SEIS AVENTURAS DE PEDRO MALAZARTE Um casal de velhos possuía dois filhos homens, Joáo e Pedro,este tlo astucioso e vjáidio que o chamavam Pedro Malazarte. Como era gente pobre, o fílho mais velho saiu, para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacarias, nao pagando aos empregados porque fazia contratos impossí-veis de cumprimento. JoSo trabalhou quase um ano e voltou quase morto. O patrao tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoco até o firn das costas e nada mais lhe dera. Pedro ficou furioso e saiu para vingar o irmáo. Procurou o mesmo fazendeiro e pediu trabalho. O fazendeiro disse que o em-pregava com duas condigQes; náo enjeitar servicos e do que primeiro ficasse zangado tirava o outro uma tira de couro. Pedro Malazarte aceitou. No primeiro dia foi trabalhar numa plantacáo de milho. O patrao mandou que uma cachorrinha o acompanhasse. Só podia voltar quando a cachorra voltasse para casa.Pedro meteu o braco no servico até meio-dia. A cachorrinha deitada na sombra nem se mexia. Vendo que era combinacáo Malazarte largou uma paulada na cachorra que esta saiu ganindo e correu até o alpendre da casa. O rapaz voltou e almocou.Pela tarde nem precisou bater na cachorra. Fez o gesto e o bicho voou no caminho. No outro dia o fazendeiro escolheu outra tarefa. Mandou-o limpar a roca de mandioca. Pedro arrancou toda a plantacáo, deixando o terreno completamente limpo. Quando foi dizer ao patrao o que fizera este ficou feio. - Zangou-se, meu amo? - Náo senhor, respondeu o patrao. No outro dia disse que Pedro trouxesse o carro de bois carregado de pau sem nós. Malazarte cortou quase todo o bananal, explicando que bananeira é pau que náo tem nó. O patrao ficou frio: - Zangou-se, meu amo? - Nao senhor. No outro dia mandou-o levar o carro, com a junta de bois, para dentro de uma sala numa casinha perto, sem passar pela porta. E para melhor atrapalhar, fechou a porta e escondeu a chave. Malazarte agarrou um machado e fez o carro em pedacos, 168 matou os bois, esquartejou-os e sacudiu, curneic madelrus, pela janela, para dentro da sala. O patrao, quando viu, ficou preto: - Zangou-se, meu amo? — Nlo senhor. Mandou vender na feira um bando de porcos. Malazarte levou os porcos, cortou as caudas e vendeu-os todos, por bom preco. Voltando enterrou os rabinhos num lamacal e chegou em casa gritando que a porcada estava atolada no lameiro. O Patrao foi ver e deu o desespero. Malazarte sugeriu cavar com duas pás. Correu para casa e pediu á dona que lhe entregasse dois contos de réis. A velha nao queria mas o rapaz para certificá-la, perguntava ao patrao por gestos se devia levar um ou dois, e mostrava os dedos. Ante os gritos do amo, a velha entregou o dinheiro ao Pedro. Voltou para o lameiro e comecou a puxar a cauda de cada porco que dizia estar enterrado. Ia ficando com todas na máo. O patrao ficou suando mas náo deu mostras de zanga. E Pedro ainda negou que tivesse recebido dinheiro. Vendo que ficava pobre com aquele empregado, o fazendeiro resolveu matá-lo o mais depressa possível, de um modo que náo o levasse á justica. Disse que andava um ladrao rondando o curral e deviam vigiar, armados, para prender ou afugentar a tiros. A idéia era atirar em Malazarte e dizer que se tinha enganado, supondo-o um malfeitor. De noite o fazendeiro foi para o curral e Pedro devia substituí-lo ao primeiro cantar do galo. Quando o galo cantou, Malazarte acordou a velha e disse que o marido a esperava no curral, e que levasse a outra espingarda, porque ele, Pedro, ia fazer o cerco pelo outro lado. A velha apanhou a carabina e foi, sendo morta pelo fazendeiro com um tiro certo de que abatia, pelo vulto, o atrevido criado. Assim que a velha caiu, Pedro apareceu chorando e acusando o amo. Este, assombrado pa-gou muito dinheiro para náo haver conhecimento da justica e ofereceu ainda mais dinheiro se o Malazarte se fosse embora, sem mais outra proeza. 