de Oswald de Andrade. Resíduos erepusculares afetariam a lírica de Guilherme de Almeida e, em dosagem mais alta, a de Ribciro Couto. Dannunziano séria sempre Menotti del Picchia. E um programa neo-simbolista foi o que defenderam Tasso da Silveira e o grupo de Festa. Em todos, porčm, os tracos do movimento teriam origem européia e apareciam marcados pelo contexlo novo da I Gucrra Mundial. 269 O fenömeno histórico do insulamcnto simbolisla no fim do século XIX iiitn deve causar estranheza. O movimento, enquanto atitudc de espírito, passava ho largo dos maiores problemas da vida nacionál, ao passo que a literatura realisti* parnasiana acompanhou fielmente os modos de pensar, primeiro progressistas. ili^ pois académicos, das geracöes que fizeram c viveram a Primeira República. I ■' instrutivo notár: a expansäo dos grupos simbolistas no comeco do século convu paralela ä do Ncoparnasianismo. A novidade de Cruz e Sousa precisou descer IĚ nívcl de maneira e academizar-sc para comovcr a vida Iiterária de alguns cenin mcnorcs do pais e partilhar, modcstamcntc alias, a sortě dos cpígonos parnasiano*, POESIA Antes dos "Broquéis" Os nomcs de Mcdciros c Albuquerque (1867-1934) e Wcnccslau de Qucm ros (1865-1921) costumam ser lcmbrados como dc prccursorcs do Simbolismo cntre nos. Ambos conhcccram, dc fato, as novas litcrárias ťranccsas desdc o decénio dc 80; o primeiro, poróm, apesar dos seus maus Pecados c das Cangöes da Decadéncia (89), nunca aderiu ao novo espírito c, ao contrario, dcu mostras as* síduas de imaginaeäo vasqueira e sensualona; no segundo, houvc um bom leitor e Iradutor de Baudelaire, de quem recebeu c exasperou os tracos salanistas nos scus livros Versos (1890), Heróis (1898), Sob os Olhos de Deus (1901) c Rezas do Diabo (póstumo, 1939). Interessam ambos como ponte do Parnaso para o Sim-bolismo construída com materiais tornados a um pocta ambivalente como Baudelaire (219). Cruz e Sousa Nada, porčm, se compara cm forca c originalidade ä irrupfäo dos Broquéis com que Cruz c Sousa (22°) rcnova a expressäo počtica cm lingua portuguesa. (219) paj-a a história da fasc imcdialamentc anterior ä publicayäo dos Broquéis, de Cruz e Sousa, recomendo a leitura de Péricles Eugônio da Silva Ramos (Poesia Sinibolista. Antológia, Melhoramentos, 1965) e dc Massaud Moisčs (O Sinibolismo, Cultrix, 1966). (220) jOAO da Cruz e Sousa (Desterro, atual Florianópolis, Santa Catarina, 1861 — Sítio, Minas Gerais, 1898). Seus pais, eseravos negros, íoram libertos pelo Marechal Guilherme Xavier de Sousa que tutelou o poeta até a adolescfincia. Recebeu apreciável instrucäo secundaria na cidadc natal, mas, com a morte do protetor, teve que deixar os 270 Os Simples, dc Gucrra Junquciro, e o Só, de Antônio Nobrc, ambos de I K92, éram, no fundo, obras neo-romänticas, signos do saudosismo que iria vlucar a poesia em Portugal antes dos anos modernistas. Mas a linguagem ill Cruz e Sousa foi revolucionária de tal forma que os tracos parnasianos inimtidos acabam por integrar-se num código verbal novo e remeter a sig-inlicados igualmente novos. Assim, a angústia sexual, manifesta em vários passos, näo é apenas n ííduo naturalista porque recebc, em geral, tratamcnto platonizante e abre i itininho para um dos processos psicológicos mais comuns no pocta: a su-blimagäo: Para as estrclas dc cristais gclados as änsias c os dcsejos väo subindo, galgando azuis e siderais noivados dc nuvcns brancas a amplidäo vcstindo. ("Sideracôcs") ••studos: milita na imprcnsa catarincnsc, cscrcvcndo crdnicas abolicionistas c pcrcorre (i pafs como ponto dc uma companhia tcatral. Os versos que escrevc nos anos 80 res-scntem-se dc lcituras varias, que v3o dos condorciros c da poesia libertaria de Gucrra Junqueiro aos pamasianos (v. "Dispersas", nacdiyao definitiva, Aguilar, 1961). Em 1885, dc parceria com Virgflio Varzca, escrevc as prosas dc Tropos e Fantasias, ondc se nltcrnam paginas scntimcntais c anatcmas contra os cscravistas. Todo o pcrfodo catari-ncnse de Cruz e Sousa foi, alias, marcado pelo combate ao prcconceito racial dc que lora vftima em mais de uma ocasifto e que o impediu de assumir o cargo dc Promotor cm Laguna para o qual fora nomeado. Mudando-se para o Rio dc Janeiro, em 1890, colaborou na Folha Popular, at formando com B. Lopes e Oscar Rosas o primeiro grupo simbolisla brasileiro. Obtido um emprego mfsero na Estrada dc Ferro Central, casa-sc com uma jovem ncgra Gavita, cuja saude mental logo sc revelou muito fragil. O casal tcra quauo filhos, dois dos quais mortos antes do poeta. Minado pela tuberculose, Cruz e Sousa rctira-se, cm 1897, para a pcquena esta£5o mineira de Sftio a procura de melhor clima. Af falece, no ano scguintc, aos trinta c seis anos dc idade. Oulras obras: Broqueis (1893), Missal (1893), Evocagdes (1898), Farois (19(X)), Ultimos Sonetos (1905). A edicao da Obra Completa pela Ed. Aguilar (Rio, 1961), organizada por An-dradc Muricy, inclui varios ineditos grupando-os sob os tftulos gerais dc O Livro Der-radeiro (versos), Outras Evocagdes e Dispersos (prosa). Sobrc Cruz e Sousa, consultar: Tristao dc Araripe Jr., Literatura Brasileira, Movimento de 1893, Rio, Ed. Democratica, 1896; Nestor Vftor, Cruz e Sousa, Rio, s.e., 1899; Nestor Vftor, Introducao das Obras Complelas, Rio, Anuario do Brasil, 1923; Fernando G6is, Introducao das Obras, S. Paulo, Ed. Cultura, 1943; Roger Bastidc, Poesia Afro-Brasileira, S. Paulo, Martins, 1943; Andradc Muricy, Introducao das Obras Poiticas, Rio, I. N. L„ 1945; Tasso da Silveira, Apresentacao a Cruz e Sousa — Poesia, Rio, Agir, 1957; Raimundo Magalhaes Jr., Poesia e Vida de Cruz e Sousa, S. Paulo, Ed. das Amencas, 1961; Massaud Moists, 0 Simbolismo, S. Paulo, Cultrix, 1966. 271 Comparem-se o primeiro e o segundo quarteto de "Lésbia": Cróton selvagem, tinhoräo lascivo, planta mortal, Carnivora, sangrenta, da tua carne báquica rebenta a vcrmclha explosäo de um sangue vivo. Nesse lábio mordente e convulsivo, ri, ri risadas de expressäo violcnta o Amor, trtígico c triste, e passa, lenta, a morte, o espasmo gélido, aflitivo... O naturalismo exasperado dos primeiros versos contrai-se no "espasmo gélido e aflitivo" em que se fundem amor e morte. A passagem é confirmadu nos tercetos de "Bracos": Bracos nervosos, tentadoras serpes que prendem, tetanizam como os herpes, dos delírios na ücmula coorte... Pompa de cames tépidas e flóreas, bracos de cstranhas corrccôcs marmóreas, abertos para o Amor e para a Morte. A sublimacäo (que o pocta diria "transfiguracäo") comeca por assumir libido, isto é, tudo o que significara a enfasc sensual dos parnasianos, e acaba atingindo o sofrimento, constante dos Ultimos Sonetos: nesse livro maduro e complexo a palavra séria portadora de todo um universo de humilhacäo que tevc por nomes a cor negra, a pobreza, o isolamento, a docnga, a loueura da mulher, a morte prematura dos filhos: As minhas cames sc dilaccraram e väo, das Ilusöcs que llamcjaram, com o proprio sangue fecundando as terras ("Clamando") Embora caias sobre o chäo, fremente, afogado cm tcu sanguc cstuoso e qucntc, ri! Coracäo, tristissimo palhago. ("Acrobata da dor") Era de csperar que a poética implícita nesse roteiro fosse uma poética de estofo romäntico, que supöe um intervalo enlre a finitude da expressäo e o infinito da vida interior. Para o parnasiano, tudo pode ser dito com clareza: näo há transcendencia em relacäo äs palavras, pois cslas sc apresentam em estreita mimese com a realidade empirica. Mas um poeta como Cruz e Sousa, que se ve dilacerado entre matéria e espírito, dará ä palavra a tarefa de reproduzir a sua propria tensäo c acabará acusando os limites expressionais do verbo humano. .'.72 Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!... Ah! que eu näo possa eternizar as dores nos bronzes e nos mármores etemos! ("Tortura etema") Mas, apesar da confissäo de impotencia expressiva (Ah! que eu näo pos-\'(/...), o artista vale-se de todos os recursos lingiiísticos veiculados pel a nova poética para sugerir o seu desejo do transcendente. Eros, padecendo embora as limitacôes da matéria, precisa encarnar-se... A camada fbnica movc-se para lelcr sensacôes inquietas que tudo abracam sem nada aferrar. Altcrnam-sc vo-gais nasaladas e consoantcs líquidas ou sibilantes que prolongam a duracäo do fluxo sonoro, já intensificado por alitcracôcs, rimas e ressonäncias internas: Visôcs, salmos c cänticos screnos, surdinas de órgäos flčbeis, solucantcs... Dormcncias de voliípicos vcncnos sutis c suaves, mórbidos, radiantes... Vozcs, veladas, veladoras, vozes, volúpias dos violóes, vozcs veladas, vogam nos velhos vertices velozcs dos vcntos, vivas, väs, vulcanizadas ("Violôcs que choram") E fria, fluente, frouxa claridade flutua como as brumas dc urn lctargo... ("Lua") O metro pcrdc o rigor exigido pelo Parnaso e, ainda que predomine o soneto c, portanto, o decassflabo, este afrouxa o ritmo, deslocando os acentos tradicionais, como se perccbe nos versos abaixo, transcritos da profissao de f6 simbolista, o pocma "Antifona": e as emococs, todas as castidades os mais estranhos estremecimentos. Nao sao raros nos Broqudis e nos Farois exemplos da ultima cadencia, menos marcada, que sc ap6ia apenas na 4s sflaba (como obrigatrjria): denun-tc as asas c a serenidade ("Em sonhos") estranhamcntc sc purificasse ("Lubricidade") 6 Formas vagas, nebulosidades! ("Carnal c mfstico") 273 diafaneidades e melancolias... ("Angelus") Languida Noite da melancolia ("Cabelos") as Aleluias glorificadoras ("Mar de Lágrimas") que pelos Astros se cristalizaram! (lb.) O aspccto gráfico altcra-sc pela profusáo de maiúsculas, usadas para dai valor absoluto a certos termos, e pela náo menor cópia de reticéncias. Das primeiras colhem-se excmplos ao acaso: Céus, Dons, Desejos, Horas, Aleluias, Visoes, Almas, Urnas, Azul, Mar, Sonho, Crimes, Refúgios, Infernos, Astros.., Um dos recursos morfológicos ou, a rigor, morfo-semanticos, frequentcs cm Cruz c Sousa, c que os scus discípulos repctiram sem critčrio, é o emprego insólito do substantivo abstrato no plural capaz dc sugcrir uma dimensáo sen sivel no univcrso das idéias: diafaneidades, melancolias, quintessencias, di luéncias, cegueiras. Ás vczes a oposicáo do adjetivo concrcto ao nomc abstrato alcanca cfeitos raros: nevroses amarelas amis diafaneidades fulvas vitórias triunfamentos acres brancas opulencias agres torturas aladas alegrias docuras feéricas negras nevrastenias. Daí para os proccssos sinestésicos é um passo: acres aromas, brilhos er-rantes, cavo clangor, sonoras ondulacdes, fragráncia crua, verdes e acres ele-trismos... Do léxico dc Cruz c Sousa, espccialmcntc o dos primciros livros, já se dissc que, alčm da presenca explicável dc termos litúrgicos, traía a obsessáo do branco, fator comum a lantas dc suas metáforas cm que entrain o lřrio e a neve, a lua c o linho, a espuma c a névoa. Ao que sc pode acrcsccr a náo menor frequencia de objetos luminosos ou translúcidos: o sol, as estrelas, o ouro, os eristais. Á cxplicacáo um tanto simplista dos que viram nessa constante apenas o reverso da cor do pocta, um interprete mais profundo, o sociólogo trances Roger Bastide, preferiu outra, dinámica, pela qual todas as barreiras existenciais da vida de Cruz c Sousa — c náo só a cor — o levaram a um 274 i'Klorco dc superagäo e de cristalizagäo, fazendo-o percorrer um caminho in-vcrso ao de Mallarmé, poeta do anulamento e do vazio. Säo palavras de Bastide: O drama de Cruz e Sousa vai, portanto, ser ainda mais patético que o de Mallarmé, e na sua posigäo vai ser de outra originalidade, pois que para ele näo se tratará unicamente de achar a expressäo possível do inefável, de criar para si, urna cxperiéncia psicológica, mas essa experiSncia psicológica, para se eonstituir, tcrá de lutar incessantemente com urna primeira educagäo absolutumcnte oposla a ela e que, a cada momento, a porá em risco dc ser aniquilada. (...) Mallarmé continua eon-templativo, ao passo que o que domina em Cruz e Sousa é a origem e a subida, č o dinamismo do arremesso, e isso porque cle era brasileiro, do pais da saudade, c de origem africana, dc urna raca essencialmcntc sentimental. (...) O chefc da escola francesa, por apuro cxucmo, chcgará ä palavra que dá a conhccer urna ausôncia, enquanto o processo de Cruz e Sousa será o da cristalizagäo. A cristalizagäo č pu-rificagäo c solidificagäo na transparčncia, podcndo assim guardar na sua branca geometria alguma coisa da pureza das Formas cternas, das EssCncias das coisas. (...) Destruigäo dc íormas (no plural) nas cerragóes da noitc, cristalizagäo da Forma (no singular) ou solidificagäo do cspirilual numa gcomcUia do translúcido, tais säo, afi-nal, os dois processos antitéticos c complemcntarcs ao mesmo tempo, que permitiram a Cruz e Sousa trazer aos homens a mensagem da sua expcriCncia c aprescntá-la em poesia dc beleza iínica, pois que é acariciada pela asada noite c, todavia, lampeja com todas as cintilagôes do diamante (221). O pocta näo percorreu dc um só lanec o itinerário que o levaria ä plena expressäo dc si mesmo. Broquéis e Missal, livro dc prosa, acham-sc reťcrtos dc excrcícios lilcrários, como se o autor estivesse ainda experimentando a nova tčenica simbolista dc construir. Mas, nos poemas coligidos por Nestor Vítor nos Faróis, já figúram algumas páginas em que Cruz c Sousa faz direto c vigoroso o tratamento da matéria biográfica: "Recolta de Estrelas", poéma dedieado ao f i lho; "Pandemonium", onde a angústia do eseravo se projeta em rcpctigôcs alucinatórias; "Tédio", invento onírico que se prešla a urna sondagem psicanalítica dc motivagôcs; "Ressurreigäo", canto a Gavita que voltava do hospício após meses dc reclusäo: Alma! Que tu näo chores e näo gemas, tcu amor voltou agora. Ei-lo que chega das mansôcs extremas, lá onde a loucura mora! Vcio mesmo mais belo e estranho, acaso, desses lívidos países, mágica flór a rebentar dc um vaso com prodigiosas raízes. (221) Em A Poesia Afro-Brasileira, S. Paulo, Martins, 1943. 275 Ah! foi com Dcus que tu chegaste, é certo, com sua graca espontänea que emigraste das plagas do Deserto nu, sem sombra e sol, de Insónia! E ainda, esta "Litania dos Pobres", que, se lembra motivos análogos ii> Baudelaire, tern de pessoal um acento sombrio de protesto que se podem com parar aos versos libertários do genial simbolista russo, Alexandre Blok: Os miscrávcis, os rotos säo as flores dos esgotos. Säo espectros implacáveis os rotos, os miscráveis. Säo prantos ncgros de fumas caladas, mudas, soturnas. As sombras das sombras mortas, ccgas, a tatear nas portas. Procurando o céu aflitos e varando o cču de gritos. Faróis ä noite apagados por ventos desesperados. Bandeiras rotas, sem nomc, das barricadas da fornc. Bandeiras csuacalhadas das sangrentas barricadas. Ó pobres, o vosso bando 6 trcmendo, č fomiidando! Ele já marcha crescendo, o vosso bando tremendo! Nos Ultimos Sonetos, a visäo do mundo de Cruz e Sousa torna forma definitiva. As imagens solares ou noturnas já näo se perdem no fluxo de uma sonoridade válida por si mesma: elas organizam-se lelcologicamente para a construeäo de um pensamento coerente que sustenta c unifica as scnsacöes e impressoes, materia primeira do trabalho estčtico. As rařzes desse pensamento säo rcligiosas. Mas, ao contrario do que ocor-rerá com Alphonsus de Guimaraens, näo se trata de uma devoeäo haurida no convívio do catolicismo tradicional, com hábitos e liturgias definidas, näo raro 276 (Htvit/.iadas em formulas. Do Cristianismo Cruz e Sousa incorpora o Amor como ill it e omega da conduta humana. Mas näo é ä uniäo com a Pessoa divina, que conduz o seu roteiro espiritual. O termo da viagem ele o entrevé na libe-fiicťio dos sentidos, "cárcere das almas", e, portanto, de toda dor: algo seme-lluintc ao Nirvana búdico a que tendia a opcäo irracionalista dos romänticos nlľiiiäcs e de Schopenhauer. É nesse contexto que se entcndcm as suas pro-lissócs de renúncia, de ascese, de estóica ataraxia. Com serenidade, o poeta nllia a morte de frente como retorno fatal ä matéria inorgänica, único modo de alcan9ar a glória silente do Nada; mas, diferentcmcnte da ascese mallar-mcana, há fervor e extrema vibra^äo na prática desse caminho: Ergucr os olhos, levantar os bracos p.ira o cterno Silôncio dos Espacos e no Silôncio cmudcccr olhando ("Imortal atitudc") Abic-mc os bracos, Solidäo radiante, lunda, fenomenal c solucante, larga c budiča Noitc redentora! ("Éxtasc búdico") O tom de confianca absoluta na salvagäo pelo cxcrcício da "vida obseura" c pelo pereurso da "via dolorosa" está presente nos mais belos sonetos de (Yuz e Sousa que, com os de Antero, däo ä lingua portuguesa do século passado um alto exemplo de poesia existencial: "Vida Obseura", "Caminho da Glória", "Supremo Vcrbo", "Cora9äo confiante", "Ódio sagrado", "Cavador do Iní'ini-lo", "Triunfo Supremo". E este "Sorriso Interior", testamento espiritual que eserevcu pouco antes de morrer: O ser que é ser e que jamais vacila nas gucnas imortais entra sem sústo, leva consigo este brasäo augusto do grande amor, da grande fé tranqiiila. Os abismos carnais da uiste argila ele os vence sem dnsias c sem custo... Fica sereno, num sorriso justo enquanto tutlo cm derredor oscila. Ondas interiores dc grandc/.a däo-lhc csta glória cm frente ä Natureza, esse esplcndor, todo esse largo cflúvio. O ser que č ser transfonna tudo cm flores... c para ironizar as próprias dores canta por cnue as águas do Dilúvio! 277 Alphonsus de Guimaraens De Cruz e Sousa para Alphonsus de Guimaraens (222) sentimos uma des» lili de tom. Tristäo de Ataide chamou "solar" ao primeiro para contrapo lo Ml scgundo, "poeta lunar". De fato, a poesia do autor de Kyriale nos apuiot» iluminada por uma luz igual c suave, constante no seu nivel, quase sein nui presas na sua tcmálica. Alphonsus de Guimaraens foi poeta de um só lern« a mortc da amada. Ncle centrou as várias csferas do seu universo semänih« a naturcza, a arte, a crcnga religiosa. Mas näo devemos cair na tentacAo «Ii chamá-lo poeta monótono, a näo scr que se dé ä monotonia o valor posillvn que ela assume cm poetas maiorcs, um Petrarca ou um Leopardi, que soubcinin aprofundar ate äs raizes o seu motivo inspirador, permanccendo-lhe scinpn fiéis. Quanto a Alphonsus, o fantasma da amada (sublimacäo de seu afeto pelm prima Constanca, morta adolescente?) coloca-o cm face da morte enquanln dado insuperável, que a sua rcligiäo estätica näo logra transcender. A moiu sc repropöe ao pocta como presenca do corpo morto, com o luto circunstanli os cirios, os cantochöes, o esquife, o féretro, os panoš roxos, o requiem, f scpultainento no campo-santo, as oracöcs fúnebrcs. Kyriale 6 um dobrc voj iii^ t. i. Tenlio notícia dc que a Rcvista da Academia de Letras da Bahia, nos seus númcros 2-3, de 1931, 4-5, dc 1932, e 6-7 de 1933, publicou um ensaio de Carlos Chiacchio, crítico modernista, sobre Kilkerry. Infclizmcnte nao pude vé-lo, mas, dada a natureza da rcvista, é certo que náo teve rcpcrcussáo bastante para divulgar o poeta. Para a crítica mais recentc, v. Augusto de Campos, "Rc-vis3o dc Kilkerry", S. Paulo, Fundo Estadual dc Cultura, 1970. 286 jiilipo sobrcssai a voz de Adolio Caminha, o autor de A Normalista, que apesar ■li discípulo de Ega, deixou algumas páginas simpáticas ao Simbolismo e a i mi/ c Sousa {Cartas Literárias, 1895). Enfim, o ultimo órgáo propriamente simbolista editou-se no Rio de Janeiro, ,i icvista Fon-Fon! Seus animadores, tendo ä frente o poeta Mario Pederneiras, ililuíram o verso e aplicaram-no ä expressäo de conteúdos intimistas, razäo i li li que é comum vé-los agrupados sob o rótulo de "penumbristas" ou "cre-pusculares". Mario Pederneiras (Rio, 1868-1915) costuma ser apontado como o intro-iluior do verso livre no Brasil. Näo 6 bem verdade: ele apenas o aplicou sis-i. niaticamente nas Histórias do Meu Casal (1906), livro até certo ponto novo quando situado na atmosféra estetizante do tempo, avessa aos motivos simples, ilomésticos, nele presentes. Mas o jogo de ritmos irreguläres e de uma nova metrica vinha do século anterior, por sugestöcs de Whitman, Rimbaud, Verlaine, Laforgue e Gustave Kahn, c já apareecra entre nos nas traducöes que o poeta parnasiano e ncoclássico Alberto Ramos fizera de alguns poemas de Heine (Poemas do Mar do Norte, 1894). Alguns anos depois, o simbolista l'iiucho Guerra Duval publica, cm Bruxclas, sob a influcncia direta dos penumbristas beigas, as Palavras que o Vento Leva (19(H)), onde 6 constante o uso do verso irregular (229). Dentrc os colaboradorcs de Fon-Fon! figurám os nossos mclhorcs intimis-las, alias, já citados nos grupos rcgionais, como Eduardo Guimaracns, Álvaro Moreyra e Felipe d'Olivcira. Avancando ncssa linha, encontrariamos poetas que aderiram (ou quasc...) ao Modcrnismo: Rodrigo Otávio Filho, Ribciro Cou-lo, Olegário Mariano, Guilhcrme dc Almeida, Ronald dc Carvalho, Onestaldo dc Pennafort... * Fora c acima desses vários grupos encontramos o mais original dos poetas brasilciros cntrc Cruz e Sousa e os modernistas: Augusto dos Anjos. Augusto dos Anjos (230) foi poeta de um só livro, Eu, cuja fortuna, ex-Iraordinária para uma obra poética, atestam as trinla cdicöes vindas á luz até o momento cm que eserevemos. Essa popularidade deve-se ao caráter original, paradoxal, atč mesmo cho-cante, da sua linguagem, tecida de vocábulos esdrúxulos c animada dc uma (229) O Icitor acharä mais esclarecimentos sobre as experiöncias mCtricas dc Alberto Ramos c Guerra Duval em Pencles Eug§nio da Silva Ramos, Do Barroco ao Moder-nismo, S. Paulo, Com. Est. de Cult., 1967, pp. 221-235. (23°) Sintetizo o que escrevi sobre o poeta paraibano cm 0 Prö-Modernismo, cit., pp. 43-51. 2K7 viruléncia pessimista sem igual em nossas letras. Trata-se de um pocta pmli roso, que deve ser mensurado por um critério estético extremamenlc ahriin que possa reconhecer, além do "mau gosto" do vocabulário rebuscado c clan tífico, a dimensäo cósmica e a angústia moral da sua poesia. Dimensäo cósmica, em primeiro lugar. A. dos Anjos centrava, de ntndo obsedanle, no ser humano, todas as energias do universo que se teriam en< m minhado para a conslrugäo desse mistério que é o "cu". O evolucionismo pani encontrar sua transcricäo počlica em versos como estes: Eu, filho do carbono e do amoníaco ("Psicologia de um Vcncido") De onde cla vem?! De que matéria bruta Vcm essa luz, que sobre as nebulosas Cai de incognitas criptas misteriosas Como as estalactites de urna gruta?! Vcm da psicogenética c alta luta De feixc de moléculas nervosas, Que, cm desintegracôes maravilhosas, Dclibera, c depois, quer e exceuta! ("A Idéia") Augusto mi Carvalho Rodrigues dos Anjos (Engcnho Pan D'Arco, Paraíba, 1884 Leopoldina, MG, 1914). Com o pai, bacharel, aprendeu as primciras Iclras, Fez os estudoN sceundários no Liceu Paraibano: os testemunhos da época já o dao como enfermico o nervoso. Cursou Direito em Recife e, apenas fonnado, casou-se; nílo advogou, porém; vivia de lecionar Portuguěs, primeiro no scu Estado, depois no Rio, para onde se mudou cm 1910. Nos últimos meses de sua vida obteve o lugar de diretor de um grupo escolai em Leopoldina, aí vindo a falcccr, de pneumonia, aos tiinta anos de idadc. Obras: Eu, 1912; Eu e Outras Poesias, 1919, 30* cd., Livraria S. José, 1965. Consultan Orris Soares, "Elogio de Augusto dos Anjos", Prefacio a Eu c Outras Poesias, cit.; AntCnio Tones, "O Poeta dsi Mořte", Pref. a 4a ed., 1928; Agripino Gricco, Evolucím da Poesia Rrasileira, Rio, Ariel, 1932; Gilberte Freyre, Perfii de Euclides e Outros Perfis, Rio, José Olympio, 1944; Álvaru Lins, Jornal de Crttica, 6" série, Rio, José Olympio, 1951; JoSo Pacheco, O Mundo que José Lins do Rego Fingiu, Rio, Simocs, 1958; Cavalcanti Proenca Augusto dos Anjos e Outros Ensaios, Rio, José Olympio, 1959; Anatol Rosenfeld, Doze Esíudos, S. Paulo, Co-missáo Estadual de Cultura, 1959; Antonio Houaiss, Seis Poetas e um Problému, Rio, MEC, 1960; Horácio dc Almeida, Augusto dos Anjos. Razoes de Sua Angústia, Rio, Gráfica Ou-vidor, 1962; Humbcrto Nóbrega, Augusto dos Anjos e Sua Época, Joab Pessoa, 1962; José Paulo Paes, As Quatro Vidas de Augusto dos Anjos, S. Paulo, 1957. O interesse pelo pocta rccrudesccu na década de 70, cm que saíram: Toda a Poesia de Augusto dos Anjos c um estudo crítico de Ferreira Gullar, Rio, Paz e Terra, 1976; A. dos Anjos, Poesia e Prosa, cd. crítica de Zenir Campos Rcis, S. Paulo, Ática, 1977; Magalhaes Jr., Poesia e Vida de Augusto dos Anjos, Rio, Civilizacáo Brasileira, 1977. 288 Mas a postura exisiencial do pocta lembra o inverso do cientismo: uma iii i gusli a funda, letal, ante a fatal idade que arras ta toda carne para a decom-pusicäo. E já näo será lícito falar em Spencer ou em Haeckel para definir a ,1111 cosmovisäo, mas no alto pessimismo de Arthur Schopenhauer, que iden-nhca na vontade-de-viver a raiz de todas as dores. Fundem-se visäo cósmica I dcsespero radical produzindo esta poesia violenta e nova em lingua portuguesa: Tristc a escutar, pancada por pancada, A sucessividade dos segundos, Ouco em sons subtcrräneos, do orbe oriundos, O choro da Energia abandonadaí É a dor da forca dcsaproveilada, O cantochäo dos dfnamos profundos, Que, podendo mover milhOes de mundos, Jazem ainda na cstática do Nada. É o soluco da forma ainda imprecisa... Da transcendencia que sc näo realiza... Da luz que näo chcgou a ser lampcjo... 1 É, em suma, o subconscienic ai formidando Da natureza que parou chorando No rudimcntarismo do dcsejo!... ("O Lamento das Coisas") Como Baudelaire (excluindo embora as profundas diferencas de forma), Augusto dos Anjos canta a miséria da carne em putrefacäo. Mas näo há, no atormentado paraibano, nenhuma conviccjío estética amadurecida, nem, por ou-tro lado, complacencia satanista. Para o poeta do Eu, as forcas da matéria, que pulsam cm todos os seres e em particular no homem, conduzem ao Mai c ao Nada, através de uma destruicäo implacável; ele é o espectador em agonia desse proccsso degencrescente cujo símbolo é o verme: Já o verme — este operário das ruínas — Que o sangue podre das camificinas Come, e ä vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roe-los, E há de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgänica da terra! ("Psicologia de um Vencido") Ah! Para ele é que a came podre fica, E no inventári o da matéria rica Cabe aos seus filhos a maior porcao! ("O Deus-Verme") Sc a vida (carne, sangue, instinto) näo tem outro destino scnäo o de fabricar miasmas de morte, qual poderá ser a concepcäo do amor ou do prazer em 2HV Augusto dos Anjos? Ha" no poema Queixas Noturnas resposta para amhiil as perguntas. Sobre o amor: Sobre hist6rias de amor o interrogar-me E vao, € inutil, € improficuo, em suma; Nao sou capaz de amar mulher alguma, Nem hi mulher talvez capaz de amar-me. E acerca do prazer, estes versos justamentc celebres: Sc algum dia o Prazer vicr procurar-me, Dize a cste monslro que cu fugi de casa! O asco da volupia ele o cxprimiu com palavras de fogo, ao visualizar na relacao cnlrc os scxos apcnas a matilha espantada dos instintos, ou, parodiando saraus cinicos, I bilhoes de centrossomas apollnicos I na cdinara promiscua do vitellus Rcdu/indo o amor humane a ccga e torpe luta de ceMuIas, cujo fim nao 6 senab criar urn projelo de cadaver, o que rcsta a esse impicdoso desprczador das energias vilais? Uma aspiracao contorcida para a imortalidadc g6Iida, mas luminosa, de outros mundos ondc nao latcje a vida-instinlo, a vida-carnc, a vida-corrupcao: As minhas roupas, quero at6 rompC-las! Quero, arrancado das prisScs camais, Vivcr na luz dos asU'os imortais, Abragado com todas as estrelas! ("Queixas Noturnas") Ncssc momcnto, em que sentimos o rcllcxo de urn outro romanlismo — o idealista c espiritualista —, aproximam-sc o blasfcmo Augusto dos Anjos c o crcnte Cruz c Sousa. O pwla do Eu 6 um pcxila cl(X|ucnte. O dramesde o comeco do século que se implantou em nossas revistas literárias e mundanas, com vinhetas e ilustracôes, um género de crônica meio poemática, rspécie de divagacäo fantasista sobre motivos abstratos, mero jogo de palavras, Im que se exercitavam a habilidade e o engenho verbal dos autores. Era as-similacäo do pior Simbolismo pelo pior Parnasianismo, e o tipo perfeito desse mal da literauce, que se tornou um dos principals alvos dos modemistas"(232). A revista Fon-Fonl, refúgio dos crepuscularcs da ultima gcracäo simbolista, dá exemplo desses periódicos de que fala Brito Broca. É a época áurea do art nouveau, ou liberty, estilo arquitetônico e decorativo que se pode con-siderar uma resisténcia do arlesanalo e do ornamento floreal ä seriacäo anônima it que a industria comccava a rcduzir as artcs aplicadas (233). A prosa ornamental de Coclho Ncto, inccrta entre o Rcalismo c o Deca-ilcntismo, já prenunciava essa linlia que iria prolongar-se por toda a belle épo-(fue. Mas viria de simbolistas de estrcita obscrvancia, como Lima Campos, Cionzaga Duque, Rocha Pombo e Nestor Vílor, o esforco mais sistcmálico de criar uma prosa počtica em moldcs realmenlc originais. Em nossa lingua, antes ilas experiencias dc Cruz c Sousa (Missals, 1893), conhccia-sc a obra do cs-critor portugucs Joäo Barreira, Gouaches, apólogos c fantasias intimistas; mas os modelos mais influentes vinham, naturalmcnte, da Franca: os pocmas em prosa de Aloysius Bcrlrand e de Baudelaire, as Illuminations (que significam "iluminacóes", mas tamb6m "iluminuras") de Rimbaud, Axel dc Villicrs de ľlsle Adam, as páginas ocultislas de Sár Péladan, assistcnte rosa-cruz cm Paris, c, na prosa ficcional de estofo ideológico neo-romäntico, Ä Rebours, En route c La Cathédrale de Huysmans, retratos consumados de um ideal de vida eva-sionista. Da mole dc contos, quadros, fantasias e devaneios em prosa escritos nessa época, é jus to que sc rcssalvem algumas obras representativas da forma mentis simbolista entre nós: Signos (1897), de Nestor Vitor, em que o atilado critico do movimento trabalha uma linguagem cxpressionista avant la lettre, cujo exemplo mais sério é a novela "Sapo", história de um rapaz que se alheia radicalmente da sociedade até vcr-sc um dia transformado em um animal repelente "de malhas amarelas e verdc-cscuras a cobrircm-lhe o corpo". Quern näo lembrará, ao menos pela alegória final, a Metamorfose, que Kafka escreveria vinte anos depois? (232) jjiito Broca, "Quando teria comegado o Modernismo?", in Letras e Artes, Supl. Literário de A Manila, Rio, 20-7-1952. (233) V. o cxcelente ensaio dc Flávio Motta, Contribuigôo ao Estudo do "Art Nouveau" no Brazil, tese universitária, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da U.S.P., 1967. 293 Confessor Supremo (1904), de Lima Campos, contos fantásticos ou on fa ricos, mas elaborados em uma prosa frouxa e relórica que dilui o impadn du mensagem psicológica; e Horto de Mágoas (1914), de Gonzaga Duque, livro de contos nclclihg tas. Tcntativas mais ambiciosas de romance anti-realista fizeram-nas o mm mo Gonzaga Duquc, com Mocidade Mona (1897), Nestor Vitor, com Anw gos (1900), e Rocha Pombo, com No Hospício (1906). O livro de Goii/iqin Duquc lern importäncia documental: narra as aventuras de um grupo est« tizantc, os "Cavalciros da Espiritualidadc", boemios intoxicados de pucala c de pintura francesa fin de siěcle, paradigmas daquela atitude na verdmli muito sensual c nada cspiritual que levaria o severo Croce a definir o imti ginoso D'Annunzio "dilettante di sensazioni". A diferenga está na qualidiulr literária, no caso o mclhor divisor de águas: sc o decadente italiano era tun cstilista culto c vigoroso, o nosso Gonzaga Duque näo ultrapassava, nu geral, a mera verborragia. Também o romance de Nestor Vitor centra-sc na história mórbida CH um grupo de jovens, lodos estigmatizados por tiques c taras bastantes pafn cmpurrá-los a uma existencia irregular e marginal, em busca de impossívm. evasöes. É sintomático o apelo que os simbolistas fazem ä esfera da anoi malidadc, lanto física quanto cspiritual, situacao que, cm vez de acachapní as personagens ä moda de Zola, permite-lhcs o acesso a uma vida "diferenli" c "superior". O clogio da loucura, sobretudo quando esta aparcce com ma tizes esquizofrenicos, vira lugar-comum ncssa fiegäo que dá rcsolutamenh as coslas ao cotidiano e ao terra-a-terra. O que näo soa täo estranho cm poesia, pela propria tradÍ9äo sublimadora c distanciadora da Urica ocidental, choca no romance que, desde o sčeulo XVIII, se tem mostrado compromc tido com as realidades sócio-históricas, mesmo na sua variante passional v romäntica. Enfim, prova cabal do vezo de referir sublimes demencias enconlra-se no romance No Hospício cujo autor lbi, curiosamcntc, um dos nossos mais cons picuos historiadorcs, Jose Francisco da Rocha Pombo. Os crilicos que lhe tern dedicado mais atcncäo (234) falam de Poe c de Hoffmann como influencias provávcis no cspirilo c na fatura da obra. É observaeäo que se deve tomar cum grano salis, pois desses romänticos intensamente eriadores o nosso Rocha Pombo herdou apenas o gosto do quadro narrativo excepcional (um hospício onde um jovem scnsívcl foi eriminosamente internado pelo pai), mas näo foi capaz de imitar-lhes a arte de sugerir almosferas pcsadclarcs, pois carecia dc reeursos formais para tanto. (234) Andrade Muricy, op. cit., pp. 204-209, e Massaud Moisés, op. cit., pp. 250-258. 294 O PENSAMENTO CRÍTICO A crítica oficial dos fins do século XIX, representada pela tríade Silvio Knnicro-José Veríssimo-Araripe Jr., foi, em geral, hostil aos simbolistas; e, nirsmo quando se mostrou tolerante ou, excepcionalmente, simpática ä figúra Isolada de Cruz e Sousa, näo pôde, nem poderia tornar-sc a consciencia reflexa ■ lr uma corrente que se afirmara contra o Rcalismo em literatúra c o Posilivismo Im filosofia. Foi do interior do movimcnto que nasceram os critčrios conaturais nos valores encarecidos por seus poctas (235). Dai, tercm sido militantes simbolistas seus melhorcs cn'ticos: Gonzaga Duque e Nestor Vitor. O primeiro só nos intcrcssa obliquamcntc. Foi um amador das artcs plás-licas, escrevendo suas imprcssöcs finas c lúcidas sobrc pintores c dccoradorcs do tempo. Folhcando Graves e Frívoios (1910) c Contemporäneos (1929), en-liamos em contato com um connaisseur de goslo afinado com os imprcssio-nistas, entusiasta de Puvis de Chavanncs c do arl nouveau que chcgara ao Rio ha pena dos ilustradorcs da Careta, do Fon-Fon!, do Malho, da Avenida, da Renascenca, do Kosmos, c do pinccl ornamental de Eliseu Visconti que lhc liacou um bclo rctrato. Dada a contínua imbricacjio do gosto simbolista com as artes em geral (lcmbrc-se a doulrina das "corrcspondcncias"), näo sc deve subestimar o papcl cxcrcido por Gonzaga Duquc como critico cspccializado, lalvez o primeiro na história da nossa cultura. Mas 6 só com Nestor Vitor (236) que a corrente encontra o scu claro cspelho. (235) y. "Da Crítica do Simbolismo pelos Simbolistas", in Anais do I Congresso Brasileiro de Crftica e História Literária, Rio, Tempo Brasileiro, 1964, pp. 235-266. (23f>) Nr-sTOR VboR dos Santos (Paranaguá, Parana, 1868 — Rio, 1932). Fez as pri-tneiras letras na cidade natal e aí, adolescente, tornou parte ativa em campanhas aboli-cionistas e republicanas. Indo para o Rio de Janeiro, freqüentou o Externato Joäo de Deus e passou a militar na imprensa. A partir de 1893 liga-se a Cruz e Sousa por vínculos de ami zade e admiracäo, de que dará testemunhos após a morte do poeta de-dicando-llic dois cnsaios, Cruz e Sousa (1899) e O Elogio do Amigo (1921), e publi-cando-lhc Faróis e Ultimos Sonetos além da edicäo da obra completa, em 1923. De 1902 a 1905 esteve cm Paris como correspondente do Correio Paulistano e de O Pais para os quais redigiu crônicas sobrc a vida e a arte francesa, Retomando ao Brasil, reparte as suas atividades entre o magistério (Colégio Pedro II), a política (Campanha Civilista de Rui Barbosa, 1909; Liga Brasileira pelos Aliados, junto com Rui e José Veríssimo, 1914; reprcsentacäo junto ä Cámara Legislativa do Parana, 1917, 1923) e a crítica literária, voltada primeiro para a exaltacäo dos simbolistas e nos Ultimos anos também para a inteligencia dos novos. Outras obras: A Hora, 1901; Paris, 1911; A Terra do Futur o, 1913; O Elogio da Crianca, 1915; Tré s Romancistas do Norte, 1915; Farias Brito, 1917; A Crítica de Ontem, 1919; Folhas que Ficam, 1920; Cartas ä Genie Nova, 1924; Os de Hoje. Figuras do Movimento Modernista Brasileiro, 1938. Consultar: 295 Com efeito, tudo o predispunha a esse papcl: a scnsibilidade vibralil, ck pressa nos versos decadentes de Transftguracoes (1902), nas novelas de Signm e nas paginas sobre a cidade de Paris (Paris, 1911), que Lhe valeram do in suspeito Silvio Romero o elogio de "no genero, o mais complexo dos escritnn-a brasileiros"; a preferencia absoluta que dava as leituras apaixonadas e indivi dualislas (Nietzsche, Ibsen, Maeterlinck, do qual traduziu A Sabedoria c fl Destino); enfim, o espiritualismo e o intimismo increntes a sua concepgao d< pocsia. A sua presenca na cultura brasileira nao sc rcstringiu a defesa do auloi de Fardis ante a incompreensao parnasiana. Nestor Vftor foi tamb6m um Iciloi sensfvel c inleligcntc dc grandes cscritorcs cstrangeiros mal conhecidos enlr<< n6s como Novalis c Emerson, cm cujas pSginas julgava reconhecer os mesmo* tragos Ifricos c mfslicos da sua pcrsonalidadc. £ claro que uma alta dose du impressionismo orientava as suas intcrprclacocs; o que nao impede o fato dr scrcm algumas delas fundamental men tc justas. Eis, por cxcmplo, o fecho do uma pagina sua sobrc Nietzsche: Louco embora, sua loucura, cntanto, 6 vcneriivel; Nietzsche agora ficara" no mundo como um olho nibro, scm paipebras, a perscguir lodos os comediantes coin prctcnsOcs a screm tornados a scrio, todas as fofidades, todas as falsas quantidades prclcndcntcs a uma cotacab. Sc nilo tivcrcs confianca em teu valor, nab o leias; se a tens, encontra-te coin ele: na volta hds tie confessar que rcconheces valer mcnos um pouco do que supunhas. Quern fixa atentamente os olhos deste louco, nunca mais o abandona. Para queni tenha valor, eles senlo sempre uns olhos dums, implacavcis, mas amigos; p.'ira os seres falsos, para as falsas inteligcncias, para os falsos coracOes, eles serilo sempre uma ironia conosiva um sarcasmo dissolventc, impiedosos c fauiis (A Crftica de Oniem). Espirito abcrto as varias tendencias do pensamento c da arte p6s-naturalista, Nestor Vftor parccc-nos hojc, um pouco talvcz como Araripc Jr., mais um semcador ecl6lico dc id6ias que, a rigor, um crftico dos valorcs cstritamente litcra>ios da obra. Pode-sc, porcm, confiar no taclo do scu impressionismo. Elc comprcendcu, por cxcmplo, que o intcrcssc pclos problcmas nacionais tra-cara um sulco inapagt1vcl antes do Modcruismo; c, sobrcvindo cstc, soubc logo disccrnir os scus ponlos altos: 6 um prazcr ve-lo, sexagenario, cntusiasmar-se com a Icitura dc Macunalma dc M^rio dc Andrade ou dos pocmas afro-nor-destinos dc Jorge dc Lima. Trisläb de Atafdc, Primeiros Estudos (1919), Rio, Agir, 1948; Jackson de Figueiredo, Prefäcio tias Cartas d Genie Nova, cit.; Wilson Martins, A Critica Literdria no Brasil, S. Paulo, Dcpto. de Cultura, 1952; Tasso da Silvcira, Aprcscntagax) a Nestor Vftor — Prosa e Poesia, Rio, Agir, 1963; Massaud Moists, O Simbolistno, cit.; Salelc dc Almeida Gua, A Recepcäo Crftica, Ätica, 1983. 296 A incio caminhu cntrc o psicologismo c a análisc idcológica, N. Vítor näo P perdcu, por isso, em obras esteticamente inferiores. A escolha previa de mn Ibsen, de um Novalis ou do nosso Cruz e Sousa já é garantia do nível de i1 n gosto; e, o que importa numa perspectiva histórica mais lata, era sinal de uma crítica afastada dos padröes pamasianos vigentes no comcco do século. <) sou Simbolismo lúcido, dando as costas aos valorcs academicos, pode apro-umar-se com simpatia das vanguardas modernislas. O Simbolismo e o "renouveau catholique" (2^) Os simbolistas brasilciros, a cxcmplo dos scus modclos, cntcndcram rcs-i.mrar o cuUo dos valorcs cspirituais c, cntrc estcs, o religioso. Näo se tratava, 6 óbvio, de uma opcäo confessional: as instiluicöcs rcli-Kiosas oficiais, isto 6, as igrcjas, ignoraram quando näo hoslilizaram o surto eslético-místico a que nos rcferimos páginas atrás (v. nota 225), falando do ocultismo dc alguns dccadcnlcs. Mas a faixa comum da crcnca no mistério itproximava os simbolistas e as almas rcligiosas na reacäo contra a mcnlalidade agnóstica que prevalcccu cntrc as elites da scgunda mctadc do século XIX. lissas elites, primciro na Europa, depois cm urn pais periférico como o nosso, cram, em geral, de cxtracäo burgucsa, progrcssistas e libcrais cm política (daí lerem apressado aqui a Abolicäo e a República), positivas c evolucionistas em lilosofia, macônicas c anticlericais em face das estruturas rcligiosas. Em luta contra o catolicismo romäntico de Monte Alvcrne c Magalhäes, os líderes da Ľscola do Recife, Tobias Barreto, Silvio Romero e, lateralmente, Capistrano de Abrcu dcram o tom ao que seria a mentalidade dos realistas e parnasianos, voltados para a cxploracäo da imanencia social e psicológica. Céticos foram Machado dc Assis, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo e Adolfo Caminha; indi-ferentes, Bilac, Raimundo, Alberto de Olivcira; positivistas confessos, Ingles de Sousa e Vicente dc Carvalho. No que acompanhavam, repita-se, modos de pensar c dc sentir crista!izados pela burguesia culta européia. Tal correnle seria ainda considerável no primeiro vinténio do século quando a exprimiriam os maiores críticos realistas c leigos da la República: Euclides da Cunha, Lima Barreto, Montciro Lobato, Joäo Ribeiro, Vicente Licínio Cardoso... No entanto, murado nessa area, existiu o Simbolismo, ecoando uma infle-xäo de certas camadas da conscicncia européia para as zonas obscuras da rca-lidade humana; inflcxäo que teve em Bergson o seu pensador mais fceundo e certamente o mais lido. A obra do autor de Maíiěre et Memoire fornccia aquele (23?) y. Trisláo dc Ataídc, "A Reacäo Espiritualista", em A Literatura no Brasil (org. por Afranio Coutinho), vol. III, t. 1, pp. 395-428. 