14. ENSAIOS*
O problema que pretendo expor é certamente vivenciado por todos cuja meta é escrever sobre um tema "erudito". É este: Devo formulár meus pensamentos em estilo acadômico (isto ó, despersonalizado), ou devo recorrer a urn estilo vivo (isto é, meu)? A decisáo tomada afetará profundamente o trabalho a ser feito. Näo é urna decisäo que diz respeito ä forma apenas. Diz respeito igualmente ao conteúdo. Näo há um pensamento único articulável em duas formas. Duas sentencas diferentes säo dois pensamentos diferentes. A decisáo de tratar de um tema erudito de forma acadé-mica ou de forma viva é a decisäo de tratar desse tema de dois ángulos diferentes. Outros seräo os argumentos apresentados, ou-tras as conclusôes alcancadas, e o proprio tema será apenas apa-rentemente o mesmo. O estilo informará o trabalho.
O problema näo se dá com tema näo-erudito. O estilo acadômico näo se oferece como alternatíva. E o estilo acadômico é um caso especial de estilo. Renne honestidade intelectual com desonestidade existencial, já que quem a ele recorre empenha o intelecto e tira o corpo. Caracteristicamente evita o uso do prono-
* Publicndo no jornal O Estado de S. Paulo, 19/6/67.
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me "eu". Substitui o "ou" pelo bombástico (embora aparentemente modesto)"nós", ou pelo "se", que näo compromete. Näo negarei que tem a sua beleza. É a beleza do rigor, que näo 6 necessariamento um rigor mortis. E essa beleza, que tanto resplandece na matemá-tíca e logica formal, 6 de certa manoira caracteristica do intelecto. Mas afirmarei que o estilo é uma pose. Ninguém pensa academi-camente. Faz de conta que assim pensa. Forca-se a pensar dessa forma. O estilo académico é resultado de um esforgo (se quiserem, de uma disciplina mental), portanto resultado de um primeiro pen-samento; mas é um second thought, um segundo pensamento, já que traducäo de um primeiro pensamento. Näo é espontáneo, é deliberado. A cscolha entre um estilo académico e um .estilo meu é, portanto, meia escolha: falarei espontaneamente ou eseolherei o academicismo.
Como toda escolha, também esta envoi ve o problema da res-ponsabilidade. O academicismo assume a responsabilidade pelo rigor (a validez) do argumenta e minimiza a responsabilidade do autor como pessoa de came e osso (como diria Unamuno). Um estilo vivo assume essa responsabilidade, e subordina a outra; depend© a validez do argumente da validez (do valor) daquele que argumenta. Säo duas maneiras diferentes de empenhar-se. É con-cebivel que o empenho dependa do assunto. Parece dificil imaginär um empenho näo-academico no assunto "anatomia das bara-tas" (embora exista a Metamorföse de Kafka). Mas devo confessar que para mim é dificil imaginär um empenho, mesmo que académico, nessa anatomia. Um tratado sobre a anatomia das baratas tem sempře, quando autěntico, um fimdo mais amplo. É sempre uma preocupa^äo com ma detalhe a ser füfcuramente inserido em contexto mais significativo. E, se for assim, surge também o problema do estilo. O cxemplo é, no entanto, extremo. Crelo que a escolha, no caso da anatomia (ou de assuntos semelhantes), cairá sobro o academicismo como que "naturalmente". Q problema se apresentará com toda a sua forca se o assunto for das ciéncias sociais ou do filosofia. E pretendo considerar esses assuntos,
Denominuroi oa trabalhos sobre esses assuntos, quando em ostilo acadflmico, do "trntndos" e, quando em estilo vivo, de "en-saios". Direi que a Mcolhu antra fazer um tratado e um ensaio é uma döcisflo exiatonciu] no »untido eslrito do termo. Marcará a minhn atitudo pwiuilo o nimi wHMvmto a perante os que leráo o
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meu trabalho,"os metis outros". No caso do tratudo, ponanrei nun ässunto e discutirei com os meus outros. No caso do enauio, vivoroi meu assunto e dialogarei com os meus outros. No primeiro cano, procurarei explicar meu assunto. No segundo, procurarol inipll-čar-me nele. No primeiro caso, procurarei informar os mous outros. No segundo, procurarei alterá-los. A minha deciaflo dependo-rá, portanto, da maneira pela qual encaro o meu assunto e os moun outros. Dependerá da minha identidade. No tratado näo mo assu-mo, assumo o assunto para meus outros. No ensaio, aasumo-me no assunto e nos meus outros. No ensaio, eu e os meus outros säo o assunto dentro do assunto. No tratado o assunto interessa, no ensaio, intersau e intersomos no assunto. A decisäo pelo tratado ó desexistencializante. É a decisäo em prol do "se", do público, do objetivo. A decisäo pelo ensaio é aquela que deve ser contemplada.