0 rapaz aceitou e voltou rico para casa dos pais. II Náo podendo ficar sossegado, Malazarte largou a casa, indo correr mundo. Logo no primeiro dia encontrou um urubu com uma perná e uma asa quebradas, batendo no meio da estráda. Agarrou o urubu e'meteu-o dentro de um saco, seguindo caminho. Ao anoitecer estava diante de uma casa grande e bonita, alpendrada. Pela janela viu uma mulher guardando vários pratos de comidas saborosas e garrafas de vinho. Bateu e pediu abrigo mas a mulher recusou, dizendo que náo estava em casa o marido e ficava feio ter um homem de portas a dentro. Malazarte foi para debaixo de uma árvore e reparou na chegada de um rapaz ainda moco, recebido com agrados pela dona da casa que o levou imediatamente para jantar. lam os dois comecando a refeicáo quando o dono da casa apareceu montado num cavalo alazáo. O rapaz pulou uma janela e fugiu. Malazarte deu tempo para o dono da casa mudar o traje e tornou a bater e pedir dormida. O dono apareceu e mandou-o entrar, lavar as míos e ir jantar com ele. 169 A comida que apareceu cra outru, bcm pobrc a malfeita. Malazarte, sempře com o urubu dentro do saco, deu com o pé, fazcndo-o roncar, come90u a falar, bai-xinho, como se estivesse discutindo. - Com quem está falando? perguntou o dono da casa. - Com esse urubu. - Urubu falando? - Sim senhor, falando e adivinhando. Esse urubu é ensinado a adivinhar. - E o que ele está adivinhando agora? - Está me dizendo que naquele armário há um peru assado, arroz de forno, bolo de milho e trés garrafas de vinho. - Näo me diga ... Procura aí, mulher! A mulher procurou e, fíngindo-se assombrada pela surpresa, encontrou tudo quanto anunciara o urubu e trouxe os pratos e o vinho para a mesa. Comeram farta-mentě e o dono quis porque quis comprar o urubu. Pela manhá Malazarte, muito contrariado, aceitou o dinheiro alto e foi embora, deixando o urubu que nunca mais adivinhou cousa alguma. Malazarte encontrou uma ruma de escremento ainda fresca, no meio da estráda. Parou, curvou-se e cobriu o achado com seu proprio chapéu, ficando de cócoras, se-gurando as abas, como se guardasse uma preciosidade. Passou um hörnern, a cavalo, e parou, perguntando: - Que está guardando aí? - O mais bonito passarinho do mundo! Custou mas segurei-o. - E o que vai fazer? - Esperar que passe um conhecido para vendé-lo ou mandar comprar uma gaiola. - Quanto quer pelo passarinho? - Vinte mil-réis! - Está fechado. Tome o dinheiro, monte neste cavalo e vá buscar uma gaiola, ali na vila. Apeou-se, Malazarte meteu o dinheiro no bolso, cavalgou o animal, picou-o nas esporas e desapareceu para sempře. O dono do passarinho esperou, esperou e, perdendo a paciéncia ou cutucado pela curiosidade, passou a mäo para segurar a mais linda ave do mundo, ficando com ela suja e nauseante, furioso pelo logro e sem poder castigar o astuciosolarápio. IV Órfao de pai, Malazarte viu morrer sua mle, ficando muito triste. Mas, sendo ardiloso por natureza, do proprio cadáver quis aproveitar-se e ganhar mais dinheiro. 170 Saiu com ele e escondeu-o nuns capins, perto de um pomar. 0 dono dcsse pomar era hörnern rico e violento, tendo comprado uma matilha de cachorros ferozes para a defesa das frutas. Ao anoitecer, Malazarte levou o corpo da velha e sacudiu-o por cima da cerca. Os cachorros acudiram imediatamente ladandro e mordendo. Nesse momento, Malazarte comecou a gritar pelo dono do pomar, e quando este apareceu acusou-o de haver assassinado sua mäe, velhinha inofensiva que entrara no si'tio para apanhar um graveto de lenha. Sabendo da ferocidade dos cachorros,Malazarte correra para impedir mas ja chegara tarde. 