297 supplement dáme que as elites em crise passaram a exigir da filosofia. E iwm no afä de responder äs novas necessidades, enveredou por ismos diversos: inlui cionismo, vitalismo, psicologismo, panpsiquismo, irracionalismo, neo-idealismo., Entre nós, foi sensfvel ä viragem um pensador solitário, infenso äs doutrinas mít terialistas que o haviam formado na juventude, Raimundo de Farias Brito "Mestre sem discipulos", no dizer urn tanto radical de Gilberto Freyir, 0 filósofo cearense representor porém, a nova tendéncia espiritualista, que |n fora vivida em termos de literatura pelos poetas simbolistas, e que escrilom*. católicos de antes e depois do Modcrnismo iriam canalizar. Näo que Faun • Brito pudesse inscrever-se na ortodoxia da Igreja da qual o afastava o n), que, convertido de urna posigäo anticlerical virulenta a uma ľorma näo menos virulenta de catolicismo, fundou o Centro Dom Vital e a (23<)) Clövis Bevilacqua, Esbocos e Fragmentes, p. 25, apud Cruz Costa, O Desen-volvimento da Filosofia no Brasil no Seculo XIX e a Evolugäo Histörica Nacional, lese de cätedra, Fac. de Filosofia, U.S.P., 1950. (24°) Jackson de Figueiredo (Aracaju, Sergipe, 1891 — Rio, 1928). Obras prineipais: Xavier Marques, 1913; Algumas Reflexöes sobre a Filosofia de Farias Brito, 1916; A Questäo Social na Filosofia de Farias Brito, 1919; Humilhados e Luminosos, 1921; Do Nacionalismo na Nora Presente, 1921; A Reagäo do Bom Senso. Contra o Demagogismo e a Anarquia Militär, 1922; Pascal e a Inquietagäo Moderna, 1922; Auta de Sousa, 1924; Afirmagöes, 1924; Literatura Reacionäria, 1924; A Coluna de Fogo, 1925; Durval de Morais e os Poetas de Nossa Senhora, 1926. Pöstumos: Aevum, 1932; Correspon-dencia, 1946. Consultar: Tristäo de Ataide, Estudos, 3S serie, Rio, A Ordern, 1930; Agri-pino Grieeo, Gente Nova do Brasil, Rio, Jose1 Olympio, 1935; Tasso da Silveira, Jackson, Rio, Agir, 1945; Francisco Iglesias, "Estudo sobre o Pensamento Reacionärio", in Revista Brasileira de Ciencias Sociais, H/2, julho de 1962; Luis Washington Vita, Antologia do Pensamento Social e Politico no Brasil, S. Paulo, Grijalbo, 1968. 299 revista A Ordern e entrou a defender o governo conservador de Artur Bernard contra as investidas liberals dos tenentes. Hoje, é fácil distinguir na sua obra o que significou um enriquccimnitii da cultura religiosa no Brasil e o que representava apenas um fruto de atituriti polémicas, onde havia muito equívoco e paixäo e nenhuma lúcida análise du nossa rcalidade ä luz do Cristianismo. A sua contribuigäo para a história d« filosofia no Brasil está no ensaio Pascal e a Inquietacäo Moderna, publicadn no ano crítico da "Scmana". Trabalho de erudigäo, mas também de sínlew, cscrevcu-o com o intuito de encamar na figura do genio francos todas as "len-tagôes" do mundo modcrno. Boa parte do livro consiste na análise da posieilo jansenista do Pascal das Províncias, em que Jackson vislumbra "individua h-i mo" e "orgulho", que os Pensamentos iriam mais tarde corrigir e superar, in-tcgrando-sc assim na ortodoxia católica. Ancorado nessa posigäo, Jackson passou a militar no jornalismo, transpondri os termos míticos de Ordern, Hierarquia e Autoridadc para a área das opgftjl 'políticas. O pais vivia um momcnto grávido de velcidadcs revolucionárias, ccil« tradas no fenômcno do tenentismo, de ideológia ainda inccrta, mas, de qualqu«! forma, renovadora c contraria äs oligarquias e äs farsas elcitorais da I Republic^, Ora, Jackson, confundindo os pianos e partindo dc conceitos vagos para definii e julgar as contingencias históricas, acrcditou-se na obrigacäo dc defender a "OřW dem", no caso, a politica federal, estigmatizando todas as tcnlativas de impugná-la, Quis ser, c foi, atč a morte, o panfletário da contra-revolugäo. Mas a justica exige que se entenda o dcsapcgo pcssoal e ate mesmo o "nacionalismu" passional dessa posigäo. Tudo o que Jackson dctestava era o libera* lismo romäntico e anarquizante que, a seu vcr, desaguava no ccticismo religioso. no amoralismo, no desprezo das tradigôcs nacionais. E cle o combatia com a violencia de um ingenuo ncófito que, movido pelos sentimcntos, se ere o mais razoável dentre os defensores da Razäo... E 6 a sua correspondencia ardente com os amigos que nos revela esse romantismo congenita mal exorcizado. Em ritmo paralelo, mas guardando as devidas distäncias de uma opgäo politica sectária, o pensamento católico oficial organizava-sc na obra coesa do Padrc Leonel Franca S. J., lomista orlodoxo, autor das estimávcis Nogöes de História da Filosofia, alem de livros dc polemica antiprotestante. A opgäo conservadora da cultura mais ligada a Jackson de Figueiredo e ao Pc. Leonel Franca ainda sc manteria atuante alč as vésperas da II Guerra. A partir desta c, precisamenlc, cm face da Guerra Civil de Espanha, acende-se no mundo católico a querela enlrc os tradicionalistas (ditos "integristas") e os progress is las, eriando-se nos mcios ortodoxos condigôcs para a passagem a posigöes abertas conhecidas como "demoeracia crista" (Maritain, Sturzo) e "so-cialismo cristäo" (Mounier, na linha de Péguy). Entrc nós, ambas as correntes encontraram um lúcido interprete na figura dc Alceu de Amoroso Lima (Tristäo de Ataíde), cuja atividadc literária šerá analisada no tópico referente ä crítica contemporánea. 300 VII PRÉ-MODERNISMO E MODERNISMO PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS O que a crítica nacionál cháma de Modernismo está condicionado por um Ocontecimento, isto é, por algo datado, publico e clamoroso, que se impôs ä utengäo da nossa inteligencia como um divisor de águas: A Semana de Arte Moderna, realizada cm fevcreiro de 1922, na cidadc de Säo Paulo. Como os promotores da Semana traziam, dc fato, idéias estčticas originais cm relacäo äs nossas ultimas correntcs literárias, já em agónia, o Pamasianismo e o Simbolismo, parcceu aos historiadores da cultura brasilcira que modernista losse adjetivo bastantc para defínir o estilo dos novos, e Modernismo tudo o que se viesse a escrcvcr sob o signo de 22. Os termos, contudo, säo täo polivalentes que acabam näo dizcndo muito, a näo ser que sc dctcrmínem, por trás da sua vaguidadc: a) as situacôes socioculturais que marcaram a vida brasilcira dcsde o co-meco do século; b) as correntes de vanguarda européias que, já antes da I Guerra, tinham radicalizado e transl'igurado a heranga do Rcalismo e do Dccaden-tismo. Pela análise das primeiras cntcnde-se o porque de ter sido Säo Paulo o núcleo irradiador do Modernismo; as instäncias ora nacionalistas, ora cosmo-politas do movimento; as suas faces ideologicamente conflitantes. Gragas ao conhecimento das vanguardas européias, podemos situar com mais clareza as opgôes estéticas da Semana c a evolugäo dos escritores que dela participaram. ★ A chamada Republica Velha (1894-1930 aprox.) asscntava-sc na hegemónia dos proprietaries rurais de Säo Paulo e de Minas Gcrais, regendo-se pela politica dos govcrnadores, o "café com leite", formula que reconhecia ä lavoura cafeeira somada ä pecuária o devido peso nas decisôcs cconômicas e políticas do pais. A solidez desse regime dependia, em grande parte, do equilíbrio entre n produgäo c as cxportagôes de café; o que foi cedo previsto pelos grandes 1» MM zendeiros, que delcgaram ao Estado o papel de comprador dos exccdentcs pui garantia de precos em face das oscilacöes do mercado (241). É claro que a camada de "nobreza" fundiária, via de regra conservation!, näo esgotava a faixa do que se costuma chamar "classes dominantes". Havlu, num matizado segundo piano, atuante e válido em termos de opiniäo: umii burguesia industrial incipiente em Säo Paulo e no Rio de Janeiro; profissionulf liberals; c, fenômcno sul-americano típico, um respeitável grupo interslic imI, o Exército, que, embora cconomicamentc preso aos estratos médios, vinha cxei čendo dcsde a proclamacäo da Rcpública um papel politico de relevo. O quadro gcral da socicdade brašileira dos fins do século vai-se transfoi mando gracas a proccssos de urbanizacäo c ä vinda de imigrantes europeus cm Icvas cada vez maiorcs para o ccntro-sul. Paralclamente, deslocam-sc on marginalizam-sc os antigos cscravos cm vastas areas do pais. Engrossam si\ em conscqiicncia, as filciras da pequena classe média, da classe operária c do subprolctariado. Acclcra-sc ao mcsmo tempo o declínio da cultura canaviciu» no Nordoste que näo pode competir, nem cm capitais, nem cm mäo-de-obin, com a asecnsäo do café paulista. Um olhar, ainda que rápido, para esse conjunto mostra que deviam sepa* rar-sc cada vcz mais os polos da vida publica nacionál: de um lado, arranjos polřticos manejados pclas oligarquias rurais; de outro, os novos estratos socioeconomics que o poder oficial näo representava. Do quadro cmergem ideologias em conflito: o tradicionalismo agrário ajus-ta-sc mal ä mcnlc inquicta dos centros urbanos, permcável aos influxos euro-pcus e nortc-americanos na sua faixa burguesa, e rica de fermentos radicais nas suas camadas média c operária. No limite, a situaeäo comportava: a) — uma visäo do mundo estática quando näo saudosista; b) — uma ideológia liberal coin iracos anarcóides; c) — um complexo mental pcqucno-burgucs, dc classe média, oscilante entre o puro rcsscntimento c o rcíbrmismo (242); d) — uma atitudc revolucionária. í241) Excmplo dc medida defensiva foi o Convônio dc Taubaté (1906) pelo qual trčs Estados (Säo Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais) se comprometeram a retirar do mercado os exccdentcs de café c assegurar o nível dos precos (Cf. Celso Furtado, For-magdo Econdmica do Brasil, Rio, Fundo dc Cultura 1959). (242) q tenentismo, como fenômcno idcológico dc um grupo intersticial, combinava tragos da ideológia reformista da classe média e do liberalismo da burguesia: assim, opunha-se aos arranjos das oligarquias agrárias do ccntro-sul, que näo lhe cediam um quinhäo do poder; mas näo assumia a perspectiva das classes mais pobres, de que o separavam a origem e a formacäo profissional dos "tenentes". 304 Náo se deve esqucccr, porém, que esse esquema indicalivo só funciona quando m i u u lado com a realidadc dc um Brasil plural, onde os níveis de consciéncia se miimlcstavam em ritmos diversos. Assim, os conflitos deram-se em tempos e lugares .iiiľícntcs, näo raro parecendo exprimir tensôes meramente locais. Só para exem-plllicar: o núcleo jagunco de Canudos, matéria de Os Sertôes de Euclides da Cunha, u Iciifimeno do cangaco, o "caso" do Padre Cicero em Juazeiro, no primciro quartel ■Ji i século, refletiram a situacäo crítica de um Nordcste marginalizado e, portanlo, m Icrente a solucôes arcaicas. Os movimcntos operários cm Säo Paulo, durante a guerra .Ir 1914-18 e logo depois, eram sintoma dc uma classe nova que já se debatia cm migustiantes problemas dc sobrevivencia numa cidadc cm fasc dc industrializacáo. E ď. (entativas militares de 22, dc 24, c a Coluna Prestes, cm 25, significavam a reacáo dc um grupo liberal-reformista mais afoito que desejava golpear o status quo politico, 0 que só ocorreria com a Rcvolucäo dc 30. Estudados cm si, esses movimcntos tern uma história de todo independente; mas, no conjunto, testemtmham o eslado geral ,!(' urna nagôo que se desenvolvia á custa de graves desequiltbrios. Seja como for, o intclcctual brasilciro dos anos dc 20 teve que dclinir-se em I.ice desse quadro: as suas opcôcs väocolorir idcologicamcntc a literatura mtxlcmista. Em um nivcl cultural bem detenninado, o contato que os sctorcs mais inquietos de Säo Paulo c do Rio mantinham com a Európa dinamizaria as posicôes tomadas, enriquecendo-as c matizando-as. Comccam a scr lidos os fulurislas italianos, os (ladaístas c os surrcalistas franccscs. Ouvc-sc a nova música de Debussy c de Millaud. Assistc-sc ao tcatro de Pirandello, ao cinema de Chaplin. Conhece-se o lubismo dc Picasso, o primitivismo da Escola de Paris, o expressionismo plástico alemäo. Já se íala da psicanálise de Freud, do relativismo de Einstein, do intui-cionismo de Bcrgson. Chegam, enfim, os primeiros ecos da revolucäo russa, do anarquismo espanhol, do sindicalismo e do fascismo italiano. Falando dc um módo genérico, é a seducao do irracionalismo, como atitude existencial e estética, que dá o tom aos novos grupos, ditos modernistas, e Ihes infunde aquele tom agressivo com que se pôem em campo para demolir as colunas parnasianas c o academismo em geral. Irracionalistas fbram: a primcira poética de Mario de Andrade, o Manuel Ban-deira tcórico do "alumbramento" e todo o roteiro de Oswald de Andrade. Presos ao decadentismo estelizante, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. Pri-mitivista, Cassiano Ricardo. Na verdade, "desvairismo", "pau-brasil", "antropo-fagia", "anta"... exprimem tendencias evasionistas que permearam toda a fase dita heróica do Mwlcrnismo (dc 22 a 30). Nessa fase tentou-se, com mais ímpeto que coerencia, uma síntesc de correntes opostas: a centrípeta, de volta ao Brasil real, que vinha do Euclides scrtancjo, do Lobato rural e do Lima Barrcto urbano; e a centrifuga, o vclho transoccanismo, que continuava selando a nossa condicäo de pais periťérico a valorizar fatalmcnte ludo o que chegava da Europa. Or a, a Európa do primciro pós-guerra era visccralmcnte irracionalista. Nos parses dc extracäo colonial, as elites, na ansia dc supcrar o subde-senvolvimcnto que as sufoca, däo äs vczes passos largos no scntido da atua- 305 lizagäo literária: o que, afinal, deixa ver um hiato ainda maior entre as ba,sm materiais da nagäo e as manifestacöes culturais de alguns grupos. É verding que esse hiato, coberto quase sempře de arrancos pessoais, modas e palavnw, näo logra ferir senäo na epiderme aquelas condigöes, que ficam como estavaiu, a reclamar uma cultura mais enraizada c participante. E o sentimente do con traste leva a um espinhoso vaivém de universalismo e nacionalismo, com lodtt a sua sequela dc dogmas c anátemas. Os homens de 22 (Mario, Oswald, Bandeira, Paulo Prado, Candido Motta Fillui Menotti, Sergio Millict, Guilhcrme dc Almeida...) e os que de perto os seguiram, no tempo ou no espirito (Dmmmond, Sergio Buarque dc Holanda, Gilberto Freyre, Ti u. tab dc Atafdc, Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Alcantara Machado...), enfim, algun. cscritorcs mais teasos e inluitivos que os precedcram (Euclides, Oliveira Viana, Limn Barrcto, Graca Aranha, Monteiro Lobato...) viveram com maior ou mcnor dramali cidade uma conscicncia dividida cntrc a sedueäb da "cultura ocidental" e as exigencias do scu povo, múlíiplo nas raizes históricas c na dispcrsao gcográťica. Como no Ro mantismo, a coexisttneia dcu-sc dc forma dinämica c progressiva: e se na pressa dos manifestos houvc apenas eolagem dc matória-prima nacionál c módulos europeus. nosfrutos nuiduros do movimento se reconhece a exploracäo feiiz das potencialidades formats da cultura brasileira. Provam-no a fiegäb de Mario dc Andradc, a poesiii regional-universal dc Bandeira, o ensaísmo dcTristäo dc Atafdc c de Gilberto Freyre. a pintura de Tarsila e de Portinari, a escultura de Brcchcrct, a musica de Villa-Lobos. PRÉ-MODERN1SMO Crelo que se pode chamar pré-modernista (no sentido forte de premonigäo dos tcmas vivos em 22) tudo o que, nas primeiras décadas do século, pro-blematiza a nossa realidade social e cultural. O grosso da literatura anterior ä "Semana" foi, como č sabido, poueo ino-vador. As obras, pontilhadas pcla critica dc "neos" — ncoparnasianas, neo-simbolistas, neo-romänticas — traf am o marcar passo da cultura brasileira em pleno sčculo da revolueäo industrial. Essa literatura já foi vista, cm suas várias direcöcs, nas páginas dedicadas aos epigonos do Rcalismo c do Simbolismo. No caso dos melhores prosadorcs regionais, como Simöcs Lopes e Valdomiro Silvcira, poder-se-ia acusar um intcresse pcla terra diferente do revclado pelos naturalistas tfpicos, isto 6, mais atento ao registro dos costumes c ä verdade da fala rural; mas, em ultima análisc, tratava-se dc uma experiencia limitada, incapaz dc dcsvcncilhar-sc daqucle coneeito mimčtico dc arte herdado ao Rea-lismo naturalista (243). Caberia ao romance de Lima Barreto e dc Graga Aranha, ao largo ensaísmo social de Euclides, Alberto Torres, Oliveira Viana c Manuel Bonfim, c ä vi- (2^3) Ver pp. 214-216. 306 venčia brasileira de Monteiro Lobato o papel histórico de mover as águas es-Ingnadas da belie époque, revelando, antes dos modernistas, as tensôes que soľria a vida nacionál. Parece justo deslocar a posicäo desses escritores: do periodo realista, em que nasceram e se formaram, para o momento anterior ao Modernismo. Este, visto apenas como estouro futurista e surrealista, nada Ihes deve (nem sequer a Graga Aranha, a crer nos testemunhos dos homens da "Semana"); mas, con-siderado na sua totalidade, enquanto critica ao Brasil arcaico, negacäo de todo academismo e ruptúra com a República Velha, desenvolve a probletnática da-queles, como o fará, ainda mais exemplarmente, a literatura dos anos de 30. nuclides da Cunha (2*4) (244) EucLinns Rodrkjubs Pímiínta da Cunha (Canlagalo, RJ, 1866 — Rio, 1909). Orfäo muito pcqueno, foi edueado por tios, vivendo parte da infäneia na Bahia. Terminados os prcparatórios, no Rio, matriculou-sc na Escola Politécnica (1884), mas logo iransferiu-se para a Escola Militär que entäo passava por uma fase de ardcntc positivismo republicano. Euclides, ainda cadete, num ato de apaixonada adesäo ä doulrina que re-cebera dos mestres, afronta o Ministro da Guerra que visitava a Escola, lancando fora o proprio sabre: é exclufdo do Exército e, confessando-se militante republicano, está para ser submetido a Conselho de Guerra quando D. Pedro II Ihe concede perdäo. Segue para Säo Paulo c af publica nA Provtncia de Säo Paulo uma série de artigos oposicio-nistas. Com a proclamagäo da República, reintegra-se no Exército e passa a alferes-aluno. Cursa, de 1890 a 1892, a Escola Superior de Guerra, f ormando-se em Engenharia Militär e bacharelando-sc cm Matemática e Ciéncias Ffsicas e Naturais. Dedica-se ä profissäo de engenhciro e trabalha na Estrada de Ferro Central do Brasil. Apesar da protegäo de Floriano Pcixolo, mantém poucos liames com o Exército. Jugulada a revolta da Esquadra, em 1893, Euclides, cmbora florianista, manifesta-se pela necessidade de respeitar os dircitos dos presos politicos; Floriano, contrariado, afasta-o para Campanha, em Minas Gerais (1894) e Euclides aproveita o repouso forgado estudando temas brasileiros. Des-liga-sc em seguida do Exército e passa a trabalhar em Säo Paulo como Superintendente de Obras. Em 1897 colabora de novo para O Estado: entre outras coisas, um artigo sobrc Anchicta e comentários sobre os fatos de Canudos, que interpretava entäo como uma revolta insuflada por monarquistas renitentes ("A Nossa Vendéia"). O jornal man-da-o como correspondente para acompanhar as operacöes que o Exército iria executar na regiäo para destruir o "foco". Euclides lä permanece, de agosto a outubro de 1897; de volta, pöe-se a escrever Os Sertöes, primeiro na fazenda do pai, em Descalvado, depois em S. Jose do Rio Pardo (1898-1901) para onde fora üicumbido de reconstruir uma ponte. O livro, que sai em novembro de 1902, alcanna repercussäo nacionál: Euclides é aclamado membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro c eleito para a Academia Brasileira de Lerras (1903). Continuando a estudar os nossos problemas, compöe em 1904 vários artigos que reuniria mais tarde em Contrastes e Confrontos. Em 1905, o Baräo do Rio Branco, seu grande admirador, designa-o para a chefia da Comissäo 307 O engenheiro (245) Euclides da Cunha deteve o olhar na matéria c nos determinismos raciais que o século dezenove lhe ensinara aceitar sem reserv in Desse esforco aturado de colher o real, emergiu uma outra face da nacäo: lai i trágica que contemplamos em Os Sertóes. É moderna em Euclides a änsia de ir alem dos esquemas e desvendar o mistério da terra e do homem brasileiro com as armas todas da ciéncia c dii scnsibilidade. Há uma paixäo do real em Os Sertóes que transborda dos quadros do seu pensamento classificador; e uma paixäo da palavra que dá concretfssi mos relevos aos momentos mais áridos da sua engenharia sociál. Pode-se apontar no Euclides manipulador do verbo o contemporaneo de Rui e de Coelho Neto, o leitor intemperante do dicionário ä cata do termo técnico ou precioso. Mas é na semelhanca que repontará a diferenca: onde o orador loquaz e o palavroso literato buscavam o efeito pelo efeito, o horném de pensamento, adestrado nas ciencias exatas, perseguia a adcquacäo do termo ä coisa; e a sua frase será densa c sinuosa quando assim o cxigir a complexidade ex tréma da matéria assumida no nível da linguagem. dc Rcconhccimcnto do Alto Purus. Passa na Amazonia todo esse ano: fruto dessa viageni é o Relatório sobre o Alto Purus, publicado em 1906; no ano seguintc escreve, sobre urna questäo dc frontciras, Peru versus Bolívia. Desejando ingrcssar no magistério oficial, faz, em 1909, concurso para a cadeira de Lógica do Colégio Pedro IÍ, concorrendo com Farias Brito que, apesar dc mais feliz nas provas, é pretcrido. Euclides assume as aulas, mas por pouco tempo: em um desforco, cm que sc empenhara por qucstôes de honra, é assassinado. Contava, ao morrer, quarenta e lies anos de idadc. Oulras obras: Ä Margem da História, 1909 (Euclides reviu as provas deste livro mas näo o viu publicado); Ca-nudos. Diário de urna Expediqäo, 1939; "Castro Atvcs e Scu Tempo", conferencia pro-nunciada na Faculdade de Direito dc S. Paulo (3-12-1907); Prcľácios a Inferno Verde, dc Alberto Rangel (1907) e a Poemas e Cangôes, dc Vicente dc Carvalho; Caderneta de Campo, Cultrix, 1975. Sobrc Euclides: Araripc Jr., "Dois Grandes Estilos", Prefácio da 2- cd. de Contrastes e Confrontos, Porto, Lello, 1907; Francisco Venäncio Filho, Euclides da Cunha, Rio, Acad. Bras, de Letras, 1931; Vicente Licínio Cardoso, A Margem da História do Brasil, 2* ed., S. Paulo, Cia. Ed. Nae.; 1938; Gilberto Freyrc, Perfil de Euclides e Outros Perfis, Rio, Josč Olympio, 1944; Silvio Rabclo, Euclides da Cunha, Rio, Casa do Estudantc do Brasil, 1947; Franklin de Olivcira, A Fantasia Exata, Rio, Zahar, 1959; Cruz Costa, Panorama da História da Filosofia no Brasil, S. Paulo, Cultrix, 1960; Olfmpio de Sousa Andradc, História e Interpretagäo de "Os Sertóes", S. Paulo, Edart, 1960; Modesto de Abrcu, Estilo e Personalidade de Euclides da Cunha, Rio, Civilizacäo Brasileira, 1963; Clóvis Moura, Inlroducao ao Pensamento de Euclides da Cunha, Rio, Civ. Bras., 1964; Díinte Moreira Leite, O Caráter Nacional Brasileiro, 2-ed., S. Paulo, Pioneira, 1969; Walnice Nogueira Galväo, No Calor da Hora, Ática, 1974; Franklin de Oliveira, A Espada e a Lelra, Paz c Tcna, 1983. Há urna edicäo didática de Os Sertóes com texto estabelecido por Hersílio Ängelo (Cultrix, 1973); e urna edicäo erítica exemplar preparada por Walnice Nogueira Galväo (Brasiliensc, 1985). (24S) Retomo, com algumas altcracôes e acréscimos, o que eserevi sobre Euclides, em O Pré-Modernistno, cit., pp. 120-126. 308 O moderno em Euelidcs está na seriedade e boa-fé para com a palavra. < 'ontrariamente ao vício decadentista de jogar com os sons e as formas ä deriva de uma sensualidade fácil. Apreende-se melhor esse traco aproximando a tragédia de Os Sertóes do romance da seca e do cangaco dos anos de 30. Embora inais despojada no seu léxico, a fic^äo de um Lins do Rego e de um Graciliano ftamos tem mais ponlos de contato com o duro e veraz espírito euclidiano que a maioria dos romances e contos regionais c neofolelóricos do comeco do sé-culo, repuxados para o pitoresco ou para o piegas. Os Sertöes säo obra de um eseritor comprometido com a natureza, com o hörnern e com a socicdade. É preciso ler esse livro singular sem a obsessäo de enquadrá-lo em um determinado género literário, o que implicaria cm prejuízo paralisante. Ao contrario, a abertura a mais de urna perspectiva é o modo proprio de enfrentá-lo. A descricäo minuciosa da terra, do hörnern c da luta silua Os Sertöes, de pleno direito, no nível da cultura eientifica e histórica. Euclides fez geografia humana e sociológia como um espírito atilado poderia fazé-las no corner do século, em nosso meio intelectual, entäo avesso ä obscrvacäo demorada e ä pesquisa pura. Situando a obra na evolucäo do pensamento brasileiro, diz lu-cidamentó Antonio Cändido: Livro posto entre a literatura e a sociológia naturalista, Os Sertöes assinalam um fim e um comefo: o fim do imperialismo literário, o comego da análise cientŕfica aplieada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contra-di^Ctes contidas na diferenca de cultura entre as regiöes litoräneas e o interior í246). A referencia cultural, embora indispensável ao estudo da obra, näo exaure a riqucza das suas matrizes. Os Sertöes säo um livro de ciéncia c de paixäo, de análise e de protesto: eis o paradoxo que assistiu ä genese daquelas páginas em que alternam a certeza do fim das "racas retrógradas" e a dcnúncia do crime que a carnificina de Canudos representou. A pcrsonalidade de Euclides inclinava-se naturalmente para os conflitos violcntos, para os aflitivos extremos. Foi por isso que as imagens de Antonio Consclhciro e de seus fanáticos, esmagados pelas "racas do litoral", mas resistentes até o ultimo cadaver, entraram de chofre em sua consciencia e em sua sensibilidade, apoderando-se delas para sempře c exigindo uma expressäo igualmente forte, agônica. Á longa narraeäo das escaramucas (Parte III — A Luta), quis Euclides dar urna introdu^äo objetiva sobre o meio e sobre o hörnern do sertäo. Os reparos eienlificos que sc fizeram e que ainda se possam fazer a essas partes propedeulicas competem obviamente ao geógrafo, ao etnólogo c ao sociólogo; a nós cabe apenas verificar o quanto de subjetivo, de euclidiano, se infiltrou nessas páginas de intencäo analílica. (24Ä) Em Literatura e Sociedade, S. Paulo, Cia. Ed. Nacionál, 1965, p. 160. 309 É a mäo do sofrimento que vai recortando a orografia dos chapadtV* e dos monies baianos; é uma voz rouca e abafada que vai contando o< efeitos da estiagem inclemente; säo os olhos do espanto que väo fixaudn o caminho do fanatismo, da loucura e do crime trilhado pelo Conselhcim e por seus jaguncos. Se estilo significa escolha, opcäo consciente, além de "vontade de expil-mir", cntäo näo reslam dúvidas sobre a visäo dramática do mundo que Euclidn prctcndia comunicar aos leitores. A expressäo "barroco cientifico", com qua já sc procurou batizar a sua linguagcm, indica-Ihe a esséncia, se em "barroco" visualizamos, antes de mais nada, urn conflito interior que se quer resolvcr pela aparcncia, pelo jogo de antíteses, pelo martelar dos sinônimos ou pelo paroxismo do climax. Vemos urn litoral "revolto", "rit;ado de cumcadas" e "corroído de angras c cscancclando-se em baías, rcpartindo-se cm ilhas, e dcsagregando-se em rc« cifes dcsnudos, ä maneira dc escombros do conflito secular que ali se trava cntre o mar e a serra". Mais alčm, o "tumulluar das scrranias", os "leitos con-torcidos, venccndo, contrafei tos, o antagonismo permanente das montanhas". O flagelo das secas propicia ao eseritor os momenlos idcais para pintar com palavras de arcia, pedra c fogo o sentimento do inexorável. Dcsfilam paisagens comburidas c adustas (para usar de dois adjetivos que lhc säo caros), mas näo mortas, pois o eseritor soube traduzir a agonia das plantas fugindo ao calor cm batalha surda e tenaz. É a tônica do conflito, que se repetirá na luta do sertanejo contra o- mcio e, em outro piano, na resistencia indomável dos jaguncos ä invasäo dos "brancos" litoräncos. Augusto Meyer, em uma de suas sínteses felizcs, iluslrou esse caráter con-flituoso do espírito e do estilo euclidiano: O jogo antitético percorre uma escala inleira de variagöes. O famos o oxí-moron Hércules-Quasimodo daqucla página que tanto nos impressionava no ginásio näo č exemplo muito raro cm Euclidcs: pertencem ä mesma família parafso tenebroso, sol escuro, tumult o sem ruklos, carga paralisada, profecia retrospectiva, medo glorioso, construtores de ruínas, etc. Pode-se escudar numa construeäo paralogical os documentos encontrados em Canudos "valiam tudo porque nada valiam"; a cidadela "era temerosa porque näo resistia" ou "rendia-se para vencer" (247). Näo se veja, porém, no autor de Os Sertöes um pessimista míope, afeito apenas a narrar desgracas ineviláveis de homens e de racas, incapaz de vis-lumbrar alguma esperanca por detrás da struggle for life de um determinismo sem matizes. Quem julgou o assédio a Canudos um crime e o denunciou era, (*47) Em Preto e Branco, Rio, I. N. L., 1956, p. 189. 310 iiiotalmente, um rcbeldc c um idealista que se recusava, porém, ao otimismo lni II. As licöes de fatalismo étnico-biológico, que lhe dera seu mestre, o an-nopologo Nina Rodrigues, näo ocupavam dogmaticamente os quadros do seu (h'iisamento. Alem disso, o trato direto com as condigöes sociais do sertäo um linava-o a superar o mero formalismo juridico de nossa I Republica. Näo piulendo, por outro lado, o seu forte senso de liberdade aceitar qualquer forma imloritária de governo (v. as descrigöes dos regimes ditatoriais em "O Kaiser" ill- Contrasted e Confrontos), aproximava-sc politicamentc do socialismo de-iiiocrático. Séria essa a ideológia de Euclidcs, segundo observances pertinentes ■Ir Gilberto Freyre e, sobretudo, de Franklin de Oliveira. Diz o autor de Sobrados e Mocambos: Tudo indica que tanlo Euclidcs como Nabuco, se fosscm homcns de trinta anos diante dos problemas de hoje c no Brasil dos nossos dias 11944), cslariam entre os escritores chamados indistintamente "da csquerda", embora nenhum deles íbsse por temperamento ou por cullura inclinado äquela sociali/agäo da vida ou äquela internaci onalizagäo de valores que importassem cm sacrifrcio da personalidade humana ou do caráter brasilciro (Perßl de Euclides, cit., p. 38). Quanto a Franklin de Oliveira, o seu depoimento 6 ainda mais assertivo: inostra como Euclides teria evoluido de um determinismo racial e psicológico, patente em Os Sertóes para urna forma de dialčtica socioeconômica cujo melhor lestemunho sc acharia nas páginas de "Um Velho Problema", insertas em Con-trastes e Confrontos (24ß). Com efcito, esse belo artigo, composto cm 1907, delineia a posigäo madura de Euclides: ironiza as Utopias igualitárias do Renascimento e do Iluminismo, história a ascensäo da burguesia pela Revolucäo Francesa, rejeita por fantasistas os principios de Proudhon, Fourier e Louis Blanc, mas considera, ao cabo, "firme, comprecnsívcl c positiva" a linguagem do marxismo. Ao expor as várias correntes socialistas, näo eseonde, porém, a simpatia pelo caminho evolutivo que aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na consciéncia co-letiva e refietindo-se a pouco e pouco na prática, nos costumes e na legislacäo eserita, continuamente melhoradas. E comenta reforgando: Nada mais límpido. Realmcnte, as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tfmidas classes conservadoras, opondo-se ä marcha das reformas — como a barragem contraposta a uma corrente tranqiiila pode gerar a inunclacäo t249). (24«) Em A Fantasia Exata, cit., pp. 262-268. (249) Em Contrastes e Confrontos, 9* ed., Porto, Lello, s. d., p. 241. 311 O observador espantado diante da miséria sertaneja näo o é menos ao com templar os desequilíbrios que trouxe a técnica na fase expansionists do capf talismo; eis como compara o operário e a máquina: esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico, delirante pelo chumbo, Ira chado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido carbônico, ulcerado pehu cáustieos de pós arsenicais... e a máquina.., íntegra e bmnida. Em Ä Mar gem da História vc-se, cm ato, a ideológia latente nos livru* anteriores. Voltando-se para as realidades su!-americanas, que conhecera il« perto no trato das questôes de fronteiras, Euclides infunde no seu método dť obscrvacäo geográfica um interesse vivíssimo pelos problemas humanos, sem pre cm um tom que oscila entre o agônico e o trágico. Leia-se, por exempln, o ensaio sobre a Amazônia, onde ao analisla da paisagcm sucede o críticů violento da cspoliacäo humana, representada pelo ccarense que se vende coino seringuciro. E o narrador sombrio de Judas Asvcrus, símbolo disforme que $ seringueiro assume como a sua propria condigäo no ritual do sábado de Aleluiiu. Houvc, portanto, urn alargamcnto de comprecnsäo histórica do roteiro cu clidiano apesar das constantes dc cstilo que tudo parcccm unificar: o aindir verde jomalista rcpublicano, ansioso por assistir á morte dc Canudos, "a nossii Vcndéia" c "loco monarquista", passou a tcstemunho de uma comunidade cujir miséria e loucura a Republica punia ao invés de curar; enfim, o denuncianl» dc Os Sertoes subiu, tacteando embora, á consideragäo do nívcl social, enfren» tando problemas que transcendiam a simples intcragäo Terra-Homem, font« única dc sua temática iniciál. O rcsultado dá urna imagem dialélica dc Euclides: um pensamento eurvado sob o peso de todos os determinismos, mas um olhar dirigido para a técnica c o progresso; urna linguagem dc cslilismo febril, mas sempře cm ťungäo de realidades bem concretas, muitas das quais nada perderam da sua atualidade. () pensamento social Euclides foi, além dc um estudioso do Brasil, uma grande presenca literária. Bašta lembrar a linguagem de Alberto Rangel e de Carlos Vasconcelos, escri-torcs de coisas amazônicas, para avaliar a forca dc sugestäo do scu cstilo (25°). Em outros cnsaistas da época, importam menos os aspectos formais que as suas contribuicöcs para a inteligencia do nosso povo dentro daqucla Iinha de vivo interesse pclos problemas nacionais que marcou todo o periodo. Hoje, quem quiser tragar a história das solugöes que a esses problemas tentaram dar grupos culturais ou polilicos coetäncos do Modernismo, deverá 1er as obras (250) »o Sertanejo de Euclides e a Literatura Regional", de Cavalcanti Procnca, in Revista Brasiliense, n9 32. 312 ilc Alberto Torres (251)t Manuel Borrfim (252) e Oliveira Viana (253): em todos, o i";iudo veio a desdobrar-se em programas de organizacáo sociopolítica. Há uma i (Hiexäo mais ou menos estreita entre os seus modos de abordar o Brasil e o na-nonalismo sistemático do "verdeamarelismo", da "Anta", do "integralismo" e do proprio Estado Novo. É arriscado, porém, incluí-los genericamente entre os ideólogos da Direita, cm razäo do colorido opressor, classista e racista que o termo foi assu-niindo por forca das vicissitudes políticas do seculo XX. Represcntam, cm conjunto, um sintoma da erise do liberalismo jurídico abstrato, da sua incapacidade de pla-uificar o progresso de um povo; e, apesar das suas diferencas e mesmo das conti adicöes intemas de que todos padceem, significam, como já significara Euclides, urn passo adiantc na construgäo de uma sociologia do povo brasileiro. Há, sem dúvida, sensíveis diferencas entre os dois primeiros (Alberto Torres, Manuel Bonfim) c Oliveira Viana. Este, preso aos csquemas arianizantes de Lapouge e de Gobineau, considerava mais "apurado" c mais "refinado" o sangue branco, cujo índice crescentc auspiciava para o nosso complexo čtnico. Paralelamcntc, a sua filosoíia política, plenamcnle prestigiada durante o Eslado Novo, Ibi o corporativismo. Muito mais próximos dc nós, pela relativa indcpcndcncia que revelaram cm face dos prcconccitos neocolonialisms, Alberto Torres c Manuel Bon-lim pensaram em termos dc sistema social e educacional como formas dc superar o atraso da nagáo. O primciro tevc a lucidez, raríssima na čpoca, dc subestimar o látor étnico, como o atestam estas palavras, eseritas em 1915: (251) Ai.uiíkto m Shixas MartinsTorriís (Porto das Caixas, RJ, 1865 — Rio, 1917). O Problému Nacionál Brasileiro, 1914; A Organizagäo Nackmal, 1914; Ar Fontes de Vida no Brasil, 1915. Consultar: Cändido Motta Filho, Alberto Torres e o Tema da nossa Geragäo, Rio, Schmidt, 1931; Alcidcs Gentil, As Idéias de Alberto Tones, S. Paulo, Cia. Ed. Nac, 1932; Nogueira Maitins, "Tentativas para organizar o Brasil", in Sociologia e História, Säo Paulo, Institute de Sociologia e Política, 1956; Dante Moreira Leite, O Caráter Nacionál Brasileiro, 4" ed., S. Paulo, Pioneira, 1983; Francisco Iglésias, Prefácios ä Organizagäo Nacionál, 3s ed., e a O Problema Nacionál Brasileiro, 4* ed., Cia. Ed. Nacionál, 1978. (252) Manuiü. Bonfim (Aracaju, SE, 1868 — Rio, 1932). Manuel Bonfim, A America Latina: Males de Origem, 1905; O Brasil Nagäo, 2 vols., 1931; O Brasil, 1935. Consultar: Carlos Maul, "Nota explicativa" a O Brasil, S. Paulo, Cia. Ed. Nac, 1935; M. T. Nunes, Silvio Romero e Manuel Bonfim, Pioneiros de uma Ideologia do Desenvolvimento Nacionál, Rio, 1956; Dante Moreira Leite, O Caráter Nacionál Brasileiro, cit.; Roberto Ventura e Flora Süssekind, Cultura e Scx:iedade em Manuel Bonfim, Ed. Moderna, 1989. (253) Francisco Josü Olivibra Viana (Saquarema, RJ, 1883 — Niterói, 1951). Obras principals: Populagöes Meridionals do Brasil, 1920; O Idealismo na Evolugäo Política do Império e da República, 1920; Pequenos Estudos de Psicologia Social, 1921; Evolugäo do Povo Brasileiro, 1923; O Ocaso do Império, 1925; Problemas de Política Objetiva, 1930; Raga e Assimilagäo, 1932; Problemas de Direito Corporativo, 1938; postumamente: Intro-dugäo ä História Social da Economia Pré-Capitalista no Brasil, 1958. Cons.: Nelson Wer-neck Sodrč, Orientagöes do Pensamento Brasileiro, Rio, Vccchi, 1942; Astrojildo Percira, InterpretagÖes, Rio, CEB, 1944; Vasconcclos Tones, Oliveira Viana, Rio, FreiUis Bastos, 1956; Guenciro Ramos, Inlrodugäo Critica á Sociologia Brasileira, Rio, Andes, 1957. O tipo mental das ragas deriva das modalidades do meio e da vida socliil * Falando da situacäo da antropológia no comeco do século, comcnla (III berto Freyre: Tais preconceitos (arianizantes) foram gerais no Brasil intelectual de 1900: on volveram äs vezes o próprio Sflvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de idéias rtiA cheia de contradigôes. Só urna excegäo se impóe de modo absoluto: a de AuViin Torres, o primeiro, entre nós, a citár o Professor Franz Boas e suas pesquisas sním ragas transplantadas. Outra excecäo: a de Manuel Bonfim, turvado, entretanto, nm seus vários estudos, por uma como mística indianista ou índianófila semelhanir A de Jose de Vasconcellos, no Mexico (254). A referencia de G. Frcyrc ä xenofóbia de Manuel Bonfim tern sido inn lugar-comum dos que se ocupam dessc grande estudioso das nossas coisn* Mais rccenlemcnlc, porém, um analista do cstereótipo "caráter nacional bin silciro", Dante Moreira Leitc, moslrou que o nacionalismo apaixonado de M» nuc! Bonfim o levou a entender com mais lucidcz que seus contemporänem (c, certamcntc, com mais modcrnidadc que Oliveira Viana e Paulo Prado) n origem colonialisla dos preconceitos de raca c das caractcrizacóes psicológica* do homcm tropical que as nossas elites herdaram (255). Um crítico independente: Joáo Ribeiro Joao Ribeiro (256) representa em sua longa parabola, que vai de poeta pat nasiano a crftico literário, de filólogo a hisloriador, o lipo exemplar do huma nisla moderno, a quern nao falta nunca o grao de sal da heresia. E, ncssc ameno mcstrc, mais do que heresia, ceticismo: * Apud Gueneiro Rainos, lntroditcäo Crítica á Sociológiu Brasi l ei ra, Rio, Andes, 1957, p. 137. (254) Em Perfil de Euclides, cit., p. 41. (255) Op. cit., pp. 250-255. (256) Joäo Batista RmniRo on Andradh Fkrnandrs (Laranjciras, SE, 1860 — Rio, 1934). Obras principals: Gramática Portuguesa, 1887; Estudos Filológicas, 1887; Di-cionário Gramatical, 1889; História do Brasil, 1900; Páginas de Estética, 1905; Erases Feitas, I, 1908; II, 1909; O Fabordäo, 1910; O Folclore, 1910; Colmédia, 1923; Cartas Devolvidas, 1926; Curiosidades Verbais, 1927; Floresta de Exemplos, 1931; A Lingua Nacional, 1933; Crítica (serie coligida por Múcio Lcäo): Clássicos e Romänticos, 1952; Os Modernos, 1952; Poetas. Pamasianismo e Simbolismo, 1957; Autores de Ficcäo, 1959; Críticos e Ensaístas, 1959. Consultar: Álvíiro Lins, Jamal de Crítica, 3" série, Rio, José Olympio, 1944; Múcio Leäo, Joäo Ribeiro, Rio, Livraria Säo José, 1962; Boris Schneidermann, "Joäo Ribeiro Atuaľ', in Revista de Estudos Brasileiros, n9 10, S. Paulo, 1971, pp. 65-93. 314 Porque em tudo há um enigma e cm tudo se requer uma explicacäo. Ao termo, porém, dessas porfiadas ciéncias, só se acham desenganadas lirnitacöes, grandes ig-noráncias, míseros e incóngruos fatos, e apenas fatos, a medida que nos foge e nos escapa o infinito e o incondicionado (Páginas de Esíética, Lisboa, Clássica, 1905, p. 44). Quern fala em "míseros e incöngruos falos" sera ludo menos um repclidor dos esquemas posilivislas do século XIX. Alias, é surpreendente vcr como esse hörnern de ampla doutrina e de formacäo racionalista pode, cm um tempo de formulas para tudo, ressalvar as suas duvidas cm face da propria ciencia. O aspecto essencial da Bclc/a é nilo scr intclectualmente comprcendida e näo conter um só clemcnto de intcligöncia ou de razäo. Pode scr explicada; podem-sc perserutar as leis secretas que a regem como lodas as coisas: mas o senti-la näo é materia de citaci a {id., p. 45). O sentimento dos limites humanos, a inluicäo da historicidade de todas as formas culturais induzia o sábio sergipano a abeirar-sc com a mesma sim-patia da fräse modulada de Frei Luis de Sousa c das tcnlalivas anárquicas dos poelas modern i stas. Tal abertura äs muitas faces da realidade nortcou-lhc lambém a obra de íílólogo. Foi dos primeiros a formulář com clareza o problcma da lingua nacionál, conferindo a Alcncar a palma de uma praxis eslillstica livre da imilacäo lusa, mas aparando os execssos da tcoria, alias inscgura, de uma lingua bra-sileira. Pcla independéncia e, até mesmo, irreverencia dos seus juizos, Joäo Ribeiro já foi considerado, e com razäo, o profeta do nosso Modernismo. Fazendo tabula rasa das poóticas vigentes no primeiro vinténio do século, contribuiu para o deserédito dos mcdalhöes. A título de ilustracäo, transcrevo estas pa-lavras de Cassiano Ricardo, assertor convicto do caráter inovador que assumiu a crítica de Joäo Ribeiro: Dhci mais: o verdadeiro precursor do Modernismo de 22 foi Joäo Ribeiro. Quero dizer que Grata Aranha (c isto para me referir a outro nome desta Academia) terá sido, em 1924, um grande agitador da idéia, na memorável conferéncia aqui pro-nunciada tumultuosamente. Mas Joäo Ribeiro, já em 1917 (portanto, sete anos antes), havia tornado a sua posicäo de vanguarda (...). Bašta o confronto do autor da Esíética da Vida, cm 1924, com o artigo do autor de Páginas de Esíética, em 1917, para se ver que este foi o mais incisivo, mais radical — ao atacar de rijo o Parnasianismo e o Simbolismo entäo vigentes, e ao proclamar a necessidade da destruicäo total dos fdolos cadueos. 