aflrmagäo em todos os domínios. Os homens de negócios, os cientistas, os próprios militares, sem falar dos nossos represen-tantes «europeus», tém desta situacäo urna imagem mais clarä que a genérica classe política. Eles sabem que, se o combate fosse perdido, seriam eles que pagariam os custos como, outrora, no século xvi. Eleicôes em vésperas do termo obrigatório do nosso velho «isolacionismo» sem enquadramento europeu e o que ele significa, isto é, relativizacäo objectiva dos resultados de tais eleicôes, podem ser consideradas um acontecimento capital da história do mundo entre o Minho e o Guadiana, mas näo passaräo disso. É pouco para um país que näo se cansa de ter descoberto o mundo e se comporta como se tivesse medo de que a Európa o descubra. E o melhor modo de se esconder concreta-mente dela é continuar a nossa soalheira vida como se a Európa inteira näo estivesse em movimento e em luta para a sua mesma definicäo. E deste movimento que näo podemos estar ausentes, sem saber nem querer saber se a Európa, onde já estamos, será urna sucursal arcaizante dos Estados Unidos ou do Japäo, ou o seu parceiro no implacável jogo planetário que a guerra do Golfo — que parece que näo existiu, o que é exacto para nós e para os nossos guias intelectuais — reactualizou em termos novos. Parceiro e medianeiro, pois näo há outra tradicäo mais aceitável para a Európa do que aquela que, mal ou bem, foi a dela, e onde nós tivemos o lugar que se sabe. Como de nada disto se trata nas próximas eleicôes, elas só poderäo ser, em termos europeus, onde tudo o que importa se joga, um näo-acontecimento. É pena, pois é a última oportunidade que nos é concedida, entre os velhos muros lusitanos, de escolher de olhos abertos a espé-cie de destino europeu que melhor convém aos portugueses que somos. Que partido ou transpartido terá a coragem de centrar a sua campanha privada neste círculo que transflguraria as futuras eleicôes já assumidamente europeias? Agosto de 1991 A Európa no imaginário portugués Há apenas vinte anos, a Europa era, para a generalidade dos Portugueses, alem da escolar realidade geográfica óbvia, uma entidade económica, política, cultural, complexa, de conteúdo e contornos imprecisos. Objecto de fascínio ou de desdém para uma minoria, para a maior parte era apercebida como vagamente ameacadora da nossa paz de espírito e de alma, mas, num caso é noutro, sem auténtica interiorizagáo. A Europa era o que, tendo sido sempře Europa, estava fora de nós e nós dela. Contrariamente ao que se podia esperar, a grande vaga migra-tória dos anos 60, que levou mais de um milhao de portugueses, primeiro até á Franca, depois até á Alemanha, ao Luxemburgo ou á Suíca, se nos aproximou da Europa transpirenaica, se no-la tornou familiar como nunca acontecera, nao aproximou a Europa de nós. De algum modo, tornou-se-nos ainda mais «outra» do que já era antes, uma espécie de Estados Unidos de ao pé da porta. Simultaneamente, a nossa imagem de nacao colonizadora converteu-se em imagem de nacáo emigrante. Nessa época, e sem se dar plena conta disso, o nosso imaginário cultural — so-bretudo aquele que se exprime ou deixa as suas marcas no que se cháma a esfera intelectual — até entáo condicionado de ma-neira ambígua mas profunda pela realidade ou pelas miragens da 104 105 grande cultura francesa, inglesa ou alemä, inicia um certo pro-cesso de desencanto europeu que, apesar das aparéncias, ainda näo terminou. Esse «desencanto» pouco ou nada tem que ver com a expe-riéncia vivida dessa nova Europa-América onde os Portugueses se confrontavam, na dureza do quotidiano, com a dištancia que separa o sonho da realidade. Por maior que tenha sido, nos pri-meiros tempos, a desilusäo emigrante — em breve compensada com a melhoria cada vez mais sensivel das suas condicôes de existencia e de estatuto social — o paradoxal desencanto europeu, em termos de imaginário nacionál, só