Se me decido pelo ensaio, pelo meu estilo, por assumir-me no meu assunto, corro um risco, O risco é dialético: o de perder-me no assunto e o de perder o assunto. Säo os dois perigos fronteiricos dn minha identificacäo com o assunto. Suponhamos que queira fazer um ensaio sobre a tradu$äo e a traduzibilidade. O assunto 6 crudi-to, e poderia pois ter escolhido a forma do tratado. Neste caso podaria ter baseado a minha argumentacäo em autores lidoa, podelia citar esses autores na bibliografia e no texto para diminuir minha responsabilidade e poderia ter-lhes acrescentado algumas eonsideraeôes minhas. O assunto teria ficado mais explicite, o iticuh leítores, mais informados. Escolhi o ensaio. O problema da tradu-eao e da traduzibilidade assume as dimensôes cósmicas do todo problema existencial: abränge tudo. Por exemplo, abrango o problema do conhecimento, que passa a ser um aspocto du traduzibilidade. Abränge o valor, que passa a ser um nspecto dri validez das senteneas traduzidas. Abränge o probloma do aig-nificado e do absurdo, que passa a ser um aspocto don linul.-da traduzibilidade. Em suma: comeco a perder o meu amuiiiiId por ter-me identificado com ele. E simultanoamonto comovo « perder-me nele, já que passo a identificar-me com o» moum dl vor
sos aspectos. No caso, por exemplo, encontro-mo n min..... .....
como um problema de tradu^äo, isto é, como umu miilt.ipli<-iilu<ln de sistemas a serem traduzidos entre si e para um mnt.HKulnl.omn, E o estilo do meu ensaio passará a espelhar, a urUculitľ, n ľnnini lär este meu empenho de corpo e alma.
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Este é o perigo do ensaio, mas esta é também a sua beleza. O cnsaio näo ó a articula(flo do um pensamento apenas, mas de um pensamento como ponta de lanca de uma existencia empenhada. O ensaio vibra com a tensíSo daquela luta entre pensamento e vida, e entro vida e morto, quo Unamuno chamava "agónia". Por isso, o ensaio näo resolve, como o faz o tratado, o seu assunto. Näo explica o seu assunto, e neste sentido näo informa os seus leitores. Pelo contrário, transforma o sou assunto em enigma. Implica-se no assunto, e implica nele seus leitores. Este é o seu atrativo.
A filosoíia e as ciěncias oscilam entre tratado e ensaio. Por isso, podemos falar em filosofia e ciěncias académicas, e em filoso-fia e ciěncias ensaísticas. Essa oscilagáo talvez seja um aspecto do pěndulo "clássico-romántico" ou do pěndulo "apolíneo-dionisíaco" (para falarmos com Nietzsche). Para citar exemplos: a física renascentista é ensaística (Leonardo, Galilei), e acadômica é a física do barroco. A biológia oitocentista é ensaística (Darwin), e aca-děmica, a biológia do século XX. A psicologia analítica é ensaística, e acadômico é o behaviorismo. Mas näo se diga (como parecem sugerir os exemplos) que toda disciplina se inicia pelo ensaio para acabar no tratado. Há exemplos de uma tendencia inversa. Um desses casos me parece ser presentemente a sociológia. Mas o oxem-plo mais significativo dessa oscilacäo é, obviamente, a filosofia.
Há duas filosofias, e o diálogo entre elas assemelha-se a um diálogo entre surdos. A filosofia ensaística, com Platäo, Agostinho, Eckhart, Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Camus, Unamuno. E a académica, com Aristoteles, Tomáš, Descartes, Spinoza, Hegol, Marx, Carnap. Ambas as filosofias tratam dos mesmos assuntos, mas fazem-no apenas aparentemente. Isso torna täo dificil o diálogo entre elas, Porque se invalido o pensamento de um filósofo acadômico, invalidei o seu tratado. Näo bašta, no entanto, invali-dar um pensamento para derrubar um ensaio. Ě precise, para tan-to, desautenticar a sua atitude. A vulnerabilidade do academicismo é different© da do ensaísmo. É, portanto, mais difícil derrubar um Unamuno que derrubar um Carnap. Mas se derrubei Carnap, apenas derrubei o seu pensamento. Se derrubei Unamuno, nada dele resta.
O leitor pode objetar que exagerei enormeraente a antinomia "tratado-ensaio". Que, por exemplo, os ensaios de Hume säo verda-deiros tratados, e que o 7Yactatus de Wittgenstein é, na reaHdade,
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um ensaio. Discordo. Näo negarei que há momentos inspirados nos grandes tratados, nos quais mudam de caráter. Näo negaroi que há ilhas nos grandes ensaios, nas quais o assunto é tratado acade-micamente. Mas insisto que a decisäo é anterior ao trabalho, e que marcará definitivamente todo o seu clima. Bašta abrir um livro "erudito" para sorver de imediato esse clima. E bašta vivenciar o momento de liberdade que antecede a decisäo pelo estilo que infor-mará o meu trabalho.
Nas universidades brasileiras reina o academicismo. Como reagäo talvez ao ensaísmo que predominava no pensamento brasi-leiro até quase os nossos dias. Mas as universidades (como diz seu nome) näo devem ser unilaterais, se pretendem uma erudicáo no sentido mais amplo do termo. Devem ser os lugares geométricos, nos quais o desprezo do academicismo pelo ensaísmo e o nojo do ensaísmo pelo academicismo se superem mutuamente. E isto es-pecialmente num momento no qual, a meu ver, o pěndulo da filosofia (e também de certas ciěncias) tende para o ensaísmo. Provocar esta consideracäo era a meta deste artigo, o qual, certamente, pode ser enquadrado na categoria "ensaio".