1) — queria Joäo Ribeiro a "destruicäo previa"; 2) — queria a desmoralizacäo (segundo sua proposta) da poesia rcinante; foi o primeiro a dcclarar cadueos Alberto e Olavo Bilac (note-sc que näo incluiu Raimund o); 315 3) — queria que Bilac e Alberto se conformassem äs exigěncias da 6p nunciando a qualquer influxo sobre os novos; (sena uma imprudéncia se persistissem os dois na sua assiduidade ao l'ainii já tristemente velhos); 4) — queria o reconhecimento das diferengas já existentes entre Portugul \ Brasil em assunto lingiiistico. (.............................................. i 5) — Sustentava a tcsc do incomprecnsivel em arte, coisa que é motivu ú* tanta /.anga ainda hoje contra os modernos. "De coisas velhas estamos fartos," I'm! algum arauto da Semana de Arte Moderna que assim se exprimiu? Nän; foi Joäo Ribeiro ("Joao Ribeiro e a Critica do Pré-Modernismo", Em Curso de Crítica, Klu, Academia Brasilcira de Letras, 1956.) Cabc lembrar que, na mesma época cm que Joäo Ribeiro abandonavu m cänones parnasianos, um íuturo poela modernista, Ronald de Carvalho (Kiu, 1893-1935), embora ligado efemeramente ao grupo futurista de Orfeu (Lisbon, 1914), eserevia uma Pequena História da Literatura Brasileira ainda presu i critčrios acadômico-nacionalistas. Critérios que a sua notável capacidadc do assimilacáo iria depois adclgagar para absorver, diplomaticamcnte, as novidn des do Modernismo. Ü romance social: Lima Barreto A biografia de Lima Barreto (2S7) explica o humus idcológico da sua obrn: a origem humilde, a cor, a vida penosa de jornalista pobre c de pobre amanuense. aliadas ä viva consciéncia da propria situaeäo social, motivaram aquele seu so» cialismo maximalista, täo cmotivo nas raizes quanto pcnclranlc nas análises. (257) Afonso Henriquiís de L ima Barriíto (Rio de Janeiro, 1881-1922). Filho de ui tipógrafo e de urna professora primaria, umbos mestizos. Aos sete anos, ficou órtlo mäe. Proclamada a Rcpublica, scu pai č demitido da Imprcnsa Nacional pelo fato do lá ter entrado pela mäo do Viscondc de Ouro Preto. Väo, pai e filho, morar na Ilha do Governador cm ciiju Colônia de Alienados o cx-tipógrafo trabalhará como almoxarife. Gracas ä protecäo do Viscondc, sen padrinho, Lima Barreto pôde completar o curso sceundario e matricular-se na Escola Polilčcnica (1897) que freqüenlaria saltuariamentc até abandonar, em 1903. Nesse mcio tempo seu pai cnlouquece e 6 recolhido ä Colônia. C) cscrilor passa a viver coino pequeno funcionano da Sccrct rediculariza o Pamasianismo, mormcnle o pós-parnasianismo, foi declamado por Ronald de Carvalho "sob os apupos, os assobios, a gritaria de 'foi nao foi' da maioria do publico" (278). Ronald, alias, disse também versos de Ribeiro Couto e Plřnio Salgado. Oswald de Andrade leu trechos de Os Condenados. Agenor Barbosa obteve aplausos com o poema "Os Pássaros de Aco", sobic o aviao, mas Sčrgio Milliel falou sob o acompanhamento de relinchos e mi ados (27y). Diffcil dcterminar, no giiípo dos cscritores, quais os participantes da Semana de Aitc Moderna. Není todos, apesar de integrados no movimcnto, cnfrcntaram o palco do Municipal no harulhento sarau do dia 15 de fcvcreiro. O Estado de S. Paulo, na notfcia divulgada a 29 de Janeiro dc 1922, cnumera, cntre outros nomes, os dc Guilhenne de Almeida, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra, Elísio de Carvalho, Oswald dc Andrade, Menotti del Picchia, Renato Almeida, Luis Aranha, Mario tle Andrade, Ribeiro Couto, Agenor Barbosa, Moacir cle Abreu, Rodrigues de Almeida, Afonso Schmidt c Sérgio Milliel. Faltam, nessa lišta, outros modernistas, (277) Mario dc Andradc, O Movimento Modernista, Rio, Casa do Estudante, 1942, p. 15. (N. de M. S. B.) (278) Manuel Bandcira, liinerário de Pasárgada, Rio, Ed. Jornal de Lctras, 1954, p. 56 (id.). (279) Júlio Frcirc, "Crônica... futurista!..." (in A Vida Moderna, 23-2-22) (id.). 338 cuja tornáda de posicáo vinha desde antes de 22, como Cändido Motta Filho, Armando Pamplona (intcressado mais em cinema e autor de documentários cinema-tográficos), Plínio Saigado, Rubens Borba de Morais, Tácito de Almeida (irmäo de Guilherme), Antonio Carlos Couto de Barros, Manuel Bandeira (que como Ribeiro Couto e Álvaro Moreyra näo esteve presente) e Henri Mugnier, suigo, amigo de Sergio Milliet. Afonso Schmidt negou publicamente, anos depois, que houvesse participado da Semana. Era antes adepto do "Grupo Zumbi", que tinha ligacöes com o "Grupo Clarté", da Franca, comandado por Henri Barbusse. Os nomes de Rodrigucs de Almeida e Moacir de Abreu desapareecram no deconer da campanha c das polömicas e lutas cstabclecidas após a Semana. Razäo tinha Stendhal quando aiiimava: "Estremccemos ao pensar no que é preciso de buscas para chegar ä verdade sobie o mais fütil ponnenor." Enfim, durante o espetáculo, houve quem cantasse como galo e latissc como cachoiTO, no dizer de Menotli, ou "a rcvelagäo de algumas vocagöes de Terra Nova e galinha d'Angola, muito aproveitávcis", na fräse de Oswald de Andradc (280). Mas, "firme e screna, a hoste avanguardista" afrontou o granizo (281). No intervalo, enuc uma parte e outra do programa, Mario de Andrade pronunciou breve palcstia, na escadaria interna no Municipal, que dá pant o hall do teaüo, sobre a exposicáo de artes plásticas ali apresentada, justiiieando "as alucinantes criagöcs dos pintores futurisUis" i282). Vinte anos depois, Mario de Andrade, evocando o cpisódio, escreveria: "Como pude fazer uma confcrCncia sobre artes plasücas, na escadaria do Teatro, cercado de anönimos que me cacoavain e ofendiam a valer?..." (2W) Numeros de bailado por Yvonne Daumcrie c o concerto de Guiomar Novais trouxeram, linalmcntc, calma á sala. Mas, de qualquer forma, havia sido realizada a Scmana da Arlc Moderna, que renovava a menta!idadc nacionál, pugnava pela aulonomia artíslica c li terária bra-sileira c descortinava para nós o sčculo XX, punha o Brasil na atualidadc do mundo que já havia produzido T. S. Eliot, Proust, Joyce, Pound, Freud, Phmck, Einstein, a ffsica atOmica. A Scmana de Arte Moderna foi patrocinada pelo eseol ťinanceiro e mundano da sociedade paulistana. Prestarain-lhe sua coopcragáo, Paulo Prado, Alfredo Pujol, Oscar Rodrigucs Alves, Numa de Oliveira, Alberto Penteado, Rcnč Thiollicr, Antonio Prado Junior, Jose Carlos de Macedo Soares, Maitinho Prado, Annando Penteado e Edgare! Conccicäo. É interessante assinalar que o Correio Pauüstano, orgäo do PRP, do qual Menotli del Picchia era o redalor politico, agasalha os "uvanguardistas", com o consentimento de Washington Luis, presidente do Estado (284). (28°) Cartas de Oswald de Andrade ao Jornal do Comércio (cd. de S. Paulo), 19-2-1922 (/V/.). (281) Menotli del Picchia, "O Combale" (in Correio ľaulisiano, 16-2-22) (id.). (282) Menotli del Picchia, "A Scgunda Batalha" (in Correio, 15-2-22) (id.). (283) Mário de Andrade, O Movimenlo Modernista, cit. (284) Máiio da Silva Brito, "A Rcvolucäo Modernista", cm A Literatúra no Brasil (dir. de Afränio Coutinho), Rio, Livr. S. Josč, vol. III, t. 1, pp. 449-455. 339 Desdobramentos: da Semana ao Modernismo A Semana foi, ao mesmo tempo, o ponto de encontro das várias tendenci ad que desde a I Guerra se vinham firmando em Säo Paulo e no Rio, e a platafonmi que permitiu a consolida9äo de grupos, a publica9äo de livros, revistas c nm« nifestos, numa palavra, o seu desdobrar-se em viva realidade cultural. Mario de Andrade, como já vimos, escrevera a Paulicéia Desvairada cntii 1920 c 1921, mas só a dcu a publico no ano da Semana, Deste ao fim du dccada aparcccram obras fundamcntais para a inteligencia do Modernismo. Km 1923, as Memórias Sentimentais de Joäo Miramar, de Oswald de Andrade. Em 1924, O R Umo Dissoluto, de Manuel Bandeira. Em 1925, A Escrava qui náo é Isaura, de Mario; Pau-Brasil, dc Oswald; Meu e Raga, de Guilherniů de Almeida; Chuva de Pedra, dc Mcnotti del Picchia. Em 1926, Losango Cáqiu, dc Mario; Toda a America, dc Ronald dc Carvalho; Vamos Caqar Papagaios. de Cassiano Ricardo; O Estrangeiro, dc Plfnio Salgado. Em \ 921,Amar Verba Intransitivo c Clä do Jabuti, dc Mario; Est re la de Absinto, dc Oswald; Brás, Bexiga e Barra Funda, dc Alcantara Machado; Estudos (ln série), dc Tristäo dc Ataidc. Em 1928, Macunaíma, dc Mário; Martini Cereré, dc Cassiano; La ranja da China, dc Alcantara Machado, c a rcdacäo iniciál dc Cobra Norato, dc Raul Bopp, que só o publicaria trcs anos mais tarde. Paralclamentc äs obras e nascendo com o descjo dc explicá-las e justifi-cá-las, os modemislas fundavam revistas e Ian9avam manifestos que iam de-limilando os subgrupos, de início apenas estélicos, mas logo porladores de matizes idcológicos mais ou mcnos prccisos. Em maio de 1922, cxprcssäo imcdiata da Semana, aparccc Klaxon, men-sário de arte moderna*, que důrou nove niímcros, prcci s am en lc ate dczembro do mesmo ano, com páginas dedicadas a Gra9a Aranha. A rcvisla, publicada cm Säo Paulo, foi o primciro csfor9o concrcto do grupo para sistcmatizar os novos idcais estéticos ainda confusamente misturados nas noiles bulhcntas do Tcatro Municipal. Mas, como já disse páginas alrás, pcrmancciani baralhadas duas linhas igualmenlc vanguardeiras: -a futurista, ou, lato sensu, a Iinha de cxpcrimcnta9äo dc uma linguagem moderna, aderente ä civilizayäo da lécnica c da vclocidadc; c a primitivista, centrada na libcra9äo c na projc9äo das for9as inconscientes, logo ainda visccralmcntc romäntica, na medida cm que surrea-lismo e expressionismo säo neo-romantismos radicais do século XX. Assim o iŕ 2 dc Klaxon apresenta um artigucte de Oswald dc Andrade, "Escola & Idéias", onde o líder modernista cxalla ao mesmo tempo o subjetivismo total dc Rimbaud c Laulrčamont, pais do surrealismo internacionál, e afirma que o (*) V. Cecília de Lara, Klaxon e Terra Roxa e Outras Terras: dois periódicos do Modernismo. S. Paulo, InsLituto de Estudos Brasileiros, 1972. 340 "en instrumente* näo devc aparecer" na poesia moderna, o que implica a cons-liugäo formal objetiva pregada pelos futuristas e pelos cubistas. Mario de An-drade, que já antes da Semana teve o cuidado de afastar-se de qualquer clas-Idficacäo como futurista, louva, em nova nota näo assinada no nQ 5, a coexis-lencia de "simultaneidade" e "expressionismo", no romance Os Condenados, dc Oswald. Numa posigäo mais clara, Rubens de Morais filia-se ao intuicio-nismo de Bergson em que vc a matriz da expressäo moderna (Klaxon, 4). A indefinigäo dos dois maiores rcnovadores, porém, se de um lado rcvcla sofrível coeréncia estética e incapacidade de discernir ou dc escolher no turbilháo de ismos importados da Europa, terá sua explicaeäo no proprio contcxto do Mo-dcrnismo brasilciro: dividido entre a änsia de accrtar o passo com a moderni-dade da Segunda Rcvolugao Industrial, dc que o futurismo foi testemunho vibrantě, e a ccrteza dc que as raizes brasilciras, cm particular, indigents c ncgras, solicitavam um tratamcnto estético, ncccssariamentc primilivista. O que parece apenas incongruencia cm Klaxon terá frulos cm toda a década c sc chamará Macunaíma, Pau-Brasil, Cobra Norato, Martim Cerere. So mais tardc, novos contextos ou interpretaeoes rigidas desscs contcxtos julgará pólos cxclusivos a pesquisa cstótica c o aprofundamcnto da vivčncia nacionál. De qualquer modo, pela análisc dos tcxtos publicados cm Klaxon c das páginas mais rcpresentativas da fasc iniciál do Modcrnismo, depreende-sc que foram os experimcntos formais do futurismo, näo só italiano, mas e sobrctudo francés (Apollinaire, Cendrars, Max Jacob) que mais vigorosamcntc dirigiram a mäo dos nossos poctas no momcnto da invencao artistiea. Do surrealismo tomaram uma concepgäo irracionalista da existencia que confundiram cedo com o scntido geral da obra freudiana que näo tiveram tempo de compreender. Do exprcssionismo, processos gerais de deformaeäo da natureza e do hörnern. A revista Estética, lancada no Rio em setembro de 1924, por Prudente de Morais Nclo, c Sčrgio Buarque de Holanda, důrou até 1925 e teve trés mimeros, todos bastantc ricos de material teórico. Coincidiu com o rompimento de Graca Aranha com a Academia Brasileira e estampou artigos do velho eseritor que procurava atualizar-sc c ser uma presenca dentro do movimento. No primeiro numero, elc aparcce com um ensaio cheio de ingredientes teóricos futuristas, "Mocidadc c Estética" ("Näo tardará muito que os homens modernos deixem de repetir o grego, o gótico, a renascenga, pelo ferro e pelo cimento. A esses materiais modernos devem corresponder criagoes independentes e atuais, que satisfagam logicamente äs sensacöes de mobilidade e firmeza que elcs suge-rem"), mas já os subordina a uma lemática nacionál ("A acáo do jovem moderno será eminenlementc social. A estética que o inspira patenteará pela análisc o que é o Brasil c quais os trabalhos extremos a que se deve consagrar"). Outros ensaios que confirmam a vocacáo crítica da revista: a resenha de Kodak de Blaise Cendrars, feita por Sérgio Buarque de Holanda, que aponta uma viragem na poesia francesa de pós-guerra do primitivismo ä Rimbaud 341 para o objetivismo técnico, de que os poemas resenhados seriam um excmplo, Prudente de Morais Neto, alinha, em "Sobre a sinceridade" (Estética, 2), ai gumentos em prol de uma concepcäo onírica e freudiana de arte ("A aru nasceu provavelmente com a reproducäo dos sonhos"); e a nota bergsoniamt reponta na resenha que o mesmo Sérgio B. de Holanda faz do livro d| Rubens de Morais, Domingo dos Séculos. A grande presenca crítica do ter ceiro numero é Mario de Andrade: muito se colhe na sua "Carta aberta a Alberto dc Olivcira", datada de Sáo Paulo, 20 de abril de 1925: nela, o poeta ratifica a independencia do grupo paulista, já maduro em 1920, cm rclacäo a Grapa Aranha, c, numa frase dc alta cstratógia cultural, defende a arte interessada para os parses que csläo principiando o seu roteiro dentro da cultura moderna. Rcagindo contra a arte pela arte parnasiana do mestrc alienado que acabava dc ser clcito "principe dos poctas brasilciros", Mario de Andrade revelava um senso dc modernidade que transcendia as posicôcs modernistas. No mesmo numero, resenhando também Blaise Cendrars (FeuHles de Route, 1924), Mario precisa os dados propriamente estéticos da sua visáo da poesia: dados que prenunciam o tipo dc crítica que viria a lazer na dčcada de 30: Poesia č uma arte. Toda íirle supôe umaorganizacáo, uma lécnica, uma disciplina que fa* das obras uma manifestacáo cnceiTada cm si mesma. A obra tle arte é antes dc mais nada uma organizaeáo íechada, cm toda eriacáo anística deve liaver a in-tencáo da obra de arte. Essa intcngäo č que a torna uma entidade valendo por si mesma, desrelacionada. Dcsrclacionada, nao quero dizer que nílo possa ter intencOes alé práticas dc moralizacäo, socializayáo, edificacilo, etc., tjuero dizer que se torna livre da pcrccpcáo temporal vivida da scnsacäo c do sentimento reais (Estética, 3, p. 327). Aprcsenlando atitudes díspares (futurismo/primilivismo, cm Klaxon; arte intcrcssada/arle autonoma, em Estética), os modernistas mais ricos mostravam o quanto ressentiam as contradicôes da estética c o quanto a sua mobilidade os lacerava. Nos anos subscqiicntes, as opcôes literárias já näo bastaráo. In-quictos dianie da extrema complexidade da vida espiritual, eriaráo programas exislenciais amplos, "ťilosofias de vida" inclusivas, que, por sua vez, trairiam as raízes estetizantes c irracionalistas c as bases apenas literárias que as pre-cederam. Acho importante e atual rcssalvar esse trago que dá conla da gratui-dade das "visóes dt) mundo" e das "visocs do Brasil" que nasceram da expe-riencia literária modernista. Assim, o Manifesto Pau-Brasil langado por Oswald de Andrade cm 1924 entra por uma linha dc primitivismo anarcóide, afim ás suas origens dc burgués cul to em perpetua disponibilidadc; a Pau-Brasil conlrapoe-se uma corrente de nacionalismo näo menos mílico, cheio de apclos ä Terra, ä Raca, ao Sangue, o Verde-amarelismo (1926), de Cassiano, Menotti del Picchia, Cándido Motta 342 ľilho e Plínio Saigado. Este ultimo iria enveredar por um ideário politico di-icitista, já "in nuce" no grupo neo-indianista da Anta, o totem dos tupis (1927), <|ue séria, por sua vez revidado com sarcasmo pela Revista de Antropofagia (28) de Oswald, Tarsila e Raul Bopp entre outros, cujo Manifesto exacerba as posicöes de Pau-Brasil, quer regredir ao matriareado primitivo (sic) já agora sob sugestôes de um Freud equívoco e mal deglutido. Ä parte, hesitantes entre as novas liberdades formats e a tradicäo simbo-lista, agrupam-se os "espiritualistas" da Festa (1927), com Tasso da Silveira, Murilo Araújo, Barreto Filho, Adclino Magalhäcs, Gilka Machado e, numa segunda fase, Cecília Meircles e Murilo Mendes, que lograriam dar urna feicäo inequivocamente moderna a suas tendencias rcligiosas (285). É curioso e instrutivo considerar, hoje, a inconsistencia idcológica desses grupos modernistas que, ao que parecc, dado o foco puramente literário em que se postavám, näo tinham condicöcs de entender por dentro os proecssos de base que entäo agitavam o mundo ocidcntal c, particularmcntc, o Brasil. Tudo resolviam cm formulas abcrlamcntc irracionalistas, fragmentos do sur-realismo francos ou dos mitos nacional-direitistas que o impcrialismo europeu vinha repetindo desdc os lins do sčeulo passado. "Eramos uns inconscientes", diria Mario de Andrade nesse balanco c autoerítica que íoi a conferéncia "O Movimento Modcrnista,,) de 1942. O culto da blague c o vezo das afirmacöes dogmáticas acabaram impedindo que os modernistas da "lase hcróica" repen-sassem com objetividade o problema da sua inscrgäo na praxis brasileira. Os resultados conhcccm-sc: o vago liberalismo de uns vai desaguar na adesäo ao movimento dc 32, täo ambíguo entrc os seus pólos dcmocrático-rcacionário (Guilhcrmc de Almeida, Cassiano Ricardo, Alcantara Machado); nada impe-diria que o nacionalismo da Anta resvalasse no parafacismo integralista de Plínio Salgado, nem, enfim, que o antropofágico Oswald sc esgotasse no com-prazimento da erise moral burguesa em que ele proprio cslava envisgado. Con-sideracôes que näo implicam juízo idealista: constatam apenas as fatais limi-ta^ôes de um grupo nascido e erescido cm determinados estratos da sociedade paulista c carioca numa fase de transicäo da Rcpública Vclha para o Brasil contcmporäneo. E consideracôcs que, ressaltando embora o extraordinário ta-lenlo verbal de alguns dos modernistas, entendem sublinhar o risco que re- (28l>ra, tres estilos de narrar: a) um estilo de lenda, épico-lírico, solené: No rundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, hcrói dc nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noitc. Houve um momcnto cm quc o silôncio foi täo grande escutando o murmurejo do Uraricocra quc a india tapanhumas páriu uma crianca feia. Essa crianca 6 quc chamaram dc Macunaíma. b) um estilo dc crônica, cômico, dcspacbado, solto: Já na mcninicc fe/. coisas de sarapantar. Dc primeiro passou mais dc scis anos näo falando. Si o incilavam a fíilítr, exclamava: — ai! quc preguica!... E náo di/ia mais natla. c) um estilo dc paródia. Mario dc Andradc torna o andamento parnasiano típico, anterior a 22, ä Coclho Ncto e ä Rui Barbosa c, nesse código, vaza uma mensagem dc Macunaíma as Icamiabas: É Säo Paulo construída sobrc sele colinas, ä fcicäo tradicional de Roma, a cidade cesárea, "capita" da Latinidadc de que provimos; e bcija-lhc os pčs a grácii e inquieta linfa do Tietč. As águas säo magníílcas, os ares täo amenos quanto os dc Aquisgrana ou dc Anvcires, e a árca täo a eles igual cm salubridade c abundäncia, que bcm se pudera afirmar, ao modo fino dos cronistas, que dc trôs AAA se gera espontanea-mentc a fauna urbana. Cidade é belíssima e grato o seu convívio. Toda cortada de mas habilmente estreitas c tomadas por cstátuíis e lampiôes graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com aslúcia o espaco dc fomia tal, que nessas artérias näo cabe a populacäo. Assim se oblom o cťeito dum gninde acúmulo de gentes, cuja estimatíva pode ser aumentada ä vonladc, o quc 6 propício äs cleicôcs que säo invengäo dos inimitáveis mineiros; ao mesmo tempo que os edis dispôem de largo assunto com que ganhem dias honrados e a atlminicáo dc todos, com surtos de eloqůéncia do mais puro e sublimado lavor. Passando abruptamente do primitive solené ä crônica jocosa e desta ao distanciamento da paródia, Mario de Andrade jogou sabiamente com níveis de consciéncia e dc comunicacäo diversos, justificando plenamente o título de rapsódia, mais do que "romance" que emprestou ä obra. Simbolicamcntc, a figura de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, foi trabalhada como síntese dc um presumido "modo de ser brasileiro" deserito como luxurioso, ávido, preguicoso c sonhador: caracteres que lhe atribuía um tcórico do Modcrnismo, Paulo Prado, cm Retrato do Brasil (1926). Mas o hcrói, cm Mario, 6 colocado na metropole nova e funde instinto e asfalto, primitivismo e modcrnismo, numa linha quc seria também a de Oswald de Andradc. Com a sabida diferenca dc quc este, medularmente anárquico, misturou 353 sempře os pianos, pretendendo lirar do composto uma filosofia de vida c d* arte, ao passo que Mario se mostraria, até o fim, sensível ás distincocs ontn* o primitivo histórico e o "primitivo" como pesquisa do homem que näo |mdJ deixar de ser, apesar de tudo, um homem integrado em uma dada cultura e rm uma determinada civilizacäo. Macunaíma, meio epopéia meio novela picaresca, atuou uma idéia-loi^n do seu autor: o em^rego diferenciado da fala brasileira em nível culm, tarefa que deveria, para ele, consolidar as conquistas do Modernismo nft esfera dos temas e do gosto artístico. Muito da teória literária e musicnl escrita por Mario de Andradc na década de 30 centrou-se nesse problému, prioritário para o escritor c o compositor brasileiro, dividido cntre um ensino gramatical lusíada e uma práxis lingUística afetada por elementos indígcnnj e africanos e cada vez mais atingida pelo convívio com o imigrante europm Mario foi assertor dc uma linguagem que transpusesse para o registro da arte a prosódia, o ritmo, o lóxico e a sintaxe coloquial: vejam-se os artigon "A Língua Radiofônica", "A Lingua Viva" c "O Baile dos Pronomes", incluídon cm O Empalhador de Passarinho, c uma lúcida carta ao filólogo Sousa dii Silvcira, que se 1c agora cm Mario escreve cartas a Alceu...(293) Dc resto, devem-se ler todos os ensaios dc Mario dc Andrade. Como cri tico, apesar de näo ter elaborado urna teória coesa que integrasse os valorcN estéticos, sociais c, ultimamente, politicos, cle sempře mostrou ter olho parfl distinguir o texto forte e denso do frouxo ou retónco; c poucos viram coin tanta lucidcz a grandeza e os Iimites do próprio tempo como o autor de "0 Movimento Modernista" e da "Elégia de Abril". Voltando ä poesia nos últimos anos, compôs a Lira Paulistana. A cidade é aprcendida e ressentida nas andancas do pocta maduro que sc despojou do pitoresco e sabe dizer com a mesma contcnsäo os cansacos do homem afetuosQ e solitário e a miséria do pobre esquecido no bairro fabril. O lirismo da "Mc-dilacäo sobre o Tietc" tem algo de solené c de humilde; c o espraiado do scu ritmo näo č sinal dc gratuidadc, mas expressäo dc entrega do pocta ao destino comum que o rio simboliza: Agua do mcu Tieto, Onde mc queres levar? — Rio que entras pel a terra E que me afastas do mar... É noite. E tudo č noite. Debaixo do areo admirável Da Ponte das Bandciras o rio Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa. É noite e tudo č noite. Uma ronda de sombras, Soturnas sombras, enchem de noite täo vasta C") Ed. cit.y pp. 146-158. 354 O peito do rio, que 6 como se a noite fosse ägua, Ägua notuma, noite lfqüida, afogando de apreensöes As altas torres do meu coragäo exausto. De repente, O öleo das äguas recolhe em cheio luzes trSmulas, Ii um susto. E num momento o rio Esplende em luzes inumeräveis, lares, paläcios, e mas, Ruas, ruas, por onde os dinosauros eaxingam Agora, arranha-cdus valentes donde saltam Os bichos blau e os punidores gatos verdes, Em cänticos, em prazeres, cm trabalhos c fäbricas, Luzes e gloria. E a cidade... £ a emaranhada forma Humana corrupta da vida que muge e sc aplaudc. E se aclama e se falsifica e se escondc. E deslumbra. Mas 6 urn momento sö. Logo o rio cscurcce de novo, Estä negro. As äguas olcosas c pcsadas se aplacam Num gcmido. Flor. Tristeza que limbra um caminho dc mortc. ß noite. E tudo 6 noite. E o meu coragäo devastado E urn rumor dc gcrmcs insalubres pela noite insone c humana. Oswald de Andrade Oswald de Andrade (294) represcntou com seus altos c baixos a ponta de langa do "espirito dc 22" a que ficaria sempře vinculado, tanto nos seus as- (2 mi Sousa Andrade (Sab Paulo, 1890-1954). Fez os estudos secun-dários no Ginásio de S5o Bcnto c Dircito na sua cidadc. Nascido em uma famflia bastante rica, pOde ainda jovcm viajar para a Europa (1912), onde cntrou cm contato com a boCmia estudantil dc Paris e conhcceu o futurismo ítalo-francés. Voltando a Sab Paulo, fez jomalismo literário. Quando da Exposigab dc Anita M alf atti, Oswald dcfendc-a contra o aitigo virulcnto dc Lobato e aproxima-se dc MaYio dc Andrade, de Di Cavalcanti, dc Mcnotti, dc Guilhcrme de Almeida, de Brechcrct. Passa a scr o grande animador do gmpo modernista, divulga Mario como "o meu poeta futurista" e articula com os demais a Semana. Paralelamcnte, trabalha os romances da "Trilogia do Exilio". O periodo 23-30 č marcado pela sua mclhor produgao propriamentc modernista, no romance, na poesia e na divulgagab de programas estéticos nos Manifestos Pau-Brasil, de 24, e Antropofágico, dc 28. É tambem pontuado por viagcas a Europa que lhe dab oporlunidade para conhecer melhor as vanguardas sur-realistas da Ftanga. Depois do "crack" da Bolsa c da Revolugab dc 30, atravessa um periodo de crise linai\ceira c se arrisca cm especulagoes ncm sempre bem-sucedidas. Dividido entre uma fonnagab anáiquico-boémia e o espirito dc critica ao capitalismo, que cntab se cons-cientizava no pais, Oswald pende para a Esquerda, adere ao Partido Comunista: compoe o romance dc auto-sarcasmo (Serafim Ponte Grande 28-33), tcatro p;uticipantc (O Rei da Vela, 37) e langa o jornal O llomem do Povo. Desdobramento dessa posigSo foi sua tentativa de criar romance dc painel social: os dois volumes de Marco Zero (43-45). Afasta-se da mi- 355 pectos felizes de vanguardismo literário quanto nos scus momentos mena* Ip lizes de gratuidade ideológica. É a partir de Oswald que se deve analisar criticamente o legado do Mn demismo paulista, pois foi ele quem assimilou com conaturalidade os iravnj conflitantes de urna inteligencia burguesa em crise nos anos que preccdcmm e seguiram de perto os abalos de 1929/30. Havia nele todos os fatores s litancia política de 1945, ano em que concorre á Cadeira de Literatura Brasileira nfl Faculdadc de Filosofia da Universidade de S. Paulo com uma tese sobre a Arcádin v h InconfidCncia, obtcndo o třtulo de livre-doccnte. Em 1950 voltaria á mesma Univeim dade cntrando, scm 6xito, no concurso para o provimcnto da Cadeira de Filosofia. Can didatou-se por duas vczcs á Academia Brasileira de Letras. Oswald de Andrade falcccu. cm 1954, aos sessenta e quatro anos de idadc. A menos de um decénio da sua mon»-sua heranca 6 valorizada pelas vanguardas concrctistas de onde provčm a mais eniu siásliea bibliografia oswaldiana. Obra: Theatre Brésilien — Mon Coeur Balance. Lem kmc (cm colaboracao com Guilhcrme de Almeida), 1916; A Trilogia do Exílio, I. (h Condenados, 1922; Memórias Sentimentais de Jodo Miramar, 1924; Manifesto daPoesta Pau-Brasil, 1924; Pau-Brasil (pocsia), 1925; Romances do Exílio, II. A Estrela de Ah sinto, 1927; Primeiro Cademo do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, 1927; Manifesto Antropófago, 1928; Serajim Ponte Grande, 1933; Os Romances do Exílio, III. AEscada Vermelha, 1934; O Ilomem e o cavalo (teatro), 1934; A Morta. O Rei da Vela (teatro), 1937; Marco Zero. I. A Revolugáo Melancólica, 1943; Marco Zero. II. Chdo, 1945; Poesias Reunidas, 1945; A Arcadia e a Inconfidéncia (tcsc), 1945; Pouta de Langa. 1945; A Crise da Filosofia Messiánica (tcsc), 1950; Um Ilomem sem Profissáo. I. Sob as ordens de mamde, 1954; "O Modcrnismo", in Anhembi, n° 49, dcz. de 1954. Sobrc Oswald: Mario de Andrade, "Oswald de Andrade", in Revista do Brasil, ne 105, set./dez. 1924; Prudentc de Morais Neto, e Sergio Buarquc de Holanda, "Oswald de Andrade. Memórias Sentimentais de Joao Miramar", in Estética, n9 2, jan.-marto dc 1925; Paulo Prado, "Pocsia Pau-Brasil", Prcfácio a Pau-Brasil, Paris, Sans Pareil, 1925, incluído na Antologia do Ensino Literário Paulista, J. Adcraldo Castcllo, Consclho Estadual de Cul-tura, S. Paulo, 1960; Trislilo de Ataidc, "Qucimada ou Fogo dc Artificio?", cm Estudos 1925, incluído nos Estudos Literários, Rio, Aguilar, 1966, pp. 994-1000; Anmnio Can-dido, Brigáda Ligeira, S. Paulo, Martins, 1945; Roger Bastide, Poetas do Brasil, Curitiba, Guana, 1947; Haroldo dc Campos, "Miramar na Mira", inlr. á 2a ed. das Memórias Sentimentais de Jodo Miramar, S. Paulo, Dif. Eur. do Livro, 1964; Dčcio Pignatari, "Marco Zero de Andrade", in Supl. Lit. dc O Estado de S. Paulo, 24-10-64; Gcnnaro Mucciolo, "A Volta de Joáo Miramar", in Cadernos Brasileiros, n9 27, jan./tcv. de 1965; Haroldo dc Campos, "Uma Počtica da Radicalidade", inU\ as Poesias Reunidas de Oswald de Andrade, S. Paulo, Dif. Eur. do Livro, 1966; Milrio da Silva Brito, Angulo e Horizonte, S. Paulo, Martins, 1969; AntGnio Candido, Vários Escritos, S. Paulo, Duas Cidades, 1970; Vera Chalmers, 3 Linhas e 4 Verdades: o jomalismo de O. de A., Duas Cidades, 1976; Bcncdito Nunes, Oswald Canibal, S. Paulo, Perspectiva, 1978; Maria Augusta Fonscca, Oswald de Andrade, Brasiliense, 1982. 356 P psicológicos que concorrcram para a construcäo do litcrato cosmopolita, da-i |iiclc homo ludens que se diverte com a íntima contradicäo ética alienado-re-voltado diante de uma sociedade em mudanca. As alternativas foram muitas ncsse espírito inquieto, e muito da crítica de exaltacäo ou negagäo a Oswald csicve condicionado ao partido fácil de generalizar opcôes transitórias. A rigor, (Xswald näo teria tido condigôes psicológicas para supcrar o decadentismo da sua formacäo belle époque\ mas, como um jogador temerário, arriscou-se a sair mais de uma vez da situacäo de base que o definia: nessas sortidas fez, aleatoriamente, pocsia futurista-cubista, e, em um segundo tempo, teatro e romance social. Sc fosse possivel depurar esses resultados do travo de um sur-rcalismo requcntado e projetivo que neles cmbaca a limpidcz construtiva, te-riamos um escritor intcgralmcntc revolucionário. Mas como a história literária näo se faz, ou näo sc deve fazer, com arranjos a posteriori, a obra de Oswald permancce estruturalmcnte o que č: um Icquc dc promessas rcalizadas pelo meio ou simplcsmcntc irrealizadas. Da sua obra narrativa espantosamente dcsigual já sc disse que carrcava o melhor c o pior do Modernismo. Nclas os seus melhores críticos tem distin-guido, pelo menos, tres nívcis de exprcssäo c de valor, colocando entre pa-renteses, para os dois primeiros, a cronologia externa das obras (295). No limite inferior, a prosa de Os Condenados, A Esírela de Absinto e A Escada Vermelha, os romances que formám a Trilógia do Exílio. Embora com-postos ao longo dc quinze anos de experičncias as mais diversas (1920-1934, aprox.), säo livros que se ressentem dc uma atitudc antiquada, num escritor que conhcccu o que é ser moderno, em face da linguagem romanesca c do trato das personagens. Säo novclas meio mundanas, mcio psicológicas, ä D'Annunzio, onde há sempře um artista atribulado pelas cxigencias da sua personalidade libidinosa c genial... A Estrela de Absinto, por exemplo, conta os amores dc um escultor sensual pela formosa Alma cuja morte o lanca num mar dc remorsos logo esquecidos por aventurazinhas menores, até que um imo-tivado c retórico suicídio vem pór fim ao melodrama. Dc Os Condenados, diz um crítico insuspeito, que soubc admirar as partes vivas da prosa oswaldiana, Antonio Cändido: Há nclc um gongorismo psicológico — tara que contaminará todos os livros da série — mais grave ainda que o gongorismo verbal da eserita. O gongorismo psicológico, ainda näo bom explicado em literatura, é a tendencia para acentuar, em escala fora do comum, os tracos psíquicos de uma personagem; os seus gestos, as suas tiradas, as suas atitudes dc vida. As pessoas, neste livro, säo pequenos turbilhôes dc lugares-comuns morais c intelectuais. O processo do autor consiste em acentuar (295) q\ os ensaios de Antonio Cändido e Haroldo dc Campos, citados na nota anterior. 357 violentamcnte as suas banalissimas qualidades, alogando-os definitivamente na tórica. (...) Feitos dum só bloco, sem complexidadc e scm profundidade, náo passiun de automates, cada um com a sua etiqueta moral pendurada no pescoco. Reina nem* primeiro livro um convencionalismo total do ponto de vista psicológico" (296). Quanto a Estrela de Absinto: "hcróis tremendamente falsos, dum conven cionalismo de folhctim" (297). E para Escada Vermelha: "psicologicamenle ( livro continua primário" (298). Como definicáo gestáltica do criador: "pcr.su* nalidade totalmente mergulhada no csteticismo burgués". A crítica, severa mas válida, está a indicar que o romance de personagcnn náo era o caminho ideal de Oswald. E o tránsilo para a experiencia do romane* "informal" das Memórias de Joáo Miramar, scu ponto alto, e de Serafim Ponte Grande, "um grande náo livro", nas palavras de Haroldo de Campos, atestaril uma procura de rcalizacáo artistica mais congenial ao talcnto do prosador. Am-bas as obras correm paralclas ás poéticas do "Pau-Brasil" c da "Antropofagia" no sentido de satirizar o Brasil da "aristocracia" cafeeira aburguesada nas gran*» des capitais (c como tal sáo intcncionalmcnte corrosivas), mas nem uma nem outra deixa de scr o rcflcxo literário da mesma modcrnidadc mundana a qui o escritor pertencia como lilho (pródigo) da classc que ironiza, Joao Miramar abandona momcntaneamcnte o periodismo para fazer a sua en Uada de homem moderno na espinhosa carrcira das letras. E aprcsenta-se como o produto improvisado, quicá chocante para muitos, de uma época insofismável: de transigáo. Como os tanks, os aviOes de bombardeio sobrc as cidades encolhidas de pavor, os gases asfixiantes c as terrfvcis minas, o scu estilo e a sua personalidade nasceram das claridades caóticas da guena. (...) Toma-se lógico que o estilo dos eseritores acompanhc a evolucáo emocional dos surtos humanos. Se o mcu foro interior, um velho sentimentalismo racial vibra ainda nas doces cordas alexandrinas de Bilac c Vicente de Carvalho, náo posso deixar de reconhcccr o direito sagrado das inovac&es, mesmo químdo elas ;uneac.am espedacar nas suas máos hercúlcas o ouuo aigamassado pela idadc parnasiana. VAE VICTIS! Esperemos com calma os Iru los dessa nova revolucáo que nos apresenta pela primcira vez o estilo tclcgráfico e a metafora lancinantc. (Do Prefácio.) A "nova revolucáo" formal tem sido hoje aclarada pela crítica de tendéncia estruturalista. O estilo das Memórias Sentimentais 6 a prosa que poderia seguir a poesia da Paulicéia Desvairada de Mario de Andradc: a "immaginazione senza ////", o telegrafismo das rupluras sintáticas, do simultancísmo, da sin-cronia, das "ordens do subconscicntc", dos neologismos copiosos. A compo- (296) Ern Brigáda Ligeira, S. Paulo, Mitrtins, p. 16. (297) id., p. 17. (298) Id., ib. 358 sicäo mesma do romance é revolucionária: säo capítulos-instantes, capítulos-rclämpagos, capitulos-sensaeöes. O que importava ao Oswald leitor dos futu-ristas e profundamente afetado pela técnica do cinema era a colagem rápida de signos, os processos diretos, "sem comparacöes de apoio", como diria, no mesmo ano de Miramar, pelo Manifesto da Poesia Pau Brasil. Esse tipo de prosa que confina com a condensa^äo poética foi, ao que parece, elaborado simultaneamente com as "palavras cm liberdade" de Pau-Brasil. O arrolamento bruto dos sintagmas, o "obter cm comprimidos minutos de poesia", na expres-säo de Paulo Prado, ia, de fato, alem do verso livre, ultima conquista do Sim-bolismo e primeiro passo do Modernismo. Pois o verso livre é, ainda, funda-mentalmente, uma unidade rítmico-melódica; ao passo que a exigencia mari-nettiana, expressa desde o Manifesto Teenico de 1912, recai sobre a desarti-culacäo total da frase: o que produzirá também um modo novo de dispor o texto, uma nova espacializacäo do material literário. Ncssa linha, o cubo-fu-turismo foi, dc fato, precursor da poesia conereta. Saltos records Cavalos da Penha Correm jóqucis de Higienópolis Os magnatas As meninas E a orquestra toca Chá Na sala dc cocktails (hípica) Bananeiras O sol O cansa^o da ilusäo Igrcjas O ouro na sciTa dc pedra A decadčncia ("Säo Jose Del Rci") O piano que norteou Pau-Brasil foi o de transpor, nesse estilo de síntese violenta, näo só o espa90 moderno da nafäo, como o faz nas partes intituladas "RPI", "Carnaval", "Postes da Light", "Lóide Brasileiro", mas também a sua vida pré-colonial e colonial. Dař, a juncäo dc modernismo c primitivismo que, cm ultima análise, define a visäo do mundo e a poética de Oswald. Pena é que, na esteira do "primitivismo", o eseritor hajá reiterado tantos estereótipos do caráter nacionál (os mesmos de Paulo Prado no Reirato do Brasil): a "luxuria", a "avidez" e a "preguica" com que nos viram os colonizadores do século XVI e as teorias colonialistas do século XIX, e que estaräo presentes em Se-rafim Ponte Grande, retrato do antropófago civilizado que atuou como mito exemplar no pensamento de Oswald até suas ultimas produeöes. 359 Na verdade, para esse primitivismo anärquico sö existia uma safda lüeidö que lhe redimisse os tracos decadentes: a abcrtura paia a arte social. Osw.iU tentou-a com a obstinacäo de quem precisa realizar um programa. Foi venculn pelo lastro do seu passado ao fazer teatro (O Rei da Vela, 0 Hörnern c o Cavalo), muito mais proximo de um expressionismo pansexual que da assunciln dinämica dos conflitps sociais; e foi vencido por uma concepcäo mimöluo populista ao fazer romance mural (Marco Zero), onde näo logrou imitar sein maneirismo a alta simplicidadc de um Jose" Lins do Rcgo c de um GraciliaiiO Ramos, nem levar ä maturacäo os clcmcntos cstilfsticos originais de que dis« punha desdc as Memörias Sentimentais de Joäo Miramar. Mais fcliz, porquc mais adcrcntc aos tracos fundamentals da sua persona lidadc artfstica, foi a volta ä pocsia: duas composicöes que escreveu na decadii de 40, "Cäntico dos Cänticos para Fl aula c Violäo" c "O Escaravelho de Ouro". permanecem como excmplos admiraveis de fusäo, no nivel dos significantex, de lirismo crötico c abcrtura ao drama do proprio tempo. Fiquemos com csin ultima imagem dessc hörnern rico c contraditörio c sejamos cautos no afä da valorizar fragmcnlos de atitudes daladas e muito mais dcpcndcntcs de certos padröes irracionalistas do que a sua aparencia faria pensar. Manuel Bandeira Manuel Bandeira (299) chamou-sc urn dia "pocta mcnor". Fez por certg uma injuslica a si proprio, mas deu, com cssa notaeäo crftica, mostras de re- (2W) Manwľl Carnľirodi; Sousa Bandkira Filho (Recife, 1886 — Rio, 1968). Veio adolescente paia o Rio dc Janeiro, onde cursou o Colčgio Pedro II. Fin S. Paulo, iniciou o eurso dc Engenharia, mas a tuberculose, manifestando-se cedo, impediu-o de prosseguir os cstudos. Estcve em 1912 na Sufga (sanatóiio dc Clavadel) e aí entrou cm contato com a mclhor poesia simbolista e pós-simbolista cm lfngua francesa, fonte da sua lin-guagem iniciál, como o atestam os primeiros livros, Cinza das Horas c Carnaval. Fixando-se no Rio, esucita ami/ade com alguns eseritores que, como cle, passariam do celetismo fin de siécle ao Modcmismo (Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra, Ribeiro Couto, Graca Aranha Tristäo dc Atafdc...). Praticando o verso 1 i vre e a irónia crepuscular desdc os primeiros versos, Bandeira ľoi naturalmentc acolhido pelo grupo da Semana como um innilo mais velho (tinha 36 anos cm 1922) c houve quem o chamasse "o S3o Joäo Batista do movimento"; por sua vez, teiá recebido do exemplo tie Mario e de Oswald um impulso p;ua romper as amarras da sua fonnagilo intimista. É o que oconerá nos livros experiments, esciitos na "fasc heróica" do Modcrnismo: Ritmo Dissoluto e Libertinagem. A biografia dc Manuel Bandeira č a história dos seus livros. Viveu para as lctras c, salvo os anos cm que lecionou Portuguôs no Colégio Pedro II e Literatura Hispano-Americana na Universidade do Brasil, dedicou-se exclusivamente ao ofício de eserever: pocsia, crônica litcráiia, tradugöes e obras di-dáticas de nŕvel superior. Obra: Cinza das Horas, 1917; Carnaval, 1919; Poesias (incl. 360 conhccer as origcns psicológicas da sua arte: aquela atitudc intimista dos cre-pusculares do comcco do século que ajudaram a dissolver toda a eloquencia pós-romántica, pela prática de um lirismo confidencial, auto-ir6nico, talvez incapaz de empenhar-se num projeto histórico, mas, por isso mesmo, distante das tentacóes pseudo-ideológicas, alheio a descaídas retóricas. Em nosso poeta essa atitudc, que trai um inato individualismo, redime-se pelo culto da comunicacao literária. O esforeo de romper com a diecáo entre parnasiana e simbolista de Cinza das Hor as íbi plenamcnte logrado enquanto íéz de Bandeira um dos melhores poetas do verso livrc cm portugués, e, a partir de Ritmo Dissoluto, talvez o mais feliz incorporador dc motivos e termos prosaicos á literatura brasilcira. Entrclanto, nao se pode dizer que o mesmo esforeo libcrlário o tenha imu-nizado do prcstřgio das velhas poéticas, responsável pelo seu aberto comprazi-mento dc atmosferas romanticas ou dc ccos neoclássicos: tudo o que dá á sua linguagem aquele ar de ultima cxpcricncia dc uma refinada civilizacáo literária, lao evidente nos mestres da poesia moderna, T. S. Eliot, Pound, Ungarctti. Por outro lado, era dc esperar que á ťusao dc conťidcncia c sábio jogo técnico respondesse, no piano da rcťlcxao estética, um irracionalismo dc base, difuso na sua geracáo, c sobrc o qual se Coram depositando finas observacocs do homem dc metier, capaz dc compor cm todos os ritmos c dc Iraduzir com igual mestria Shakespeare e Hocldcrlin, Rilkc e Garcia Lorca. Quem nao per-cebc a imediata presenca surrealista nestas palavras do Itinerářio de Pasárgada: Ritmo Dissoluto), 1924; Libertinagem, 1930; Estrela da Manká, 1936; Mafuá do Ma-lungo, 1948; Opus 10, 1952; Estrela da Yarde, 1958; Estrela da Vida Inteira, 1966. Traducöcs: Poemas ľraduzidos, 1945; Maria Stuart, de Schiller, 1955; Macbeth, de Shakespeare, 1956; La machine infernale, de Cocteau, 1956; June and the Peacock, de O'Cascy, 1957; The Rain Maker, de N. Richard Nash, 1957. Prosa: Cronicas da Provincia do Brasil, 1936; Quia de Ouro Preto, 1938; Nocöes de História das Literaturas, 1940; Literatúra Hispano-Americana, 1949; Goncalves Dias, 1952; Itinerant) de Pasárgada, 1954; De Poetas e de Poesia, 1954; Frauta de Papel, 1957; Os Reis Vagabundos e mais 50 Cronicas, 1966; Andorinha, Andorinha, 1966. Consultar: os ensaios prepostos ä edicäo de Poesia e Prosa, 2 vols., Rio, Aguilar, 1958 (esp. os dc Sergio Buarque de Holanda, Francisco de Assis Barbosa c Antonio Candido); Adolfo Casais Monteiro, Manuel Bandeira, Lisboa, Inqučrito, 1943; Sérgio Buarque dc Holanda, Cobra de Vidro, S. Paulo, Martins, 1944; Roger Bastide, Poetas do Brasil, Curitiba, Guaira, 1947; Carlos Drummond dc Andrade, Passeios na llha, Rio, Simöcs, 1952; Ledo Ivo, O Preto no Branco. Exegese de um Poema de Manuel Bandeira, Rio, Livr. S. Jose, 1955; Aurélio Buarque de Holanda, Território Lírico, Rio, () Cruzeiro, 1958; Emanuel de Moraes, Manoel Bandeira, Rio, Jose Olympio, 1962; Gilda c Antonio Cándido de Mello e Souza, "Introducäo", em Estrela da Vida Inteira, Rio, Jose Olympio, 1966; Tele P. Ancona Lopez (org.), Manuel Bandeira: Verso e Reverso, S. Paulo, TAQ, 1987; Davi Arrigucci Jr., Humildade, Paixáo e Morte. A Poesia de Manuel Bandeira, S. Paulo, Cia. das Letras, 1990. 