obliquamente se rela-ciona ou tem a sua fonte no fenómeno da nossa emigracäo moderna. Decerto, toda a emigracäo, como todo o exílio, reforcam a mitologia doméstica, douram a terra abandonada e as suas docuras, sobrevalorizam os referentes de uma identidadc lábil, mas intensa, mais a mais quando se trata de povo täo coeso, a nível simbólico, como os Portugueses. Quando se emigra toda a pátria emigra connosco e o mais humilde ou ignorante transporta, como Eneias, os deuses lares para as novas terras. Nessa década da emigracäo dolorosa para a Europa-Europa, os nossos penates chamavam-se Eusébio, Amália, o Benfica, Nossa Senhora de Fátima, sem hierarquia, mas provavelmente nessa ordem e, para remate de tudo, Camôes, que, mesmo para o emigrante nada letrado queria dizer, quer dizer, Portugal. Na plenitude desta transumäncia europeia, os Portugueses instalam-se, com a naturalidade inconsciente de povo habituado a sair de casa, nessa mítica Europa com que a intelligentsia nacionál dialogou ou sonhou penosamente durante séculos, mas o que verdadeiramente descobrem nela, por auséncia e por con-traste, é, ainda e sempře, Portugal. E o que mais importa, um Portugal visto de fora para dentro, que é de onde se vé tudo. Essa Europa sofrida como obstáculo mas também como desafio, estí-mulo e, por fim, casa propria mais confortável do que a abandonada por necessidade, a bem dizer, näo os desencanta, porque os näo encantava antes, mas transfigura a pequena pátria em lugar de encanto. Quem assistiu alguma vez a festa anual de regresso dos emi-grantes nos fins dos anos 60 só a pode comparar ao éxodo do povo hebraico da terra do Egipto. Mas esta exultacäo para uso e conforto proprio do povo emigrante nem é incorporada pelos Portugueses que näo saíram de casa —quer dizer, quase to-dos— como acontecimento positivo em termos de mitologia cultural, nem apaga a humilhacäo original daqueles que o mais célebre jornal francés, alias sem intencäo malévola, havia rotula-do, realisticamente, de soutiers de I 'Europe. Para os descenden-tes da nacäo marinheira que conduzira o navio-Europa através dos oceanos, esta descida ao poräo europeu podia assemelhar-se a uma descida aos infernos. Só o futuro a poderia transfígurar em aventura de cabouqueiros da mesma Europa. Para raros autores, como era de prever, quando se pensa no papel de figurante nobre da história que os Portugueses sempře se atribuíram, a experiéncia portuguesa da emigracäo foi objecto de apropriacäo mitificante, quer no sentido doloroso, quer no sentido exaltante. Tanto no piano da realidade, como no do fantasma, esse extraordinário fenómeno da nossa «entrada com os pés» na rica Europa foi vivido como clandestino. Só mais tarde, já com o emigrante adaptado ou em vias de adaptacäo aos mode-los de comportamento pragmático, sempře exteriores, dessa Europa, essa experiéncia encontrará em certas obras, como na Floresta de Bremerhaven, de Olga Goncalves, ou no Cais das Merendas, de Lídia Jorge, admirável radiografia da mitologia cultural portuguesa dos anos 70, os ecos dessa «vivencia europeia» como insólita aventura de homens e mulheres de Portugal, ao mesmo tempo perdidos e achados na floresta de enganos e no pais das maravilhas, abstractamente fundidos na imagem sinté-tica da «Europa». Esta Europa de casa que os emigrantes trazem para Portugal cada Veräo, que de certo modo exibem nos seus aspectos mais caricaturais, novidades, gadgets, comportamentos linguísticos e estilos de vida já diferentes, näo familiarizou os Portugueses que ficaram com a Europa real. No melhor dos casos identificam-na com paises, cidades, regiöes, onde o nível de vida é mais alto, o trabalho mais bem remunerado, sem que tal constatacäo impli- 106 107 que qualquer carácter idealizante no piano simbólico. Sáo talvez terras ricas, dinámicas, mas, para eles, sem sonho dentro, sem qualquer apropriacao afectiva e cultural. Essa imagem