0 dono do pomar, cheio de medo, pagou muito dinheiro e ainda encarregou-se de enterrar a velha com toda a decencia. Pedro Malazarte comprou uma panelinha nova para cozinhar quando viajasse. Na primeira viagem que fez levou a panelinha e estava preparando seu almoco, já abrindo a fervura, quando ouviu o tropei de um comboio que carregava algodío. Mais que depressa cavou um buraco, colocou todas as brasas e ticees, cobrindo de areia, e pós a panela por cima, fervendo. Os comboieiros que iam passando ficaram admirados de ver uma panela ferver sem haver fogo. Pararam, discutiram e pergunta-ram se Malazarte a queria vender por bom dinheiro. O sabidáo fez-se muito rogado, dizendo ter adquirido aquele objeto em terras distantes, mas terminou vendendo u panelinha. Os comboieiros seguiram jornada, muito satisfeitos da compra que no outro dia verificaram ser mais um logro do endiabrado rapaz. VI Nas cercanias da casa de Pedro Malazarte morava um homem rico e muito avu-rento. Vivia enganando toda a gente e sendo detestado por todos os vizinhos. Nflo pagava ordenado aos seus empregados porque fazia apostas e nao era possível cum-prir-se uma das condicoes porque tinham sido escolhidas com intencao de burla. Malazarte ofereceu-se para criado e o homem aceitou. Se Malazarte ficasse trinta dias sem pedir-a-conta, seria pago trés vezeš, e nflo o fazendo, nada teria de direito. O homem mandou Malazarte com mais de duzentas ovelhas para o campo, com ordem de passar por uma garganta de serra muito estreita. As ovelhas recuta-vam avan9ar e os empregados anteriores haviam desistido com esse embaraco. Malazarte chegou ao boqueiráo, agarrou uma ovelha, amarrou-a e saiu na frente puxando o animalzinho. As outras acompanharam sem dificuldade. Nao deram rede para Malazarte dormir. Durma onde quiser, disse-lhe o homem. Pedro, vendo que o casal guardava a comida num armário grande, trepou-ie para cima, com as pernas descidas e recusou sair, dizendo ser aquela a sua camu. Como o casal queria comer, ofereceram ao novo empregado o direito de fazer ai refeicčes com eles, marido e mulher, chegando á conclusao de que só iam comer p2o e bolachas, o que davam a Pedro quando ele se empregou. 171 Mandou o dono que Malazarte levasse o carro de bois e o metesse numa sala sem passar pelas portas. Malazarte despedagou o carro, partiu os bois em quatro e jógou tudo pela janela. Dias depois o dono da casa foi viajar e recomendou a Pedro que queria encon-trar o gado muito bem tratado, rindo-se com o tempo. Quando o homem voltou viu que Malazarte havia cortado os beicos dos bois, vacas, novilhos, touros, deixando-os com os dentes de fora, como se estivessem rindo. Náo quis mais conversa. Pagou trés vezeš e mandou que Pedro Malazarte fosse embora antes que ficasse completamente arruinado. Nordeste do Brasil. L.daC.C. Nota - Malazarte em Portugal, Pedro de Urdemales na Espanha, populan'ssimo e velhi'ssi-mo, derrama sua presenca no continente ibero-americano. No Brasil, Lindolfo Gomes reuniu doze episödios no Contos Populäres, I?, 64, e no Vaqueiro e Cantadores, Belo Horizonte, 1984, Colecäo Reconquista do Brasil, vol. 81, divulguei suas proesas em versos no sertäo nordestino. Ramon A. Laval publicou Cuentos de Pedro Urdemales, Santiago de Chile, 1925, Vinte aventu-ras, reeditados em 1943 e em Porto Rico Maria Cadilla de Martinez colecionou