361 Instruído pelos fracassos, aprendi, ao cabo de tantos alios, que jamais poderlii construir um poema ä maneira de Valéry. Em "Mémoires d'un poéme" (Varirtt V), confiou-nos o grande poeta que a primeira condicáo que ele se impunhii un trabalho de criacäo poética era "le plus de conscience possible"; que todo o nimi desejo era "essayer de retrouver avec volonte de conscience quelques resultant analogues aux résultats intéressants ou utilisables que nous livre (entre cent mille coups quelconques) le hasard mental". Anteriormente chegara ele a di/n que prcferia "avoir compose une oeuvre mediocre en toute lucidité qu'un che/ ďoeuvre á eclairs, dans un état de transe..." Na minha experiéncia pessoal lul verificando que o meu esforgo conscicnte só resultava em insatisfacäo, uQ passo que o que me saía do subconsciente, numa cspécie de transe ou alum bramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústius Longe de me scntir humilhado, rejubilava como se de repente me tivesscm posto em estado de graca (3u0). Surrealismu cuja filiacäo "videnie" (Rimbaud, Lautréamont) séria tempe rada na lcitura dos "lúcidos", Mallarmé e Valéry, aceitos como técnicos da invencäo verbal: "a poesia sc faz com palavras". E, sc passarmos da poética reflexa ä genese da sua obra, veremos que a presenca do biográfico é ainda podcrosa mesmo nos livros de inspiracao ab-solutamcnte moderna, como Libertinagem, micleo daquclc seu ndo-me-im-portismo irônico, c no fundo, melaneólico, que Ihc deu uma fisionomia täo cara aos Icitores jovens desde os anos de 30. O adolescente mal curado da tuberculose persiste no adulto solitário que olha de longe o carnaval da« vida e de tudo faz matéria para os ritmos livres do seu obrigado distancia-mento: Uns tomam éter, outros cocaina. Eu já tomei tristeza, hoje torno alegria. Tcnho todos os motivos menos um de scr triste. Mas o cálculo das probabilidadcs é uma pilhéria... Abaixo Amiel! E nunca lerci o diário de Maria Bashkirtseťť. Sim, já perdi pai, mäe, irmáos. Pcrdi a saúde tambčm. É por isso que sinto como ninguém o riüno do jazz-band. ("Näo sei daiiyar") Ou o arquifamoso "Pneumotórax": Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inleira que podia ser sido e que näo foi. Tosse, tosse, tosse. (300) £m poesia e Prosa, Ed. Aguilar, vol. II, pp. 21-22. 362 Mandou chainar o médico: — Diga trinta e trés. — Trinta e trés... trinta e trés... trinta e trés... — Respire — O senhor tem uma escavagäo no pulmäo esquerdo e o [pulmäo direito infiltrado. — Entäo, doutor, näo é possível tentar o pneumotórax? — Näo. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. O livro oscila cntre um fortissimo anseio de libcrdade vital e estética ("Na boča", "Vou-me embora pra Pasárgada", "Poética") c a interiorizagäo cada vez mais profunda dos vultos familiäres ("Profundamente", "Irene no Céu", "Poema de Finados", "O Anjo da Guarda") e das imagens brasileiras cujo halo mítico Bandeira deverá, cm parte, ao convívio intclectual com Mario de Andrade e Gilbcrto Frcyrc ("Mangue", "Evocagäo do Recife", "Lenda Brasileira", "Cu-nhantä"). A počtica de Libertinagem mant6m-sc viva nas obras maduras de Bandeira, onde näo raro um ardentc sopro amoroso envolve as imagens femininas, dei-xando-as porém intactas c nimbadas de urna alta c religiosa solitude: Dantes, a tua pcle sem rugas, A tua saüde Escondiam o que era Tu mesma. Aquela que balbuciava Quase inconscientemente: "Podem entrar". A que me apertava os dedos Desesperadamente Com medo de morrer. A menina. O anjo. A flor de todos os tempos. A que näo morrerá nunca. ("Flor de todos os tempos") E näo nos cansaremos nunca de admirar os poemetos eróticos "A Fi 1ha do Rei", "A Estrela e o Anjo", "Água Forte", "Unidade", "Cäntico dos Cän-ticos", ou aqueles momentos, raros mas definitivos, em que a extrema e sur-preendente singeleza formal é, a um só tempo, mensagem e código de um corte metaffsico na condigäo humana, carnal e finita, no entanto preša a um lancinante anseio de transcendencia: "Momento num Café", "Contricäo", 363 "Maca", "A Estxela", "Cangao do Vento e da Minha Vida", "Ubiquidad^ "Uma Face na Escuridao", e este misterioso e belo "Boi Morto": Como em turvas aguas de enchente, Me sinto a meio submergido Entre destroyos do presente Dividido, subdividido, Onde rola, enorme, o boi morto, Boi morto, boi morto, boi morto. Arvores da paisagem calma, Convosco — alias, t2o marginais! — Fica a alma, a atdnita alma, AtOnita para jamais, Que o coipo, esse vai eom o boi morto, Boi morto, boi morto, boi morto. Boi morto, boi deseomedido, Boi espantosamcntc, boi Morto, sem forma ou scntido Ou signifieado. O que foi Ningucrn sabe. Agora 6 boi morto. Boi morto, boi morto, boi morto. Nos livros maduros rcaparece (como ao mcsmo tempo ocorria com a me-Ihor poesia europ6ia) o metro — cl^ssico c popular — tratado com a mesma sabedoria de que o poeta dera excmplo na fatura do verso livrc, isto 6, mantida a pcrfeita homologia entre o senlimento e o ritmo. Nao 6 possfvel dissociar as cadencias que marcam os rcdondilhos da "Cancao das Duas fndias" dos scus v^rios matizes afetivos; ncm os trissflabos de "Trem de Ferro" da sonora mimcsc que logram alcancar; ncm, ainda, o cspfrito anti-ret6rico podcria vir mais bem exprcsso do que o fazem os alexandrinos "bilaqucanos" do soneto "Ouro Preto". nao falo dos divertissements cada vcz mais numerosos na ultima pro-ducao do poeta: hai-kais, cantarcs de amor a D. Dinis, sextilhas, rond6s, gazais, letras para valsas romanticas, versos "a mancira de" c aid engenhosos objetos dc poesia concrcta. O livro dcrradeiro, Mafud do Malungo (3m), 6 uma variada colegao de jogos onomaslicos, dcdicat6rias rimadas, liras c s^tiras polfticas de (3oi) "Mafud" toda a gente sabe que e" o nomc dado as fciras populares dc divertimentos. "Malungo" significa companheiro, Ciunju"ada: € urn africanismo, segundo Can-dido dc Figueircdo, nome com que rcciprocamcnte se designavam os negros que safam da Africa no mcsmo navio" ("Rcportagcm Literaria", cm M. B., Poesia e Prosa, cit.y I, p. 1173). 364 circunstäncia, tudo nuni cliina de virtuosismo que lembra, mutatis mutandis, a literatura dos atos acadcmicos de barroca memoria: Teu pé... Šerá início ou é Fim? É as du as coisas teu pé. Por qué? os motivos säo tantos! Resumo-os sem mais tardangas: Início dos mcus cncíuitos, Firn das minhas esperangas. ("Madrigal do pč para a mäo") Por fim, é neccssário frisar que o pocta conviveu longa e intimamente com o mclhor do que lhc podcria dar a literatura de todos os tempos e parses. Tradutor de várias línguas, mcslre dc cultura hispano-americana, autor de uma fina Apresentacäo da Poesia Brasileira, Manuel Bandeira deixou uma notável bagagem de prosa crílica, havendo ainda muilo o que aprender cm scus ensaios sobre nossos poctas, lidos näo só de um ponto dc vista histórico, mas por dentro, como äs vezes só um outro pocta sabc lcr. Cassiano Ricardo Cassiano Ricardo (3()2) pagou, como os demais modernistas históricos antes de aderir ao movimento, tributo ä medida velha: nco-simbolista é Dentro da (302) Cassiano Ricardo Lumi (Säo Josč dos Campos, SP, 1895-1974). Fe/ Direito em Säo Paulo c no Rio de Janeiro. Os sous primeiros versos, dc cstoľo iradicional, foram clogiados por Bilac c Mcdciros e Albuquerque. Aderindo ao Modemismo, logo fixou-se na polemica nacionalista c, mais cstritamcnle, paulista: fasc do Vcrdcamarelismo (1926) a que sc segue o grupo da Bandeira (1928), integrado por cle, por Menotti del Picchia e Cändido Motta Filho. Elcilo em 1937 para a Academia Brasileira dc Letras, aí fez uma cerrada campanha pela valori/agäo oficial dos poctas modernos. Animou constantemente os grupos novos: cm 1945, junto ao Clube dc Poesia; mais rccentemente, junto as vanguardas cxperiment;iis. Obra: Dentro da Noite, 1915; A Frauta de Pá, 1917; Vamos Cacar Papagaios, 1926; Martim-Cereré, 1928; Deixa Estar, Jacaré, 1931; O Sangue das Horas, 1943; Um Dia depois do Outro, 1947; A Face Perdida, 1950; Poemas Murais, 1950; Sonetos, 1952; Joäo Torto e a Fábula, 1956; O Arranha-Céu de Vidro, 1956; Poesias Completas, 1957; Montanha Russa, 1960; A Difícil Manhá, 1960; Jere-mias-sem-Chorar, 1964; Os Sobreviventes, 1972. Prosa: O Brasil no Original, 1936; O Negro na Bandeira, 1938; A Academia e a Poesia Moderna, 1939; Pedro Luis Visto Pelos Modernos, 1939; M archa para o Oeste, 1943; A Academia e a Lingua Brasileira, 1943; A Poesia na Técnica do Romance, 1953; O Hörnern Cordial, 1959; 22 e a Poesia de Hoje, 1962; Refiexos sobre a Poética de Vanguarda, 1966. Consultar: Tristäo de Ataídc, Estudos, Is sčrie, Rio, Terra do Sol, 1927; Joäo Ribciro, Crítica. Os Modernos, 365 Node, neoparnasiana A Frauta de Pä. A partir de 1926, com Vamos Cacur Papagaios, o poeta, entäo ligado ao Verdeamarelismo de Menotti, Candida Motta Filho e Plinio Saigado, entra de chofre no seu primeiro núcleo de ins« piracäo realmente fecundo: o Brasil tupi e o Brasil colonial, sentidos como estados de alma primitivos e cósmicos, na linha sempře ressuscitável do paraísQ pcrdido habitado por bons sclvagcns. Podc-se falar, sem reccio de didatismo, em uma fase de nacionalismo cs» trito, que engloba o livro citado, mais Deixa Estar, Jacaré e Martim-Cereri (o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis), livro que, junto äs experiéncias mitopoéticas de Macunaítna c de Cobra Norato (de Raul Bopp), define uma das opgöcs possfveis da poesia modernista. Convém, no entanto, distinguir nQ interior dessa linha: sc as estórias reclaboradas por Mario de Andrade provi» nliam de todo o pais c serviam para uma fusäo lingiiística ampla, uma espécia de "idioma geral do Brasil", as preťcrcncias de Cassiano Ricardo centraram-s» cada vez mais na temática paulista que, de indígcna passa a bandeirante, c desta ao canto da penetraeäo cafecira até ä vivencia da Säo Paulo moderna. Martim-Cereré, poesia, e Marc.ha para o Oesíe, ensaio histórico bandeirista, ilustram plcnamcntc a primcira etapa desse roteiro no tempo c no espaco. No dcecnio de quarenta, o pocta, sensível äs novas correntes de lirismo universalizante, esereverá O Sangue das Horas, Um Dias depois do Outro e A Face Perdida, obras que deixam para trás a cxploracäo do Brasil primevo e colorido e exprimem um modo de ver mais pensado, quando näo abstrato, do cotidiano moderno. O processo de renovaeäo continuaria nas ultimas experiéncias, sobretudo em O Arranha-Céu de Vidro c cm Jeremias sem Chor ar, que incorporam temas e formas da vida urbana pcnclrada até ä medula pela técnica e pela "condigäo atömica" em que imergiu o mundo intciro de pós-guerra. A atualizagäo do poeta näo se restringiu a modernizar a propria obra: des-dobra-se hoje na atencäo dedicada ä arte experimental que o tem, numa de suas areas (a chamada pocsia-práxis) por entusiasta c mentor. Um exemplo dessa atitude é a tese 22 e a Poesia de Hoje, que Cassiano expös no Segundo Congresso Brasileiro dc Crítica c História Litcrária (Assis, 1961), onde apre- Rio, Academia Brasilcira de Lctras, 1952 (cser. em 1928); Roger Bastide, "Cassiano Ricardo", in A Manhä, Supl. de Lctras c Arles, 21 e 28-9-1947; Älvaro Lins, Jornal de Crftica, 6" sCrie, Rio, J. Olympio, 1951; Sergio Milliet, Panorama da Moderna Poesia Brasileira, Rio, Ministerio da Educacäo, 1952; Eduardo Portella, Dimensöes. I, Rio, J. Olympio, 1958; Pericles Eugönio da Silva Ramos, "O Modemismo na Poesia", in A Literatura no Brasil, cit., vol. III, t. 1; Oswaldino Marques, O Laboratörio Portico de Cassiano Ricardo, Rio, Civ. Bras., 1962; Mario Chamie, Palavra-Levantamento na Poesia de Cassiano Ricardo, Rio, Livr. S. Josö, 1966; Jerusa Pires Ferreira, Notlcia de Martim-Cerere, S. Paulo, Quatro Artes, 1970. 366 Ncntou com minúcia as pcsquisas e as teorizacöes da pocsia concreta c os scus ncxos com as pontas-dc-lanya do Modernismo. Menotti del Picchia Tenaz divulgador das novas tendencias estéticas, Menotti del Picchia (303) construiu obra singular no contcxto modernista, no sentido de uma descida de tom (um maldoso diria: de nivel) que Ihc permitiu aproximar-se do leitor medio c rocar pela cultura de massa que hoje ocupa mais de um ideólogo perplexo. Antes de 22, Menotti escrevera um poemeto sertanista muito brilhante, Juca Mulato, que logo caiu no goto de toda casta de leitores. Era sinal de uma comunieabilidade fácil c vigorosa, näo desmentida cm Moisés, poema bíblico, c cm Mascaras, ambos de 1917. Pouco antes da Semana, Menotti esereveu vários artigos no Correio Pau-listano, sob o pseudônimo de Helios: o leitmotiv de todos 6 o antipassadismo dinämico, eco ainda dannunziano dos manifestos de Marinelti. Nessa "estética do progresso", o eseritor inseriria motivos nacionálistas, presentes nos poemas de Chuva de Pedra c cm O Curupira e o Cardo, livro-programa que compôs com Plínio Saigado c Cassiano Ricardo. O curupira 6 o símbolo da arte nova e nacionál; o Caräo, das antigualhas parnasianas, bagatelas importadas. Säo dessa fase os poemas da República dos Estados Unidos do Brasil, rapsódia verdc-amarcla em versos livres. A linguagem de todos os livros citados cai frcqücnlcmcntc no retórico ou no prosaico da crônica. Temos nclas o germe do scu estilo nos romances de P*) Paulo Mjínotti del Picchia (Itapira, SP, 1892 — S. Paulo, 1988). Fez Direito em S. Paulo. Conviveu na primeira mocidade com os Ultimos baluartes da literatúra anlemodernista, mas, passada a I Guerra Mundial, aproximou-se do grupo que faria a Semana de Arte Moderna, de que foi articulador c aguerrido partieipante. Poucos anos depois, integrou os movimentos verdc-amarelo c "Bandcira", junto com Cassiano Ricardo e Cändido Motta Filho. Foi dos que passaram de um nacionalismo esüeito para uma ideológia trabalhista, militando largos anos no partido fundado por Gctúlio Vargas. Obras prineipais: Juca Mulato, 1917; Moisés, 1917; Mascaras, 1917; 0 Hörnern e a Morte (romance), 1922; Chuva de Pedras, 1925; República dos Estados Unidos do Brasil, 1928; A Tormenta (romance), 1931; Poemas, 1935; Salome (romance). V. Obras Com-pletas, 14 volumes, S. Paulo, Martins, 1958. Consultar: Tristäo de Ataidc, Primeiros Estudos, Rio, Agir, 1948 (escr. em 1919); Humbcrto de Campos, Critica, vol. III, Rio, Jose" Olympio, 1935; Mario de Andrade, O Empalhador de Passarinho, S. Paulo, Martins, s.d.; Pčricles Eugônio da Silva Ramos, "O Modernismo na Poesia", cm A Literatúra no Brasil, cit., v. III, t. 1; Wilson Marlins, O Modernismo, 2* ed., S. Paulo, Cultrix, 1967. 367 ficcäo científica: A República 3000, Kalum, o Sangrenio c Kamunká. No ano da Semana redigira um romance erótico-dccadcntc, bastante proximo dc ()\ Condenados, de Oswald, também escrito em 1922: em ambos projetava sr aquela figura do artista fin de siécle, génio exaltado ä procura do Impossível no meio do torvelinho da vida moderna e grä-fina. A aderéncia efusiva aQ vaivém da burguesia paulistana, servida por urna respcitável mole de lugarcs* comuns, deu ä prosa ficcional de Menotti urna animacäo jornalística que naQ deixou de impressionar o exigente Mário dc Andradc da fase artesanal. Rcsľ-nhando, näo sem reservas, o romance Salomé, disse o pocta-erítico: Com Salomé, Menotti tlel Picchia nos desereve, num largo e amargo paincl, n sociedade paulista contcmporänea. A mcu ver, o que há dc mais admiravelmenle bcm conseguido no romance č a criagäo c fixacäo dos caractcrcs psicológicos cs-colhidos. Está claro, Menotti 6 o tipo do eseritor incapaz dc gastar dez páginas dc análisc para estudar, por exemplo, esse forte sofrimcnto que é a gente se decidir entre sair dc casa ou näo, num instante dc gratuidadc vital. Proust c Joyce detestariam Menotti del Picchia, como talvez Menotti del Picchia deteste Joyce e Proust. Mas o valor notávcl do autor dc Salomé ľoi exatamente conseguir um pcrfcito equilíbrio entre a sua conccpväo sintčtica dos personagens c a eseolha destes como formas psicológieas representativas da sociedade que quis deserever Falando cm "concepcäo sintética dos personagens" c cm "formas psicológieas representativas", Mário aludia, na verdade, ao velho processo dc montar as criaturas ľiccionais por mcio de tipos, expediente que, cnriquccido, levará ä personagem cxprcssäo, mas, csqucmatizado, dará o herói da sublilcratura, o padräo pelo qual sc guiam os fazedores dc novclas policiais, dc contos de mistério c, boje, de rádio-, foto- c tclcnovclas. Que um "próccr do Modernismo", um eseritor brilhante como Menotti del Picchia haja cedido, por forca do próprio temperamento literário, a tais eslercótipos, dcixando para trás as cxpcricncias dc vanguarda que promovera na juventudc, deve parecer lamentávcl ao high brow, que tende a alijá-lo pura c simplcsmcntc do seu convívio estético; mas scu sentido sociológico c cultural, na medida cm que os caminhos "fáccis" do autor da República 3000 responderam äs expectativas dc um publico dc falo divorciado do Modernismo dc 22, cnquanto cste näo soube, ou näo pôde, rcflelir as tendencias c os gostos dc urna elasse mčdia cm crcscimcnto, incapaz dc maior refina-mento artŕstico. Classc de onde saíram os leitores dc Menotti del Picchia e que viriam a ser, logo depois, os leitores de Jorge Amado c dc Érico Veríssimo. (304) q Empalhador de Passarinho, cit., p. 244. 368 Raul Bopp Na trilha do Vcrdeamarelismo de Menotti, Cassiano e Plinio Saigado, mas bem cedo convertido aos chamados da Antropofagia de Oswald e Tarsila, está Raul Bopp (30S), cuja rapsódia amazönica, Cobra Norato, é o necessário com-plemento do Manifesto Antropófago. A estrutura da obra é épico-dramática e o poeta pode extrair dela coros para um bailado. Narram-se as aventuras de um jovem na sclva amazónica depois de ter estrangulado a Cobra Norato e ter entrado no corpodo monstruoso animal. Cruzam a história descricöes mitológicas de um mundo barbaro sob violentas transformaeöes. Aproximando Cobra Norato de outras obras míticas do Modernismo, diz com acerto Wilson Martins: Obscrvc-sc que o mito da viagem, no tempo c no espaco, č a viga-mestra de Macunafma, de Marti m-Cereré, de Cobra Norato: o Modernismo foi uma escola ambulante e perambulantc, fascinado pela descoberta gcográllca e medusado pela descobcrla cronológica. Nesses artistas com tímto sentido do moderno, a contradigäo č apenas aparente quando verificamos o sentido do passado mítico representado pelo folclore; é que, atr.ls disso tudo, estava a conseißneia do tempo, conforme já vimos anteriormente (3°6). Diálogos do protagonista com os seres espantados da floresta c do rio formám o coro cósmico desse poema original e ainda vivo como documento-limite do primitivismo entre nós. O telúrico interiorizado e sentido como libido e instinto dc mořte: essa, a significagäo da voga africanizantc da Paris anterior (3()S) Raul Bow (Tupaccretä, RS, 1898 — P. Alegre, 1984). Descendente de imi-grantes alemäcs estabclecidos no Sul desde os meados do século passado. Viajou por lodo o pais praticando as profissöcs mais díspares, desde pintor de paredes até caixeiro de livrnria. Na década dc 20 percorreu demoradamente a Amazonia; em S. Paulo, poucos anos depois da Semana, aproximou-sc dos vários subgrupos modcrnistas, integrando iniciál mcnlc o Vcrde-amarclo, mas, já em 1928, ligando-se a Oswald e a Tarsila, padroeiros da Antropofagia. Foi jornalista e diplomata. Obra: Cobra Norato, 1931; Urucungo, 1933; Poesias, 1947; Os Movimentos Modcrnistas, 1966; Putirum, 1969. Consultar: Joäo Ri-bciro, Critica. Os Modernos, Rio, Academia Brasilcira de Lcüas, 1952 (escrito em 1931); Álvaro Lins, Jomal de Critica, 6" sčric, J. Olympio, 1951; Carlos Drummond de Andrade, Passeios na Ilha, Rio, Simöes, 1952; Pčriclcs Eugčnio da Silva Ramos, "O Modernismo na Poesia", cm A Literatura no Brasil, cit., v. III, t. 1; Wilson Martins, O Modernismo, cit.; Othon Moacyr Garcia, Cobra Norato, o Poema e o Mito, Rio, Livr. S. Josč, 1962; Regina Zilberman, A Literatura no Rio Grande do Sul, P. Alegre, Mcreado Aberto, 1980; Lígia M. Averbruck, Cobra Norato e a Revolucäo Caraiba, Jose Olympio, 1985. (306) Em O Modernismo, cit., p. 195. 369 á I Guerra Cart negre"); no Brasil, o rccncontro com as rcalidades arcaiias ou primordiais fazia-se, isto é, pretendia-se fazer sem intermediários. Husno de ótica: o primitivismo afirmou-se via Freud, via Frazer, via Lévy-Bruhl. Není poderia ser de outro modo: era a faixa mais ocidentalizada da cultura naciomd que se voltava para o desfrute estético dos temas e da linguagem indígena | negra. De qualquer modo, houve enriquecimento tanto na esfera dos motivnis como na da propria camada sonora da poesia. O Raul Bopp de um verso como num soturno batc-balc dc atabaquc dc batuque, deu elementos para que Roger Bastidc falasse da "incorporacao da poesia afrU cana á poesia brasileira", num estudo rico de finas observagoes antropologie a 8 e literárias (307). É, certamente, um dos caminhos sempře abertos á expressáu poética do eseritor brašileiro. Plínio Salgado Falando de Plínio Salgado (3()íi), costuma-sc distinguir um primeiro mo-mento de interesse pela nova ficeáo c pela literatura, cm geral (ex.: o romance O Estrangeiro, de prosa solta c impressionista), da carreira idcológica e política que se Ihc seguiu. Mas a verdadc está no todo: o indianismo mítico dos eseritos iniciais c a xenofobia do Manifesto da Anta náo estavam infensos aos ideais (307) Em Poetas do Brasil, Curitiba, Guaíra, pp. 7-38. (3()«) Plínio Saloado (S. Bcnto do Sapucaí, S. Paulo, 1901-1975). Formou-se em Direito cm S. Paulo. Suas producöes iniciíiis foram influcnciadas pelo espírilo da Semana. O romance O Estrangeiro (1926) é uma tentativa de fixar quadros da vida paulista em um novo rilmo dc prosa, ora solto, ora sincopado. Nos artigos que integram O Curupira e o Cardo, livro-programa do Vcrdcamarclismo, eserilo com Menotti del Picchia e Cas-siano Ricardo, em 1927, propos uma arte violenta e "dinämica", mas acima de tudo nacionalista, chegando mesmo a erigir a figura da Anta, totem dos tupis, como deno-minador comum da "raga brasileira". Os romances O Esperado (1931) c o Cavaleiro de Itararé (1932) eonstituem, no dizer do título geral da sčrie, "Cronicas da Vida Brasileira"; e, de fato, pretendem retratar, fragmentária c simbolicamentc, alguns tipos bra-sileiros em suas reagöcs diante de falos políticos relevantes como a Coluna Prestes, o Tenentismo, a Rcvolucäo de 30 c a dc 32. Já se delineia eniäo a teoria política do A. que viria desembocar na pregaeäo de uma sociedade classista e de um Estado totalitário, potencialmente racista (V. A Doutrina do Sigma, 2- ed., p. 46, 1937), näo obstante a presenca do adjetivo "demoerático" aposto mais tarde ao termo integralismo, com que o A. deftnira o seu sistema. Consultar: Tristäo de Ataide, "Esperado ou Descsperado?", em Estudos, 5a série, Rio, Civilizagäo Brasileira, 1935; J. Chasin, Ö Integralismo de Plínio Saigado, S. Paulo, Livr. Editora Ciéncias Humanas, 1978. 370 icacionärios que sclariam o homem publico na decada de 30. Pelo contrario, o Integralismo foi o succdäneo daquele nacionalismo abstrato que, em vez de sondar as contradicöes objetivas das nossas classes sociais, tais como se apre-scntavam äs väsperas da Revolucäo de 1930, preferiu fanatizar-se pelos mitos do Sangue, da Forca, da Terra, da Raca, da Nacäo, que de brasileiros nada tinharn, importados como cram de uma Alemanha e de uma Italia ressentidas cm face das grandes potencias. O malogro tetfrico c prälico desse tipo dc pensamento foi responsävel pelo descrSdito da palavra "nacionalismo", em värios sctores: tcndencia que pode chegar — e tern chcgado — a extremos igualmcnte arriscados, na medida em que, temerosa do abuso, fecha os olhos äs concretas realidadcs sociocconomicas que embasam o sentimento da Pätria c solicitam a defesa dc urn povo ante ameagas de värios matizes e bandciras. Sc para mais näo der a cxpcriencia falida de Plfnio Salgado, sirva, ao menos, como estfmulo ä rcflcxäo sobrc esse lema, alias rccorrcnlc cm nacöes de passado colonial como 6 o Brasil. Guilherme de Almeida Guilherme dc Almeida (3W) pcrtcnccu stf episodicamcntc ao movimcnto de 22. Näo havcndo parlido do cspfrito que o animava, tamböm näo encontrou nelc ponlos definitivos de referenda cstdtica. (3tl9) Guiuiukme de Andradb e Almhida (Campinas, SP, 1890 — S. Paulo, 1969). Formou-se em Direito em 1912.. Em S. Paulo, advogou, fez jonialismo lUerário, paiti-cipou da Semana de Arte Moderna. Em 1925 excursionou por alguns Estados (Rin Grande do Sul, Pcniambuco, Ceará) fazendo conferéncias sobre a literatura modernista e lendo poemas seus e dos demais poclas dc 22: este ano foi, de resto, o seu "ano modernista", em que cscrcvcu obras mais proximas da vertente lfrico-nacionalista do movimcnto (Meu, Raca). Foi o primciro modernista a entrar para a Academia Brasilcira dc Letras (1930). Combatcu na Rcvolucjlo Constitucionalista de 1932, sendo exilado cm scguida: viajou entäo longamentc pcla Europa, fixando-se de preferéncia em Portugal. Voltando ao Brasil, conlinuou a escrcver, acrcsccndo ä sua considerável bagagem lileráiia um grande numero de tradugöes. Obra: Nos, 1917; A Danca das Horas, 1919; Messidor, 1919; Livro de Horas de Sóror Dolorosa, 1920; Era uma vez..., 1922; A Frauta que eu Perdi, 1924; Meu, 1925; Encantamento, 1925; A Flor que foi urn Homem, 1925; Raca, 1925; Sherazade, 1926; Simplicidade, 1929; Cartas ä Minha Noiva, 1931; Voce, 1931; Acaso, 1939; Cartas do Meu Amor, 1941; Tempo, 1944; Poesia Vária, 1947; Toda a Poesia, 1 vols., 1955; Camoniana, 1956; Pequeno Cancioneiro, 1957; A Rua, 1962. Prosa: Na-talika, 1924; O Sentimento Nacionalista na Poesia Brasileira e Ritmo Elemento de Ex-pressäo (tese), 1926; Nossa Bandeira e a Resistincia Paulista, 1932; O Meu Portugal, 371 Sua cultura, scu virtuosismo, suas aspiracöes morais vinham do passadu e lá permaneceram. Remontemo-nos aos primeiros livros, Simplicidade, Nu Cidade da Névoa, Suave Colheita: os módulos säo parnasianos, já atenuadn* por urn neo-simbolismo que se confessa filho de Verlaine e de Rodenbach on. na tradicäo luso-brasileira, eco de Os Simples e das litanias de Alphonsus. A temática é toda crepuscular: ouvimos quadras á "alma triste das ruas", äs ái vores que "parcccm freiras cochichando / nos corredores dos mosteiros, / com as suas toucas brancas, quando / há névoa no ar". Do decadentismo Guilherme de Almeida rccebeu o tom c ccrtas prcferencias verbais; do Parnaso, o gosto do soneto com chaves de ouro (c até chavcs de ouro sem soneto...), o domín i n absoluto da métrica portugucsa, o amor ä lingua que Ihe iria inspirar verda dciros tours de force. Livros como A Danca das Horas, Livro de Horas de Sóror Dolorosa, Narciso e Cancôes Gregas, compostos antes de 22, revelam os outros aspectos do scu passadismo literário: o caráter entre .sensual e estc ti/ante, a entrega a imagens voluptuosas de fundo ovidiano, cnfim um dandismo que lembra o universo cpicurisla de Oscar Wilde. Em contato com os modern i s tas, que sempre estiniaraiii as suas virtudes formais, Guilhcrmc passou por um interlúdio nacionalista, dc que foram fruto Meu, onde o verso livrc alterna com o tradicional, c Raca, rapsódia da mes-ticagem brasilcira: Vieram senhores de pcndäo c caldcira, dc barago e cutelo, senhores cm/ados, lavradores, Ncmrods, am antes, gucrreiros, vestidos dc ferro, dc scela, de arniinho, dc couro, que bebiam, Uovavam, teryavam e tinham falcôcs cm alcändoras de ouro; 1933. Traducöes: Eu e Voce, dc Paul Gcraldy, 1932; Poetas de Franca, 1936; Suite Brasileira, de Luc Durtain, 1936; 0 Jardineiro, dc Tagorc, 1939; O Gitanjali, tle Tagore, 1943; O Amor de Bilitis, dc Pierre Louys, 1943; Flores das Flores do Mal, dc Baudelaire, 1944; Entre Quatro Paredes, de Sartre, 1950; Antfgona, de SöToclcs, 1952. Consultar: Tristäo de Atafdc, Primeiros Estudos, Rio, Agir, 1948; Prudcnte dc Morais Ncto, "Gui-Ihermc de Almeida", in EstHica, I, sct. dc 1924; Mario dc Andradc, "Guilhcrme de Almeida", in Este'tica, 3, abril-junho de 1925; Ronald de Carvalho, Estudos Brasileiros, 2* seric, Rio, Briguict, 1931; Sergio Millict, Terminus Seco e Outros Coqueteis, S. Paulo, Fern«, 1932; Manuel Bandcira, Cronicas da Provincia do Brasil, Rio, Civili/aeäo Brasilcira, 1937; Sörgio Milliet, Diärio Crftico, V, S. Paulo, Martins, 1948; PCriclcs Eugeriio da Silva Ramos, "O Modernismo na Pocsia", cm A Lit. no Brasil, cit., III, 1; Oswaldino Marques, "Guilhcrme de Almeida c a Pcrfcia Criadora", in Supl. Lit. dc O Estado de S. Paulo, n9 639, 30-8-1968. 372 Sama Cruz! Mas o tronco da árvore nova foi tronco também de escravos quimbundos: foi crucifixo de Cristos coitados que vieram — cruz! credo! — cheirando a moxinga. Também formalmcnte há timbres modernos, a rigor, impressionistas, em algumas líricas de Meu, como neste "Cartaz", intencionalmente novo em re-lagäo ä poética iniciál de Guilherme: Paisagem nitida de decalcomania, No arrabalde novo todo cheio de dia os bangalös apinham-se como cubos brancos. o sol e as folhas jogam bolas amarelas de rravcssas vcrdcs e paralelas Nos jardins, sobre os bancos Os grandes toldos listados c baixos pöem uma luz estilizada nos terracos. A sombra forte decalea rigorosamente as pérgulas gcoméuicas sobre a arcia quente. E pregada no dia branco a paisagem colonial grita violcntamcntc como um cartaz moderno num muro de cal. Mas era mancirismo do moderno, passageiro. Os livros posteriores reto-maram os antigos caminhos parnasiano-dccadcntcs, quer estruturados em can-cioneiros (Encantamento, Acaso, Vocě), quer na linha do malabarismo verbal, que levou o pocta a reviver estilos mortos como o dos trovadores ("Cancio-neirinho"), ou o da lírica rcnascentista (Camoniana). A habilidadc de Guilherme foi, alias, a marca mais notável da sua vida literária: autor de delicados hai-kais, tradutor de SóTocles c de Baudelaire, re-finado metrificador, foi capaz dc compor uma berceuse só com rimas riquís-simas (onde "lágrimas" rima com "milagre mas" e "olhos" com "molhe os"), ou um poema cm que todas as palavras comecam pela consoante "v", ou ainda, cujas soantes se apóiam somente na vogal "u"... Rcsta acrcsccntar a circunstäncia dc que a popularidadc do pocta sc fundou também cm ter sido o interprete lilcrário dc certos momentos nacionais como o Movimento Constitucionalista de 32, que lne inspirou versos felizes ("Mocda Paulista", "Nossa Bandeira", "Piratininga"); a ida dos pracinhas ä Europa du raňte a II Gucrra ("Cancäo do Expcdicionário"); as comemoracöes do IV Cen tenário dc S. Paulo ("Acalanto dc Bartira"); cnfim, o poema em louvor ä rc-cém-nascida Brasilia. Exemplos todos de um natural pendor pelo heráldico, 373 traco que séria pura e belamente romäntico se näo fosse a patina parnasiaiui de que jamais conseguiu liberar-se. O prosador do Modernismo paulista: Alcantara Machado Mário e Oswald de Andrade, que éram sobretudo poetas, fizeram também prosa. E prosa experimental, como já vimos, abrindo caminhos para o conlo, o romance, o ensaio moderno. Mas foi Antonio de Alcantara Machado (-""J quem por primeiro sc mostrou sensível ä viragem da prosa ficcional, aplican do-se todo a renovar a cstrutura e o andamenlo da história curta. Voltado para a vida da sua cidade, Alcantara Machado soube ver e expriniu as alteracôcs que trouxcra ä realidade urbana um novo pcrsonagem: o imigrantc. O enxerto que o estrangciro, sobretudo o italiano, significava para o tronco luso-tupi da antiga Säo Paulo produzira mudancas dc costumes, de reacôcx psicológicas e, naturalmentc, uma fakt nova a cspelhar os novos conteúdos. É nos contos de Brás, Bexiga e Barra Funda que sc väo encontrar exemploa dc uma ágil literatura citadina, realista (aqui c ali impressionista), que já näo sc via dcsde os romances e as sátiras cariocas dc Lima Barreto. Mas, ao con trário do que se dava com este "humilhado e ofendido", há muito de diver (sni) AntAnioCastiuioije Alcantara Machado D'Omvkika (S. Paulo, 1901 — Rio. 1935). Filhodc umafamflia paulista tradicional ondc haviadois professores da Faculdade de Direilo. Nesla l'ormou-sc e, ainda cstudaiitc, fez jornalismo literário c crönica teatral. Da sua viagem ä Europa irouxe materia para as crflnicas dc Palhé Baby (1926). Em S. Paulo, estevc sempře vinculado aos responsáveis pela Semana, cspccialmente Paulo Pra do, Oswald, Tarsila, Millict. Escrevcu para Terra Roxa e Outras Terras, paia a Revista de Anlropofagia e para a Revista Nova. Por volta de 30 passou ä militäncia política (partido democi ático); cm 32 lulou pela Conslituicäo; de 33 a 35 representou seu Estado junto a Asscmbléia Nacionál no Rio de Janeiro. A mortc truncou-lhe, aos trinta e quatro anos, a carreira lilerária e a de hörnern publico. Obra: Pathé Baby, 1926; Brus, Bexiga e Barra Funda, 1927; Laranja da China, 1928; Anchieta na Capitania de Säo Vicente, 1928; Mana Maria (romance inacabado, cd. post.), 1936; Cavaquinho e Saxofone, 1940. A edicäo das Novelas Paulistanas (Jose Olympio, 1961) reúnc a obra dc ficcäo de Alcantara Macliado. Consuliar: Tristäo dc Ataide, Estudos, 1» série, Rio, Terra do Sol, 1927; Sergio Milliel, Terminus Seco e Outros Coquetéis, S. Paulo, Irmäos Fcrraz, 1932; Em Memoria de Antonio de Alcantara Machado, S. Paulo, Pocai, 1936; Álvaro Lins, Jornal de Critica, 1* série, Rio, J. Olympio, 1941; Sergio Milliel, Introducäo ä ed. de Brás, Bexiga e Barra Funda e Laranja da China, S. Paulo, Martins, 1944; Francisco dc Assis Barbosa, "Nota sobre Alcantara Machado", Introducäo äs Novelas Paulistanas, Rio, Jose Olympio, 1961; Luis Toledo Machado, Antonio de Alcantara Machado e o Modernismo, Rio, Jose Olympio, 1970. nssement nas páginas do paulistano. Nelas, uma análise ideo-estilística mais i igorosa näo constata nenhuma identificaeäo coerente com o imigrante, pito-icsco no maximo, patético porque crianca (o conto célebre do Gaetaninho), mas, em geral, ambicioso, petulante, quando capaz de competir com as famílias liadicionais em declínio. O populismo literário 6 ambíguo: sentimental, mas mlimamente distante. No caso do lalentoso Alcantara Machado, é sensível, a uma leitura critica dos contos, esse fatal olhar defora os novos bairros operários li de classe média a crescerem e a consolidarem uma nova S. Paulo, que ig-norava a vetusta Academia de Direilo e nada sabia dos salöes que acolheram, antropofagicamente, os homens de 22. Antonio de Alcantara Machado era täo filho e neto de mestres das Arcadas quanto entusiasta da primeira hora dos desvairistas e primitivistas: foi, assim, uma inclinaeäo liberal e literária pelo "pitoresco" e pelo "anedótico" que o lez tomar por materia dos seus contos a vida difícil do imigrante ou a sua embaracosa ascensäo. Creio que esses dados de base ajudem a entender os limites do realismo do escritor, visíveis mesmo nos contos melhores, onde o sentimental ou o cömico fácil, mimético, acabam por empanar uma visäo mais profunda e dinämica das relacöes humanas que pretendem configurar. Mas, situado o escritor no seu contexto social e existencial, volta-se li-vrementc a apreciar a sua obra narrativa, que, de resto, näo se esgotou naquelas páginas, mas prolongou-se nos quadros cheios de verve de Laranja da China e no romance Mana Maria, em que deu forma convincente a urn drama familiar fechado no pequeno mundo da burguesia paulistana. A firmeza com que Alcantara Machado manejou a lingua coloquial nesse livro inacabado autoriza a falar, sem retórica, de uma bela promessa de ficcionista que a mořte impediu que se cumprisse. Dois ensaistas: Sergio Milliet e Paulo Prado Urn panorama do Modernismo tfpico (dc cor paulista) nao serii completo sem a mencao dos nomes mais vincadamente crfticos do movimento: Sergio Milliet (1898-1966) e Paulo Prado (1869-1943). O primeiro eslreou como poeta de formacao e lfngua francesa, ja modcrno antes de 22: Par le sentier. En singeam. Le dipart sous la pluie, L'oeil de boeuf. Inlegrado no grupo da Semana, continuou a escrever versos sobre temas cotidianos, urn lirismo de tons menores, mas fortemente afetado pela ironia do puro intelectual (Ah! Valsa Latejante!, dc 1943) dividido entre as solicitacoes da paisagem paulista e as nostalgias dc uma Europa saturada dc cultura. Mas foi como crftico de poesia e de pintura que se fez presente na vida cultural do pafs. Basta lembrar os dez volumes do Didrio Critico, que cobrcm o vintenio 1940-60 e nos quais, ao lado do comentario sobre os autores franceses praticados a vida inteira, 374 375 lemos finfssimas resenhas da melhor produclo litcrária nacionál desscs an on, No matizado Panorama da Poesia Modernista e nos ensaios do amador drts artes plásticas (Marginalidade da Pintura Moderna, Pintura Quase Sempre), equilibram-se consideracöes de ordern psicológica e cultural e análises qtir levam em conta o papel do artesanato. Sérgio Milliet compartilhou com on novos de antes e depois da II Guerra as perplexidades de uma época de crisc que repropunha continuamente o problcma fundamental da autonómia ou du missäo da arte na sociedade. Dai, os fluxôs e refluxos da sua erítica, ora ne gando ora admitindo a poesia pura, o hermetismo, o abstracionismo e as ave n turas mais radicais das vanguardas. No conjunto, fica a imagem de um eslcla que rcceia a absoluta disponibilidade cm que viveu a sua geracäo, a do mu dernismo "heróico" dc 22. A Paulo Prado deve-sc, cm parte, a propria rcalizacäo da Semana, que cl« apoiou näo só material como cspiritualmcntc. Ponta dc lanca da burguesia pau lista, a sua atividade dc promotor da imigraeäo vinha do comeco do século; e o trato assíduo dos problcmas étnicos c sociais do pais dcspcrtou-lhe o goslo da rcflexäo psicológica sobre o hörnern brasileiro, hábito mcio científico, meio lilcrário, que vinha de longe e tivera nas obras de Euclidcs c dc Oliveira Viana os exemplos mais vistosos. Paulo Prado, aproveitando de modo muilo pessoal as fontes dos jesuítas c dos viajantes estrangeiros, ensombra dc cores tristes a inlcrprclacäo do nosso povo. No subtítulo do Retrato do Brasil (1928), lc-sc: ensaio sobre a tristeza brasileira. O estudo, brilhante e fluente, dcsdobra-se cm tres partes nas quais se apon tam seguidamente a luxuria, a cobi^a c a tristeza, paixôes aviltadoras que mar caram o índio, o portugues e o negro e leriam sido responsávcis pela doenca típica do povo brasileiro: o romantismo. A análisc histórica é impiedosa, car-regando nas tintas que däo cor ä tese, avesso do meufanismo que se seguiu ä Indepcndencia. A obsessäo dc dcťinir o caráter nacionál é uma constante que conhece ilustres avatares nos historiadores da Anligiiidade, quando postos cm contato com as civilizayöcs "bárbaras": o grego Heródoto viajando pelo Egito e o ro-mano Tácito pela Germania impressionaram-se com a disparidadc dc atitudes c hábitos encontrados; e, projetando as visöcs do mundo que trouxeram da propria cultura, mediterränea, formularam juizos dc valor oscilantcs entre a exalta^äo e o desprezo do estrangeiro. Os antropólogos chamaram etnocentris-mo a essa fatal distorcäo no modo de um povo julgar os outros e, cm torna-viagem, a si proprio. Ora, a questäo complica-se no caso dos parses coloniais que säo caracte-rizados de fora, pelo colonizador e pelo estrangeiro em gcral. A colônia é definida em funcäo dos padröes da Metropole: o que gera uma série dc pre-conceilos acerca da inteligencia, da vontade e dos sentimentos do nativo. O 376 prcconceito, pcla sua propria origem pré-racional, näo conhcce matizes. Es-trutura-se em torno cle necessidades básicas do preconceituoso. Quando conveio ao burgués europeu em luta contra o ancien regime, surgiram doutrinas liberais do bom selvagem, que serviram de arma para solapar os abusos da sociedade "antinatural" fundada no privilégio: é a fase pré-romantica da valoracäo do Lndio e das forcas primitivas, atitude que ideólogos e poetas brasileiros incor-poraram ao nacionalismo antiluso. Mas, já na 2a metade do século XIX, as poténcias colonizadoras, a Franca, a Inglaterra e a Alemanha, em plena ex-pansäo territorial pela Asia, Africa c, no piano econömico, pela America Latina, comegaram a "justificar", na esfera das doutrinas políticas, a missáo civiliza-dora do Ocidentc cm relacäo a povos... inferiores. Essa nova atitude näo tardou a ser assumida pelas elites dos "parses de missäo", formadas em contato com a Europa c, precisamente, com aquclas nacoes vanguardeiras. O otimismo ra-cista dos "arianos" criou condigöcs para o näo menos racista pessimismo dos mestizos. Um Capistrano, um Silvio Romero, um Euclides, um Olivcira Viana, uns com mais, outros com menos enfase, tinham por certa a "desvantagem" advinda da miscigenaeäo. Esse vai ser o cnfoque, um tanto rctardalário, de Paulo Prado. É bem verdade que o autor de Retrato do Brasil, cauleloso no uso das teses aria-nizantes, limitou-se a supor pelos efeitos a inferioridade nervosa dos mes-tigos a partir de algumas geragöcs: o que já 6 distanciar-se das tcorias drás-ticas de Gobineau e de Chamberlain sobre a dcsigualdadc intn'nseca das racas. Como a questäo 6 candente, o mclhor 6 citar na íntegra os passos mais assertivos: Todas as racas parecem (grifo meu) csscncialmcnlc iguais cm capacidade mental c adaptagäo ä civilizagäo. Nos centros primitivos da vida africana, o negro č um povo sadio, de iniciativa pessoal, de grande poder imaginative, organizador, labo-rioso. A sua inferioridade social, nas aglomeracöes humanas civilizadas, č motivada, sem dúvida, pelo menor desenvolvimento cultural c pcla falla de oportunidade para a revelacäo de atributos superiorcs. Difcrenyas quantitativ as c näo qualilativas, disse um sociólogo americano: o ainbiente, os caractercs anccslrais, determinando mais o procedimento do indivíduo do que a filiagäo racial. Afastada a questäo da dcsigualdadc, resta na transfonnacäo biológica dos ele-mentos čtnicos o problcma da mesticagem. Os americanos do Noite costumam dizer que Deus fez o bianco, que Deus fez o negro, mas que o diabo fez o mulato. É o ponto mais sensfvel do caso brasileiro. O que sc chama dc ariíuúzacäo do habitantc do Brasil 6 um fato de observacäo diária. Já com um oitavo dc sangue negro, a ap:irencia africana se apaga por completo: é o fenflmeno do passing dos Estados Unidos. E assim na cruza conlinua dc nossa vida, desde a čpoca colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-sc atč a falsa aparôncia de ariano puro. Emo logicamentc faliuido, que influéncia podc ter no futuro cssa mistura de racas? Com o indfgena a história confirmou a lei biológica da heterosis, em que o vigor iirtuido Ml é sobretudo notável nas primeiras geragöes. O mameluco foi a demonstragäo dem* verdade. Nele se completam admiravelmente — para a criagäo de um tipe nov3 — as profundas diferengas existentes nos dois elementos fusionados. A hislrtrU de Säo Paulo em que a amalgamagäo se fez intensamente, favorecida pelu m»« gregamento, é prova concludente das vantagens da mescla do branco com o ímlln, Hoje, entretanto, depois de desenrolarem geragöes e geragöes desse cruzamnim, o caboclo miserável — pálido epígono — é o descendente da espléndida forialnn do bandeirante mameluco. A mesticagem do branco e do africano ainda näo o*M definitivamente estudada. É uma incognita. Na Africa do Sul, Eugen Fist In ■ chegou a conclusöes interessantes: a hibridagäo entre boers e hotentotes crlou uma raca mista, antes uma mislura de racas, com os caracteristicos dos sc»» componcntes descnvolvendo-se nas mais variadas cambiantes. Tern no entaiiio um defeito persistente: falta de energia, levado ao exlremo de uma profunda indolöncia. No Brasil, näo temos ainda perspectiva suficiente para um jufzo im parcial. (...) C) mestigo brasileiro tem fomecido indubitavclmenle ä comunidade exemplarcs im-táveis de inteligöncia, de cultura, de valor moral. For outro lado, as populagöes ofercenu Uli Iraqueza lYsica, organismos läo indefesos contra a doenga e os vfcios, que é uniti intenogagäo natural indagar sc esse estado de coisas näo provém do intenso cmzameniD das ragas e sub-ragns. Na sua complcxidade o problcma estadunidense näo tem solugäu, dizem os cientistas americanos, a näo ser que sc recona ä estcrilizagäo do negro. Nit Brasil, sc há mal, ele está feito, inemediavelmentc: esperemos, na lentidäo do pro» ccsso cósmico, a deeifragäo do enigma com a serenidade dos experimentadores d. laboralório. Bastaräo 5 ou 6 gcragöes para estar conclufda a experiöncia (pp. 189-193 da 1* edigäo). A perplexidadc de Paulo Prado nascia do eritério dubio que ainda guiava a consciéncia cn'tica brasileira, em parte cncalhada nas "leis" positivistas da rac;a e do clima (de onde o peso excessivo dado ä mestigagem c ao trópico), mas, em parte, já aberta ä rcflcxäo dos fatores sociais e culturais. Na década de 30, mais moderna do que modernista, a consideraeäo da-queles Ultimos fatores iria assumir o devido lugar com o advento de pesquisas anlropológicas sistemáticas (3N): uma nova visäo do Brasil sairia dos ensaios de Artur Ramos, Roquette Pinto, Gilberto Freyre, Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, Fernando de Azcvedo. Pcrsistiria, no entanto, o intercssc de de-tectar as qualidades e os defeitos do hörnern brasileiro, ou seja, o caráter na- (3U) A perseguigäo que o nazi-fascismo empreendeu contra as minorias raciais ace-lerou os estudos de Antropológia física e cultural, que chegaram a inferfincias diame-tralmente opostas äs do aiianismo. Da mole de ensaios que o problcma suscitou, é de estrito dever ressaltai a obra por todos os tftulos soberba de Franz Boas (1858-1942). Citado esporadicamente por Alberto Tones, só veio a ser conhecido amplamente na dčcada de 30, gragas ä divulgagäo que das suas pesquisas fez Gilberto Freyre. 