europei-zante, senao europeia, dada pelo emigrante desmitifica a «outra--Europa», a puramente imaginária, salvo para a camada cultivada ou para a nova classe de managers nacionais, aquela que sempre serviu de referenda, em termo de comparacao ou de partenaire no nosso velho jogo de intercámbio europeu através dos séculos. Exactamente como o fará mais tarde o grande turismo de massa que nos traz náo só a Europa mas o mundo a casa. O Sud--Express dos anos 30 e 40, de Rodrigues Miguéis, herdeiro do que os heróis parisienses de Eca de Queirós utilizavam, fazia sonhar mais com essa Europa dos «raros» do que os futuros avioes da TAP carregados de emigrantes quase ricos e turistas, de nikon a tiracolo. Nao há nesta constatacao nada de original. So com objectos ideais ou idealizados, um imaginário se estrutura. A Europa — ou nela aquelas nacoes tidas por modelos — nunca interessou realmente os Portugueses senáo, por assim dizer, negativamente. Refiro-me sempre ao piano simbólico, as raizes e ramificacoes dos seus sonhos mais obsessivos e constantes, aqueles que estru-turaram os grandes momentos de mitificacao da nossa identi-dade. Quer dizer, ao de Fernao Lopes, que nos separa de Castela, ao de Gil Vicente, que nacionaliza a dramaturgia medieval de estrutura popular e católica nas vésperas em que o humanismo cosmopolitista e elitista por um lado, e o protestantismo por outro, lhe poem fim; e, por ultimo, ao de Camoes, que universa-liza nos moldes desse mesmo humanismo a nova identidade que um século de descobertas e de imperialismo frágil Portugal assu-mirá, separando-se aqui, e de algum modo para sempre, da outra Europa, de que é entáo margem e vanguarda. Para o nosso destino como europeus a part entiěre, envolvi-dos a fundo na querela europeia que na ordem religiosa, politica e intelectual inventará as nacoes transpirenaicas como actores da modernidade, esta precoce solidificacáo do nosso imaginário, que nos confere uma estranha superidentidade, instala-nos numa maneira de ser europeus que nao tem simil no Ocidente, nem mesmo na vizinha Espanha, pedra mestra dessa querela intra--europeia até ao tratado dos Pireneus. A nossa deriva extra-euro-peia que se tornará, ou j á é, sem que a outra Europa se dé conta disso, deriva da propria Europa Ocidental no espaco planetário que ela mesma cria derivando, näo interrompe naturalmente nem os lacos económicos, nem os fios políticos, nem o diálogo reli-gioso, cultural ou artístico que desde sempre os Portugueses entretiveram com nacôes da Europa crista. Nos primeiros anos do século xvi os Portugueses éram europeus que iam á India buscar mercadorias, que os enriqueciam menos do que aos grandes centros da Europa mercadora a quern, em última análise, se destinavam. Mas ao longo do século xvi e de čerta maneira até hoje, os Portugueses converteram-se em ocidentais perdidos e achados no Oriente que os seduz e lhes fornece mais matéria de ficcäo vivida do que a madre Europa. Nem todos os Portugueses consciencializam como os nossos grandes viajantes ou diplomatas do século de ouro, Tomé Pires, Duarte Barbosa, ou como os integradores supremos desse Oriente na nossa imaginacäo, Camôes e Fernäo Mendes Pinto, essa objectiva deseuropeizagäo do nosso imaginário. Há séculos que o nosso frágil império índico näo é vivido como referencia vital, económica, guerreira e politica pelo pequeno pais do Ocidente que primeiro aí se instalou, sem metafora, com armas e baga-gens. Todavia, mesmo após o fim do seu império colonial e de um certo discurso que o acompanhava, os Portugueses de hoje, neste momento mesmo, podem mobilizar-se pelo ultimo vestígio da nossa aventura oriental, o longínquo e, para a maioria deles, totalmente desconhecido Timor, como o näo fariam nunca por qualquer cruzada europeia. É á Europa —e mesmo ao mundo— que pedimos para restaurar direitos naquilo que sentimos ainda, sobretudo depois de perdido, como urna