facanhas do heroi noRaices de la Tierra, Arecibo, 1941. Ja era citado na cancäo 1132 do Cancioneiro de Vaticana, fins do seculo XV ... chegou Payo de maasArtes. £ o "Pedro de Urde Lamas" dtLozanaAnda-luza (sec. XVI). Miguel Cervantes de Saavedra escreveu uma comedia "Pedro de Urdemales". Citam sua figura astuciosa e alegre Espinel, Lope de Vega, Quevedo, Salas Barbadillo, Montal-bön, Calderön de la Barca. Pedro de Urdemales eres, fala o velho Quintana no segundo ato do Dom Gil de las Calzas Verdes, de Tirse de Molina. D. Francisco Manoel de Melo evoca-o no Re-lögios Falantes. O prof. Aurelio M. Espinosa estudou 68 versöes hispänicas em cinco tipos, Cuentos Populäres Espatloles, 111°, 131-150. £ uma figura legi'tima da novela picaresca castelhana como LazariUo de 'formes, Gusmän de Alfarache, El Buscön, Estebanillo Gonzalez. Correspondendo ao Eulenspiegel europeu ou Uhlakaniana zulu, personagem humano determinando realmente um ciclo tematico na literatura oral e popular, seus episödios mais conhecidos säo somas de te-in.r. diversos que ocorrem noutras histörias, espalhadas no mundo. No II?desta colecäo e moti-vo de entremez de Cervantes de Saavedra, La Cueva de Salamanca, entre 1610 e 1611. O III? aparece em Flandre (Contes de la Flandre, Mt. 1529, Maurits De Meyer, FFC 37) e na Walonia (G. Laport, Les Contes Populäres Wallons, Mt. 1528, FFC 101). O IV?e' o Mt. 1537 de Aarne-Thompson. OV-eo elemento K-112.1, The self-cooking pot. No VI? a ovelha carregada, obri-gando o rebanho a segui-la, e influencia dos carneiros de Dindenault.-Panfagn/e/, VIII, Comment Panurge fit en mer noyer de marchant et les moutons, que Rabelais encontrara na decima pri-meira Macaronee de Merlin Coccaie (Folengo). O BOI LEigÁO Havia um homem muito rico, dono de uma fazenda muito grande. Entre o "gadame" de sua propriedade, possuía ele, nesta fazenda, um boi que eraa "fuló" do curral. Chámava-se o boi, boi Leicáo. E possuía também um vaqueiro que nunca havia faltado com a verdade. Um dia esse fazendeiro foi visitar um seu compadre, também muito rico, que morava noutra fazenda encostada; e, no meio da conversa, teve ocasiáo de lhe dizer que tinha um vaqueiro que nunca havia mentido. - Qual nada, compadre! Eu náo acredito. Se eu que sou um homem branco e rico, minto, quanto mais o seu vaqueiro! ... - Pois, meu compadre, vocé pode mentir, eu náo duvido; mas eu lhe afiango que o meu vaqueiro nunca mentiu nem mentě. — Mentě, compadre! ... - Nao mentě. - Entao vamos fazer uma aposta! ... — Fago a aposta que o compadre quiser. — Pois bem, todos os meus haveres contra os seus. — Esta feito. - Mas tem uma coisa; eu só aceito passada com tinta e papel. Entáo mandaram chamar o juiz de "dereito", o escriváo e o promotor, e pai- saram o preto no branco, com a assinatura deles e de todas as testemunhas presentes. Mas o compadre que propós a aposta e que tinha trés filhas, ás escondidas do outro chamou a mais moca, que era a mais bonita de todas, e lhe disse: — Minha filha, vocé vai fazer os gostos de seu pai. Siga por este "compra-fiado" até chegar na fazenda do compadre. Chegando lá procure a casa do vaqueiro e arranje todos os meios para morar com ele. Uma vez em sua companhia faca tudo para Hic agradar e iludir, e quando fizer trés semanas deseje comer o "figo" do boi Leigáo! ... Peleje com ele e só me saia de lá depois que ele tiver matado o boi, que o amor de uma mulher bonita consegue tudo no mundo, quanto mais fazer um vaqueiro mentir! ... Direitinho como o pai lhe havia ordenado, procedeu a filha. Quando chegou na casa do vaqueiro náo tinha ninguém. Sentou-se no batente da porta e ficou eipe-rando.