378 i umal, nogäo chcia de ciladas cnquanto projeta estereótipos e os maneja com os instrumentos de uma cnl'crrujada "psicologia dos povos" (3l2). Um caminho ainda näo batido por nossos estudiosos, mas que poderia lalvez corrigir os desvios passados, é o da pesquisa da "personalidade bäsica", proposto por Kardiner e Linton, cientistas atentos ä dinämica das interagöes enlre o grupo e a pessoa (The Individual and His Society, 1939). Mas näo cabe a este roteiro senäo observar a constäncia com que o ensaísmo social se lem dedicado ä abordagem psicológica do nosso povo; interesse que pertence lambém ao legado dos modernistas ä cultura de hoje. (312) V. a tese critica tie Dante Morcira Leite, O Caráter Nacionál Brasileiro, 4a ed., S. Paulo, Pioneira, 1983. 379 VIII TENDÉNCIAS CONTEMPORÄNEAS O Modernismo e o Brasil depois de 30 O termo contemporáneo é, por natureza, elástico e costuma trair a geragäo de quem o emprega. Por isso, é boa praxe dos historiadores justificar as datas com que balizam o tempo, frisando a importäncia dos eventos que a elas se achám ligadas. 1922, por exemplo, prcsta-se muito bcm ä pcriodizacäo literária: a Semana foi um acontecimcnto c uma declaragäo de f6 na arte moderna. Já o ano de 1930 cvoca menos significados literários prcmentes por causa do relevo social assumido pela Revolucäo de Outubro. Mas, tendo esse movimento naseido das conlradigóes da República Velha que ele pretendia supcrar, e, em parte, superou; e tendo suscilado cm todo o Brasil uma corrente de esperancas, oposicöes, programas c desenganos, vincou fundo a nossa literatura lancando-a a um estado adulto e moderno perlo do qual as palavras de ordern de 22 pa-recem ťogachos de adolescente. Somos hoje contemporäneos de uma realidade econömica, social, política e cultural que sc estruturou depois de 1930. A afirmacäo näo quer absoluta-mentc subestimar o papcl relevante da Semana e do periodo fecundo que se lhe seguiu: há um estilo de pensar c de eserever anterior e um outro posterior a Mario de Andradc, Oswald de Andradc e Manuel Bandeira. A poesia, a ficcäo, a crílica saíram inteiramente renovadas do Modernismo. Mario de Andradc, no balanco geral que foi a sua conferéncia "O Movimento Modernista", eserita cm 1942, viu bem a heranca que estc deixou: "o direito permanente ä pesquisa estélica; a atualizacäo da inteligéncia artística brasilcira; c a estabi-lizagäo de uma consciéncia eriadora nacionál". Mas, no mea culpa scvero com que fechou suas confissöcs, definiu o limite (historicamente fatal) do grupo: "Se tudo mudávamos em nos, uma coisa nos csquecemos de mudar: a atitude inleressada diante da vida conlcmporanea. (...) Viramos abstencionistas absté-mios c transcendentes. (...) Nos eramos os filhos finais dc uma civilizacäo que sc acabou, e é sabido que o cullivo delirante do prazer individua! represa as forcas dos homens sempře que uma idade morre." O experimentalismo estético dos melhores artistas de 22 fez-se quase sempře in abstracto, ou em funcäo das vivencias de um pequeno grupo, dividido entrc S. Paulo e Paris. Dař o viés "primitivista-tecnoerático" de uns c o "Ver-dcamarelismo" de outros refletir, ao menos na sua intencäo programática, a esquemas culturais europeus: art negre, a Escola de Paris, as idéias, ou as frases, de Spengler, Freud, Bergson, Sorel, Pareto, Papini e menores. O pro 383 ccsso de atualizacäo das ťontcs leva, quaiido leilo cm um clima agilado di< polémicas e manifestos, a potenciar o que a cibernčtica chama "entropia", iMti é, a uma perda de conteúdos semänticos na passagem do emissor para o rccepuj da informacäo. Este, faminto de novidade, näo digere bem as mensagens: iipn nha-as lacunosamente e, como age em situacäo de emergencia teorizadora, dl forma e enrijece os fragmentos recebidos. É o que os "antropófagos" fi/ciimi com Freud, já treslido pelos surrealistas; e os homens da Anta com as posicflcn mitico-nacionalistas dc Sorel, Pareto, Maurras. Mas a rcalidadc, que tern mais tempo, é mais forte, mais complexa c mah paciente que os acodados dcglutidorcs. As décadas dc 30 e de 40 vieram ensimii muitas coisas úteis aos nossos intclectuais. Por exemplo, que o tenenlisiim liberal e a politica gctuliana só cm parte aboliram o vclho mundo, pois coin puscram-se aos poucos com as oligarquias rcgionais, rcbatizando antigas v0 truturas partidárias, em hora accnasscm com lemas patriólicos ou populares pan» o crcsccntc operariado c as crcsccntcs classes mčdias. Que a "aristocracia" do café, palrocinadora da Scmana, täo atingida cm 29, iria convivcr muito bcin com a nova burgucsia industrial dos centros urbanos, deixando para trás como casos psicológicos os desfruladores literários da crisc. Enfim, que o peso dii tradigäo näo sc remove nem se abala com formulas mais ou menos anárquicas ncm com regrcssócs literárias ao Inconscicnlc, mas pela vivencia sofrida e lúcida das tensôes que com poem as estruturas malcriais c inorais do grupo en'i que sc vivc. Essa comprcensao viril dos vclhos c novos problcmas estaria rcscrvada aos cscritorcs que amadureceram depois dc 1930: Graciliano Ramos, José Lins do Rcgo, Carlos Drummond de Andradc... O Modernismo foi para cies uma porta abcrta: só que o caminho já era outro. E, ao lado desscs homens que sentiram alé a medu la o que Machiavclli chamaria a nossa veritá effettitale, houvc outros, voltados para as mcsmas fontes, mas ansiosos por ver o Brasil dar um salto qualitativo. Socialistas como Astro-jildo Pcrcira, Caio Prado Jr., Josué de Castro c Jorge Amado; católicos como Tristäo dc Ataidc, Jorge dc Lima, Olávio dc Faria, Liicio Cardoso e Murilo Mcndes, todos selaram com a sua espcranca, leiga ou erente, o ofício do cscritor, dando a esses anos a tônica da parlicipacao, aqucla "atitude intcrcssada diantc da vida contemporänca", que Mário dc Andrade recla-mava dos primciros modernistas. Enfim, o Estado Novo (1937-45) e a II Guerra exasperaram as tensôes idcoiógicas; c, entre os frutos maduros da sua inlrojccäo na conscicncia artística brasilcira conlam-sc obras-primas como A Rosa do Povo, dc Drummond dc Andradc, Poesia Liberdade, dc Murilo Mendcs, c as Memórias do Cárcere, dc Graciliano Ramos. 384 Dcpendéncia e superauto Rcconhecer o novo sistema cultural posterior a 30 näo resulta era cortar p linhas que articulam a sua literatura com o Modernismo. Significa apenas ver novas configuragöes históricas a exigirem novas experiéncias artísticas. Mas, se desviarmos o foco da atencäo da ruptura para as permanencias, ronstataremos o quanto ficou da linguagem reclaborada no decenio de 20. A Tlívida maior foi, e era de esperar que fosse, a da pocsia. Mario, Oswald c Bandeira tinham desmembrado de vez os mctros parnasianos c mostrado com cxcmplos vigorosos a fungäo do coloquial, do irönico, do prosaico na tessitura do verso. Um Drummond, um Murilo, um Jorge dc Lima, embora cada vez mais empenhados em supcrar a dispcrsao c a gratuidade lúdica daqueles, foram os legitimos continuadorcs do seu rotciro de liberagäo eslčtica. E, mesmo a lírica essential, antipitorcsca e antiprosaica, dc Cecilia Mcirclcs, Augusto Fre-derico Schmidt, Vinicius de Morais e Henriqucta Lisboa, próxima do nco-simbolismo europcu, só foi possivel porquc tinha havido uma abcrtura a todas as experiéncias modcrnas no Brasil pós-22. A prosa dc fiegäo encaminhada para o "rcalismo bruto" dc Jorge Amado, de Jose Lins do Rego, de Érico Vcríssimo c, cm parte, dc Graciliano Ramos, beneficiou-sc amplamcnte da "descida" ä linguagem oral, aos brašileirismos e regionalismos Ičxicos e sintáticos, que a prosa modernista tinha preparado. E até mesmo cm dirccoes que parecem espiritualmcnte mais afasladas de 22 (o romance intimista dc Otávio de Faria, Lucio Cardoso, Cornélio Pena), sente-se o dcsrccalquc psicológico "freudiano-surrealista" ou "freudiano-expressionista" que também chegou até nós com as águas do Modernismo. Em suma, a melhor posigäo em face da história cultural é, sempře, a da análise dialética. Näo é nccessário forgar o sentido das dependéncias: bastaria um sumário levaníamcnto cstilřstico para apontá-las profusamente; nem encarecer a extensäo e a profundidade das diferengas: estäo aí as obras que de 30 a 40 e a 50 mostram ä saciedade que novas angústias e novos projetos enformavam o artista brasilciro e o obrigavam a definir-se na trama do mundo contemporäneo. Dois moment os Näo é fäcil separar com rigidez os momentos internos do periodo que vein dc 1930 até nossos dias. Poclas, narradores e ensaístas que estrearam em torno desse divisor de águas continuaram a eserever até hoje, dando äs vezeš exemplo de admirável capacidade de renovagäo. Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mcndcs, Joaquim Cardozo, Vinicius dc Morais, Marques Rebelo, Jorge Amado, Érico Vcríssimo, Otávio de Faria, Jose Geraldo Vieira, Tristáo de Atařdc, Gilberte) Frcyrc c Augusto Meyer, alčm de outros falecidos há pouco (Cecilia Mci- 189 reles, Lucio Cardoso, Cornélio Pena, Augusto Frederico Schmidt), sao v sc ň tores do nosso tempo; e alguns destes ainda sabem responder äs inquietacfcs du leitor jovem e exigente ä procura de uma palavra carregada de humus modemu e, ao mesmo tempo, capaz de transmitir alta informacäo estética (*). No cnlanto, rumos novos foram-se delineando depois da Guerra de Inl sorte que, a esta altura, já se percebem, pelo menos, dois momentos hislórí co-culturais no interior dcsscs quarenta anos de vida mental brasileira. Entrc 1930 e 1945/50, grosso modo, o panorama literário apresentava, em primciro piano, a ficcáo regionalista, o ensaísmo social e o aprofundamento do Urica moderna no seu rilmo ose il ante entrc o fechamento e a abertura do e u ň scx;icdadc c ä nalureza (Drummond, Murilo, Jorge de Lima, Vinícius, Schmidt. Henriqueta Lisboa, Cecília Mcirelcs, Emílio Moura...). Afirmando-se lenta, mas seguramente, vinha o romance introspectivo, raro em nossas lelras desde Machado c Raul Pompéia (Otávio de Faria, Lucio Cardoso, Cornčlio Pena, Jose Geraldo Vieira, Cyro dos Anjos...): lodos, hoje, "clássicos" da literatúra contemporänea. lanto č verdade que j<1 conhecem diseipulos c epígonos. E já estäo situados quando näo analisados atč pela erítica universitária. A sua paisagem nos č familiar: o Nordcslc dccadcnlc, as agruras das classes médias no comego da fasc urbanizadora, os conflitos internos da burguesia entrc provinciana c cosmopolila (fontes da prosa de ficgäo). Para a poesia, a fasc 30/50 foi universalizante, metafísica, hermética, ecoando as principals vozes da "poesia pura" europčia de entre-guerras: Lorca, Rilke, Valčry, Eliot, Ungarctti, Machado, Pcssoa... A partir de 1950/55, entram a dominar o nosso espaco mental o terna c a ideológia do desenvolvimento (3I3). O nacionalismo, que antes da Guerra e por motivos conjunturais conotara a militäncia dc Dircita, passa a bandeira csquerdizante; e do papcl subsidiário a que devcria limitar-sc (para näo rcsvalar no mito da nacäo, borrando assim critčrios mais objetivos), acaba virando ful-cro dc todo urn pensamcnto social C14). Rcnova-sc, simultaneamcnte, o gosto (*) A rctlacäo desta História Contisa data tie 1968-69. (313) () leitor deve ter presente o process o sociopolflico nacionál desde a morte de Getúlio Vargas (1954) c o qüinqüönio Juscclino Kubilschek alé nossos dias (V. Brasil em Perspective S. Paulo, Dif. Eur. do Livro, 1968, pp. 317-415; Oclavio Ianni, Indus-triattzaeäo e Desenvolvimento Social no Brasil, Rio, Civ. Bras., 1963; Cclso Furtado, Dialética do Desenvolvimento, Rio, Fundo dc Cultura, 1964). (314) n;i verdade, os idcólogos do Nacionalismo, ao menos no periodo que ora nos ocupa, ncm semprc dcram ao conceito o mesmo alcance. O mais complexo de todos, Álvaro Vieira Pinto, v6 a nayäo como uma realidade histórica de capital importáncia, mas integrável e superável numa organizaeäo futura de lipo socialista (Consciéncia e Realidade Nacionál, Rio, Institutu Superior de Estudos Brasileiros, 1960). Outros teó-ricos: Hčlio Jaguaribc, O Nacionalismo na Atualidade Brasileira, Rio, 1956; e Desenvolvimento Ecotwmico e Desenvolvimento Politico, Rio, Fundo de Cultura, 1961; Roland 386 da arte regional e popular, Icnomcno paralelo a ccrlas idéias-forca dos romän-licos e dos moderní stas que no afä de redescobrirem o Brasil, também se ha-viam dado ä pesquisa e ao tratamento estétieo do folclore; agora, porém, gracas ao novo contexto sociopolitico, reserva-se toda atencäo ao potenciál revolu-cionario da cultura popular. Os resultados artísticos sab desiguais, mas ficaram alguns excelentes poemas recolhidos nas series de Violäo de Rua (3 vols.), alguns textos dramáticos de Ariano Suassuna, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Dias Gomes, roteiros filmicos e algumas letras épicas de música popular. Em contrapartida, a "guerra fria" c a condicäo atömica, que desde 1945 dividem o mundo cm sistemas c, já agora, subsistemas hostíš, foram introje-tadas pelas classes conservadoras que empreenderam uma reaeäo sistemática contra as areas politicas e culturais que encarnavam a linha nacional-populista. Na hora da provaeäo, o pensamento dialético procura desfazer-se dos equivocos que o confundiam na fasc anterior c voltar ä análisc das suas fontes teóricas, Em caminho paralelo, progridc o surlo da mais rcccntc metodologia oci-denlal: o estruturalismo. Em conexäo com esse metodo c, näo raro, com os tragos teenicistas que dele receberam os seus divulgadores, aparecem, a partir de 55, a poesia concreta, o novo romance, pari passu com a aura mítica general izada cm torno dos meios de comunicaeäo de massa e certo difuso feti-chismo da máquina, alias comprccnsi'vcl sc alentarmos para a cxplosäb industrial dos anos Scsscnta nos Estados Unidos c na Europa, centros de decisäo para as elites sul-amcricanas. O áspero diálogo entrc os idcólogos do Tempo e os analislas do Espaco será, talvcz, o fato cultural mais imporlante denossos dias (*). A literatura tem-se mostrado sensível as exigencias íbrmalizantes e técnicas que, por assim dizer, estáb no ar. Um formalismo pálido, entendido como res-pcilo ao melro exato c fuga ä banalidade nos temas c nas palavras, já se de-lincava com os poctas da chamada "geraeäb de 45", onde se tem incluído, Corbisier, O Problema da Cultura Brasileira, Rio, ISEB, I960; Candido Mendes de Almeida, Nacionalismo e Desenvolvimento, Rio, Inslituto Brasilciro dc Estudos Afro-Asi&ticos, 1963, Crftica ao nacionalismo como bandeira idcol6gica encontra-se em Guer-rciro Ramos, Miio e Verdade da Revoluqdo Brasileira, Rio, Zahar, 1963. Nao se deve omitir aqui o papcl do pensamcnto catdlico brasilciro que, integrado na reforma de men-talidade que atingc loda a Igrcja desde Jo5o XXIII, tern dado sdlidas contribuigoes ^ nossa cultura como o mclodo de allabelizagiU) dinAmica de Paulo Frcire e as formulacSes do Pc. Henrique Vaz, em que sc patentcia uma intensa lcitura dc Hegel. (*) N.B. Texto cscrito cm 1968-69. Deconidos dcz anos, pode-se dizer que pouco resta da tendfincia estruturalisla al6m dc alguns esqucmas escolares de leitura. Para con-rrasta'-la cobiar;un forga duas vcrlentes (cntre si opostas): o marxismo e a contracultura \Nota de 1979]. 387 entre outros, Péricles Eugénio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Jose Paulo Moreira da Fonseca, Geir Campos, Mauro Motta, Ledo Ivo c Joao Cabral de Melo Neto. Coube ao ultimo a tarefa e o mérito de ter superado on tragos parnasiano-simbolistas que näo raro amenizavam a forca inventiva dos demais, e ter atingido, pclo rigor semäntico e pela tensäo participante, o lugar central que ora ocupa na poesia brasilcira. Na fiegäo (315), o grande inovadoi do periodo foi Joäo Guimaräcs Rosa, artista de primcira plana no cenário das letras modernas: cxperimcntador radical, näo ignorou, porém, as fontes vivas das linguagens näo-lctradas: ao contrario, soubc cxplorá-las e pô-las a servigo de uma prosa complcxa cm que o natural, o infantil e o míslico assumem uma dimensáo ontológica que transfigura os materials de base. Dos movimentos dc vanguarda, o Concrctismo e a Praxis, se dirá a seu tempo no topic o dedicado ä poesia. As pontas de langa (Joäo Cabral, Guimaräcs Rosa, vanguarda experimental) näo csläo isoladas: inserem-sc num quadro rico c vário que alesta a vitalidade da literatura brašileira atual. Se o veio nco-rcalista da prosa regional parece ter-se exaurido no decenio dc 50 (salvo cm obras dc eseritores consagrados ou cm cslréias lardias), continua viva a fiegäo inlimisla que já dera mostras dc peso nos anos de 30 c 40. Eseritores de invulgar penctragáo psicológica, como Lygia Fagundcs Teiles, Antonio Olavo Pcrcira, Aníbal Machado, José Cäiidido dc Carvalho, Fernando Sabino, Josuč Montello, Dalton Trcvisan, Au-tran Dourado, Ol to Lara Rcscndc, Adonias Filho, Ricardo Ramos, Carlos Heitor Cony c Dionólio Machado tem escavado os conflitos do hörnern cm sociedade, cobrindo com sens contos c romanccs-dc-personagcm a gama dc sentimentos que a vida moderna suscita no ämago da pessoa. E o ľluxo psíquico tem sido trabalhado cm (crmos dc pesquisa no univcrso da linguagem na prosa rcalmcnte nova dc Clarice Lispcctor, Maria Alice Barroso, Gcraldo Fcrraz, Louzada Filho e Osman Lins, que percorrem o caminho da experiencia formal. Enfim, caráler proprio da mclhor literatura dc pos-guerra 6 a conscicntc in-lerpcnctjagäo dc pianos (lírico, narrativo, dramático, erítico) na busca de uma "eseritura" geral c onicomprcensiva, que possa espelhar o pluralismo da vida moderna; caráter — convém lembrar — que estava implícito na rcvolugao modernista. A FicgÁo Os deecnios dc 30 c de 40 seráo Icmbrados como "a era do romance bra-sileiro". E näo só da fiegäo regionalista, que deu os noiiics já clássicos de (31S) V. o tópico sobrc a fiegäo. 388 (íraciliano, Lins do Rego, Jorge Amado, Érico Veríssimo; mas também da prosa cosmopolita de Josč Gcraldo Vieira, e das páginas de sondagem psicológica e moral de Lucio Cardoso, Cornélio Pena, Otávio de Faria e Cyro dos Anjos. Antes dos modernos, Lima Barreto e Graca Aranha tinham sido os Ultimos narradores de valor a dinamizar a heranca realista do século XIX. Com o ad-vcnto da prosa revolucionária do grupo de 22 (Macunaíma, Memórias Senti-mentais de Joao Miramar, Brás, Bexiga e Barra Funda), abriu-se caminho para formas mais complexas de ler e dc narrar o cotidiano. Houve, sobretudo, uma ruptura com ccrta psicologia convcncional que mascarava a rclacäo do íiccionista com o mundo c com scu proprio eu. O Modcmismo c, num piano histórico mais geral, os abalos que sofreu a vida brasilcira cm torno de 1930 (a erise cafceira, a Rcvolucäo, o acclcrado declínio do Nordcstc, as fendas nas estruturas locais) condicionaram novos estilos ficcionais marcados pel a rudeza, pela caplacäo dircla dos fatos, cnlim por uma retomada do naturalismo, baslante funcional no piano da narra^äo-documento que entäo prevaleceria. Mas, sendo o realismo absoluta antes um modeln ingenuo c um limite da velha conccpcäo mimčtica dc arte que uma norma efetiva da cria^ao literária, também esse romance novo prccisou passar pelo crivo de intcrprctacocs da vida c da História para conscguir dar um sentido aos seus enrcdos c äs suas personagens. Assim, ao realismo "cicnlffico" e "impcssoal" do século XIX prefcriram os nossos romancistas de 30 uma visäo crítica das relacöes sociais. Esta poderá aprcseniar-sc menos áspera c mais acomodada äs tradicöcs do mcio cm Jose Américo de Alineida, cm Érico Veríssimo e cm certo Jose Lins do Rego, mas daria ä obra de Graciliano Ramos a grandeza severa dc um testemunho c dc um julgamento. No caso do romance psicológico, cairiam as mascaras mundanas que em-petecavam as hislórias medíocrcs do pequeno realismo belle époque (de Afrä-nio Pcixolo ou dc Coclho Ncto, por exemplo). O renovado convitc ä intros-pcccäo ťar-sc-ia com o esleio da Psicanálise afetada muita vez pelas angústias religiosas dos novos eriadores (Lucio Cardoso, Otávio de Faria, Cornélio Pena, Jorge dc Lima). Socialismo, ircudismo, catolicismo existencial: eis as chaves que serviram para a deeifragäo do hörnern cm sociedade e sustentariam ideologicamentc o romance empenhado desses anos fceundos para a prosa narrativa. De resto, näo estávamos sós. Passado o vendaval dc ismos que sopraram a revolugäo da arte moderna, tornou-se comum cm toda parte uma fícgao aberta ä vida do uomo qualunque, cujo coniportamento come^ou a parccer bem mais fascinantc que o dos estetas biases do Dccadcntismo. Difunde-se o gosto da análisc psíquica, da notaeäo moral, já agora radicada no mal-estar que pesava sobrc o mundo dc entre-guerras. Na década dc 30, os romances de Dos Passos, de Hemingway, de Caldwell, de Faulkner, de Steinbeck, de Lawrence, de Mal-raux, de Moravia, de Vittorini, de Corrado Alvaro, de Céline, deram exemplos 389 de um realismo psicolögico "bruto" (*) como t6cnica ajustada a um tempo cm que o hörnern se dissolve na massa: säo os romances contemporäneos do In cismo, do racismo, do stalinismo, do "new dear. Entre nös, verifica-se o nies, mo: 6 1er Graciliano, Jorge Amado, Erico Ven'ssimo, Marques Rebelo. Ao lado das reacöes politicas, stricto sensu, hä um retorno das consci£ncias religiosas äs suas fontes pr6 e anliburguesas. Escritores cristäos como Bernanos. Saint-Exup6ry, Julien Green, Evelyn Waugh e Graham Greene nortearam a criaeäo das personagens por uma linha de conflito entre o "mundo" e a grac» divina. Do realismo subjelivo que essa postura em geral propicia deram entäo excmplos os romances dos jä citados Otävio de Faria, Lucio Cardoso, Cornölio Pena c Jorge de Lima. De um modo sumärio, pode-sc dizer que o problcma do engajamento, qual-quer que fosse o valor tornado como absolulo pelo intelcctual partieipante, foi a tönica dos romancistas que chegaram ä idade adulta entre 30 c 40. Para eles vale a fräse de Camus: "O romance 6, cm primeiro lugar, um exercicio da intcligencia a servico de uma sensibilidadc nostälgica ou rcvoltada." As trilhas do romance: uma hi pot ese de trabalho A costumeira triagem por tendencias em torno dos tipos romance social-regional! romance psicológico ajuda só até ecrto ponto o historiador literário; passado esse limite didático ve-se que, além de ser precária cm si mesma (pois regionais c psicológicas säo obras-primas como Säo Bernardo c Fogo Mortö), acaba näo dando conta das difereneas intcrnas que separam os principals romancistas situados em uma mesma ťaixa. Para apanhar essas difcrcncas talvez de mclhor fruto, como hipótese de trabalho, a formulacäo que Lucicn Goldmann propos para a genese da obra narrativa no seu Pour une sociologie du roman (3lť)), Apoiando-sc em distingôes de Georgy Lukács (Die Theorie des Romans) c de René Girard (Mensonge romantique et verde romanesque), o pensador francos tentou uma abordagem genético-estrutural do romance moderno. O seu dado iniciál é a tensáo entre o eseritor e a sociedade. Prcssupoe Goldmann — e com cle toda a erítica (*) As aspas sao aqui essenciais. O caráter "bruto" ou "brutal" desse novo realismo do sčculo XX corresponde ao piano dos efeitos que a sua prosa visa a produzir no leitor: é um romance que analisa, agridc, protesta. Para atingir esse alvo, porém, foi nccessária toda uma rcorganizaeao da linguagem narrativa, o que dcu ao realismo de urn Faulkner, de urn Celine ou de urn Graciliano Ramos uma fisionomia estética profundamente original. (316) L. Goldmann, Four une sociologie du roman, Paris, Gallimard, 1964. Ho tra-ducao brasileira, Sociologia do Romance, Rio, Paz e Terra, 1967. 390 dialótica — a existencia de liomologias entre a estrutura da obra literária c a cstnilura social, c, mcsmo, grupal, em que se insere o seu autor. Em face da sociedade burguesa, fundo comum da literatura ocidental nos Ultimos dois séculos, o romancista tende a engendrar a figura do "herói pro-blemático", em tensäo com as estruturas "degradadas" vigentes, isto é, estru-turas incapazes de atuar os valores que a mesma sociedade prega: liberdadc, justica, amor... Semprc conforme Goldmann, a tensäo dos protagonistas näo transpöe o limiar da ruptúra absoluta: caso o fizesse, o género romance deixaria de existir, dando lugar ä tragédia ou ä lírica. Há, portanto, urna oposicäo ego!sociedade que funda a forma romanesca (3J7) e a mantém enquanto tal. Toda urna lipologia do romance deriva da formulacäo acima: (1) o herói podc emprcender a busca dc valores pessoais que subordincm a si a hostilidade do meio {Dom Quixote', Julien Sorcl, dc O Vermel ho e o Negro de Stendhal); (2) o herói podc fechar-sc na memoria ou na análisc dos próprios estados de alma (cm A Educacäo Sentimental dc Flaubert); (3) cnfim, cle pode autolimi-tar-sc c "aprender a viver" com madura virilidadc no mundo difícil aonde foi lane ado ("romances de aprendizado"), como o Wilhelm Meister de Goethe). Sc da parle do herói säo várias as manciras dc aluar a dialética de vinculo c oposicäo ao meio, no romancista a conscicncia que projeta as personagens torna a forma da ironia, modo ambíguo dc propor c, ao mesmo tempo, trans-cender o ponto de vista do herói. Tcmos prova dessa asscrcäo. Se fizermos uma sondagem no romance brasilciro, rcconhcccremos uma conscicncia irônica mais aguda prccisamcntc nos autorcs maiorcs: o Alcncar urbano (de Lucíola, sobrctudo), Machado dc Assis, Aluřsio Azcvedo nö Cortico, Oliveira Paiva, Raul Pompéia, Lima Barrclo. Há momcntos dc quasc idcntificacäo entre o autor c o protagonista nas páginas americanas c sertanejas dc Alcncar, mantendo-se porém, c cm pleno vigor, o dissídio do herói com o grupo, provindo, no caso, da oposicäo entre o "hörnern natural" c a sociedade, peculiar ao Romantisme Quando näo há ncnhuma oposicäo, quando nem scqucr aflora a consciéncia erítica, o nívcl é o de subliteratura (Tcixcira c Sousa, o pior Maccdo, o Aluísio folhetinesco...). O csqucma de Goldmann, como todo csqucma, cslá sujcito a rcvisôes, mas lem a vantagem de atentar para um dado existential primário (tensäo), que sc apresenta como relacionamento do autor com o mundo objetivo, de que depende, e com o mundo cstético, que Ihc é dado construir. Além disso, a mcdiayäo entre o psicossocial c o artíslico näo sc faz sempre do mesmo (3I7) Goldrmtnn trabalha denlro dos limites do gencro Cpico-narrativo tal como se tern apresentado na Idadc Modema; as suas anatiscs devcm portanto pressupor distingocs historicamcnte atuadas c validas dentro dc um delerminado cspaco de tempo. Elas nao devem assumir-se como dogmas, nem como piofccias, o que impediria a compreensao dc formas literanas futuras independentes dos modclos narratives que se conheccm hoje. 391 modo, mas dentro de um dinamismo espiritual capaz dc conquistar um y.ing de liberdade superior ao da massa dos atos humanos näo-estéticos. O re e u nhecimento dessa faixa "gratuita" da invencäo literária permite urna ampla mal gem de aproximacôes específicas aos textos: o que resgata o determinismo do primeiro passo. Seja como for, näo há ciéncia sem um mínimo de relacOvu neccssárias: e o que Goldmann propoe, em ultima análise, é urna hipótese c.\ plicativa do romance moderna, na sua relacäo com a totalidade social. Nessa perspectiva, poderíamos distribuir o romance brasileiro modernu, de 30 para cá, cm, pclo mcnos, quatro tendencias, segundo o grau crescentr de tensäo cntrc o "herói" c o seu mundo: a) romances de tensäo minima. Há conflilo, m as este configura-se em tcr mos dc oposigäo verbal, sentimental quando muito: as personagens näo se des-tacam visccralmcntc da cstrutura e tla paisagcm que as condicionam. Exemplos, as hislórias populistas dc Jorge Amado, os romances ou crônicas da classe média de Érico Vcríssimo c Marques Rcbclo, c muilo do nco-regionalismo documental mais rcccntc (318); b) romances de tensäo crítica. O herói opôc-sc c rcsislc agonicamente äs pressôes da natureza c do mcio social, formule ou näo cm idcologias explícitas, o seu mal-cstar permancnlc. Exemplos, obras maduras dc Josč Lins do Rego (Usiná, Fogo Morto) c lodo Graciliano Ramos; c) romances de tensäo interior izada. O herói näo sc dispôc a cnfrentar a antinomia cu/mundo pela acäo: cvadc-se, subjetivando o conflilo. Exemplos, os romances psicológicos cm suas várias modalidades (memorialismo, intimis-mo, auto-análisc.) dc Olávio dc Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Lygia Fagundcs Telies, Osman Lins...; d) romances de tensäo transfigurada. O herói proeura ultrapassar o conflitej que o conslitui cxislcncialmentc pela Iransmutacäo mŕlica ou melafísica da rea-lidadc. Exemplos, as cxpcricncias radicais dc Guimaräcs Rosa c Clarice Lis-pector. O conflilo, assim "resolvido", lorga os limites do genero romance e toca a poesia c a tragédia. Existcm areas fronleiriyas denlro cla produgäo dc um mesmo cscrilor: José Lins do Rcgo soubc fazcr obra dc alta tensäo psicossocial ao plasmar os ca-racteres centrais dc Fogo Morto, mas será típico exemplo do cronista regional cm Menino de Engenho, Graciliano introjetou o seu näo ä miséria do cotidiímo cm Angústia depois de ter eserilo o que chamamos romance dc tensäo crítica. Enfim, a passagem do puro psicológico ao experimental é notória cm Clarice Lispector c, menos radicalmente, em contislas e romancistas cuja obra ainda cstá cm progresso: Autran Dourado, Osman Lins, Maria Alice Barroso... (3I8) Aqui, como nas exempli!icagôcs seguinles, näo prclcndi ser exaustivo; apenas indiquei au tores ou obras capazes dc iluslrar as tendencias proposlas. 392 O esqucma íoi consliuído cm torno de uma só variávcl: o herói, ou, mais prccisamente, o anti-herói romanesco. Mas a cada um dos tipos de romance cnunciados corrcspondem lambém modos diversos de captar o ambiente e de propor a agáo. Assim, nos romances de tensäo minima, há um aberto apelo äs coordenadas cspaciais e históricas e, näo raro, um alto consumo de cor local e de fatos de crönica; as acöes säo situadas c datadas, como na reportagem ou no documentary, generös que lhe estäo mais próximos; quanto ao entrecho, o cuidado com o verossímil leva a escrúpulos nco-rcalistas que se percebem também na reprodufäo freqüente coloquial de mistura com a literária. Nos romances em que a tensäo atingiu ao nível da crítica, os fatos assumem significaeäo menos "ingčnua" c servem para revelar as graves lesöes que a vida em sociedade produz no lecido da pessoa humana: logram por isso al-can$ar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda. Há menor proliferaeäo de tipos sceundários c pitorcscos: as figuras säo traladas cm seu nexo dinämico com a paisagem c a rcaüdadc sociocconömica (Vidas Secas, Säo Bernardo, de Graciliano Ramos), c 6 dessa rclacao que nasce o enredo. Passa-sc do "lipo*' a expressäo; e, embora sem intimismo, talha-se o caráter do protagonista. Outra ainda é a constelacäo que se dá na prosa subjetivizante. Subindo ao primciro piano os conteúdos da conscicncia nos seus vários momenlos de memoria, fantasia ou reflexao, esbatem-sc os contornos do ambiente, que passa a atmosféra', e dcsloca-sc o cixo da trama do tempo "objetivo" ou cronológico para a duracáo psíquica do sujcilo. E sob as sugcstócs de Proust, de Faulkner, de Kathcrine Mansfield, de Mauriac, de Julien Green, de Virginia Woolf, os romancistas c contistas que trabalham a sua propria materia psicológica tendem a privilegiar a tčenica de narrar cm primcira pessoa. Há, naturalmcntc, faixas diversas nessc rcino amplo da l'iccäo moderna: o romance cscrito ä luz meridiana da análisc, como Abdias, de Cyro dos Anjos, ou O Lado Direito, de Otto Lara Rcscnde, näo 6 o romance noturno e sub-terränco de Lucio Cardoso da Crönica da Casa Assassinada, nein o romance fci(o de sombra e indcfinicäo de Cornólio Pcna c de Adonias Filho. Enfim, lécnicas diferentes de composicäo c de cslilo mat i/am a prosa psicologizantc, que pode aprcscnlar-se partida c inontada em flashes, como nas páginas urbanas de Jose Gcraldo Vieira; empostada nos ritmos da observa^äo e da memoria (contos de Lygia Fagundcs Teiles, romances de Josuó Montello, de Antonio Olavo Pcrcira...); ou ainda pode tocar cxpcricncias novas de monólogo interior, da "cscola de olhar", como se dá nas páginas mais ousadas de Geraldo Fcrraz, Samuel Rawct, Autran Dourado, Maria Alice Barroso, Louzada Filho, Osman Lins... Uma abordagem que cxtraíssc os scus parämetros de um sistema fechado como a Psicanálise poderia falar ainda em romances do ego (memorialises, 393 analíticos) e romances do id (baseados cm sondagcns oniricas, rcgressöcs, sun bolizacöes...), distincäo que se aproxima da de Carl Jung que, em 0 Homrtn Moderno em Busca de uma Alma, estrema um topo de literatura simplcsmt-uui psicológica de outro, o da literatura visionária. Em ambos os casos, porém, trata-se de um piano ficcional que configura a cisäo homem/mundo em termoi de re torno ä esfera do sujeito. Enfim, pela quarta possibilidade entra-se no círculo da invengäo mitopoc tica, que tende a romper com a entidade tipológica "romance" superando-a no tecido da linguagem e da escritura, isto é, no nřvel da propria matéria da criacnn literária. A experiencia estética de Guimaráes Rosa e, em parte, a de Clarice Lispector, entendem renovar por dentro o ato de eserever ficcäo. Diferem diiN trés tendéncias anteriores enquanto cstas situam o processo literário antes ml transposigäo da realidade social c psíquica do que na construgäo de urna outra rcalidade. É claro que esta supra-rcalidade näo sc comprcende senäo como 1 alquimia dos minérios extraídos das mesmas fontes que serviram aos demais narradorcs: as da história coletiva, no caso de Guimaráes Rosa; as da história individual, no caso de Clarice Lispector. Simplesmente, ncstes criadores há uma fortíssima vontadc-dc-estilo que os impele ä produeäo de objetos de lin* guagem a que buscam dar a maior autonómia possível; nos mestres regiona-listas ou intimistas, a independencia do fato estético será antes um efeito de uma feliz disposicäo inventiva do que uma escolha consciente, vigilante. No continuum inventár io-invengäo, que cobre as várias possibilidades do ato estético, podc-se dizer com seguranca que a diretriz mais moderna é a quo se inclina para o segundo momento; a que privilegia o aspecto construtivo da linguagem como o mais apto a significar o universo de combinacôes em que a ciencia c a técnica imergiram o hörnern contcmporänco. Dcsde Joyce tem-se rcnovado a eslrutura do romance, fundindo-se a tríade pcrsonagcm-acäo-am-biente na escritura ficcional cujos fatores combinávcis passam a ser abstraídos näo mais diretamenle da matéria bruta, pré-artística, mas dos nřvcis já literários (monólogo, diálogo, narrayäo...) e, ainda mais radicalmente, das unidades lin-guísticas (sintagma, monema, fonema...). Essa direcäo, que tende a compor o fcnômcno literário a partir dos materiais da linguagem, e apenas da linguagem, tem o mesmo significado histórico do abstracionismo, que constrói o quadro com entes geométricos, ou da música conereta, que trabalha a partir dos ruřdos e dos sons tais como a Física os reconhecc. Afim a essas opcöcs é o estrutu-ralismo cnquanlo metodo dc pensar formalizantc. E afins Ihcs säo todas as correntes de cultura c de moda que preferem deter-se nos códigos c nos sinais em si mesmos a aprofundar os motivos e o sentido ideológico da mensagem. Na digressäo acima deve-se, porém, levar cm conta o descompasso que sub-siste entre os textos de um Guimaráes Rosa, por exemplo, nos quais se discerne um forte empenho lírico-metafísico, c a leitura redutora que deles faz a crítica estrutural. A conscičncia desse descompasso entrc poesia e poetka näo invalida, em verdade, nem as abordagens deseritivas daqucla crítica nem as motivacôes transparentes do eseritor; apenas evita injusticas a umas e a outras. 394 Finalmente: o quadro pressupöe que a literatura escrita de 1930 para cä lormc um todo cultural vivo e interligado, näo obstante as fraturas dc po6tica ocorridas depois da II Guerra. Dal ser precoce dar como passados e ultrapas-sados o romance social e o intimista dos anos de 30 e de 40; de resto, ambos lern sabido refazer-se paralelamente äs experiencias dc vanguarda. AUTORES E OBRAS José Américo de Almeida O romance de estréia dc José Américo (319), A Bagaceira (1928), passou a marco da literatura social nordeslina. Creio quc isso se deva näo tanto aos seus méritos intrřnsccos quanto por ter definido uma direcäo formal (realista) e um veio temático: a vida nos engenhos, a seca, o retirante, o jagunco. Como experiéncia de arte, A Bagaceira näo parcce superar o nível dc ex-pressividadc que já fora conquistado pelos prosadores nordestinos quc esereveram sob o signo do Naturalismo: Manuel de Olivcira Paiva, Domingos Olímpio, Ro-dolfo Teofilo, Lindolfo Rochá. Até pelo contrario, a alta dose de pitoresco e čerta enfatuacäo dos tracos sentimentais no cortc das personagens empana o que poderia ter sido lřmpida e seca mimesc de uma situacäo exemplár: o encontro dc uma retirante com o "sinhozinho" bacharcl, c a dištancia psicológica que estrema este do pai, o patriarca do engenho, que acaba por tomar-lhc a jovem. De qualquer modo, A Bagaceira, eserito nos fins da década dc 20, momento cm quc o Modcrnismo comecava a tomar no Nordestc uma coloraeäo original, oferecia clementos quc iriam ficar no melhor romance da década seguinte: um tratamento mais coerente da linguagem coloquial, tracos impressionistas na técnica da dcscricäo c, no nível dos significados, uma atitudc rcivindicatória quc o clima de decadencia da rcgiäo propiciava. O romance, saudado pelo principál crítico da época, Tristäo dc Ataídc, vinha também ao encontro dos novos estudos sociais quc, sob a inspiraeäo de Gilberto Freyre, comegaram a assumir feicäo mais sistemática a partir do Congrcsso Regionalista do Recife, em 1926. Houvc, pois, uma convergencia de motivos internos, mas sobretudo externos, que deram ä obra o prcstígio dc baliza dc que até hoje desfruta na historiografia literária brasilcira. (3l9) José Américo d e Almeida (Areia, Paraŕba, 1887). Obra de ficgäo: A Bagaceira, 1928; O Boqueiräo, 1935; Coiteiros, 1935. Consultar: Tristäo de Ataíde, Estudos, 3* série, 1" parte, Rio, A Ordern, 1930; Nestor Vítor, Os de Hoje, S. Paulo, Cultura Moderna, 1938; Olívio Montenegro, O Romance Brasileiro, Rio, José Olympio, 1938; Wilson Martins, O Modernismo, cit:, Adonias Filho, O Romance Brasileiro de 30, Rio, Bloch, 1969. 395 Raquel de Queiros Na esteira do regionalismo, Raquel de Queir6s (32°) compds dois romance*h de ambientacao cearense, O Quinze e Jodo Miguel. Em ambos releva nolar uma prosa enxuta e viva que seria depois tao estimcivel na cronista Raquel do Queir6s. Confrontados com A Bagaceira, esses livros podem dizer-se main pr6ximos do ideal neo-realista que presidiria a narrativa social do Nordeslc. Os pcrfodos sao, em gcral, menos "literarios", breves, colados a transcrigao dos atos c dos acontecimenlos. E o di&ogo 6 corrente, lembrando as vezes a novelfstica popular que, mais tarde, atrairia a cscritora ao passar do romance para o teatro dc rafzes rcgionais c folcl6ricas (Lampido, A Beata Maria do Egito). O tcrceiro romance de Raquel de Queir&s, Caminho de Pedras, 6 cons cicntcmcnte politico: a sua rcdacao, cm 36, coincide com o exacerbar-se das correntes idco!6gicas no Brasil a beira do Estado-Novo: comunismo (stalinista; irotzkista: esla a cor da romancista na cpoca) c intcgralismo, O que nao significa que a obra sc possa incluir no que chamci, paginas atra's, de romance de tensao crftica: a autora passa da cronica dc um grupo sindical na morna Fortaleza da Cpoca a exploracao sentimental dc um caso dc amor dc um par de pequena classc m6dia afclado por ideais de esquerda. E um romance populista, isto 6, um romance que situa as pcrsonagens pobres "dc fora", como quern obscrva um espet£culo curioso que, cvcnlualmenlc, podc comovcr. Os problemas psicol6gicos que j& ten-diam a ocupar o primciro piano cm Caminho de Pedras fazem-no decididamente na ultima cxpcricncia dc ficcao dc Raquel dc Qucir6s, As Tres Marias. Jfi a curva idcolc3gica da cscritora podcra' parccer cstranha, paradoxal mesmo: do socialismo libcrtirio de Caminho de Pedras as cronicas rcccntcs dc cspirito conscrvador. Mas cxplica-se muilo bem sc inscrida no roteiro do tencnlismo que a condicionou: vcrbalmcntc rcvoluciona'rio cm 30, scntimcntalmentc liberal e es-qucrdizantc cm face da ditadura, acabou, enfim, passada a guerra, identificando-se com a defesa passional das rafzes do status quo\ roteiro que a aproxima dc Gilberto Frcyrc, cuja presenca na cultura nordestina ulu*apassou, dc longc, a Area do en-safsmo sociol6gico c incidiu dirclamentc na valoracao das (radicoes, dos cstilos (32») Raqubl Dii Quiim6s (Fortaleza, 1910). Ficcao: () Quinze, 1930; Jodo Miguel, 1932; Caminho de Pedras, 1937; As Tres Marias, 1939; O Galo de Ouro, 1950; Dora, Doralina, 1975; Memorial de Maria Maura, 1992. Teatro: Ijimpido, 1953; A Beata Maria do Egito, 1958. Crtmiea: A Donzela e a Maura 'Porta, 1948; 100 Cronicas Es-colhidas, 1958; O Brasileiro Perplexo, 1963; O Caqador de Tatu, 1967. Consultar: Otdvio dc Faria, "O Novo Romance de Raquel dc Queirds", in Boletim de Ariel, 1/7, abril de 1932; Agripino Grieco, Evolucdo da Prosa Brasileira, Rio, Jos6 Olympio, 1933; Trist3o de Atafde, Estudas, 5" sfric, Rio, Civ. Brasileira, 1935; Almir dc Andrade, As-pectos da Cultura Brasileira, Rio, Schmidt, 1939; Fred P. Ellison, Brazils New Novel. Four Northeastern Masters, Berkeley, University of California Press, 1954. 