parte de nós mesmos. E contra a Europa que nos näo ouve ou näo é solidária da nossa emocäo, ao mesmo tempo justificada por atrocidades reais e pelo eco da nossa me-mória oriental, reavivamos reflexos só comparáveis aos que há um século o ultimate inglés desencadeou em Portugal. Assim, no mais profundo deles mesmos, europeizados empiricamente como 108 109 nunca o foram, os Portugueses näo se percebem espontanea-mente como «europeus», senäo quando a Europa os percebe superlativamente como Portugueses. O imaginário que a nossa crucial aventura extra-europeia, sobretudo a do século xvi, nos fabricou, a segunda dimensäo que criou, tanto mais decisiva quanta a sua estrutura releva mais do puro onirismo compensatório do que de uma relacäo objectiva entre realidade e desejo, tem o seu ponto de fuga nesse sonho imperial, de que o mito do Quinto Império é a traducäo mais acabada e näo em qualquer forma de Utopia de que a Europa sej a o alvo. A primeira vista este desfuncionamento ou desfasagem entre o que nós apresentamos, como tipico do imaginário cultural portugués, quer dizer, o seu real desinteresse por qualquer objec-tivo histórico e cultural de perfil europeu capaz de suscitar urn investimento profundo, a nível nacionál ou pessoal, parece des-mentido hoje pela omnipresenca da temática europeia em todos os dominios. Näo há projecto algum de relevo, quer na ordern económica, fínanceira, comunicacional, pedagógica, técnica, científica e até cultural que näo releve da preocupacäo europeia, que näo se apresente já redimensionado, como se diz, ä escala europeia. De um certo modo, em Portugal, como nos outros países do Ocidente, tudo está já escrito em europeu. A Europa, uma certa realidade entrevista como Europa, é o baróo que nin-guém, minimamente realista ou cínico, deseja perder. Que mais näo seja, emprestam ä Europa uma aura mítica aqueles que, sendo europeus, estäo ainda fora da Comunidade ou próxima Uniäo Europeia, com o sentimento de excluídos. É por de mais evidente que estar dentro, mau grado a imprecisäo ou os temo-res que esta nova situacäo representa para as velhas nacöes eu-ropeias, é um privilégio. Há, actualmente, na genérica opiniäo portuguesa, uma cons-ciéncia mais aguda desse privilégio do que havia apenas há trés anos, tais as vantagens extraordinárias que Portugal retirou da sua entrada na Comunidade Europeia. Essa consciéncia subiu mesmo de grau com o facto de Portugal ter presidido aos desti-nos da mesma Comunidade. Nenhum facto nos europeizou mais, mentalmente, do que este papel. Talvez a Europa se aprenda marchando, praticando-a, como tudo mais. Todavia, quer isto dizer, realmente, que o nosso interesse profundo pela Europa, a nossa consciéncia europeia de Portugueses sofreu uma mutacäo na ordern simbólica correspondente a nossa vida quotidiana de padröes cada vez mais próximos dos daquela Europa que durante séculos constituiu para nós um termo de comparacäo obrigatório ou um modelo a imitar nas suas solucöes económicas, políticas, ideológicas, costumes e até criacöes culturais? Que desde há sete anos, data da nossa entrada oficial na Comunidade Europeia, os Portugueses mudaram, querendo-o ou näo, de estatuto, é um facto, embora diversamente interiorizado. Deixaram de estar imaginariamente sós, fonte ambígua de ostrá-cismo e singularidade cultivada quando essa solidäo näo era nem a da Albania, de Andorra ou da Irlanda, mas a de uma vasta familia pelo mundo repartida. Para os objectivos realistas e ime-diatos da vida nacionál, a entrada na Europa tapava a ferida deixada pela liquidacäo da heranca colonial. Aderir ä Europa era contar com a ajuda alheia para resolver os problemas próprios, alguns velhos de séculos. Essa Europa era espaco de democracia assegurada, de liberalismo económico temperado com alguma preocupacäo social ou fortaleza contra o ainda omnipresente e omnipotente imperialismo soviético. Foi nessa perspectiva