396 de viver e de pcnsar herdados ä soeiedade patriarcal. De onde a nostalgia do lx>m tempo antigo quc at6 recebeu o batismo da ci&ncia: 6 a lusotropicologia. Jose Lins do Rego A regiäo canavieira da Parafba e de Pernambuco cm pcrfodo de transicäo do engenho para a usina cneontrou no "ciclo da cana-de-acucar" de Josd Lins do Rego (321) a sua mais alta cxprcssäo literäria. (321) Josfi Lins do Reoo Cavalcanti (Engenho Corredor, Pilar, Parafba, 1901 — Rio, 1957). Passou a infäncia no engenho do avfl materno. Fez os estudos secundärios em Itabaiana c na Parafba (atual Joäo Pessoa) e Direilo no Recife. Aqui se aproxima de inteleciuais que seriam os responsäveis pelo clima modernisla-regionalisla do Nordeste: Josö Amßrico de Almeida, OIfvio Montenegro c, sobretudo, Gilberto Frcyre de quem receberia cslfmulo para dedicar-se ä arte de rafzes locais. Poucos anos depois, liga-se, em Maceiö, a Jorge de Lima e a Graciliano Ramos. Transfeiiu-se, cm 1935, para o Rio de Janeiro onde partieipou ativamente da vida literäria defendendo com vigor polemico o lipo do cscriior voltado para a regiäo de onde proveio. Obra de liccäo: Menino de Engenho, 1932; Doidinho, 1933; BangÜe, 1934; O Moleque Ricardo, 1935; Usina, 1936; Pureza, 1937; Pedra Bonita, 1938; Riacho Doce, 1939; Agua-Müe, 1941; Fogo Morto, 1943; Euridice, 1947; Cangaeeiros, 1953. Mcmorias: Mens Verdes Anos, 1956. Literalura Infantil: Histörias da Velha Totönia, 1936. Crönica c Crftica; Gordos e Magros, 1942; Poesia e Vida, 1945; Hamens, Seres e Coisas, 1952; A Cosa e o Hörnern, 1954; Presenqa do Nordeste na Literatura Brasileira, 1957; 0 Vulcäo e a Ponte, 1958. ConfcrCncias: Pedro Amfrico, 1943; Conferencias no Praia ("Tendencias do Romance Brasileiro, Raul Pompdia, Machado de Assis"), 1946; Discurso de Posse na A. B. L., 1957. Viagem: Bota de Sete Leguas, 1951; Roteiro de Israel, 1955; Gregos e Troianos, 1957. Consultar: Agripino Gricco, GenteNova do Brasil, Rio, Josd Olympio, 1935; OIfvio Montenegro, O Romance Brasileiro, Rio, JosC Olympio, 1938; Lia Correa Dutra, O Romance Brasileiro e Jose' Lins do Rego, Lisboa, Scara Nova, 1938; Almir de Andradc, Aspectos da Cultura Brasileira, Rio, Schmidt, 1939; Älvaro Lins, Jamal de Crftica, 2" s<5rie, Rio, Jose Olympio, 1943; Antonio Cändido, Brigada Ligeira, S. Paulo, Martins, 1945; Mario de Andrade, O Empalhador de Passarinho, S. Paulo, M escritores superestimados (mesmo pelo que teriam representado na eclosäo ou nu evolugäo do Movimento), Érico Veríssimo sena o exemplo único do escritor sunuii timado, ä espera dos grandes ensaios críticos, das análises exaustivas e do "uvu-nhccimento" do que efetivamente representa (329). Para compor a saga da pequena burguesia gaúcha depois de 1930, o ro-mancista buscou rcalizar um mcio-termo entrc a crönica de costumes c a no* tacdo intimista. A linguagcm com que rcsolveu esse compromisso é discrcln» mentě imprcssionista, caminhando por pcríodos breves, justaposigöes de sin» taxe, palavras comuns c, forcosamente, lugarcs-comuns da psicologia do co. lidiano. A aparente frouxidäo que adveio da formula encontrada pareceu a cci los leitorcs sinal de supcrficialidadc. Mas era, na verdade, o meio ideal de näo perder nenhum dos pólos de intercssc que atraíam a personalidade de Érico Veríssimo: o tempo histórico do ambiente c o fluxo de conscicncia das pci sonagens. Caso o eserilor se tivesse definido, de chofre, pelo mural da vida provinciana, teria fcito, desdc o dcecnio de 30, o ciclo épico que construiria nos anos de 50; caso se fixasse apenas na espirilualidade das eriaturas, teria csvaziado a sua ficcäo da carga de conflitos objelivos que dela fizeram um dos mais límpidos espelhos da vida sutina. Näo sc trata, aqui, dc lechar os olhos aos evidentes defeitos de fatura qu mancham a prosa do romancista: rcpeticöcs abusivas, incerteza na concepcäo de protagonistas, uso convencional da linguagcm...; trata-sc dc compreender o nexo de intcncäo c forma que os scus romances lograram cstabclccer quando atingiram o social medio pelo psicológico medio. E era necessário que a nossa literatura conhecesse também a planícic ou, valha a metafora, as modestas elc-vacöcs da coxilha. A mediedade (näo confundir com "medioeridade") dessa ficcäo nos dcu figuras humanas representativas, mas näo rígidas. O freseor dc Clarissa toda entreguc a scus sonhos dc adolescente c incapaz dc entender as razöes objetivas da infelicidade familiar; a rcbcldia c o topete dc Vasco, cnxcrlo do imigrante rejcitado no velho Lronco cm declínio; o mundo alicnado do jovem intclectual pequeno-burgues que č Noci: tudo isso poderia virar cstereótipo a qualquer momento, näo fosse o dorn que tem o escritor dc collier com extrema natura-lidadc os estados dc alma díspares dc cada personagem. E a técnica do con-traponto, aprendida cm Huxley, vcio ajudá-lo a passar rapidamente de uma situacao a outia, salvando-sc dc um escolho que Ihc seria fatal: o ter que sub-meter a análises mais profundas as tensöcs internas dos protagonistas. Assim, o cronista feliz impediu que aparccesse um mau intimista. (329) Em O Modernismo, cit., p. 295. 408 Fruto da mesma intuicäo das suas reais possibilidades criadoras foi a pas-sugem que Verissimo realizou do corte sincronico dos primeiros romances para I vasto painel diacrônico de O Tempo e o V ento. Neste ciclo o contraponto serve para apresentar o jogo das geracôes: Portugueses e castelhanos nos tempos coloniais; farrapos e imperiais durante as lutas separatistas; maragatos c llorianistas sob a Revolta da Armada, em 1893. A história de duas famílias, os Terra Cambará e os Amaral, atravessando dois séculos de vida perigosa, é o lio romanesco que unc os episódios do ciclo e embasa as manifestafôes de oigulho, de ódio, dc amor e de fidclidadc; paixôcs que assumem urna dimensäo iransindividual e fundem-se na história maior da comunidade. Nos seus livros mais rcccntes, O Prisioneiro e O Senhor EmbaLxador, Veríssimo alasta-se da temática sulina c volta-sc para um tipo novo dc romance, políuco-inlcrnacional, mantcndo, porém, intacto aqucle scu cálido libcralismo socializante, que é a suma idcológica da rclacäo que sempře cstabclcccu com o proximo. Marques Rebelo (33°) Na ťicgäo dc Marques Rebelo cumprc-sc uma promcssa que o Modernismo dc 22 apenas comecara a rcalizar: a da prosa urban a moderna. Com a diferenga (330) Marquf-s Rhhulo (pseudflnimo de Edi Dias da Cruz, Rio, 1907-1973). Passou a infancia parte cm Vila Isabel c no Trapicheiro, bairros cariocas, parte em Barbacena onde lez o curso primario. Tenninados os preparatrtrios, ingressou na Faculdade de Medicina, mas logo abandonou o curso para trabalhar no comCrcio. Viajou entao por todo o pais c manteve contatos com gnipos modernistas dc S. Paulo c de Minas. Seu primeiro livro de conlos, Oscarina (1931), foi recebido com aplauso pela melhor critica do tempo. Profundamentc vinculado a paisagem moral do Rio, e especial menus do Rio de classe m6dia da Zona Norte, M. Rebelo conlinuou explorando literariamentc o seu mundo em contos c romances escritos nos dccCnios de 30 e 40. Dc suas viagens pela Europa trouxe dois livros de cronicas, Cortina de Ferro e Correio Europeu. Voltando ao romance, vcm publicando partes dc urn vasto diario-nanaeilo sob o tltulo geral de 0 Espelho Partido de que safram trGs volumes. () escritor pertence a Acadcmia Bra-sileira dc Letras. Obra de ficcao: Oscarina, 1931; Tres Caminhos, 1933; Marafa, 1935; A Estrela Sobe, 1938; Stela me Abriu a Porta, 1942; O Espelho Partido. 1. O Trapicheiro, 1959; O Espelho Partido. II. A Mudanca, 1963; O Espelho Partido. III. A Guerra Estd em Nos, 1969. Consultar: Agripino Gricco, Gente Nova do Brasil, Rio, J. Olympic 1935; Tristao de Atafde, Estudos, 5" s6rie, Rio, Civilizacao Brasileira, 1935; Alvaro Lins, Jornal de Critica, 3" sdrie, Rio, Josd Olympio, 1944; M.1rio de Andrade, O Em-palhador de Passarinho, S. Paulo, Martins, 1946; Augusto dos Santos Abranches, Urn Retrato de Marques Rebelo, Rio, Ministcno da Educacao, 1959; Otto Maria Carpeaux, Livros na Mesa, Rio, Livraria S. Jos6, 1960; Cavalcanti Procnca, Introduc5o a Oscarina e Tres Caminhos, incl. na Ed. de Ouro, Ciassicos Brasileiros, Rio, 1966; Rcnard Perez, Escritores Brasileiros Contempordneos, 1" s6ric, Rio, Civilizacao Brasileira, 1960. 409 notável de que o escritor carioca näo rompeu os liames com a tradicäo do nosso melhor realismo citadino. A sua obra insere-se, pelos temas e por alguns tragos de estilo, na linha de Manuel Antônio de Almeida (de quem escrcvru urna viva biografia), de Machado de Assis e de Lima Barreto. Com eles o autor de Oscarina aprendeu a manejar os processos difíceis do distanciamcnlo. o que lhe permitirá contar os seus casos da infäncia e do cotidiano com urna objetividade tal que a irónia e a pena difusas näo o arrastariam ao transbor damcnto romäntico. A sábia dosagem de proximidadc c dištancia do narrador em face dos seres da ficcäo é o pressuposto d{> neo-rcalismo de Marques Rebelo e a chave dc urna obra que testemunha o povo, sem populismo, e fixa as angústias do homem da rua sem a mais lcvc rclórica. Repilo, é urna arte difŕcil, e na sua simplicidadc, urna arte clássica. A malriz dessa narracäo objetiva é lírica. Porquc a história da cidade que a alimenta faz um todo com o passado do escritor. O Rio de Janeiro, com toda a sua modernidade internacionál de centro lurfstico, conservou por longo tempt) faixas de vida suburbana, estratifieada, propria de urna classe média que rcmonla aos tempos de D. Joäo VI. A rcvolucäo industrial e o frenesi imobiliário atacaram de rijo a orla das praias, mas só lentamente foram alte-rando a fisionomia da zona dos morros. Aí vegetavam bairros que, sc depen-diam dos negócios e da buroeracia do centro, negaccavam a inlcgrar-se no espírito mercanlil c cosmopolila da nova cidade. Marques Rebelo é um nostalgia) dos tempos mais simples, mais "naturais", que coincidiram com a sua infäncia do comeco do sčeulo. Mas, sendo um lírico do realismo de 30, mantém urna sulil scparacäo entre os pianos do eu c da realidadc. E acompanha com admirávcl argúcia os conflitos, as frustracôcs e as rcnovadas esperaneas da-quclas gcracôcs modcslas que sc ralam para sobreviver cm urna sociedade cada vez mais lacerada pela compcticäo. O lírico eseonde-sc nas dobras do narrador de episódios infantis ("Caso de Mcntira", "Circo de Coclhinhos") c na cvocacäo dc destinos malogrados ("A Mudanca", "Um Dcstino"). A ccrlcza de urna perda precoce cslá no subsolo da crônica miúda dos pcquenos funcionários, das donas-de-casa sem rosto nem idadc, dos rapazes abafados cm empregos humildcs. Daí, o contraponto da infäncia, paraíso dc jogo c liberdade, e a rolina cinzenta do adullo. Dos contos ou "romances inacabados" de Trcs Caminhos, que falam de criancas c de ado-lesccntes, diria o autor, resumindo a sua concepcäo dc vida: "Sc näo os pros-segui, näo foi por ncgligčncia ou incapacidadc. Falou mais forte a piedade de näo lhes dar destinos." Mas os mitos do menino sobrevivem na evasäo do adulto: e seräo o herói do futebol, o sambista das massas, a diva do rádio (A Estrela S obe). Esses os temas, sobriamente trabalhados na prosa tensa c limpa de Marques Rebelo. 410 As raízes mcmorialistas ainda repontam com vigor na série do Espelho Partido para a qual o narrador escolheu a estrutura do diário. No quadro do romance brasileiro de hoje, O Espelho Partido significa a opcäo de um inti-mismo que näo pode nem quer desgarrar-se da paisagem que lhe deu origem. Por isso, a dispersäo que compartilha com todos os diários é de certo modo "corrigida" pela unidade de lugar e de tempo que lhe conferem a cidade e a geracäo de Marques Rebelo. Jose Geraldo Vieira Também de extracäo urbana é a obra ficcional de Jose Geraldo Vieira (331), mas num sentido oposto ao de Marques Rebelo. No romancista de A Quadragesima Porta sentimos o hörnern fascinado pela atmosféra da cidade grande enquanto lugar geométrico das angústias e das experiéncias intclectuais mais refinadas da civilizacäo contcmporänea. A sua visäo do mundo ficou marcada pelos rilmos de uma Paris mitica visitada antes c dcpois da Primeira Guerra: centro nervoso da arte, encruzilhada de todas as poéticas, de todas as idcologias. Algo daquela febrc do ultimo Deca-dentismo europeu aquece os ambienles e aciona as pcrsonagcns do narrador que, sem dúvida, foi a voz diferente no coro do romance brasileiro das décadas de 30 e 40. (331) Jose Geraldo Manuel Germano Corrhia Vieira Machado da Costa (Rio, 1897-1977). Dc pais acorianos. Passou a infäncia e a primeira juventudc no Rio dc Janeiro onde se formou em Medicína. Conheceu dc perto os remancscentcs do Parnaso e do Simbolismo que animavam a vida literária carioca antes da afirmacäo modcmisla; sous primciros livros traem o penumbrismo da belle époque em dissolucäo: um wildeano poema em prosa, Triste Epigramu (1919) e os contos de Ronda de Deslumbramento (1922). De 1920 a 1922 estudou radiologia em Paris e em Berlím, viajando dcpois por quase toda a Europa. De volta ao Brasil, partilhou a sua vida entre a medicína e a literatura de ficeäo, no periodo que passou no Rio c na cidade paulisla de Marília, mas optou definitivamentc pela scgunda ao estabclecer-se em S. Paulo. P6s-sc entäo a tra-duzir, em um ritmo intenso, o mel hor da ficeäo europčia e norte-americana: Stendhal, Tolstoi, Dostoievski, Joyce, Pirandello, Steinbeck... E cxerceu com assiduidade a crftica literária e artislica. Ficeäo: A Mulher que Pugiu de Sodoma, 1933; Território Humano, 1936; A Quadragesima Porta, 1943; A Tunica e os Dados, 1947; A Ladeira da Memoria, 1950; O Albatroz, 1952; Terreno Baldio, 1961; Paralelo 16: Brasilia, 1966. Consultar: Sérgio Milltct, Diário Crítico, II, Brasiliensc, 1945; Antonio Cändido, Brigáda Ligeira, S. Paulo, Martins, 1945; Álvaro Lins, Jornal de Crítica, 4" série, Rio, J. Olympic, 1946; Renard Perez, Escritores Brasileiros Contemporäneos, 1' série, Rio, Civ. Brasileira, 1960; Adonias Filho, O Romance Brasileiro de 30, Rio, Bloch, 1969. 411 E, na verdade, os livros de Josč Gcraldo Vieira säo os mais cosmopolite! que já se esereveram em lingua portuguesa. Prosa cortada por transcribes tle anúncios luminosos, por nomes de artigos franceses e ingleses e por um sem numero de neologismos, citacóes eruditas e referéncias técnicas, ela 6 u um leňte de aumento da linguagem do burgués culto e sofisticado que respira ondaj contínuas e eres cen tes de iriformacäo. Mas o seu refinamento vai mais fundo e chega mais longe enquaulo molda eriaturas extremamente instáveis e nervosas, incapazes de situai | de resolver os seus conflitos fora dos quadros culturais da literatura c du arte, sua segunda e definitiva naturcza. A heranca da belle époque, do am nouveau, é sensível na construgäo de sua obra; mas seria precipitado class i-ficar de "mundano" um romance como A Ladeira da Memoria onde há lugaf para vigorosos lances existenciais. A posigäo de Josč Gcraldo Vieira em nossa literatura, é, assim, marginal. Sem dúvida, é mais fácil opô-lo aos regionalistas que situá-lo pacificamente. entre os intimistas como Lucio Cardoso c Cornčl io Pena. Porque há nele, além de tomadas introspeclivas, uma ambic, äo, nem sempre realizada, mas aguilhoan-te, de revolucionár a estrutura do gencro romance entre nós, c fazé-la sur-preendente como um paincl entre impressionista c cubista. Para tanto, joga com os pianos da realidade presente c do passado c arma s ím bol os que os uniťiquem. 0 Albatroz foi, nesse particular, a sua cxpcricncia narrativa mais feliz, enquanto logrou fixar urna cons taňte psicológica (a dor causada pela perda dc seres amados) atravós dc urna complexa história de geraeöes. Em outro romance, centrado intcncionalmcntc na cstrutura, A Túnica e os Dados, a inovagäo faz-se na esfera da sineronia: no breve corte dc tempo de urna Semana Santa, transcorrida numa cidadc do interior, na capital paulista e em Santos, justapôcm-sc os dramas de vários figurantes c, a certa altura, a coe-xistôncia é fixada graficamente pela divisäo vertical da página em duas colunas nas quais sc narram, paralclamcntc, os sonhos dc duas pcrsonagens. Já o ponto alto de Terreno Baldio foi atingido pela fixagäo de Paris ocupada pclos nazistas e vista pclo ängulo de um par amoroso de psicologia tipicamcntc moderna, citadina e culta atč ä sofislicacíio. Enfim, cm Paralelo 16: Brasilia, o narrador apanha urn momento áurco da vida nacionál: o tempo dc eufória que envolveu a fundaeäo da nova capital. A linguagem carrega-sc ai daquclc jargäo buro-erático, civado dc siglas, que parcce ser uma das fatalidades da era tccnocrática. O que, somado ao léxico internacionál do autor, vem confirmar o caráter moderno e "metropolitano" da sua ficcäo. Radicalizando as próprias qualidades de atento observador, Jose Gcraldo Vieira tende a construir um romance substantivamentc cheio, näo raro cm pre-juizo da nitidez dos caractcrcs e da trama. Pode-se dizer que esse traco vem ao encontro da prosa vanguardeira, como o nouveau roman, nominal, descri-tivo, antipsicológico; o que näo lavra, por forca, um tento estótico, sobretudo quando a tendencia atua ä revelia do equilíbrio interno da estrutura ťiccional. 412 Lucio Cardoso (U2) Desde Maleita, história de um construtor perdido numa pocilga do sertäo mineiro, Lúcio Cardoso revelava pendor para a criacäo de atmosfér as de pe-sadelo. Mas a formula naturalista que elegera para o livro de estréia foi, para cle, um engano cultural, de resto cxplicávcl naqucles anos cm que os melhores romances se ch am a v am Caca u, Os Corwnhas, Menino de Engenho... Equfvoco logo desfeito: já cm 1936, com A Luz no Subsolo, o eseritor sc definiria pelo romance de sondagem interior a que lograria dar urna rara densidadc počtica. (332) Lucio Cardoso (Curvclo, Minas Gcrais, 1913 — Rio, 1968). Passou a infäncia cm Belo Horizonte onde fez o curso primáiio. Consta que revelou muito cedo aptidäo para as artes c, em particular, para a música. Cursou o ginásio na capital mincira c no Rio para onde se transferira com a mäc e os irmäos. O pai, espírito aventureiro, des-bravador tle scriöes c fundador de cidades, ficara cm Minas. Lúcio ainda näo complelara vinte anos c já tinha na gaveta ccnlcnas dc páginas de prosa e de poesia; o eonhecimento de Augusto Frederico Schmidt, que iniciava a sua caireira dc editor, abriu-lhe a pos-sibilidadc de editar Maleita, romance calcado nas agruras do pai cm Pirapora, e, cm parte, preso ao ciclo regionalista que sc aJiimava naquelcs anos. Nas obras seguintes, L. C. cnconiraria o proprio caminho, a introspec^äo c a análise. Vivcu quase sempře no Rio onde tentou, com menor ěxito, o teatro e o cinema. Mantevc-se alé á mořte ligado a alguns eseritores que se definiram, nos anos de 30, cspiritualistas c católicos: Otávio tle Faria, Jorge dc Lima, Comélio Pena, Vinícius de Moracs. Nos Ultimos anos, paralisado por um derrame, náo lhe foi mais possível eserever: vol tou-se entáo para a pintura, tendo composto perto de quinhentas telas de filiayáo surrealista e cxpressionisla. Dcixou inčdiU) O Viajante, romance. Ficcáo: Maleita, 1934; Salgueiro, 1935; A Luz no Subsolo, 1936; Maos Vazias, 1938; Histórias da Lagoa Grande, 1939; O Desconhecido, 1940; Dias Perdidos, 1943; Inácio, 1946; O Anfiteatro, 1946; A Professora Hilda, 1946; O Enfeitigado, 1954; Crönica da Casa Assassinada, 1959. Poesias, 1941; Novas Poesias, 1944. Teatro: O Escravo, 1937 (repr. em 1943); O Coracáo Delator, s. d.; A Corda de Praia, 1947; O Filho Pródigo, 1947; Angelica, 1950. Diário: Diário, I, 1960. Consular: Agripino Gricco, Gente Nova do Brasil, Rio, Jose Olympio, 1935; Otávio de Faria, Dois Poetas, Rio, Ariel, 1935; Adonias Filho, "Os Romances de Lucio Cardoso", in Cadernos da Hora Prescnte, n° 4, set. de 1939; Álvaro Lins, Jornal de Crüica, 1* série, Rio, J. Olympio, 1941; Nelson Wcmeck Sodré, Orientagöes do Pensamento Bra-sileiro, Rio, Vccchi, 1942; Álvaro Lins, Jornal de Crítica, 6? série, Rio, J. Olympio, 1951; Roberto Alvim Correa, O Mito de Prometeu, Rio, Agir, 1951; Renard Perez, Eseritores Brasileiros Contemporáneos, 2* série, Rio, Civ. Bras., 1964; M. Cavalcanti Procnpa, Introdu^áo á 2" ed. de Maleita, Rio, Edigöes de Ouro, 1967; Marcos Konder Reis, "A Tcrceira Pessoa", cm Trés Histórias da Cidade (reed. de Inácio, O Anfiteatro, O Enfeitigado), Rio, Bloch, 1969; Maria Alice Ban-oso, "Lucio Cardoso e o Mito", em Trěs Histórias de Provfncia, Rio, Bloch, 1969. Veja-se também a edicäo crítica da Crönica da Casa Assassinada, aos cuidados de Mario Carelli (Colecäo Archives, 1992). 413 Lucio Cardoso c Comčlio Pena Coram talvez os únicos narradorcs bras leiros da década de 30 capazes de aprovcilar sugestôes do surrealismo sem perder de vista a paisagem moral da provincia que entra como clima nos scup romances. A decadéncia das velhas fazendas e a modorra dos burgos i nie* rioranos compôem atmosferas imóveis e pesadas onde se moveräo aquelas suns criaturas insólitas, oprimidas por angústias e fixacöes que o destino afinal con» sumará em atos imediatamente gratuitos, mas necessários dentro da lógica por» tica da trama. O leitor estranha, ä primeira leitura, čerta imotivacäo na conduta das personagens. É que os vínculos rotineiros de causa e efeito estäo afrouxados nesse tipo de narrativa, já distante do mero relato psicológico. Lucio Cardoso näo é um memorialista, mas um inventor de totalidades existenciais. Näo faz elencos de atitudes ilhadas: postula estados globais, religiosos, de gra^a e de pecado. Em nota ä Professora Hilda, cle eserevcu a respeito das personagens: o que neles me intercssa, o que quis mostrar nos seus destinos atormentados foi a forca seivagem com que foram arrastados para longe da vida comum, sem apoio na esperanca, sem fé numa outra vida, cegos e obstinados contra a presenca do Mistério. Pois o Mistério č a ünica rcalidadc deste mundo. E, se dele temos táo grande necessidadc, é para näo morrer do conhccimcnto dos nossos próprios limites, como as criaturas loucas c martirizadas a que lentei tlar vida. Obra pela qual perpassa um sopro de romantismo radical, algo digno de Emily Bronte, cujos poemas Lucio Cardoso traduziu cm versos musicais, a Crônica da Casa Assassinada fixa as angústias de um amor que sc ere inces-tuoso. O romancista súpera, nessa obra-prima, a indefinicäo que ás vezes de-bilitava a estrutura das suas primeiras experiencias, c lan^a-sc ä rcconstrucäo admirávcl do clima dc morbidcz que envolve os ambientes (quem esquccerá o fundo esverdinhado da velha chácara onde há mofo e sanguc?) c os seres (indelével, a ľigura dc Nina, atraída pela vertigem da dissolucäo no proprio eros). Refina-se na Crônica o processo dc caractcrizacao. Em vez dc referéncias diretas, säo as cartas, os diários c as confissöes das pessoas que conhcccram a protagonista (c dela propria) que väo entrar como partes estruturais do livro. A tragédia dc um ser passa a rcflctir-se no coro das testemunhas; e estas per-correm a varia gama de rcaföes, que vai da febre amorosa ao ódio, deste ä indiferenca ou ao jufzo convencional. O "caso" psicanalilico sai, portanlo, do beco da auto-análisc e assume dimcnsöes familiäres e grupais. Lucio Cardoso sc encaminhava, ncssa fasc madura da sua carreira de artista, para uma forma complexa de romance em que o introspectivo, o almos-férico c o sensorial näo mais se justapusessem mas se combinassem no nřvel de uma eseritura cerrada, capaz de converter o deseritivo cm onírico c adensar o psicológico no existencial: 414 Que é o pain sempře senäo o existir contínuo e líqiiido de tudo aquilo que é liberto da conliiigcncia, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensacöcs também mutáveis? Inútil esconder: o para sempře ali se achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto — e também este escorregaria longe do meu esforco para captá-lo, enquanto eu mesmo, também para sempře, es-correria e passaria — e comigo, como uma carga de detritos sem sentidos e sem cháma, também escoaria para sempře meu amor, meu tormento e até mesmo minha propria fidelidade. Sim que é para sempře senäo a ultima imagem dcstc mundo — näo exclusivainente dcste, mas de qualquer mundo que se cnovele numa arquitctura de sonho e de permanöncia — a figuracäo de nossos jogos c prazercs, de nossos achaques e medos, de nossos amores c de nossas traigöes — a forca cnfim que modela näo esse que somos diariamente, mas o possível, o constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um amor que näo sc consegue, e que afinal é apenas a lembranca de um bem perdido — quando? — num lugar que ignoramos, mas cuja perda nos punge, c nos anebata, totais, a esse nada ou a esse tudo inflamado, injusto ou justo, onde para sempře nos confundimos ao geral, ao absoluto, ao perfeito de que tanto carecemos. ("Diario de Andre") Quando a tensäo "para dentro" chega a scu limite, o fluxo da conscicncia recupera as imagens da natureza (liqüido, chama, praia, treva...) como simbolo e metafora. E comeca a ser penoso distinguir a prosa da poesia. Cornélio Pena Mario de Andrade, comentando as primeiras obras de Cornélio Pena (333), chamou-as "romances de um antiquário". Se o grande poeta estivesse vivo (333) Corneuode Oliveira Pena (Petröpolis, 1896 — Rio, 1958). Passou a primeira infäncia em Itahira do Malo Dentro, Minas Gerais, fönte constante de sugestöes para o ambiente de seus romances. Cursou Direito em S. Paulo (1914-19), perfodo em que faz jomalismo acadömico c comega a pintar. Transferindo-se para o Rio, viveu como redator e ilustrador de O Cotnbate e O Jornal, e, desde 1927, como funcionärio do Ministerio da Justiga. Uma exposicäo de pintura realizada em 1928 abre-lhe as portas da Socicdade Brasileira de Bclas-Artcs, justamente quando o artista declara em publico que näo mais pintaria. De fato, a paitir de 1930, dedicar-se-ia ä elaboracäo da sua obra literäria. Esteve ligado aos cscritorcs catölicos do Rio, Tristäo de Ataide, Lucio Cardoso, Otävio de Faria..., que logo reconheceram a originalidade da suaficgäo. Obra: Fronteira, 1935; Dais Romances de Nico llorta, 1939; Repouso, 1948; A Menina Moria, 1954. Consular: Mario de Andrade, O Empalhador de Passarinho, S. Paulo, Martins, 1945; Ado-nias Filho, "Os Romances da Humanidadc", cm Romances Completos de Cornelio Pena, Rio, Aguilar, 1958; nesta edigäo, v. tamböm os ensaios de Ledo Ivo, Tristäo de Ataide, Sergio Milliet, A. F. Schmidt e Murilo Araüjo; Maria Aparecida Santilli, "Angüstia e 415 quando se publicou A Menina Moria, teria confirmada cm chcio a sua inluicai crítica. Pois Cornélio Pena, que dera em Fronteira um grande passo para que a nossa fiegäo pudesse transcender o registro psicológico bruto, saberia re construir em A Menina Moria o pequeno mundo antigo em que mergulhavain as raizes das suas mais singulares invencôes. A parabola do romancista parecerá estranha: primeiro, a conquista dc urn horizonte supra-real; depois, a recuperaeäo da ambiéncia histórica. Quer dizci' elc näo passou do habitual ao insólito, do psiquico ao metapsiquico, do ob-scrvado ao imaginário. Fez o caminho inverso, comunicou com prioridadc o que o prcssionava com maior insistencia; a estranhcza das relacöes entre os homens, a fronteira incerta entre o normal e o aberrante, a larga margem de mistério que pode subsistir na mais banal das rotinas familiäres. E essa per« cepcäo nova do dia-a-dia que tornou rcalmcntc originais os seres de Fronteira c dos Dots Romances de Nico Horia. A dosagem de segredo pareceu arbitrária a Mário de Andradc que, no arligo mencionado, desabafava: Em Fronteira surgia um Viajantc, ser misterioso, inexplicável, que aparece c des aparece, cspécic de símbolo iniangfvel que o romancista fcx quesulo cm näo nos explicar quem era. O pior č que na rcalidade esse viajantc näo aumentava nada ao clnima intrínseco do livro. Da mesma forma, neste romance novo (Nico Horia), surge a horas tanlas uma Ela que aparece c desaparece, c näo tem por onde se Ihc pegue. Durante algum tempo a gente ainda sc dispersa, inleressado em intciprclar essas assombragöes possivelmente simbólicas, mas forga é concluir que elas näo influem basicíunente em nada, nada justificam, nada condicionam (O Empalhador, cit., pp. 123-124). O problema crttico armádo nessas linhas é dos mais espinhosos. Alé que ponto vale o critério dc coeréncia para sc ajuizar dc um romance? Tal vez só a estrutura interna da narrayäo possa dizer sc criaturas fantasmais, postas ä margem a čerta altura, deveriam ou näo ter comparecido äs páginas da ficgäo. Em Fronteira e no romance seguinte elas rcvclam a possibilidade mesma do imprevisto na trama da vida. Sc näo f ossein "gratuilos", o Viajanle e Ela aca-bariam enxertando-sc no enredo c assumiriam aqucle quantum dc verossimi-Ihanca que Mário de Andradc parccia ainda cxigir do processo narrativo. Mas se o romance de Cornélio Pena dcsenrola-sc no ritmo do sonho, cntäo há lugar para seres que näo tenham outra corporcidade alem da propria c fugidia ima-gem. E é cle mesmo quem nos socorre, nas páginas de abertura dc Fronteira quando pöe na boča da personagem expressöcs que definem a genese psico- Fantästico no Romance de Corn61io Pena", in Revista de Letras, n- 5, Assis, 1964; Antonio Cändido c J. Adcraldo Castcllo, "Cornölio Pena", em Presenca da Literatura Brasiieira, 3* ed., S. Paulo, Dif. Eur. do Livro, 1968, vol. III; Luiz Costa Lima, A Perversäo do Trapezista, Rio, Imago, 1977. 416 logica do scu ato de narrar: "inlcnsa e conlusa recordacäo", "memoria prcgui-cosa", "sonho sulocantc"... Mais tarde, o Cornélio Pena visionário e vago optaria pelo caminho da evocacao miúda e determinada. A Menina Mona é um romance de atmosféra mas, ao mesmo tempo, um conjunto absolutamente coeso e verossímil. O efeito tle mistério que dele sc depreende näo se deve a intrusöes aleatórias de seres embruxados, mas ä propria realidade material e moral de uma fazenda äs martens do Parafba e äs včspcras da Abolicäo. O "documento" é täo rico nessc particular que Augusto Frederico Schmidt pode dizer: "Näo se terá eserito sobre a escravidäo no Brasil, até hoje, nada mais impressionantc do que alguns dos capítulos de A Menina Morta" (334). No interior de um solar opulento mas sóbrio, que Cornélio Pena descreve com zelos de minialurista, a menina que, viva, fóra esperanca de paz junto aos eseravos, morta é presenya numinosa; c acabará por sobreviver na alma da irmä, ser complexo c solitário, a quem seria dado assistir ao declínio ine-xorável da fazenda. A poesia desta grande obra está prccisamcntc na redugäo de um mar de imagens ä atmosféra dc dor e de opressäo que a ausencia da menina provoca cm cada personagem. Como uma luz que sc sabc para sempře apagada e cuja lembranga alumia apenas o desolamcnto do que restou. Na fazenda do Groláo, desertada pouco a pouco pelos eseravos, pelos pa-rentes, pelos herdciros, a fidelidade dc Cartola iaz ressurgir a menina morta e dá um senlido dc percnidade a uma história que lala dc um mundo cm dis-solugáo. Out ros narradores intimistas Ncm sempře a inlrospcccäo romanesca mergulha nas zonas do sonho e do irreal. Pode deter-sc na memoria da infäncia ou fixar-se cm cslados de alma recorrcntes no indivíduo, sem que o proccsso impliquc ncccssariamente em transfiguraeäo. Ä literatura visionária conlrapös Jung a literatura psicológica, inclinada ä minuciosa marcagäo da conscicncia, atcnla ao verossímil c próxima dos modclos já clássicos, de rcalismo interior (Tchécov, Machado de Assis, Kathcrinc Mansfield...). Os quais, por sua vez, ao insislirem na descrigäo das faixas crcpuscularcs da alma humana, abririam caminho para a conversäo do rcalismo no supra-rcalismo. (334) jsj0 artigo "O Anjo cnüc os Eseravos" (Correio da Manha, 27-2-55). 417 Romances de educacäo sentimental säo O Amanuense Beimiro c Ahdhin de Cyro dos Anjos (335). Em ambos o escritor mineiro narra, em primrim pessoa, menos a vida que as suas ressonäncias na alma de homens voltiuliiN para si mesmos, refratários ä agäo, flutuantes enure o desejo e a inércia, en irr o projeto veleitário e a melancolia da impotencia. O diário é a estrutura lalcnln desse tipo de narracäo. E o enredo tende a perder os contornos, as divisom* nítidas, e a diluir-se no fluxo da memoria que vai evocando os aeon tec imen Ion, Para configurar essa rcalidadc aparentemente em mudanca, mas, no fundo, cs tática e repetitiva, Cyro dos Anjos näo privilegiou o monólogo interior: prefcnu trabalhar com os rccursos tradicionais do diálogo, do relato irônico, da análisc sentimental; proccssos a que se ajusta com perfeigäo a prosa que elegeu pain toda a sua obra: de urna elegancia simples e clássica. A condicäo de memo rial isla, que sc impunha desde O Amanuense Beimiro, trouxe-o enfim de volia ä crônica da iníäncia que sao as suas estimäveis Exploracöes no Tempo. De Otávio de Faria (336) a erítica já terá dito o cssencial: "criador de almas", mas escritor litcrariamente falho. A publicaeäo seguida dos volumes do seu roman-fleuve, A Tragédia Burguesa, tem confirmado esse juízo. O drama das conscicncias atribuladas, divididas entre o pecado e o ideal de santidade, daria matéria para vigorosos romances intimistas, caso o escritor fosse capaz daquela (335) Cyro Vhrsiani dos Anjos (Montes Garos, Minas Gerais, 1906 — Rio, 1994). Ficcäo: O Amanuense Beimiro, 1937; Abdias, 1945; Montanlia, 1956. Ensaio: A Criaqäo Literária, 1954. Memórias: Exploracöes no Tempo, 1952. Poesia: ľoemas Coronários, 1964. Consullar: Antonio Cändido, Brigáda Ligeira, S. Paulo, Martins, 1945; Adolfo Cäsais Mon-teiro, O Romance e Seus Problemas, Lisboa, Casa do Estudantc do Brasil, 1950; Eduardo! Frieiro, Paginas de Crítica, B. Horizonte, Italiaia, 1955; Eduardo Portella, Dimensöes, \} Rio, Jose Olympio, 1958; Mičcio Tati, Estudos e Notas Crfticas, Rio, I. N. L., 1958. (336) Otávio db Faria (Rio de Janeiro, 1908-1980). Ficcäo: Mundos Mottos, 1937 (cd. modificada, 1962); Os Caminhos da Vida, 1939; O Lodo das Ruas, 1942; O Anjo de Pedro, 1944; Os Renegados, 1947; Os Lauem, 1952; O Senhor do Mundo, 1957; O Retraio da Morte, 1961; Angela ou as Areias do Mundo, 1963; A Sombra de Deus, 1966; O Cavaleiro da Virgem, 1971; O Indigno, 1976; O Pássaro Oculto, 1977. Todos os romances subordinam-sc ao litulo gcral de Tragédia Burguesa. Ensaio: Machiavel e o Brasil, 1931; Destino do Socialismo, 1933; Dois Poetas, 1935; Fronteiras da Santidade, 1940; Significacäo do Far-West, 1952. Consullar: Álvaro Lins, Jornal de Crítica, V- série, Rio, Jose Olympio, 1941; Jornal de Crítica, 2* série, Rio, Jose Olympio, 1943; Afonso Arinos de Mcllo Franco, Mar de Sargacos, S. Paulo, Maitins, 1944; Mario de Andrade, O Enpalhador de Passarinho, S. Paulo, Martins, 1946; Paulo Hecker Filho, A Alguma Verdade, P. Alcgrc, s. e., 1952; Olivio Montenegro, O Romance Brasileiro, 2* ed., Rio, J. Olympio, 1953; Joel Pontes, OAprendiz de Crítica, Rccife, Depto. de Documentacäo e Cultura, 1955; Adonias Filho, Modemos Ficcionistas Brasileiros, Rio, O Cruzeiro, 1958; M. Tereza Sadek, Machiavel, Machiavéis. A Tragédia Octaviana, S. Paulo, Sfmbolo, 1978. 418 lontcnsäo estilŕslica de um Mauriac ou de um Julien Green, narradores que Ihr säo afins. Mas há urna tal dispersäo nos seus Ultimos livros que os conflitos inorais näo logram caracterizar-se e perdem-se na enxurrada de diálogos frou-nos c anotacöes psicológicas banais. Quem apreciou certos momentos felizes naquela história de meninos fuigustiados pelo sexo, que é Mundos Mortos, e leu com admiracäo as Ulli mas páginas de Caminhos da Vida, näo deixará de lamentar a queda formal que se deu nas obras seguintes onde täo descompassados andam intencäo j l'atura. E mais deplora ainda a carencia de equilíbrio e de senso construtivo quando sente que as ambigöes do autor, se realizadas, o situariam num lugar privilegiado no romance contcmporänco. A Tragédia Burguesa poderia ser o painel da grande cidade apreendida na existencia de jovens sem raízes, rnovelados no dia-a-dia das suas aventuras afetivas e intelectuais. Poderia ser o romance capaz de transpor para um piano ético e religioso os conflitos de milhares de rapazes c mocas que rcspiram a "mundanidade" decaída da condigäo burguesa. Mas para tanto faltou-lhe um mínimo de formalizacäo artística que teria unificado aquela vasta dispersa matéria de idéias e erao-côes. Em outros narradores, que estrearam na mesma década, relcva notár o maior cuidado com os processos de composicäo. E scguramenlc a brevidade da referencia com que aqui os indico näo significa minoridade das suas obras. Dionélio Machado, gaúcho, fez cm Os Ratos (1936) urna rcconstrucäo miúda e obscdanle da vida da pcquena elasse média ralada pelas agruras do cotidiano. O roteiro ficcional de Dionélio Machado č surpreendente: nos seus Ultimos romances voltou-se para a rcconstrucäo cultural c psicológica da Roma imperial em vias de desagregaeäo (Deuses Econômicos, Sol Subterrôneo, Prodígios). O fio que une Os Ratos a essa íiilogia parece ser a obsessäo do encarceramento, a angústia do ser humano preso ä condigäo urbana e sob o regime do terror, qualqucr que seja o tempo hislórico que lhc tenha sido dado viver (*). Joäo Alphonsus, minciro, é, sem dúvida, um dos continuadores mais fiéis da prosa conquistada com o Modernismo: os contos de Galinha Cega (1931) e de Pesca da Baleia (1942), em que trata liricamcnte o coloquial, situam-no na mclhor linha dc Mário de Andrade. Telmo Vcrgara, gaúcho, compos, em Estrada Perdida (1939), um romance que, se falha na composicäo geral, alinge, na exploracäo intensiva de algumas cenas e algumas figuras, um bom nível estilŕstico. (*) Desenvolvi essa hipótese interpretaüva em "Urna trilógia da libertagäo", posfácio a Sol Subterränco, Ed. Moderna, 1981. 419 Firmando-se nas décadas de 40 e 50, tcmos um grupo vário de romane i sl ji * e contistas que atestam, em conjunto, a maturidade literária a que chegou nossn prosa de tendéncias introspectivas (337). Lygia Fagundes Teiles (Praia Viva, 1944; O Cacto Vermelho, 1949; ('» randa de Pedra, 1955; Histórias do Desencontro, 1958; Veräo no Aquário. 1963; O Jardim Selvagem, 1965; Antes do Baile Verde, 1970; Seminário dos Ratos, 1977) fixa, em uma linguagem límpida e nervosa, o clima saturado de certas famflias paulistas cujos desccndentes já näo tem nořte; mas é na evocagáo de cenas e cstados de alma da infäncia e da adolescencia que tem alcangado os seus mais belos efeitos. No romance As Meninas, de 1973, desenhou Q perfil de um momento da vida brasileira, em que o fantasma das guerrilhas 6 apreendido no cotidiano de esludantcs burguesas. De Elisa Lispector, um romance como O Muro de Pedras (1952) dá exem plo de notávcl acuidade na pcrcepcäo dos mais lcves matizes da afetividadc. Antonio Olavo Pcreira (Contra-Mäo, novela, 1949; Marcoré, 1957; Fio de Prumo, 1965, romances) t um estilizador sóbrio c intenso de dramas familiäres. Discrcta, fluente c dolada dc um senso vivo do diálogo, a melhor prosa de Lucia Bencdctti está cm Vesperal com Chůva, contos publicados em 1950. Otto Lara Rescnde já nos dcu provas dc fina análisc ao voltar-sc para as faces mórbidas da erianca c para os conflitos entrc a libido c uma formagáo religiosa tradicional, mineira (O Lado Humano, 1942; Boca do Inferno, 1958; O Retrato na Gaveta, 1962; O Braco Direito, 1963). Proximo Ihc fica o também (337) O aulor lern conseiöncia dos riscos a que sc expöe quem faz uma relacäo, ainda que sumaria e apenas excmplificadora, da fiegäo contemporanca. Os Ultimos vinte arios foram marcados por um cre.scentc movimenlo editorial, de modo que s6 uma pes-quisa aturada poderia dar conta da mole dc publicagöes registradas. Assim, as lacunas näo significam omissäo voluntäria, mas impossibilidade material de eobrir toda a ärea de documentos a analisar. Para uma visäo mais particulaj'izada do conto, ver nossa an-tologia, O Conto Brasileiro Contemporäneo, 3' ed., Cultrix, 1979. Ncla foram inclufdos contos dc alguns dos melhorcs prosadorcs contemporäneos: Guimaräes Rosa, Moreira Campos, J. J. Vciga, Bernardo Elis, Murilo Rubiäo, Otto Lara Rcscnde, Lygia Fagundes Teiles, Osman Lins, Dalton Trevisan, Autran Dourado, Clarice Lispector, Rubem Fon-seca, Samuel Rawcl, Ricardo Ramos, Joao Antonio, Moacyr Scliar, Nölida Pinon e Luiz Vilela. Uma selcgäo mais ampla, que revisitasse o conto dos anos 70 e avan-gasse pela ddcada seguinte, indicaria, cnü'c outros, os nomes de Manuel Lobato, Wander Piroli, Duflio Gomes, Sergio Sant'Anna, Roberto Drummond, Orlando Bastos (todos mineiros), Joäo Gilbcrto Noll, Eric Nepomuceno, Mafia Carbonicri, Modesto Carone, Edla van Stecn c Marina Colassanti. (Ver adiantc o töpico sobre a fiegäo entre os anos 70 e 90.) 420 iiiineiro Fernando Sabino, aulor de um vivo depoimento da geracao que ama-dureceu durante a Scgunda Guerra (0 Encontro Marcado, 1956). Experiéncia cortante de neo-realismo psicológico é a de Carlos Heitor Cony, narrador que oscila entre a representacao do universo degradado da "persona" burguesa (0 Ventre, 1958; Antes, o Veräo, 1964...) e a ěnfase no com-promisso individual perante a sociedade, caminho do romance politico em sen-tido lato (Pessach: a Travessia, 1967). Essa mesma conjuncäo dc drama individual e saida militante, estilizada com maior brilho c vigor, sustenta urn dos romances mais reprcscntativos do Brasil pós-64, Quarup (1967) dc Antonio Callado, autor tambčm de um refinado romance ä clef, Reflexos do Balle (1976). Já o neo-rcalismo das histórias curtas de Dalton Trcvisan acha-se animado de um frio descspcro cxistencial que o leva a projclar, na sua voluntária pobrcza de meios, as obsessöcs c as misčrias morais do uomo qualunque da sua Curi tiba. Como todo vcrismo que nasec näo do cuidado dc documcnlar mas dc uma violenta tensäo entrc o sujcito c o mundo, a arte dc Trcvisan cruza o limiar do cxprcssionismo. Que sc rcconhccc no uso do grotcsco, do sádico, do ma-cabro, comum a tantos dos scus contos: Novelas Nada Exemplares, 1959; Ce-mitério de Elefantes, 1964; A Morte na Praca, 1964; 0 Vampir o de CurUiba, 1965; Desastres do Amor, 1968; 0 Rei da Terra, 1972; A Faca no Coracäo, 1975. A descida ou, pelo menos, a alusäo äs fontes pré-conscientes da conduta cotidiana (matéria-prima da psicanálise embora, näo raro, apenas ocasiäo da obra narrativa) constitui processo largamente difundido na prosa contempora-nca. E, ainda dentro de um esquema tradicional de composigäo, essa tendéncia aparcce cm obras díspares como os contos de Dinah Silveira de Queirós (As Nodes do Mono do Encanto, 1957), de Breno Acioli (Joáo Urso, 1944; Os Cataventos, 1962...), de Ricardo Ramos (Tempo de Espera, 1954), ou no romance de Reinalde) Moura (Um Rosto Noturno, 1946), de Ascendino Leite (A Viúva Branca, 1952), de Lcdo Ivo (As Aliangas, 1947), de Maria de Lourdes Tcixcira (Raiz Amarga, 1960), dc Helena Silveira (Na Selva de Säo Paulo, 1966). Ao lado da narradora, a Helena Silveira cronista tornou-sc uma presenca cm nossas letras pela humanidade de seus temas. Em Sombra Azul e Carneiro Branca reuniu suas melhores crönicas. Á parte, tentando galgar a fronteira do supra-realismo, lembro Murilo Ru-biáo (O Ex-Mágico, 1947), Campos dc Carvalho (A Lua Vem da Asia, 1956) c um veterano, de raízes modernistas, Aníbal Machado (1894-1964), que en-saiou o genero difícil da prosa de intencocs lřricas em Cadernos de Joáo (1957) e Joáo Temura (1965). Da frondosa literatura de memórias, que se estendeu pela década de 70, é de estrito dever ressaltar a série de Pedro Nava: Baú de Ossos, Baldo Cativo, Chäo de Ferro, Beira-Mar. 421 Da ficcäo "egótica" ä fíccäo suprapessoal. Experiéncias Clarice Lispector No conjunto da prosa qualificada em geral de "mtimista" tém-se registrado. paralelamente ao uso de processos tradicionais, sérios esforcos de revisäo tc-matica e estrutural. É cedo ainda para tracar parabolas críticas dos maiorcs inovadores. Estäo ainda escolhendo seus caminhos; mas de alguns já se poda dizer, pelo menos, que realizaram com felicidade as suas opcöes. É o caso de Osman Lins. O escritor pernambucano mostrou-se sensível ä notacäo psicológica no romance O Visitante (1955) e nos contos maduros c exemplares de Os Gesios (1957); ascendeu ä fusäo de clima regional (sem pitoresco...) e a sondagem interior na prosa densa de O Fiel e a Pedra, romance (1961); e experimenlou, nas "narrativas" de Nove Novena (1966) as virtuali-dades de urna ťicgäo complexa, näo raro hermética, mas realmente nova: pela consciencia construtiva, pelo uso de símbolos gráiicos que abrem e pontu ani o monólogo interior; cnfim, pela tensäo metafŕsica que súpera o nível psico-lógico "médio" e mcridiano c desvenda nexos mais íntimos e dinämicos entre 0 eu, o outro c os objetos. Segundo urna distincäo do proprio autor, as suas inovacocs fazem-se no modo de organizar o todo narrativo c näo na estrutura da lingua romanesca; parecendo-lhe mais fecunda a primeira alternativa, e a outra, um beco sem saída. Registro a idéia como possfvel hipótese de trabalho, acompanhando-a do natural sentimento de caulela que inspira toda arte poética individual mudada em crilério normative) (*). A refinada arte de narrar de Autran Dourado (A Barca dos Homens, 1961; Uma Vida em Segredo, 1964; Opera dos Morias, 1967; O Risco do Bor dado, 1970; Os Sinos da Agónia, 1974; Armas e Coragôes, 1978) move-se ä forca de monólogos interiores. Que sc sucedem c se combinam em estilo indireto livre até acabarem abracando o corpo todo do romance, sem que haja, por 1 s so, alteracoes nos tracos propriamente verbais da eseritura. O que há é urna redueäo dos vários universos pessoais ä corrente de consciôncia, a qual, dadas as semelhancas de linguagem dos sujeitos que monologam, assume um facies transindividual. Assim, embora a matéria pré-líterária de Aulran Dourado seja a memoria e o sentimento, a sua prosa afasta-se dos módulos intimistas que marcavam o romance psicológico traditional. Mas deste näo se dištancia quanto aos componentes léxicos e sintáticos, apesar de um ou outro regionalismo, um (*) Osman Lins (que faleceu em 1978) deu-nos ainda dois romances sustentados por um forte empenho construtivo e estihstico: Avalovara (1973) e A Rainha dos Cdr-ceres da GrMa (1976). 422 ou outro arcaísmo que lizcram čerta crítica falar em "irrfluéncia" de Guimaräes Rosa, perto do qual Autran Dourado é um prosador ortodoxo (338). Clarice Lispector (339) Quando apareceu Perto do Coracäo Selvagem, romance de uma jovem de dezessete anos, a crítica mais rcsponsável, pela voz de Álvaro Lins, logo apon- (338) Outros exemplos que valem como sintomas de crise da ficcäo introspectiva e signos de que esta vem entrando numa era de pesquisa estética e de supera^äo de um "realismo" menor, convencional: Os Cantos do Imigrante (1956), de Samuel RaweU Do-ramundo (1956), de Gcraldo Fcrraz e Patrícia Galväo; História de um Casamento (1960) e Um Simjiles Äfeto Reciproco (1962), de Maria Alice Barroso; Mapa de Gabriel Arcanjo (1961) c Madeira Feit a Cruz (1963), de Nčlida Pifion; Um Hamern sem Rosto (1964), de Olympio Monat; Dardarä, de Louzada Filho (1965); Os Cavalinhos de Platiplanto (1959), A Hora dos Ruminantes (1966) c A Máquina Extraviada (1968), contos de J. J. Veiga. Um romance intimista cujo trahalho formal levou a linguagem as íronleiras da prosa poética foi a eslrčia de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, cm 1976. No exuemo oposto, numa linha de neo-rcalismo violcnto, esläo os novos exploradores do nosso universo urbano ou marginal: destaco Rubem Fonseca (A Coleira do Cäo, 1965; Lucia Mac-Cartney, 1969) c Joäo Antonio, cujo primciro livro dc contos č ainda o seu melhor trabalho: Malagueta, Perus e Bacanago, de 1963. (339) Ct.ARicKLisi'FíCToR(Tchetchelnik, Ucränia, U.R.S.S., 1926 — Rio, 1977). Re-cčm-nascida, vcio para o Brasil com os pais, que sc estabelcceram no Recife. Em 1934 a família u"ansferiu-sc para o Rio de Janeiro onde Clarice fez o curso ginasial e os preparatórios. Adolescente, 10 Graciliano, Hennan Hesse, Julien Green. Em 1943, aluna da Faculdade de Dircito, cscrevc o seu primeiro romance, Perto do Coraqäo Seivagem, que č recusado pela editora Jose Olympio. Publica-o, no ano scguinle, pela editora A Noite c recebe o Prômio Graca Aranha. Ainda em 1944 vai com o marido para Nápoles onde trabalha num hospital da Forga Expedicionária Brasileira. Voltando para o Brasil, escreve O Lustre, que sai em 1946. Depois de longas estadas na Sufya (Berná) e nos Estados Unidos, a escritora fixa-sc no Rio onde viveu até a morte. A panir de A Maqä no Escuro (1961), a sua obra tern alrafdo o interesse da melhor crítica nacionál que a situa, junto com Guimaräes Rosa no centro da nossa fiegäo de vanguarda. Outtas obras: A Cidade Sitiada, 1949; Alguns Contos, 1952; Lacos de Família (contos), 1960; A Ĺegiäo Estrangeira (contos e crônicas), 1964; A Paixäo Segundo G. IL, 1964; Uma Aprendi-zagem ou O Livro dos Prazeres, 1969; Felicidade Clandestina, 1971; A Imitaqáo da Rosay 1973; Água Viva, 1973; Onde Estiveste de noite?, 1974; A Hora da Estrela, 1977; Para näo esquecer, 1978; Um Sopro de Vida, 1978; A Bela e a Fera, 1979. Consultar: Álvaro Lins, Os Mortos de Sobrecasaca, Rio, Civ. Bras., 1963; Roberto Schwarz, A Sereia e o Desconfiado, Rio, Civ. Bras., 1965; Luiz Costa Lima, Por que Literatura, Petrópolis, Vozes, 1966; Olga de Sá, A Escritura de Clarice Lispector, Vozes, 1979; Antonio Cándido, Vários Escritos, Duas Cidades, 1970; Benedito Nunes, Leitura de Clarice Lispector, Säo Paulo, Quíron, 1973; Gilda de Mello e Souza, Exercícios de Leitura, Duas Cidades, 1980; Olga Borelli, Clarice Lispector: Esboco para um Possível Retralo, Nova Fronteira, 1981. 423 tou-lhe a filiacäo: "nosso primeiro romance dentro do espírito e da lecnica | Joyce e Virginia Woolf". E poderia ter acrescentado o nome de Faulkner. Clarice Inspector se manteria fiel äs suas primeiras conquistas formais. O uso intensivo da metafora insólita, a entrega ao fluxo da consciéncia, a ruplimt com o enredo factual tém sido constantes do seu estilo de narrar que, na sun manifesta heterodoxia, lembra o modelo batizado por Umberto Eco de "opent aperta". Modelo que já aparece, material e semanticamente, nos Ultimos io mances, A Paixäo Segundo G. H. e Urna Aprendizagem ou O Livro dos Pru zeres. Os analistas ä caca de estruturas näo deixaräo täo cedo em paz os textos complexos e abstratos de Clarice Lispector que parecem äs vezes escritos adre de para provocar esse genero de deleita^äo erftica. Limito-me aqui a ensaiar algumas idéias sobre o que me parece ser o signifieado da sua obra no contexlo da nova literatúra brasilcira. Há na génese dos scus contos c romances lal exaeerbaeäo do momenlo interior que, a ccrta altura do seu ilincrário, a propria subjetividade entra em crise. O espírito, perdído no labirinto da memoria e da auto-análise, rečiam a um novo equilíbrio. Que se fará pela recuperacdo do objeto. Näo mais na esfera conventional de algo-que-existc-para-o-cu (nívcl psicológico), mas na esfera da sua propria e irrcdulívcl rcalidadc. O sujeito só "sc salva" aeeitando o objeto como tal; como a alma que, para todas as rcligiöcs, deve reconhecer a existencia de um Ser que a transcende para beber nas fontes da sua propria existencia. Trala-sc de um salto do psicológico para o mclafísico, salto plena-mente amadurecido na consciéncia da narradora: Alčm do mais a "psicologia" minca mc interessou. O olhar psicológico me im-pacientava e mc impacicnla, é um inslrumcnlo que só transpassa. Acho que desde a adolescôncia cu havia saído do cstágio do psicológico (Paixäo..., p. 26). Abrc-se a Paixäo Segundo G. H. c Ičcm-se, cm cpígrafe, cstas palavras de Bernard Bercnson: Urna vida complcta pod e acabar numa idcntiíicacäo täo absoluta com o näo-eu que näo haverá mais um cu para morrer. E a obra toda 6 um romance de educagäo existencia!. Nos livros anteriores Clarice Lispector se abcirava do mundo exterior como quem macera a afeti-vidade c afia a alencäo: para colher atmosferas e buscar significacocs raras, mas ainda numa tentaliva de absorver o mundo pelo eu. O monólogo de G. H., entrecortado de apclos a um ser ausente, é o fim dos reeursos habituais do romance psicológico. Nelc näo há propriamente ctapas de um drama, pois cada pensamento envolve todo o drama: logo, näo há um comeco definido no tempo nem um epílogo repou šante (nes sc sentido é urna obra aberta, como aberta ao passado da memoria e ao futuro do desejo 6 a corrente da conscien- 424 ria). Há um contfnuo donso de experiéncia existencial. E, no piano ontológico, tiá o encontro de uma consciencia, G. H., com um corpo em estado de neutra inatcrialidade, a massa da barata. A paixäo (pathos) do ser que pensa é ne-ccssariamente sofrimento, na medida em que deve atravessar até o amago a liáusea do contato, assim como Agapé, que é amor de caridade, só se realiza haixando ao humilde, o objeto-abjeto, para assumi-lo e compreendé-lo. Con-irariamente a Eros, que se inflama só quando ascende ä fruicäo do que é belo. G. H. ultrapassa a rcpugnancia que vem de um eu demasiado humano; e atinge a comunhäo dc si mesma com o inseto: entäo näo há mais eu e mundo, mas urn Ser de que um e outro participant O antropólogo Lóvy-Bruhl propös, nos scus Ultimos Carnets, a diferenca entre a mentě primitiva c a civilizada cxatamcntc cm termos de participaqäo para primeira e disldncia para a segunda. Nesla, o outro 6 sempře objeto de desejo ou de medo, dc conhecimento ou dc mistério. Naquela, ao contrario, há sempře uma integraeäo dos pólos, Ora, numa romancista ocidental c culta (o que näo quer dizer "sofisticada"), a integraeäo nunca poderia ser um dado, mas um projeto, uma árdua conquista. Bašta ler as obras que přeceděním A Paixäo para acompanhar a lenta redueäo operada: dos fragmentos cm que se estilhacava a intuigäo da eseritora ä unidade da consciencia que sc csforca por transmitir os momentos da sua iluminacäo. Tcrmo que parccerá místico, mas que 6 justo empregar aqui, pois tem o selo da iluminacäo rcligiosa aquele reconhccimcnto subito de uma verdade que despoja o eu das ilusócs cotidianas e o entrega a um novo sentido da rcalidadc. Peidi alguina coisa que me era essencial, que já näo me é mais. Näo me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma tereeira perná que até entäo mc impossibilitava dc andar, mas que fazia de mim um tripe" estável (Paixäo...). A tereeira perna 6 o supórťluo que parece essencial: tudo aquilo que impede o cspfrito de caminhar com as forcas nuas do proprio ser. E a "paixäo", o contacto da mulher com o inseto csmagado consumam o sacrifício de todo entulho psicológico. A palavra neutra de Clarice Lispector arlicula essa experiéncia metafísica radical valendo-se do verbo "ser" c dc construcócs sintáticas anómalas que obrigam o leitor a repensar as rclacöcs convencionais praticadas pela sua propria linguagem: Eu estava agora täo maior que näo mc via mais. Täo grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao longe. (...) como poderei dizer senäo timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu näo entendo o que digo. Entäo adoro (Paixäo, in fine). eu sou tua e tu és meu, e nós é um (Uma Aprendizagem), 425 Säo excmplos que tem licäo vária coiiio siiitomas de uma crise de amplo cspectro: crise da personagem-ego, cujas contradicöes já näo se resolvem no casulo intimista, mas na procura consciente do supra-individual; crise da fala narrativa, afetada agora por um estilo ensaístico, indagador; crise da velha fun cäo documental da prosa romanesca. Enfim, o que a escritura de Clarice Lispector anuncia na esfera da ficcäo introspectiva dá-se também na do romance voltado para o horizonte social. Seräo as vicissitudes do regionalismo em nossos dias. Permanéncia e transformacäo do regionalismo Páginas atrás mencionaram-se excmplos de um regionalismo tenso, critico: Usina e Fogo Motto de Jose Lins do Rego, Säo Bernardo e Vidas Secas de Graciliano Ramos. Como obras-primas, esses romances cstäo de algum modo isolados na corrcntc da "literatura social" dos anos dc 30 e de 40. O que pre-dominou foi a crônica, a reportagem que mistura rclato pitoresco e vaga rei-vindicacäo política. Tiveram numerosa prole romances que encarnavam urn regionalismo mcnor, amantc do tfpico, do cxótico, e vazado numa linguagem que já näo era academica, mas que näo conseguia, pelo apego a velhas con-vencöes narrativas, scr livremcntc moderna. Näo haveria mäos a medir sc sc pretendesse aqui arrolar os autorcs que das várias partes do pais concorreram para engrossar esse gencro de ficcäo. Que, alias, assume, nos casos mais felizes, um inegável valor documental. Parte dela resistc ä lcitura pclo decoro verbal que logrou atingir. É o caso dos romances amazonenses dc Peregrino Jr., cscritor que vem dos fins da dčcada de 20 (Pussanga 6 de 1929; Maíupá, dc 1933), de Abguar Bastos (Ferra de leamiaba e Safra, de 1937), dc Osvaldo Orico (Seiva, 1937), de Raimundo dc Morais (Os lgaraúnas, 1938; Mirante do Baixo Amazonas, 1939); enfim, do mais complexo c moderno dc todos, o marajoense Dalcidio Jurandir, cujo ciclo do Extremo-Nortc sc compöc de Chove nos Campos de Cachoeira (1941), Marajö (47), 'Pres Cosas e um Rio (56), Beiern do Gräo-Pará (60) e Passagem dos Inocentes (60) (*). O Nordestc, de onde vieram os clássicos do neo-realisino, tem concorrido com uma copiosa literatura ficcional, que vai do simples registro dc costumes locais ä aberta opcäo dc crřtica e engajamento que as condicöes da area exigem. (*) O romance amazônico vem-se renovando ä medida que a regiäo tem sofrido mais duramente o impacto de um "desenvolvimento" selvagem: Márcio Souza, com Galvez, o Imperador do Acre (1976) e Benedicto Monteiro, com O Minossauro (1978), integram-se numa perspectiva de romance latino-amcricano. 426 Documentos vivos de uma iiuvclfslica da terra e do povo nordestino säo; Cas-calho (1944) c Além dos Marimbus (1961) de Herberto Sales, obras que fixam com vigor aspcctos c episódios da zona das lavras diarnantinas da Bahia; Os Corumbas (1933) e Rua do Siriri, narrativas sergipanas de Amando Fontes, que teve o mérito de chamar a atengäo para o submundo das populates mar-ginais urbanas do Nordeste; História da Cidade Moria (51) e Terra de Caruaru (60) de Jose Condé, escritor que mais recentemente preferiu bater a estráda do romance de costumes cariocas (Um Ramo para Luisa)- O Ceará conta com prosadores que honram a tradicäo do romance naturalista que lá conheceu o alto exemplo de Olivcira Paiva e Domingos Olřmpio, sem í alar nos pais da literatura regional brasilcira, Alcncar e Franklin Távora. Dcpois de Raquel de Queirós, lembro Fran Martins, que escrcveu contos (Mampueira, 1934; Noite Feliz, 1946; Mar Oceano, 1948) e romances (Ponta de 1937; Pogo dos Paus, 1938; Estrela do Pastor, 1942; O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas, 1950), Braga Montenegro (Uma Cháma ao Vento, 1946) c Joäo Clřmaco Be/erra (Náo Há Estrelas no Céu, 1948; Sol Posto, 1952). Também nďdestinos; Paulo Dan-tas (Trilógia do Nordeste, 1953-61), Gastäo de Holanda (Os Escorpiöes, 1954; O Burro de Ouro, 1960), Permínio Ásfora (Noite Grande, 1947; Fogo Verde, 1951; Vento Nordeste, 1957), pernambucano. Um exerflplo tfpico de roman-cc-documcnto do fanatismo religioso sertanejo é Emissários do Diabo (1968) de Gilvan Lemos. O contexto minciro-goiano está fixado por Mário Palmério cm dois romances de boa fatura: Vila dos Confins (1956) e Chapôdäo do Bugre (1965). De Goiás é Bernardo Élis, que já nos dcu Ermos e Gems (1944), O Tronco (1956) c Veranico de Janeiro (1966). Bernardo Élis rcpresenta hoje o ponto alto do regionalismo tradicional. Também goiano, Carmo Bemardcs é narrador de veia i'ácil e bons recursos de humor cm Regaga (1972) e Jurubatuba (72). E mineira é a ambicntacäo de A Madona de Cedro (1957), obra de Antonio Callado, que conta um caso de expiaeäo rcligiosa passado em Congonhas do Campo. Romances da vida rural paulista säo Recuo do Meridiano de Joäo Pacheco, Raiz Amarga de Lourdes Teixeira, Cháo Bruto e Filho do Destino de Hernäni Donato, 1950. O Extrcmo-Sul, que já dispunha dc uma tradicäo cultural regionalista bem estruturada manteve-a com Darci A/ambuja (No G alpa0* 1951), Viana Moog (Urn Rio Imita o Reno, 1939) e Guilhermino César (SiiU 1939), e, na linha do romance de intencäo participante, Ciro Martins (Portera Fechada, 1944) e Ivä Pedro Martins (Fronteira Agresie, 1944). De Santa Catarina é Guido Wil-mar Sassi, autor de Amigo Velho e Säo Miguel (1962). 0o gaucho Luis Antonio de Assis Brasil é o excelente romance histórico Um Querto de Légua em Quadro, dc 1976. Ao lado desse filäo romanesco neoverista, alguns prosadores tém ensaiado sinteses formais novas que procuram dar énfase nos aspectos humanos uni- 427 versais que a matéria provinciana ou rústica lhcs propicia. O ciclo maranhcnse de Josué Montello (Janelas Fechadas, 1941; A Luz da Estrela Morta, 1948; Labirinto de Espelhos, 1952; A Décima Noite, 1955; Os Degraus do Paraíso, 1965; Cais da Sagragäo, 1971; Os Tambores de Säo Luis, 1975), combina dc maneira sóbria e numa linguagem estritamente literária a fixacäo da velha Säo Luis e o cuidado do retrato psicológico nas fronteiras do psicanalftico. Mais radical como sondagem interior e mais denso nos seus resultados formais é o romance dc Adonias Filho, para quern a zona cacaueira baiana tern servido dc plataforma para uma incursao na alma primitiva que, para ele, se confundc com os próprios movimcntos da terra. O telúrico, o barbaro, o primordial como determinants prévios do destino säo os contcúdos que transpôe a prosa elíptica dc Os Servos da Morte (1946), Memó rias de Lazar o (1952) e C or po Vivo (1963). No mesmo espírito foi claborado O Forte, dc ambientacäo urbana. Adonias Filho é o continuador dc urna corrente ľiccional que comecou nos anos dc 30 com eseritores dc lormacäo rcligiosa inclinados ao romance de atmosféra: Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Jorge dc Lima. A esse tipo de prosa ajustou-sc bcm o uso intensi vo do monólogo ä Faulkner c a armacäo de urna trama em que as personagens ficam, por assim dizcr, suspensas nas mäos de um poder suprapsicológico, a Graga, o Destino. E é com os rccursos do Ex-pressionismo e do Surrcalismo que a prosa dc Adonias Filho busca ultrapassar as visadas dc urn realismo dc convencao. Mcncäo ä parte mcrccc José Cíindido de Carvalho que conscguiu, em O Coronet e o Lobisomem (1964), captar os conflitos c os anscios dc um homcm dc mente rústica sem cair na cilada que csprcita as tcntativas desse gencro, isto é, sem cnrijcccr a sua personagem no puro lipo, o que, alias, lhe séria fácil realizar com brilho, dados os pendores do ficcionista para cxplorar o ridículo das suas criaturas. Rclcva ainda notar a justcza cxprcssiva da sua linguagem vcrdadciramcntc clássica sem dcixar dc ser moderna. Combinando lenda c humor, tradicao popular e paródia, o dramaturgo pa-raibano Ariano Suassuna surprcendcu scu publico com duas narrativas dc fo-lego, A Pedra do Reino (1971) c O Ret Degolado (1977). Joao (luimaraes Rosa (34°) O rcgionalismo, que deu algumas das formas mcnos tensas dc cscritura (a crônica, o conto folelórico, a reportagem), estava destinado a sofrer, nas (34°) Joáo Guimaráes Rosa (Cordisburgo, M. Gerais, 1908 — Rio dc Janeiro, 1967). Filho dc um pequcno comcrciantc cstabelecido na zona pastoril centro-norte dc Minas, aprendeu as primeiras letras na cidade natal. Fez o curso secundário em Belo Horizonte revelando-se desdc cedo um apaixonado da Naturcza c das línguas. Cursou Medicína 428 maos de um ailtxin demiurgo, a metamorfose que o traria de novo ao ccntro da ficcáo brasileira. A alquimia, operada por Joao Guimaraes Rosa, tem sido o grande terna da nossa crftica desde o aparecimento dessa obra espantosa que é Grande Sertáo: Veredas. e, formado, exerceu a profissäo cm cidades do interior mineiro (Itaúna, Barbacena). Nesse periodo estudou sozinho alemäo e russo. Em 1934, fez concurso para o Ministério do Exterior. Ingressando na caiTeira diplomática, serviu como consul-adjunto em Ham-burgo, sendo internado em Baden-Baden quando o Brasil declarou guerra ä Alemanha. Foi secretário de cmbaixada em Bogota e conselheiro diplomático em Paris. De volta ao Brasil ascende a ministro (1958). Um dos seus Ultimos encargos de profissional foi a chefia do Servico de Dcmarcagäo de Frontciras que o levou a tratar casos espinhosos como o do Pico da Ncblina e o das Sete Qucdas. Da sua carreira de eseritor, cm grande parte afaslado da vida literária, só obteve o reconhecimento geral a partir de 1956, quando safram Grande Sertáo: Veredas e Corpo de Daile. Mas publicadas estas obras, o reconhecimento crcsccu a ponto de melhor cha-mar-se glória. Há iradugftcs de suas obras para o francos, o italiano, o espanhol, o inglěs e o alemäo. G. Rosa falcccu de enfarte, aos cinqiicnta c nove anos, trôs dias depois de admitido solcnemcntc ä Academia Brasileira de Letras. Obra: Sagarana (contos), 1946; Corpo de Bade (ciclo novelesco), 1956; Grande Sertäo: Veredas (romance), 1956; Phmeiras Estórias, 1962; Tutaméia: T erceiras Estórias, 1967; Estas Estórias (pôst., 1969). O ciclo de Corpo de Baile dcsdobrou-se, a pmlir da 3' cdicäo, de 1964, cm trôs volumes: Manuelzäo e Miguilim, No Urubuquaquá no Pinhém, Noitcs do Sertäo. G. Rosa dcixou inódito Magma, poemas. Consultar: Diá-logo n- S, novembro dc 1957 (numero dedieado a Guimaräcs Rosa); Cavalcanti Proenca, Augusto dos Anjos e Outros Estudos, Rio, Josó Olympio, 1958; Eduardo Portella, Di-mensôes I, Rio, Josó Olympio, 1958; Antonio Cändido, Tese e Antítese, S. Paulo, Cia. Ed. Nacionál, 1964; Adolfo Casais Montciro, O Romance. Teória e Crftica, Rio, José Olympio, 1964; Dante Moreira Leite, Psicologia e Literatura, S. Paulo, C. Est. de Cul-tura, 1964; Bcnedito Nuncs, "O Amor na Obra de G. R.", in Revista do Livro, n2 26, set. dc 1964; Roberto Schwarz, A Sereia e o Desconfiado, Rio, Civ. Brasileira, 1965; Luiz Costa Lima, Por que Literatura, Petrópolis, Vozcs, 1966; Angela Vaz Leäo, Hen-riqucla LLsboa, Wilton Cardoso, Maria Luisa Ramos, Fernando Corrcia Dias, Guimaräes Rosa, Belo Horizonte, Centro dc Estudos Mineiros, 1966; Paulo Rónai, "Os Vastos Es-pagos", estudo preposto a Primeiras Estórias, a partir da 3? ed., Rio, J. Olympio, 1967; Haroldo dc Campos, Metalinguagem, Petrópolis, Vozes, 1967; Fábio Freixeiro, Da Razäo á Emocäo, S. Paulo, Cia. Ed. Nacionál, 1968; Mary Daniel, Joäo Guimaräes Rosa: Travessia Literária, Rio, Jose Olympio, 1968; Vários, Em Memoria de J. G. R., Rio, J. Olympio, 1968; Walnice N. Galväo, As Formas do Falsa, S. Paulo, Pcrspectiva, 1972; J. C. Garbuglio, O Mundo Movente de G. Rosa, S. Paulo, Ática, 1972; Willi Bolle, Formula e Fábula, Pcrspectiva, 1974; Wendel Santos, A Construcäo do Romance em G. Rosa, Ática, 1978; Suzi Frankl Sperber, Caos e Cosmos, Duas Cidades, 1976; Walnicc Galväo, Mitológica Rosiana, Alica, 1978; Leonardo Arroyo, A Cultura Popular em Grande Sertáo: Veredas, Rio, J. Olympio, 1984; A. Bosi, Céu, Inferno, Ática, 1988. 429 Após a sua leitura, comecou-se a cntcndcr dc novo uma antiga verdadc: que os conteúdos sociais e psicológicos só entram a fazer parte da obra quando veiculados por um código de arte que lhes potencia a carga musical e semäntica. E, em consonäncia com todo o pensamento de hoje, que é um pensar a natureza e as funcöes da linguagem, comecou-se a ver que a grande novidade do romance vinha de uma alteragäo profunda no modo de enfrentar a palavra. Para Guimaräes Rosa, como para os mestres da prosa moderna (um Joyce, um Borges, um Gadda), a palavra é sempře um feixe de significances: mas ela o é em um grau eminente de intensidade se comparada aos códigos convencionais de prosa. Além de referente semäntico, o signo estético é portador de sons e de formas que desvendam, fenomcnicamente, as relacöes intimas entre o sig-nificante e o significado. Toda voltada para as formas virtuais da linguagem, a escritura de Guimaräes Rosa procede abolindo intencionalmente as fronteiras entre narrativa e Urica, distincäo batida c didática, que sc tornou, porém, dc uso embaracante para a abordagem do romance moderno. Grande Sertäo; Veredas c as novelas de Corpo de Balle incluem e revitalizam recursos da exprcssäo počtica: células rítmicas, alitcrayöes, onomatopéias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos dc sintaxe, vocabulário insólito, arcaico ou de todo ncológico, associates raras, metáforas, anáforas, metonímias, lusäo de estilos, coralidadc. Mas como todo artista consciente, Guimaräes Rosa só inventou depois de ter fei to o inventário dos processos da lingua (341). Imerso na mu-sicalidade da fala serlaneja, elc procurou, cm um primeiro tempo (tempo de Sagarand), fixá-la na melopčia dc um frascio no qual soam cadencias populäres e medievais: As ancas balancam, c as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no mcio, na massa cmbolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos de baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita trisleza, saudade dos campos, qucrôncia dos pastos, de lá do scitäo... Um boi preto, um boi pintado, cada um lern sua cor. Cada coraeäo um jeito de mostrar o seu amor. Boi bem bravo bate baixo, bota baba, boi berrando... Dansa doido, dá de duro, dá de dentro, dá dircito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai näo volta, vai varando... (Sagarana, O Burrinho Pedros) (341) Leiam-se, por excmplo, as notas de léxico que o novelista apôs ao texto de "Caia de Bronze" (Corpo de Baile). 430 Do mimelisino enhc cullo c folclórico de Sagarana, o escritor soube zarpar para ousadas combinacöcs de som e de forma nas obras maduras, coalhadas de termos e grupos nominais como essezinho, essezim, salsim, satanazim, semblar, fiúme, agarrante, levan-tante, maravilhal, fluifim (ad.), gavioäo, ossoso, vivoso, brisbrisa, cavalancos, refrio, retroväo, remedir, deslei, desfalar, a cismorro, de pouquinho em pou-quim, o ferrabrir dos olhos, a brumalva do amanhecer, alemäo-rana; ou frases e períodos como: a bala beijaflorou; os passarinhos que bem-me-viam; os cavalos aiando gritos; rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas...; ao que nos acampados em pé duns brejos, brejal, cabo de várzeas; me revejo de tudo, daquele dia a dia; aí a gente se eurvar, suspendia urna folhagem, lá enírava; resumo que nós dots, sob num tempo, demos para trás, discordas; e aí se deu o que se deu — o isto é; eu era um hörnern restante trivial; at, de, já se arapuava o Gorgulho mestre na desconfianca;... O princípio fundamental da linguagem poética, genialmente inluído por Vico, é o da analógia, a arcana "logica poética", logica dos sentidos, que vineu la a fala inovadora äs matrizes de toda lingua. Ora, o pensamento analógico é pensamento mítico. O que sc passa com a linguagem de Guimaräcs Rosa no tratamento das unidades verbais (fonemas, morfemas), ocorre também no piano dos grandes blocos de significado: as suas estórias säo fábulas, mythoi que vclam c revclam urna visäo global da existencia, próxima de um materialisms rcligioso, porque panteista, isto č, propenso a fundir numa única reali-dade, a Natureza, o bem e o mal, o divino e o demonfaco, o u no e o múltiplo. O coní'lito entre o eu/herói e o mundo (que nos tem valido de fio de Ariadne no labirinto da ficcäo moderna) näo desaparcce no grande romance de Guimaräcs Rosa: resolve-se mcdiantc o pacto do hörnern com a propria origem das tensöcs: o Outro, o avesso, "os Crespos do hörnern". Quanto ä dialética da trama (que sc rcconhecc nas lutas entre jaguncos, nas vingancas juradas, na rcla^äo ambígua entre Riobaldo e Diadorim) näo se processa mediante a análisc das fraturas psiquicas nem pela mimese de grupos e tipos locais: faz-se pela inleracäo assidua da personagem com um Todo natural-cultural onipre-sente: o sertäo. "O sertäo é do lamanho do mundo." "O jagun^o é o sertäo." "Sertäo é isto, o senhor sabc: tudo incerto, tudo certo." Nesse Todo positivo e negativo interpenetram-sc o sensível e o espiritual de tal sorte que o ultimo acaba parecendo urna inten^äo oculta da matéria ("Tem diabo nenhum, nem espírito"), que se manifesta nos modos pré-lógicos da cultura: o milo, a psique infantil, o sonho, a loucura. A alma desmancha-sc nas pedras, nos bichos, nas árvores, como o sabor que näo se pode abstrair do alimento. As Primeiras Estórias e Tutaméia foram rcsultantcs normais daquele pro-cesso ä ordern mental do adulto civilizado branco que se instaurara na lingua- 431 gem de Grande Sertäo: Veredas. Neste romance a linguagcm do mito rompia as amarras espácio-temporais: As coisas que näo tém hoje e anťontem amanhä: é sempře. Ai, arre, mas; que esta minha boca näo tem ordern nenhuma. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte e reverte As pessoas e as coisas näo säo de verdade. A vida disfarf a. Sujeito c objeto opöem-se na aparéncia, mas no fundo partilham de algo infinitamente mutávcl: o dcvir: É e näo é. O scnhor ache c näo ache. Tudo é e näo é... Quase todo mais grave criminoso fcroz, scmprc č muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-dc-scus-amigos! Sei desscs. Só que tem os depois — e Deus, junto. Vi muitas nuvens. Mirc vcja: o mais impoitante c bonito, do mundo é isto: que as pessoas näo estäo scmprc iguais, ainda näo foram tcnninadas — mas que clas väo sempře mu-dando. Afinám c dcsafinam. O mitopoético foi a solucäo romancsca de Guimaräcs Rosa. A sua obra situa-sc na vanguarda da narrativa contcmporänea que se tem abeirado dos limites entre real c surreal (Borges, Buzzati, Calvino) c tem cxplorado com paixäo as dimensöcs pré-conscicntcs do ser humano (Faulkner, Gadda, Cortázar e o avatar de todos, James Joyce). E séria talvez fácil paradoxo lembrar que uma obra de läo aguda modernidade sc nutre de vclhas tradicöes, as mesmas que dávam ä gesta dos cavalciros feudais a aura do convívio com o sagrado c o dcmoníaco. É verdade que a intcrprctacäo da obra fundamental de Rosa cstá ainda em aberto. Riobaldo, o protagonista de Grande Sertäo, é um hörnern que busca, no vaivčm das suas memórias c rcflcxôcs, negar a existencia real do demônio ("o que-näo-há") com quem fez um pacto quando sc propos vencer o jagunco Hcrmógencs. E parece concluir que o Mal é um atributo do ser, um acidente que vicia o coraeäo dos homens, urna ťatalidadc que sc deve cnťrentar com paciencia c vida justa. Entretanto, essa perspectiva, que dissolveria o puro milo em certo nível da consciencia racional, näo se sustém no conjunto da obra rosiana. As Primeiras c as Terceiras Estórias parecem desaguar no desejo que os vaquciros atribucm ao misterioso Cara de Bronze: "Näo entender, näo entender até se virar menino", ou, entregando-se ao jogo da imaginacäo: "Tudo no quilombo do faz-dc-conta." Nas Primeiras Estórias é patente o fascínio do alógico: säo contos povoados de criancas, loucos c seres rústicos que cedem ao encanto de urna iluminacäo junto ä qual os conflitos perdem todo relcvo e todo sentido. Há um apclo aberto ao lúdico e ao mágico cm "A Mcnina de Lá", que nos fala de Nhinhinha, cujo silencio de crianca era um extasc contínuo e cujos pensamentos sc faziam milagrosamente realidade; em "As Margens da Alegria", história da viagem de um menino feita cm estado de sonho onde as coisas surgem do opaco; em "Soroco, sua mäe, sua filha", onde a cancäo de 432 duas loucas é o unico sinal de realidade quc restará no ar do vilarcjo quc a canta cm coro; cm "A Tcrceira Margem do Rio", em que se fala de um hörnern refugiado cm uma canoa no meio do rio, onde em absoluto siléncio resiste ao tempo "por todas as semanas e os meses e os anos sem fazer conta do se-ir do viver", imagem da permanéncia no fluir eterno das águas. A linguagem como auto-expressäo, jorro imediato do Inconsciente, válida em si mesma, aquém do esforco de significar o real, é, por sua vez, o núcleo de "Pirlim-psiquicc", cm quc sc narra a aventura de meninos fazendo teatro e, a certa altura, inventando, fora dos papéis a recitar, palavras de uma história nunca ouvida: "Cada um de nós se esquecera do seu mesmo, e estávamos transvi-vendo, sobreviventes, disto: quc cra o verdadeiro viver? E era bom demais, bonilo — o milmaravilhoso — a gente voava, num amor, nas palavras: no quc se ouvia dos oulros e no nosso proprio falar." O mesmo reconheeimento do incfávcl aparecc no cprlogo de "Substancia", quando o extase do amor se Iransfunde na sensaeäo de ofuscamento quc vcm da branca matéria, o polvilho: "Acontccia o näo-fato, o näo-tempo, silencio cm sua imaginayäo. Só o um-e-outra, um cm-si-juntos, o viver cm ponto sem parar, coracäomcnte, pensamento, pensamos. Alvos. Avancavam, parados, dentro da luz, como sc fosse no dia dc Todos os Pássaros." O conto "Mcu Tio, o Iauarelc" (agora cm Estas Es-iórias) culmina com a idcntificacäo — sonora c semanlica — do hörnern com a onca. Enfim, cm "O Recado do Morro" (Corpo de Baiie), a voz que vem da terra cm forma dc presságio näo será o proprio Inconsciente (matéria ou espírilo?) quc anlccipa ao sertanejo o scu destino? O baralhar dos tempos c dos lugarcs já em Grande Seríäo: Veredas sig-nificava um desvio dos eixos da rotina, uma ruptúra com a hora do relógio, um transcender as particöcs de geografia. Nos Ultimos livros o processo radi-caliza-sc c pede uma intcrprctacäo, quc os prefácios amancirados dc Tutaméia cnlcndcm dar numa linha irracionalista: Guimaräcs Rosa aí eseolhe abertamente a leitura quc Danie chamava "anagógica" ou supra-sensível. Dc-sc ou näo im-portäncia äs cxplicacôcs do autor, o lato é que Uxla a sua obra nos pôc em face do milo como forma dc pensar c de dizer atemporal c, na medida em quc leva a transformacôcs bruscas, alógica. Volta-sc ao ponto dc partida. A obra dc Guimaräcs Rosa é um dcsafio ä narracäo convencional porque os seus processos mais constantes pertencem äs esferas do počtico c do mítico. Para comprccnde-la cm toda a sua riqucza é preciso repensar cssas dimen-sôcs da cultura, näo in abstracto, mas tal como sc articulam no mundo da linguagem. Outro problcma seria o dc situar a opcäo mitopoética do eseritor na práxis da cultura brasileira de hoje. A transfiguraeäo da vivencia rústica interessa principalmente cnquanto mensagem, ou cnquanto código? O que ficará em primeiro piano na consciéncia do hörnern culto: a rcproposicäo da vida e da mentalidadc rural e agreste, ou o experimento cstético? É certo que a erítica 433 mais recente, escolhendo o ponto de vista tecnico, no espirito do ncoforma lismo, tende a passar por alto a complexa rede de estilos de pensamento qu<* serviram de contexto e subjazem ä ficcáo de Rosa. Uma leitura que ignore essas vinculacóes pode resvalar em uma curiosa ideológia, espécie de trans-cendentismo formal, näo menos arriscada que o conteudismo bruto que lhc é simétrico e oposto. Mais uma vez, impôe-se a procura do nexo dialético que desnuda a homologia entre as camadas inventivas da obra e os seus contextos de base. A invencäo näo é um dado autônomo, imotivado. "O discurso mítico — diz Lucien Sebag — como qualquer outro discurso humano, necessita uma matéria previa que lhe sirva dc suporte: encontra-a no meio natural e humano em cujo interior apareceu. Tende a resolvcr no piano simbólico as antinomias vividas como dificilmente conciliávcis no nŕvcl real." Ate aqui, temos a pla-taforma para entendcr o que o antropólogo dirá adiante: "O discurso mítico só conscguc resolvcr as antinomias porqua emprega de um modo mais radical a lógica subjacente á organizacäo sociaľ (grifo mcu) (342). Teríamos nessas palavras o princípio que operou na claboracäo do discurso milopoético do grande eseritor minciro: a radicalizacao dos processos mentais c verbais inerentes ao contexto que lhc dcu a matčria-prima da sua arte. Qué näo foi, nem poderia ter sido, regionalismo banal, cópia das superficies com todos os prcconccitos que a imitacäo folelórica leva ä conľcccäo do objeto literário. É verdade, também, que a supcracäo sc dcu, para Guimarács Rosa, na esfera da contcmplacäo c da descida äs matrizes naturais da comunidade ser-tancja. Houvc c há, por ccrlo, outros mcios dc csconjurar o pitorcsco c o exo-tismo dc epidemic. Por cxcmplo, pondo a nu as tensocs entre o homem e a naturcza, como o fez Graciliano cm Vidas Secas, c entre o homem e o proximo (o mcsmo Graciliano, cm Sao Bernardo, c Lins do Rcgo, cm Fogo Morto). A "saída" Guimaracs Rosa foi a cntrega amorosa ä paisagem c ao mi to reen-contrados na malcrialidadc da linguagem. Näo é a única para o eseritor bra-silciro dc hojc. Mas (será preciso tlizc-lo?), é a que nos fascinará por mais tempo c com mais razôcs. A fíccäo entre os anos 70 e 90: alguns pontos de referencia O historiador do século XXI que, ajudado pela perspectiva do tempo, púder ver com mais elareza as linhas-de-forca que atravessam a ficcäo brasilcira neste f im de milenio, talvez divise, como dado recorrente, certo cstilo dc narrar bru- (342) L. Scbag, "Le mythe: code et message", in Les Temps Modernes, margo de 1965. 434 lal, sc näo intcncionalinciitc brutalista, que diferc do ideal de escrita mcdiado |)clo comentário psicológico e pelo gosto das pausas reflexivas ainda vigente i ia "idade de ouro do romance brasileiro" entre os anos 30 e 60. Mas para nos, contemporäneos, é a pluralidade das formas que impressiona ä primeira vista e tacteamos ainda na procura da estráda real. Sentimos as difercncas em relagäo ä prosa dos pós-modernistas maiores (Guimaräes Rosa e Clarice Lispector), mas näo sabemos com precisäo onde desenhar a linha do corte. Tal vez porque o corte se tenha dado em mais de um nivel. Se a nossa história política nos ajuda a cstabclccer o divisor das águas, este poderá passar pela fasc mais negra da ditadura militar, cntre 64 c 74, com toda a sua carga de oprcssäo, cxílio c censura. O seu contraponto simbólico veio a ser a literatura-reportagem, assim como o teatro sc fez cntäo denúncia e o cinema, depoimento. Tempo fixado cm Lucio Flavia, o Passageiro da Agónia, c cm Acusado de Homic.ídio, de Josó Louzeiro, c, mais tardc, cm San-gue na Práca, dc Edilbcrto Coutinho. Quem percorrer as páginas literárias de um jornal dc resistencia da čpoca, Movimento, comprcenderá os motivos da urgencia c as formas possívcis dessa escrita abertamente cngajada. Mas csscs anos dc arbítrio, que parti lhamos com oulros po vos da America Latina, näo sc podem considcrar tempos dc isolamcnto cultural; ao contrario, coincidem com a cxplosäo dc maio dc 68 na Franca c com os seus vários desdobramcntos que atingiram em chcio formas dc conduta individual c modos de exprcssäo entre as gcracöcs que soťrcram o scu impacto. No Brasil a abertura cultural prcccdcu a abertura política e lhc sobrevivcu. Por essa razäo, cnquanto alguns eseritores militantes, aguilhoados pelo dc-safio da situagäo nacionál, refaziam a inštancia mimčtica, quasc fotográfica, da prosa documental, já se comecavam a sentir, principalmente entrc os jovens, os apelos da contracultura que rcclamavam o lugar, ou os múltiplos lugares, do sujcito, as potencias do desejo, a liberdade sem peias da imaginacäo. A virada era internacionál, como planctárias cram as transľormacôes idcológicas que ela representava. O capitalismo avaneado, combinando selvageria e sofis-ticacäo eletrônica, conquistava o monopólio dos bens simbólicos. Os desejos, ou melhor, as suas represcntacôcs c as suas contraľacôcs, convertiam-se em mereadorias sob a batuta dos meios dc comunicayäo dc massa. O abalo que esse processo causou na cultura letrada c, portanto, na producäo narrativa, ainda está por cstudar. Já sc observou que certas obras superficialmente rotuláveis como docu-mentos imediatos do Brasil pós-64 (Zero, de Loyola Brandäo; A Festa, de Ivan Angelo; Quatro-Olhos, de Renato Pompeu; O que é is so, companheirol, dc Fernando Gabeira), na verdade introduziam no centro do seu olhar a erítica 435 das informacöes públicas c a rccusa dos estcreótipos partidários, propondo mi tes questôes a resolver do que solucôes ideológicas de fácil administracao (*), O melhor da literatura feita nos anos de regime militar batéria, porlanlo, a rota da contra-ideologia, que arma o indivíduo em face do Estado autoriiniu» e da mřdia mentirosa. Ou, em outra direcäo, dissipa as ilusöes de onisciôni ia e onipoténcia do eu burgués, pondo a nu os seus limites e opondo-lhc a ro.i lidade da difercnca. Ao historiador cabe citar alguns nomes, que ilustram essa ou aquela vn tente, correndo forcosamcnte o risco de omissôes involuntárias. Aparcccm a partir dos anos 70 vários narradores para os quais é a aprecnsao das imagens do scu univcrso regional que Ihcs serve de bússola o tempo lodo. Lcmbro Joäo Ubaldo Ribciro contando, cm parte na esteira de Guimaräes Rosu, os casos tragicômicos do scu Nordcstc violcnlíssimo, minguado de recursos materials, mas rico de memoria c linguagem (Sargetito Getúlio, sua melhor obra). Ou Moacyr Scliar, persevcrando na bela reconstruct) das figuras judaicas de Porto Alcgrc. Ou Josué Guimaräes, ainda proximo do Érico Vcríssimo muralista, nar« rando a saga do migrante nas pcquenas cidades do Sul. Chama igualmente a atcii* cäo o gosto, que cssa mcsma conceptäo de literatura culliva, de verticalizar a pcrccpyäo do scu objeto examinando-o com urn olhar cm rctrospecto; proccdi-mcnto que dá um lom čpico, ainda quando a intcncäo č antiépica, a obras entre si diversas como Viva o ľovo Braši leiro, de Joäo Ubaldo Ribciro, ou a Trilógia dos Mitos Riograndenses, de L.A. de Assis Brasil, ou o Memorial de Santa Cruz, de Sinval Medina, ou ainda Os Varöes Assinalados de Tabajara Ruas, os dois Ultimos lambčm gaúchos. Belo cruzamcnlo dc sondagem das rclacöcs familiäres c crônica dos tempos dc Getúlio é A República dos Sonhos dc Nčlida Pinon. Em outros narradores, o essential da eserita acompanha os movimentos dos corpos que sc atracm ou repciem cm um clima dc delírio: penso na prosa de Joäo Gilbcrlo Noll, riscando com cslilclc o desenho pesado da sexualidade do nosso urbanóidc. Ou cm Estorvo, dc Chico Buarquc dc Holanda, mergu-Ihando no subsolo aquoso dc urna scnsacäo dc eslranhamcnto c nonsense em meio äs paisagens cariocas mais familiäres. Há os que submetem pcrccpgöcs c lembrangas ä luz da análise materialista clássica, dissecando os motivos (cm geral, perversos) dos compor tarnen tos de seus personagens que ainda trazem a marca de lipos sociais. É o caso dc Rubem Fonscca, que vem dos anos 60 c demonstrou forca c fôlego nas páginas cruéis dc O Caso Motel (73), A Grande Arte, romance policial na linha do brutalismo ianquc (83), Bufo & Spallanzani (86) c, sobrcludo, Agosto (90), relato dos eventos que prcccdcram o suicídio dc Getúlio Vargas misturado com flashes (*) Rcmcto o leitor äs observances dc Flora Süssekind cm Tal Brasil, qua! Romance? (Rio, Achiamé, 1984). Sobic os liames entre jornal e rcalismo, ver Davi Arrigucci Jr., Achados e Perdidos c, paiticularmcnte sobre Gabcira, Enigma e Comentário (Cia. das Letras, 1987). 