que o partido entäo maioritário, num momento em que essa Europa ou o Ocidente em geral temeram que Portugal se convertesse numa Cuba europeia, recorreu ao famoso slogan «A Europa connosco». Isto näo significava entäo que a Europa, salvo como modelo politico e ideológico, se tivessse tornado para nós uma terra de promissäo ou um objecto de profunda identificacäo, mas apenas uma aliada capaz de nos preservar de um destino ressentido como intolerável pela maioria dos Portugueses. A primeira vista, o regresso ä Europa representado pelo fim do império colonial e a já hoje longínqua «revolucäo das flores» podiam passar como um momento de «europeizacäo forcada», uma desafeicäo em relacäo ao nosso imaginário clássico, épico, em suma, uma redescoberta de nós mesmos como necessaria-mente europeus e da Europa como nosso horizonte e vocacäo 110 111 incontornáveis. Na medida em que o fenómeno «revolucäo das flores» foi um acontecimento europeu, uma situacäo que a Europa democrática e näo democrática viveu com atencäo e mesmo paixäo, na medida sobretudo em que na ordern política punha fim, com uma suavidade toda lusitana, exemplar, lírica, ao nosso isolamento internacional, podemos falar de momenta europeizante. A nossa boa imagem no espelho europeu, a adopcäo de que fomos objecto por parte da intelligentsia europeia — sobretudo a de esquerda ou extrema-esquerda, naturalmente — reconcilia--nos entäo, como há muito näo acontecia, com a Europa. Sartre, o referente mítico dessa Europa que näo sabia ainda que era a Penúltima Europa, como lhe chamou Silvério Vertone, visita--nos e com ele uma čerta tradicäo de Utopia europeia de uma nova sociedade, torna por instantes uma cor portuguesa. Trata-va-se, tratou-se, naturalmente, de uma ficcäo, mas a nossa ficcäo integrava o que restava de ficcäo revolucionária europeia. Em nossa casa os Maurice Duverger, os Alain Touraine vinham examinar com curiosidade de etnólogos da política a ultima ten-tativa ocidental europeia de escapar, em sonhos, ao destino de um Ocidente que entrava em conjunto na era do hipercapitalis-mo e na sociedade da abundäncia. Nesse momento duplamente onírico —a Europa a sonhar com um Portugal imaginário e Portugal a viver superlativamente na Europa — pode dizer-se que a Europa oferecia á nossa imaginacäo um quadro de referenda, de intercambio a nível simbólico de uma čerta reciproci-dade, o que raramente aconteceu na nossa história de hipereuro-peus sem Europa. A fugacidade desse momento de plena e eufórica represen-tacäo de nós mesmos no palco alheio, o regresso, se näo a queda da ilusäo lírica da revolucäo na prosa democrática banal de um pais que, nesse capítulo, näo tinha um passado exemplar, näo obsta a que se considere essa experiéncia como decisiva no piano do símbolo. A esse nível, o nosso relacionamento com a Europa sofreu desde entäo uma mutacäo. Näo esqueceremos mais esse momento de reciprocidade, como vivéncia de euro-peus «como toda a gente», o que quer dizer que deixámos de pensar na Europa como espaco de indiferenca ou objecto de complexado ou ressentido relacionamentö. Em sintonia com o movimento de conversäo real da nossa vida colectiva para a Europa, exigimos Europa, admitimos por conveniencia realista mas tambem ideal que ao fim e ao cabo estävamos trocando a nossa clässica posicäo de filhos naturais da Europa pela de filhos legitimos. A nossa entrada na Europa, que podia ser apenas aproxima-cäo forcada e exterior, como em parte o continua sendo, era —• e — tambem entrada da Europa em nös, confronto e partici-pacäo näo apenas nos mecanismos de construcäo europeia, mas imersäo mais intensa, mau grado as aparencias em contrario, no magma complexo da heranca cultural e simbölica da Europa. Em particular, naquele que ate hä pouco nos era menos familiar, o das nacöes näo-hegemönicas culturalmente falando, como se instintivamente o nosso interesse pelas suas culturas — da Ho-landa, da Belgica, da Hungria, da Checosloväquia, da nova Alemanha, dos paises nordicos — equilibrasse o antigo fascinio pelos espacos culturais a que sempre föramos mais sensiveis: a Franca, em primeiro lugar, e a Inglaterra. Acontecimento memo-rävel, a Espanha como objecto de consideracäo e de referenda para o nosso diälogo profundo connosco mesmo, mediatizada pela mesma pulsäo europeizante, recupera aquele lugar, outrora soberano, que ocupara na nossa vida espiritual, como nos nos tornamos mais familiäres ao seu proprio discurso cultural. O facto de referir aqui paises que näo pertencem äquilo que e presente-mente a Comunidade Europeia ou que serä a uniäo europeia significa naturalmente que a Europa de que estamos falando como presenca significativa no nosso imaginärio näo corres-ponde ä sua realidade politica, nem social, nem econömica, a näo ser na medida em que exprimem obsessöes, interesses ou desejos da nossa «realidade simbölica». Ora, o que e estranho, quase inexplicävel, e o facto de que, mau grado a maior intimidade com o conjunto da cultura europeia, ou melhor, com as plurais culturas que nös, miticamente, reportamos ä Europa — a comecar pela nossa — a mitologia europeia como tal, a Europa como temätica, como destino ou 112 113 mesmo a propria construcao empirica da Europa a que queremos aderir e cuja adesáo nos interpela e responsabiliza nao ocupa no nosso imaginário um higar de relevo. Pragmáticos, aceitamos a Europa como uma fatalidade, nao como uma opcao que profun-damente nos implique. Qual a razao por que aquilo que já pode-mos considerar como o acontecimento de consequéncias mais extraordinárias e imprevisiveis que Portugal viveu desde a sua constituicao como entidade propria, a previsivel mutacao do seu estatuto de nacao soberana, deixa impávida a consciéncia nacionál e parece nao afectar o teor e a trama dos nossos comporta-mentos e reflexos culturais? Será que, no fundo, nao cremos — o que se chama crer — que a «Europa» realmente já exista ou venha a existir para alem da sua expressao estritamente económica? Ou será antes porque, embora crendo viável essa Europa em termos de super-Nacáo, cremos ainda com mais fervor e forca que essa hipotética reali-dade supranacional, ao fím e ao cabo, em nada alteram as heran-cas simbólicas de cada uma das suas componentes culturais e entre elas, claro está, a nossa? O facto é que nós, que tanta vez «problematizámos» as nossas relacoes históricas, ideológicas, religiosas ou, latamente, culturais com a grande Europa — por exemplo, no momento da Reforma, na época das luzes, no periodo revolucionário e liberal, na época totalitária— estamos já a bordo, embarcados na grande nau-Europa, sem nos termos jamais seriamente preocupado nem com a natureza nem com a finalidade da viagem. Nao foi apenas em termos politicos, mas em todos os outros, que a nossa opcao europeia — acaso inevitável e necessária — nunca ou pouco foi pensada como conviria que o tivesse sido. É este ndo-pensado da nossa aventura europeia que, de subito, reaparece — e náo só para nós, Portugueses — sob figura preo-cupante, como é sempře a de todo o impensado, perturbando do interior a imagem da nossa Europa euforizante, aquela a que aderimos. Pela simples queda de um muro — é verdade que de uma natureza particular — todo o contexto que durante quase meio século enquadrava a invencao de uma nova forma de ser Europa, se desestruturou, fragilizando o projecto europeu comu- nitário e reactivando históricos reflexos nacionais e nacionalis-tas que pareciam arcaicos e mobilizando o nosso imaginário como a utopia europeia näo foi capaz de fazer. Em poucos meses, ao «mais Europa», no piano do real, substituiu-se o «menos Europa», no piano simbólico. Neste momento, tudo se passa, como se, da aventura europeia, esperássemos menos uma nova dimensäo, ampliando e reforcando a que já somos e temos como Portugueses, do