436 da vida privada t aulo dc scus admiradores quanto dc seus desafetos: quase-Cronica política, quasc-romance. A mesma gana de objetividade, mas centrada nos mecanismos entre fisiológicos e psíquicos das suas personae, confere ao romance de Zulmira Tavares Ribeiro (O Nome do Bispo, 85; Jóias de Família, IK)) um ar de ensaio de análise social da mentalidade paulista quatrocentona cm tempos de rápida e confusa modernizacäo. A potencialidade da ficcäo brasilcira está na sua abertura as nossas dife-rencas. Näo a esgotam nem os bas-fonds cariocas nem os rebcntos paulistas cm crise de identidadc, ncm os velhos moradorcs dos bairros de classe média gaúcha, nem as histórias cspinhentas do scrtäo nordestino. Há lugar também para outros espagos e tempos c, portanto, para divcrsos registros narrativos como os que dcrivam de sondagens no fluxo da consciencia. Quem supunha, por cxemplo, que da Amazônia só nos viesscm cpisódios de seringueiros ou dc índios massacrados, por ccrto rcccbeu com surpresa o texto em surdina de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente (89), em que a vida dc uma família burgucsa de origem árabe, cnraizada cm Manaus, se dá ao leitor como um tccido de memórias, uma scqiiôncia äs vczcs fantasmagórica de cstados de alma, que lembra a tradicäo do nosso mclhor romance introspect i vo. A escrita apurada dc um cstrcantc como Milton Hatoum parccc indicar (como o fizcram, nos anos 70, Raduan Nassar com Lavoura Arcaica c Carlos & Carlos Sussckind com Armadilha para Lamar tine) que um ccrto ideal dc prosa narrativa, rcfletida c compassada, que vcm dc Graciliano e chegou a Osman Lins, näo é forgosamente ťruto dc um passado estético irreversível. Esse padräo resistc em mcio aos cacos do mosaico pós-moderno c significa a vitalidadc dc um gosto litcrário sóbrio que näo rcnuncia ä mcdiacäo da sintaxe bem composta c do léxico preciso, sejam quais forcm os graus dc complexidade da sua mensagem. A idéia dc arte como trabalho baqucou mas ainda näo morreu. É o que sc dá nos contos ao mesmo tempo cristalinos e perturbadores de Modesto Caronc, que aprendeu junto ä escrita dc Kafka — dc que é excelente tradutor — o segredo de um rcalismo ardido c contido, capaz de enfrcntar as pancadas do absurdo que cada um dc nós sofre no mais banal dos cotidianos. Recomendo a leitura dc Aos Pés de Matilde (85) c Dias Melhores (90). E sc o assunto é o trabalho da forma expressiva, sirva dc fecho a este esboco de roteiro a mcncäo dc duas obras que abriram de modo promissor o ultimo decenio do século: Coivara da Memória e Os Desvalidos, de Francisco J. C. Dantas. Rcgionalismo ainda? Pcrgunta que provoca outras, mais perti-nentes: leriam, acaso, sumido para sempře as práticas simbólicas de comuni-dades inteiras que viveram e vivem no sertäo nordestino, só porque urna parte da rcgiäo entrou no ritmo da indústria e do capitalismo internacionál? É lícilo 437 subtrair ao escritor que nasceu e cresceu cm um cngcnho sergipano o direito dc recriar o imaginário da sua infäncia e de seus antepassados, pelo simples fato d# ele ser professor de universidade ou digitar os seus textos em computador? Mas bašta abrir ao acaso a história forte e pungente contada em Os Desvalidos para entender a necessidade interna do seu trabalho de estilizacäo da memoria coletiva. Na rede de uma cultura plurál como a que vivemos, é a qualidade estética do texto que ainda deve importar como primeiro critério de inclusäo no vasto mundo da narrativa; só depois, e em um matizado segundo piano, é que interessant o assunto ou a visibilidade dos seus referentes. Esta, por seu turno; parece depender, cada vez mais, da mídia, isto é, do mercado das comunicagöes. O que conta e deve sobrcviver na memoria seletiva da história literária é o pathos feito imagem e maccrado pela consciencia crítica. A POESIA Foi a expressäo počtica a que mais pronta e mais radicalmenle se alterou com a viragem modernista. Mario dc Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade haviam rompido com os códigos académicos c incorporado ä nossa lfrica as formas li vřes com cxemplos täo vigorosos e felizes que aos poetas dos anos de 30 näo seria mister inventář ex nihilo uma nova linguagem. De um modo geral, porém, podc-se rcconheccr nos poetas que sc firmaram depois da fasc heróica do Modernismo a conquista de dimensöes temáticas novas: a política em Drummond e cm Murilo Mendes; a religiosa, no mesmo Murilo, em Jorge de Lima, em Augusto Frederico Schmidt, cm Cecília Mei-reles. E näo só: também se impóe a busca de uma linguagem essencial, afim äs experiéncias metafísicas e herméticas de certo veio rilkeano da lírica moderna, e que se reconhecc na primeira fase dc Vinícius de Moraes, em Cecília Meireles, em Henriqueta Lisboa, em Emílio Moura, em Dante Milano, cm Joa-quim Cardozo, em Alphonsus de Guimaracns FUho. A poética destes Ultimos, herdciros maduros da experiencia formal sim-bolista, continua de certo modo em poetas da década dc 40, dentre os quais emergiu um grupo que dcu um tom polemico ä própria consciencia de já näo mais repetir tracos acidentais do Modernismo. É a chamada "geraeäo de 45", na qual se tem incluído nomes díspares que apresentaram em comum apenas o pendor para čerta diccäo nobre e a volta, nem sempře sistemática, a metros e a formas fixas de eunho clássico: soneto, ode, elegia... (343). Enquanto grupo, (343) Entre outros, Domingos Carvalho da Silva, Pericles Eugcnio da Silva Ramos, Geir Campos, Ledo Ivo, Jose" Paulo Moreira da Fonseca, Thiago de Melo, Paulo Mendes Campos, Marcos Konder Reis, Bueno de Rivera, Geraldo Vidigal, Dantas Mota, Mauro Mola, Ciro Pimentel, Afonso Felix de Sousa, Paulo Bonfim... 438 esses nomes näo liveraiii influencia duradoura; mas como tendiam ä pesquisa formal, repropuscram no meio Hterário brasileiro um problema básico: o da concepgäo de poesia como arte da palavra, em con traste com outras aborda-gens que privilégiám o material extra-estético do texto. Os melhores poetas da segunda metade do século tém respondido de modo vário aos desafios cada vez mais prementes que a cultura e a praxis lancam ao eseritor. E que se chamam, por exemplo, guerra fria, condicäo atômica, lutas raciais, corrida interplanetária, neocapitalismo, Terceiro Mundo, tecno-cracia... E, vindos embora, em sua grande parte, do formalismo menor e es-tetizante que marcou o clima de 45, lograram atingir urn piano mais alto e complexo de integraeäo, de que säo cxemplos os poderosos pocmas de Ferreira Guliar e de Mário Faustino, os elaborados experimentos da poesia concreta (Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Jose Lino Grunewald, Jose Paulo Pacs, Pedro Xisto...) c da poesia-práxis (Mário Chamie), além de todo o itinerário do maior pocta brasileiro de nossos dias, Joäo Cabral de Melo Neto. Rcnovar a linguagem está no ccrne das preocupacôes c dos projetos de todos. Mas subsistem divergencias sensíveis sobre o modo de entender as fron-teiras entre poesia c näo-poesia, sobre o lipo de mediaeäo que sc deve propor entre o ato cslčtico e os demais atos humanos (éticos, políticos, rcligiosos, vitais), ou ainda sobre as relacôes que se podem cstabclccer entre o poema e o objeto de consumo, a imagem da propaganda, o slogan politico, a cangäo popular e outras manifestacöes de urna cultura plural vciculada cada vez mais intensamente pelos mcios de comunicacäo de massa. Nessa atmosféra saturada dc conscicncia erítica e polcmica, assumem papcl de extremo rclcvo conecitos de origem filosófica (alienacäo, práxis, superacäo, dialética), que eruzam annas com nocfxřs dc Cibcrnčtica c da Teória da Informacäo (enlropia, redundancia, emis-sor, receptor, código, mensagem). Ao mesmo tempo, o diseurso sobre a arte se afasta do vocubulário cxistencial (angústia, autenlicidade, opcäo, imaginá-rio...) correnle nos anos do imediato pós-guerra. Uma sedc dc atualizagäo técnica, um gosto — c äs vezes um mancirismo — da impessoalidade, da coisa e da pedra, en tram a compor a lapilosa mitologia do nosso tempo, cor-rendo o risco de tomar por joio o trigo de valores que o hörnern vem há séculos arduamente conquistando. Este é o universo mental onde estamos inseridos; e näo parece de todo insensato, sc descermos äs razöes da aridcz que nos cerca, esperar das poéticas da dureza e da agressividade algo mais que a fátua complacencia na dureza e na agressividade: a denúncia do que aí cstá c a procura dc urna comunicacäo mais livre e inteligente com o semelhante. Nos textos dos poetas estudados ou apenas referidos abaixo, o leitor re-conhecerá os temas e as formas predomiňantes na poesia contemporänea. 439 Carlos Drummond de Andrade (344) O primeiro grande poeta que se afirmou depois das estréias modernista* foi Carlos Drummond de Andrade. Definindo-lhe lucidamente o caráter, dis (344) Carlos Drummond de Andrade(Itabira, MG, 1902 — Rio, 1987). Desccndente de povoadores e mineradores de ouro das Gerais, passou a infäncia numa fazenda de Itabira. Fez os estudos sccundários em Friburgo e em Belo Horizonte, onde cursou Far máeia e foi professor de Geografia. Em 1925 fundou, com Emílio Moura, Joäo Alphonsus c outros escritorcs mineiros, A Revista que, apcsar da sua curta duracäo, foi o órgäo mais importante do Modcmismo no Estado. Transfcrindo-se para o Rio em 34, ocupou até 1945 a chefia de gabinete de Gustavo Capancma junto ao Ministério de Educacäo c Saude. Fez sempře jomalismo colaborando assiduamcnte no Correio da Manhä. Obra: Alguma ľoesia, 1930; Brejo das Almas, 1934; Sentimentu do Mundo, 1940; Poesias, 1942; A Rosa do Povo, 1945; Poesia Até Agora, 1948; Claro Enigma, 1951; Viola de Bolso, 1952; Fazendciro de Ar & Poesia até Agora, 1953; Viola de Bolso novamente Encordoada, 1955; Poemas, 1959; Licäo de Coisas, 1962; Versiprosa, 1967; Boitempo, 1968; Reunido (com prefácio de Antonio Houaiss), 1969; As Impurezas do Branco, 1973; Menino Antigo (Boitempo — //), 1973; O Marginal Clorindo Gato, 1978. Em Prosa: Conßssöes de Minas, 1944; O Gereute, 1945; Cantos de Aprendiz, 1951; Passeios na II ha, 1952; Fala, Amendoeira, 1957; A Bolsa e a Vida, 1962; Cadeira de Balanco, 1966. Consultar: Joäo Ribciro, Os Modemos, Rio, Academia Brasileira de Letras, 1952; Agripino Gricco, Evolucäo da Poesia Brasileira, Rio, Ariel, 1932; Tristäo de Ataidc, Estudos, 5* série, Rio, Civ. Brasileira, 1935; Manuel Bandcira, Crônicas da Provincia do Brasil, Rio, Civ. Brasileira, 1937; Eduardo Friciro, Letras Mineiras, Belo Horizonte, Os Amigos do Livro, 1937; Álvaro Lins, Jornal de Critica, 1" série, Rio, Jose Olympio, 1941; Mario de Andrade, Aspectos da Literatura Brasileira, Rio, Amcric-Edit., 1943; Otto Maria Carpcaux, Origens e Fins, Rio, Casa do Estudantc do Brasil, 1943; Álvaro Lins, Jornal de Critica, 3" série, Rio, J. Olympio, 1944; 5* série, 1947; Roger Bastide, Poetas do Brasil, Curitiba, Guaira, 1947; Sergio Millict, Diário Critico, vol. IV, S. Paulo, Martins, 1947; Gilda de Mello e Souza, Dois Poetas, in Revista Brasileira de Poesia, S. Paulo, II, abril de 1948; Antonio Houaiss, "Poesia c Estilo de Carlos Drummond de Andrade", in Cultura, Rio, 1/1, set./dez. de 1948; Othon Moacyr Garcia, Esfinge Clara. Palavra-puxa-palavra em Carlos Drummond de Andrade, Rio, Livr. S. Jose, 1955; Aires da Mata Machado F.°, Critica de Estilos, Rio, Agir, 1956; Aurélio Buarque de Holanda, Território Lirico, Rio, O Cruzeiro, 1958; Antonio Houaiss, Seis Poetas e um Problema, Rio, MEC, 1960; Supl. Literärio de O Estado de S. Paulo de 27 de outubro de 1962, em comemoraeäo do 60.° aniversário do pocta; Hélcio Martins, A Rima na Poesia de C. D. A., Rio, José Olympio, 1968; Luiz Costa Lima, Lira e Antilira (Mario, Drummond, Cabral), Rio, Civ. Bras., 1968; Gilberto Mendonca Teiles, Drummond. A Estilistica da Repeticäo, Rio, José Olympio, 1970; Antonio Cändido, Váríos Escritos, S. Paulo, Duas Cidadcs, 1970; Alfonso Romano de SanťAnna Drummond, o "gauche" no 'Tempo, Rio, Lia Ed., 1972; J. Guilhemic Merquior, Verso Universa em Drummond, Rio, 1975; Iumna Maria Simon, Drummond: uma Poetka do Risco, Ática, 1978. 440 sc Otto Maria Carpcaux da sua obra que "expressäo duma alma muito pcssoal, c poesia objetiva" (™*). Parece-me que "alma muito pessoal" significa, no caso, a aguda percepcäo de um intervalo entre as convencôes e a realidade: aquele hiato entre o parecer e o ser dos homens e dos fatos que acaba virando matéria privilegiada do humor, traco constante na poesia de Drummond. A prática do distanciamento abriu ao poeta mineiro as portas de urna expressäo que remete ora a um arsenal concretíssimo de coisas, ora ä atividade lúdica da razäo, solta, cntregue a si mesma, armando c desarmando dúvidas, mais amiga de negar e abolir que de construir: e a poesia mais rica é um sinal de menos. Os pólos coisa-razäo, que fazem de Carlos Drummond um poeta reclamado pela vanguarda tccnicista, näo se acham nelc divididos por forca de um pro-grama. Há um tccido conjuntivo a uni-los c a sustc-los, o sentimento do mundo do pocta, também ncgativo na mcdida cm que sc ensombra com os tons cin-zentos da acídia, do desprezo c do tčdio, que tudo rcsulta na irrisäo da existencia. O Drummond "pocta publico" da Rosa do Povo foi a fasc intensa, mas breve, de uma esperanca que nasceu sob a Resistčncia do mundo livre ä fúria nazi-fascista, mas que logo sc retraiu com o advento da Guerra Fria. A civi-lizacäo que se forma sob os nossos olhos, fortemente amarrada ao neocapita-lismo, ä tccnocracia, äs ditaduras dc toda sorte, ressoou dura c secamente no eu artístico do ultimo Drummond, que volta, com frcqücncia, ä aridez desen-ganada dos primeiros versos: A poesia č incomunicável. Fique quicto no scu canto. Näo ame. A partir de Claro Enigma (1948-51), o dcscncanlo que sobreveio ä fugaz cxpcricncia da poesia politica tern ditado ao pocta dois modos principals de compor o poema: a) Escavar o real mediante um proccsso de intcrrogacöcs e negagöes que acaba rcvclando o vazio ä esprcita do hörnern no coraeäo da matéria e da História. O mundo define-sc como "um vácuo atormentado, / um sistema de crros". Sc há um existencialismo niilista eodifieado em poesia, cle se colhe da leilura dc poemas aturadamente reflexivos como "A Ingaia Ciéncia", "Memoria", "Morte das Casas de Ouro Preto", "Convívio", "O Enterrado Vivo", "Eterno", "Destruicäo", e se nos dá abertamente cm certos fcchos eseritos sob o signo do näo: (MS) Em Origens e Fins, Casa do Estudante do Brasil, 1943, p. 331. 441 e nada resta, mcsmo, do que esereves e te forgou ao exflio das palavras, senäo contentamento de eserever, enquanto o tempo, em suas formas breves ou longas, que sutil interpretavas, se evapora no fundo do teu ser? (Remissäo) o agudo olfato, o agudo olhar, a mäo, livre de encantos, se destroem no sonho da existencia. (A Ingaia Ciéncia) De ludo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restará, pois o resto se csfuma, urna pedra que havia cm meio do caminho. (Legado) cis-mc a dizer: assisto alčm, ncnhum, aqui, mas näo sou eu, nem isto. (Sonetilho do falso Fernando Pessoa) j E calamos cm nó\s, sob o profundo J instinto dc existir, outra mais pura vontadc dc anular a criatura. (Fraga c Sombra) Entäo, desanimamos. Adcus, tudo! A mala pronta, o corpo desprendido. resta a alegria de cstar só e mudo. De que se formani nossos poemas? Onde? Que sonho envenenado lhes responde, se o pocta é um ressentido, e o mais säo nuvens? (Conclusäo) É sempře nos meus pulos o limite. É sempře nos meus lábios a estampilha. É sempre no meu näo aquele trauma. Scmprc no meu amor a noite rompe. Sempre dentro dc mim meu inimigo. E sempre no meu sempre a mesma ausôncia. (O Enterrado Vivo) A alta frequcncia com que o motivo ocorre convida a proeurar urna inte-gragäo numa das linhas centrais do pensamento moderno. Frcud, retomando uma idéia-forga dc Schopenhauer, afirmou, cm Além do Princípio do Pražen 442 "Se, como expcricncia, sem excecäo alguma, temos de aceitar que todo scr vivo morre por fundamcntos internos, voltando ao inorgänico, poderemos dizer: o objetivo de toda vida é a morte. E com igual fundamento: o inanimado ex isti a antes do animado" (346). Outra näo era a visäo de Leopardi que recebera dos Setecentos o sensismo lucreciano calcinado pelo sorriso de Voltaire; outra näo é a moral inerente ä ontológia de Heidegger para a qual a vida auténtica é a que tem por horizonte único a certeza da morte. A abolicäo de toda crenca, o apagar-se de toda esperanca trazem consigo o autofechamento do espírito que se erispa entre a sensayäo e a Coisa (347), recusando-se a opcrar o salto, a ruptúra, a passagem, que Ihc parecem apenas como ilusöes a pcrder. Nas páginas finais de Claro Enigma, o momento da negatividade traduz-se pela dor do desgaste cósmico, como sc a sina da queda näo tivessc poupado nenhum scr vivo, eondenando todo o existente a regredir ao silencio do reino mineral: As mais sobcrbas pontes c edifícios, o que nas oficinas sc clabora, o que peasado foi e logo atinge dištancia superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixöcs e os impulses e os tormentos e tudo o que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais ou chega äs plantas para se embeber no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar, na esüanha ordem geométrica dc tudo, e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que todos monumentos erguidos ä verdade; e a memória dos deuses, c o solenc sentimento dc morte, que floresce no caule da existencia mais gloriosa. (A Máquina do Mundo) Í346) Em Obras Completas, trad, esp., Madrid, Bibl. Nueva, 1948, vol. II, p. 1104. (347) No pocma em prosa "O Enigma", fecho dos Novos Poemas (1946-47), já apa-recia a imagem péuea da Coisa, síntese de urn universo ocluso que bana o caminho a qualquer decifracáo. 443 b) Fazer as coisas e as palavras — nomes de coisas — boiar nessc viuim sem bordas a que a interrogaclo reduziu os reinos do ser. Da poesia mciaf'taii u dos anos de 50 passa Drummond ä poesia objectual de Licäo de Coisas ( I9Vj 62), livro em que o processo básico é a linguagem nominal: "(o poeta) pral u i mais do que antes, a violacäo e a desintegracäo da palavra, sem entrclanin aderir a qualquer receita poética vigente" (Apresentagao). De fato, Drummond aportou coerentemente a urna opcäo concreto-foruin lista radicalizando processos estruturais que sempre marcaram o seu modo d< cscrcvcr. A atengäo ao no me cm si remonla a poemas de 1942 ("O Lutadoi") e de 1943 ("Procura da Poesia") c a afirmacöes críticas do livro de prosu Confissöes de Minas (1944): Ä mcdida que cnvclhceo, vou nie desfazendo dos adjetivos. Chego a ver quf Ludo se pode dizer sem clcs, mclhor que com elcs. Por que "noite gélida", "noil* solitária", "profunda noite"? Basla "a noite". O í'rio, a solidfio, a profundidade du noite estao latentes no Icitor, prestes a cnvolvô-lo, ä simples provocaeäo dessa palavni "noite". (p. 218) Na verdade, desde Algutna Poesia foi pelo prosaico, pelo irônico, pelo anli-relorico que Drummond sc afirmou como pocta congenialmcnte moderno O rigor da sua fala madura, laslrcada na recusa c na conlcnsäo, assim como o fizera hörnern de esperanta no momento partieipante de A Rosa do Povo, o ľaz agora hörnern de um tempo reificado aló ä medula pcla dificuldade de transcender a crisc de sentido c de valor que rói a nossa época, apa-nhando indiscriininadamenlc as vclhas elites, a burgucsia afluente, as massas. A tcoria do poema-objeto pode ser contcslada por mais de uma ťilosofia; mas näo se dirá, sem grave dano da verdade, que cla nao corresponde com prccisäo ä mcnlalidadc que circula nos meios cultos do Ocidcnlc desde os fins da década de 50. Impcrsonalismo, leenicismo, instrumcnlalismo percorrem a mcsiiia rola: um vaivčm dos sentidos ao objeto, do objeto aos scnlidos; quando o caminho sc alarga, cnlrcvcem-sc os termos mais abslratos da razäo e da forma; c ao empirismo iniciál vein juntar-sc uma forma refinada de neoposi-tivismo que cslá, porém, sempře correndo o risco dc regredir ao empirismo brulo c sem mediaeöes dc onde partiu. É dessa fronteira que se aproxima Drummond ao locar o limite do poema-objeto cm "Isso č aquilo", dc Ligao de Coisas: O fácil o fóssil o mfssil o fis sil a arte o infarte o ocre o canopo a urna o farnientc a foice o fascículo 444 a lex o judex o maiô o avô a ave o mocotó o só o sambaqui A rima, final ou interna, a assonäncia, a aliteragäo, o simples eco, no fundo a repetícáo compulsiva do som-coisa, é a operagáo técnica que persiste depois dc abolidos os liames com a sintaxe poética tradicional (e "tradicionaľ' vai aqui até o verso livrc). O nominalismo extremo dá as máos ao extremo fisi-calismo: as estruturas juslapôem-se mostrando cm si mesmas a impossibilidade do canto que, aceita, se erige em norma. Talvcz seja esta a única forma de comunicacáo que o poeta Carlos Drummond de Andrade pôde oferecer a seu tempo: a anlilira que corta os vínculos com a cxpressáo transparente dos afetos, náo para negá-los enquanto tal (o que seria paradoxo calculado ou simples traco esquizóidc), mas para pôr cm evidencia a condicáo dc absurdo feroz em que mais uma vez está submergido o vasto mundo. Mundo que Ihe ditou A Bomba; A bomba é uma ílor de pikiico apavorando os floricultorcs A bomba é o produto quintessente de um laboratório falido A bomba č miséria confederando milhöes de misčrias A bomba č cslúpida č ľerotriste č che i a de rocamboles A bomba č grotcsca dc táo mctuenda e coca a pern a A bomba amanhä promete ser melhorzinha mas csquccc A bomba nílo está no lundo do colrc, está principalmente onde náo está A bomba mente c sorri sem dente A bomba näo č séria, č conspicuamente tediosa A bomba envenena as criangas antes que comcccm a nascer A bomba continua a envcncná-las no curso da vida A bomba é uma inflamacäo no ventre da primavera A bomba tem a seu servigo música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro alem da comparsaria A bomba tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, cu A bomba näo admite que nirigiiém se dô ao luxo de morrcr de cäncer A bomba é cäncer A bomba com scr uma bcsta confusa dá tempo ao homem para que se' salve A bomba näo dcstruirá a vida O homem (tenho cspcranga) liqilidará a bomba (*). Murilo Mendes (348) Com Drummond de Andradc tem cm comum o tambčm minciro Murilo Mendes a recusa äs formas batidas e o senso vivíssimo da modernidade como (*) Em obras posteriores (Boitempo, As lmpurezas clo Branca, Menino Antigo)' o poeta renova-sc paradoxalmente pelo franco apelo ä memoria da infäncia, matriz' recorrente de imagens e afetos. Essa reabertura de um veio biográfico pode inter-pretar-se ä luz da obra inteira de Drummond como uma alternativa ä corrosäo lan-cinante de sua poesia madura; mas pode também entender-se como sinal dos tempos:1 a década de 70 assistiu ä retomada de um discurso Iírico mais livre do que o proposto (ou tolerado) pelas vanguardas do decönio anterior. Em Drummond, porém, o tom reflexivo c os deseantes humorísticos persistem como caráter distintivo que o estrema da mesma correntc em que parece deixar-se prazerosamentc arrastar. [Nota de 1979.] (348) Murilo Montiíiro MiiNDHs (Juiz de Fora, MG, 1901 — Lisboa, 1975). Estudou na sua cidade e em Niterói, come^ou o curso de Direito, mas logo o interrompeu. Foi sempře um homem inquicto passando por atividades díspares: auxiliar de guarda-livros, prático de dentista, telegrafista aprendiz c, em melhores dias, notário c Inspetor Federal de Ensino. Näo menos rica de experißneia foi a sua vida espiritual e literária: tendo esucado em revistas do Modemismo, Terra Roxa e Outras Terras e Antropofagia, co-nheceu de perto a poética primitivista e surrealista que as animava; em 1934, conver-teu-se ao Catolicismo, partilhando com o pintor Ismael Nery (v.) o fervor por uma arte que transmitisse conteúdos religiosos em códigos radicalmentc novos. Foi sempře as-sertor da liberdadc política e estética. A partir de 1953 viveu quase cxclusivamcnte na Europa e, desde 57, em Roma, onde ensinou Literatura Brasileira. Em todos 446 Iiberagäo. Mas o sou pensuincnto trilha veredas opostas äs do cnxuto mincrador dc Claro Enigma. É pensamcnto que näo rói o real, mas multiplica-o, exalta-o c, com materials tornados ä fantasia, opera uma potencia9äo das imagens co-ndianas. O efeito estético só näo é do puro caos porque o poeta recompöe os mil estilha^os da sua imagina9äo em um vitral desmesurado de crente surrealista. Assim, a desarticula9äo da ordern convencional, que o aproxima do cético Drummond, é nele apenas um primeiro passo para a reconquista de um paraíso que, naturalmente, näo terá o ar devoto de velhos ritualismos, mas se abre aos olhos do poeta como um universo aquecido pela Gra9a. Murilo é poeta de aderencia ao ser, poeta cósmico e social que aceita a frui9äo dos valores primordiais. Tendo mantido firmě a sua änsia libertária, änsia que partilhou com o Modernismo anterior a 30, jamais cai em formas antiquadas de apologética. Místico, elc perfura a crosta das institui9öes e dos costumes culturais para morder o cerne da linguagem religiosa, que é sempře liga9äo do hörnern com a totalidadc. Esse o sentido geral de sua obra, a que só escapa o ciclo de poemas humoristicos anteriores a 30, que fazem o giro piadistico de um Brasil morno c provinciano e ecoam a maneira iniciál de Mario e Oswald de Andrade. Com o Visionário, já entramos cm cheio no clima onírico e alucinatório que envolveria sempre a sua poesia. Foi Joäo Cabral de Melo Neto quem acer- esses anos, M. Mendes revelou-se um dos nossos escritorcs mais afins ä vanguarda artística europčia, o que, no entanto, näo o apartou das imagens c dos sentimentos que o prendiam äs suas origens brasileiras e, esuilamente, minciras. Obra: Poemas, 1930; História do Brasil, 1932; Tempo e Eternidade, 1935; A Poesia em Pänico, 1938; O Visionário, 1941; As Metamorfoses, 1944; Mundo Enigma, 1945; Poesia Liberdade, 1947; Contemplacäo de Ouro Preto, 1954; Poesias (1925-1955), 1959; Tempo Espanhol, 1959; Convergéncia, 1970; Antológia Poética, 1976; Poemas e Bumba-meu-poeta, 1990; Poesia Completa e Prosa, 1994. Em prosa: O Discípulo de Emaús, 1944; A Idade do Serrote, 1969; Poliedro, 1972; Retratos Relämpago, s. d. Consuliar: Joäo Ribeiro, Crí-tica. OsModernos, Rio, A. B. L., 1952; Agripino Grieco, Evolucäo da Poesia Brasileira, cit.\ Trisläo de Ataíde, Estudos, 5* série, Rio, Civ. Bras., 1935; Andrade Muricy, A Nova Literatúra Brasileira, P. Alegre, Globo, 1936; Mário de Andrade, O Empalhador de Passarinho, S. Paulo, Martins, 1946; Mário de Andrade, Aspectos da Literatúra Brasileira, Rio, Amcric-Edit., 1943; Álvaro Lins, Jornal de Crítica, 2* série, Rio, 1943; 5? série, 1947; Sérgio Milliet, Diário Crítico, S. Paulo, Brasiliensc, 1944; Otto Maria Car-peaux, "Unidade de Murilo Mendes", in Religiäo, Recife, n° 11,1949; Péricles Eugénio da Silva Ramos, "O Modernismo na Poesia", in Literatúra no Brasil, cit., vol. III, t. 1; Luciana S. Picchio, "La poesia in Brasile. Murilo Mendes", in Revista di Letteralure Moderne e Comparate, XII/1, mEu-90 de 1959; Lais Correia dc Araújo, Murilo Mendes, Petrópolis, Vozes, 1971; Joäo Alexandre Barbosa, A Metafora Cdtica, Perspective 1974; Antonio Cándido, Na Sala de Aula, Ática, 1985; Júlio Castaňon Guimaräes, Murilo Mendes, Brasiliense, 1986. 447 tou no alvo quando reconheceu: "a poesia de Murilo me foi sempře mcstra, pela plasticidade e novidade da imagem. Sobretudo foi ela quern me ensinou a dar precedéncia ä imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo". Nessa caracterizacao reconhecem-se o processo futurista da montagem e o pro-cesso surrealista da seqiiencia onírica; a combinac.áo de ambos faz-se pelo traco comum, associativo, que permite se justaponham sintática e simbolica-mente os dados' da imaginagäo. Joäo Cabral viu com nitidez: de um lado, a plasticidade, isto é, o espago poético cheio de formas e imagens; de outro, a novidade, isto é, as relacôes insólitas que emergent do fluxo pré-consciente: A mulher do fim do mundo Dá de comer äs rosciras, Dá de bcber as cslátuas, Dá de sonhar aos poctas. A mulher do lim do mundo Cháma a luz com um assobio, Faz a virgem virar pedra, Cura a tcmpcsladc, Desvia o curso dos sonhos, Escrcve cailas ao rio, Mc puxa do sono elerno Para os seus bracos que cantam. (Metadc Pássaro) O caos recebc carisma rcligioso cm Tempo e Eternidade, eserito cm par-ceria com Jorge de Lima, c abertamente votado a "restaurar a poesia cm Cristo". A rcnovacao da literatura crista, que nos anos de 30 contou coin os nomes de Ismacl Nery, Jorge de Lima, Augusto Frcdcrico Schmidt, Otávio dc Faria, Vi-nícius dc Moracs, Tristäo dc Alařde c outros, teve, como sc sabe, raízes neo-simbolistas francesas. Um Pčguy, um Bloy, um Bernanos, um Claudcl dariam temas e formas ao novo catolicismo latino-americano que nclcs e nos ensaios dc Maritain viu uma ponte segura entre a ortodoxia e algumas formas modernas de pensamento (Bcrgson), dc praxis (demoeracia, socialismo) c dc arte. Vcio dc Murilo a manifestacao lilcrária mais radical dessa diretriz no Brasil. O ver-sículo břblico, valorizado por Pčguy c Claude!, dá livre modulacäo á mensagem religiosa c satura-sc de imagens terrestres que entrain como signos de uma liturgia cósmica onde sc cruzam pianos díspares de espago c tempo. Rcaparece a rica simbologia das Escrituras: a máo do Elerno, a genese do universo, Lu-cifcr-Serpentc, Adäo e Eva c a redcngäo projetam-sc na história c compócm quadros dc dimcnsôes apocalípticas: A Virgem deve gerar o Filho Que é seu Pai desde toda a eternidade. A sombra de Deus se alastrará pel as eras futuras. 448 O hörnern caminhará guiado por uma cstrela de logo. Haverá música para o pobre e acoites para o rico. Os poetas celebraráo suas relagöcs com o Eterno. Muitos mecánicos sentiräo nostalgia do Egito. A serpente de asas será desterrada na lua. A ultima mulher será igual a Eva. E o Julgador, arrastando na sua marcha as constelacöes, Rcverlerá todas as coisas ao seu princfpio. (O Profcta) As mcsmas visöes teológicas säo interiorizadas pelo poeta que passa do epos bíblico ä melopéia cristä: Antes de cu nascer tu velavas sobre mim E mandastc tcu anjo substituir minha mäc morta. Ele mc continha quando eu corria a beira-mar ()u quando mc debrucava sobic o abismo, Canlava scrcstas c acalantos Para aplacar minhas horas de pcdra. (Novfssimo Jacó) Nos scus livros principais, A Poesia em Pänico, As Metamorfoses e Poe-sia-Liberdade, Murilo Mendcs objctiva a sua pcrplcxidadc cm face de um mundo desconjuntado (sempře a obsessäo do caos), que deve, porém, resgatar-se em vista dos valores ahsolutos: Eros e Libcrdade. A palavra do poeta entende sacralizar todos os fenomenos como cre ter agido o Vcrbo ao penetrar no ämago da História. E há certos arrancos crótico-místicos que lembram a poesia pro-metcica de William Blake: Vi v i entrc os homens Que náo mc viram, nem me ouviram Nem me consolaram. Eu fui o poeta que distribui seus dons E que náo recebe coisa alguma. Fui envolvido na tempestade do amor, Tivc que íunar atč antes do naseimento. Amor, palavra que funde e que consomc os seres, Fogo, fogo do inferno: melhor que o cču. (Amor-Vida) Eu me encontrei no marco do horizonte Onde as nuvens falam, Onde os sonhos töm máos c pčs E o mar č seduzido pelas sereias. Eu mc enconuei onde o real 6 fábula, Onde o sol recebe a luz da lua, Onde a música č püo de lodo dia E a erianga aconselha-se com as flores, 449 Onde o hörnern e a mulher sab um, Onde espadas e granadas Transform aram-se em charm as, E onde se fundem verbo e aeäo. (A Marcha da História) A presenca do eterno-feminino (a Mulher, Berenice, Eva) or a opôe-se ora une-se äs aspiragöes rcligiosas; pode-se dizer mesmo que a tensäo entre o pro-| fano e o sagrado, resolvida ä forga de rupturas ou de colagens violentas, dá o significado ultimo desse momento central da poesia muriliana: Há grandes forcas de matéria na terra no mar e no ar Que se entrelacam e se casam reproduzindo Mil versöes de pensamcntos divinos. A matéria č forte e absoluta, Sem cla näo há poesia. Desde os Soneíos Brancos (1948), a vocagao para o real, täo forte que] abraga também o rcal-imaginário, o supra-rcal, tem levado o pocta a avizi-nhar-se da paisagem e dos objetos cm busca dc fomias c dimensôes coneretas. Tendencia que č um dos sulcos mais fundos da poesia contemporänca e que aproxima poetas dc linguas diversas (Pound c Montalc, Pongc c Drummond, Murilo c Cabral de Melo Ncto) enquanto repropöe ä Estética a questäo da objetividade c, nos casos-limitc, da autonómia da palavra artística. A disciplina semäntica c o reeurso a metros exalos säo os aspectos mais evidentes dessa diretriz näo so nos Soneíos Brancos, como também nessa obra-prima dc visäo e ritmo que é Contemplagäo de O uro Preto, até agora o ponto mais alto da carreira literária de Murilo Mcndcs. Nesla obra a história c a paisagem de Vila Rica dcsdobram-sc cm compactas series de nomes e verbos para sc fun-dircm depois na música envolvente da cvocagäo. O pocma procura collier a esséncia mesma do barroco minciro — tacteando ainda nos ternos labirintos, t palpando-se nos pianos pensativos I das origens, de antigas estruturas, — c da arte do Alcijadinho fcila de espanto c dc uncäo. O acesso ao corpo da palavra, ä sua matéria significante, dá-sc no ciclo "A Lua dc Ouro Prelo" cm que alternam as fungôcs expressiva c mctalingiiística: Lua, luar, Näo confundíimos: Estou mandando A Lua luar. Luar é verbo, Quase näo é Substantivo. E tu és efelica, 450 Ulrica, onírica, Envolverônica, Musa lunar. Ó lua plastica, Ó lua aplastica, Móvel, imóvel, Pagä, crista, Lua de alcänfora, Lua de enxofre, E de alumínio, Excôntrica e Erocôntrica, Ouvimos rápidos Os tcus cronômctros No claro espat;o Microssoando. Lua humanada, Violantelua, Lua mafalda Lua adelaidc Lua cxilanda Os trabalhos mais reccnlcs dc Murilo, Tempo Espanhol, Exercício e Con-tactos, compostos na década de 60, ratificam o scu ingresso na pcsquisa experimental que vc no trato da linguagem o primciro dcvcr do cscrilor. Jorge de Lima (34i>) Este pocta, que, a ccrta allura da sua história espirilual, partiIhou com Murilo Mcndes o projeto de "restaurar a poesia cm Crislo", conhcccu uma í349) Jorge db Lima (Uniäo, Alagoas, 1895 — Rio, 1953). Estudou Humanidades em Macció e Medicína cm Salvador e no Rio dc Janeiro. Exerccu cm sua terra e na ex-capital a profissäo. Além de intcressar-se vivamente pelas artes-plástieas (quadros, fotomonta-gens), foi professor de Literatura na Univcrsidade do Brasil e fez políiica nos anos que se seguiram ä queda da ditadura (vereador da Cämara do antigo D. Federal). Fatos capitals do scu roteiro cspiritual foram o contacto com o Modernismo nacionalista em 1925 e, dez anos depois, a conversäo a uma forma dramática e moderna de Catolicismo. Obra: XIV Alexandrinos, 1914; O Mundo do Menino Impossível, 1925; Poemas, 1927; Novos Poemasy 1929; Poemas Escolhidos, 1932; Tempo e Eternidade (em colab. com Murilo Mendcs), 1935; Quaíro Poemas Negros, 1937; A Túnica InconsútiU 1938; Poemas Ne-gros, 1937; Livro de Sonetos, 1949; Obra Poética (incluindo os anteriores, mais 451 acidentada evolucäo Hterária. Comecou como sonctisla neoparnasiano c chcgou até a "principe dos poetas de Alagoas", título que lhe valeram os XIV Alexan-drinos, dentre os quais um virou antológico, "O Acendedor de Lampioes". Mas o contato com o Modernismo em geral e, particularmente, com o grupo regionalista do Recife (Lins do Rego, Gilberto Freyre, Olivio Montenegro) ajudou o pocta a descobrir a sua vocacäo de artista de múltiplas dimensöes (a social, a rcligiosa, a onírica), embora organicamente lírico, isto é, enraizado na propria afelividade mesmo quando aparente dispersar-se em notacôes pito-reseas, cm ritmos folclóricos, cm glosas dos grandes clássicos. É importante ressalvar esse ponto, porque sem a sua inteligencia poderiam soar gratuitas as mutagöcs de terna e de forma que marcam a linguagem de Jorge de Lima, poeta sucessivamente regional, negro, bíblico c hermélico. O rotciro da sua producäo foi pontuado pcla descida äs fontes da memoria c do inconscicnle. Na fasc horizontal, o pocta dctcvc-sc cm urn catolicismo sinerético, scrtancjo c santciro: nela o scntimento do sagrado vive ä flór ďágua c sc mistura com o gosto da terra, do povo, dos vfnculos sociais concretos. O proccsso de composicäo mais comum é o rapsťkiico, lembrando de perto as seqiiencias invocativas dc Walt Whitman: os versos alinham, em gcral, nomes Anunciacäo e Encontro de Mira-Celi), 1950; Invengdo de Orfeu, 1952; Castro Ahes — Vidinha, 1952. Romance: Salomäo e as Mulheres, 1927; O Anjo, 1934; Calunga, 1935; A Mul her Obscura, 1939; Ouerra Dentro do Reco, 1950. Ensaio: A Comédia dos Erros, 1923; Dois Ensaios {Proust c Todos Cantarn a sua Terra), 1929; Anchieta, 1934; Kassenbildung und Passenpolitik in Brasilien, 1934; D. Vital, 1945; Vida de S. Francisco de Assis, 1942; Vida de Sto. Antonio, 1947. Deixou inéditos alguns textos para leatro (A Filha da Mäe-D'Água, As Maos, Ulisses) c um argumento de filme, Os Retirantes. A cd. completa da sua obra poélica saiu pela Aguilar, Rio, 1958. Consultar: Joäo Ribeiro, Crllica. Os Modernos, Rio. A. B. L„ 1952; Benjamin Lima, Esse Jorge de Lima!, Rio, Adersen, 1933; Agripino Grieco, Genie Nova do Brasil, Rio, J. Olympio, 1935; Nestor Vftor, Os de Hoje, S. Paulo, Cul iura Moderna, 1938; Manuel Ansclmo, A Poesia de Jorge de Lima, S. Paulo, Revista dos Tribunals, 1938; Tristao de Atafde, Poesia Bra-sileira Contemporänea, Belo Horizonte, Paulo Bluhm, 1941; Roger Bastide, Poetas do Brasil, Curitiba, Guaira, 1947; Artur Ramos, "A Poesia Negra e Jorge de Lima", in Revista Académica, XM1/70, dez. tle 1948; Otto Maria Carpeaux, Introducäo ä Obra Poetka dc J. L., Rio, Gctulio Costa, 1950; Jose Fernando Carnciro, Apresenlacäo de Jorge de Lima, Rio, M. E. C, 1955; Mario Faustino, "Rcvcndo Jorge tlc Lima", série de artigos para o Jamal do Brasil (28-7, 4-8, 11-8, 18-8, 25-8, 1-9 e 8-9-1957); Luis Santa Cruz, Aprescntacäo äs Poesias, Rio, Agir, 1958; Waltensir Dutra, "Descoberta, lntcgracäo c Plenitude de Orfeu", em Obra Contpleta, Rio, Aguihir, 1958; Eurfalo Ca-nabrava, "Jorge dc Lima e a Exprcssäo Počlica", ib.; Périclcs Eugßnio da Silva Ramos, "O Modemismo na Poesia", cm A Literatura no Brasil, cit., vol. III, l. 1; Antonio Rangel Bandcira, Jorge de Lima. O Roteiro de umu Contradigäo, Rio, Livr. S. Jose, 1959; Joäo Gaspar Simöes, Interpretagöes Literárias, Lisboa, Arcádia, 1961. 452 ou cxprcssocs noinintiis que sugcrcm o cmbalo da cvocayao. Em Poemas, No-vos Poemas c Poemas Escothidos, Jorge de Lima valc-sc dessa tdenica para compor o vitral daquelc Nordcsle que seria o tema do painel social dc Litis do Rego; como o narrador de Menino de Engenho, 6 a mem6ria da infancia o seu primeiro e mais forte m6vel. Mas, por tras do mosaico ingenuo e colorido, o poeta vai reconhecendo as matrizes da sua emotividade que coincidem com a de tantos meninos brancos do Nordeste: o convtvio com o negro, portador de marcas profundas tanto na conduta mitica quanto nos habitos vitais e ludicos. Os Poemas Negros, que incorporam tantas vozes e ritmos da linguagem afro-nordestina, nos dao pistas para uma decifragao mais completa da religiosidadc a urn tempo mfstica c terrena dc Tempo e Elernidade. Mas a carga alctiva sublimada cm prcce nao 6 o unico trago de uniao entre a pocsia ncgra e a pocsia bfblico-crisla dc Jorge de Lima: perpassa por anibas tiui sopro dc fraternidadc, dc assungao das dorcs do oprimido, socialismo incrcntc a loda intcrprctayao radical do Evangclho. Nos Poemas Negros, h£ momentos dc enfase dada Jt tensao entre cscravo c senhor, agugada pela opo-sigao cittrc negro e branco: Os net os de teus mulatos c tie teus cal'uzos e a quaita e a quinta gerayoes tie ten sangue sofrcdor tentarclo apag;u a tua cor! E as gcragOes dessas geragocs quando apag:uem a tua taluagem execnuida, n5o apagarao dc suas almas, a tua alma, negro! Pai-Joao, Mfle-negra, FulO, Zumbi, negro-fujflo, negro cativo, negro rebclde negro cabinda, negro congo, negro ioruba, negro que loste para o algodilo de 11. S. A. p:ua os ciuiaviais do Brasil, para o Uonct), para o colar dc lcrro, para a canga dc todos os senhores tlo mundo; eu melhor comprcendo agora os teus blues nest a hora trislc da raya branca, negro! 014, Negro! Ola. Negro! A raya que te enforca, enforca-se tie tCtlio, negro! Nao basta iluminares hoje as noiles dos brancos com teus jazzes, com luas danyas, com tuas giU'galhadas! Ola, Negro! () dia esta nascendo! O dia csta nascendo ou scr«1 a tua gargalhada que vem vindo? Ola, Negro! OKI, Negro! (Ola! Negro) 453 Em Tempo e Eiernidade a nota social é intcgrada no ponlo dc visla