que näo sei que inaceitável dissolugäo da nossa alma. Os ecos, na nossa imprensa, desta inquietacäo ou deste pänico säo numero-sos — näo se resumem todos na famosa alegória da Jangada de Pedra — embora o discurso europeísta vigente näo pareca afec-tado por eles, talvez porque, no fundo, esse mesmo discurso é, em grande parte, para «europeu ouvir». Na verdade, no actual momento, assistimos a uma espécie de vaga de fundo neonacio-nalista, protagonizada por actores ainda há pouco situados em quadrantes opostos. Essa vaga reactiva o clássico nacionalismo portugués, substituindo a mera exaltacäo do que é nacionál — da paisagem ás criacöes artísticas — pelo interesse por tudo o que a nossa antiga mitologia épica e colonizadora tinha ocultado ou deixado na sombra. Este «outro Portugal» no seu afä antieuropeu descobre dentro de si os seus índios, quer dizer, o nosso fundo árabe ou a nossa dimensäo judaica, por exemplo. O esquema destas «restaura-cöes» obedece menos ao imperativo de enraizamento nesse pas-sado oculto do que ao propósito de nos separar ainda mais da mitologia clássica europeia. Esta redescoberta do nosso rundo árabe, a exultacäo que produz tudo quanta possa contribuir para que a nossa imagem seja a menos europeia possiveJ, traduz bem melhor do que todas as litanias europeizantes o movimento do nosso inconsciente colectivo como desinteressado do que, durante séculos, parecia ter comandado as expressöes significa-tivas do nosso imaginário. Essas jangadas de papel säo os bar-quinhos, por enquanto frageis, em que, na hora de apontar á Itaca europeia, nós emigramos para outro sitio, esse mágico sítio, onde, sem espaco, continuaremos a ser ainda os actores da história e näo subalternos comparsas. 114 115 Recentemente, o nosso pnmeiro-ministro, europeísta convicto, afirmou que, no fim de contas, Rabat estava mais perto de nós do que Madrid... Näo creio que se referisse a distäncias geo-gráficas, mas de alma. Näo sei também se é uma versäo moderna do velho dito de César de que é melhor ser o primeiro em Cápua do que o segundo em Roma. Mas näo era possível sublinhar melhor até que ponto a perspectiva da nossa «integracäo» na Europa — e provavelmente a de muitos outros —, quer dizer, na Europa real, com o confronto que supôe, estimula menos o nosso ŕmaginário do que a antiga dištancia que nos separava simbólica e dolorosamente da «grande Europa», mas nos permi-tia imaginär que éramos senhores na nossa propria casa. O cha-mado «desafio europeu» é este e näo está assente que o queira-mos ganhar. O outro — o da ordern material, exterior — essa Europa o ganhara por nós, mesmo sem nós. Vence, Fevereiro de 1992 A Europa a votos Näo é improvável que nos idos de Setembro deste ano, ainda cheio de ecos comemorativos, em geral eufóricos, a Európa su-cumba como um dos seus mitos literários mais populares, sob os muros de Maastricht. Mais consciente das suas fraquezas do que das suas forcas, a patria de d'Artagnan, pošta diante do dilema do dizer «sim» a uma Európa que ela mesma, mais do que ninguém, foi construindo, conhece neste momento a tenta-cäo inesperada, quase vertiginosa, de dizer «näo» ao Tratado que o seu governo negociou. Antes de férias, a aprovacäo ao mesmo Tratado, com raras excepcôes, parecia näo constituir problema de maior. As duas assembleias, Parlamento e Senado, votaram a modificacäo da Constituicäo necessária para ratificar o Tratado. Implicitamente, essa maioria, como se fez noutros países, sem que isso implicasse menor desprezo pela opiniäo pública, pódia interinar, também pela via representativa, essa ratificacäo. Foi o que fez a Inglaterra, a Espanha e Portugal, países onde, com excepcäo da Inglaterra, nem a construcäo europeia, nem os novos dispositivos do Tratado de Maastricht, tinham sido mais discutidos do que em Franca, habituada a discutir-se a si e ao universo. Que aconteceu entäo para que de um estado quase 116 117